Como entrar em contato com o Criador

_MG_5343Pe. José Victorino de Andrade, EP

Deus criou o homem com a capacidade de se comunicar1 e, através de manifestações exteriores, exprimir aquilo que vai no seu íntimo. Poderá fazê-lo através de palavras, gestos, sinais, ou mesmo expressões fisionômicas que expressem uma reação, atitude, desejo ou postura diante de algo ou alguém. Esta disposição leva mesmo a que ele se desprenda do egoísmo e da auto-suficiência, e a uma abertura relativamente àquilo que o rodeia, e mesmo ao sobrenatural.2

Deste modo, entre todos os seres vivos, ele é o único dotado de uma tal criatividade que, a partir de um número finito de palavras passíveis de serem contidas num determinado dicionário, é capaz de elaborar infinitos sistemas, sem contar o recurso à criatividade e a sentenças que podem mesmo chegar à agramaticalidade3 porém, facilmente reconhecíveis e até decifráveis por parte de outro falante ouvinte que partilhe a mesma língua ou domine idêntico conjunto de códigos linguísticos. E até ao fim de sua vida, ele poderá emitir ou receber formulações sempre novas e fecundas, capazes de surpreender e abrir novas perspectivas, contribuindo deste modo para um renovado impulso da comunicatividade e abertura tanto ao próximo como ao transcendente.

Porém, foi o próprio Deus que tomou a iniciativa e quis comunicar-se aos homens. Fê-lo por meio da criação, estabeleceu uma aliança com os homens, “muitas vezes e de muitos modos falou aos nossos pais, nos tempos antigos”, e nestes tempos, que são os nossos, “falou-nos por meio do Filho” (cf. Hb 1, 1-2). Aliás, ninguém melhor do que Ele para dizer-nos quem é o Pai. A Exortação Apostólica Verbum Domini lembra-nos também o papel da sua esposa mística, a Igreja, enquanto transmissora da Revelação, “através da obra do Espírito Santo e sob a guia do Magistério”:

“A Igreja vive na certeza de que o seu Senhor, tendo falado outrora, não cessa de comunicar hoje a sua Palavra na Tradição viva da Igreja e na Sagrada Escritura. De facto, a Palavra de Deus dá-se a nós na Sagrada Escritura, enquanto testemunho inspirado da revelação, que, juntamente com a Tradição viva da Igreja, constitui a regra suprema da fé” (n. 18).

Quanto a outras formas do Senhor comunicar-se aos homens, o Catecismo da Igreja Católica não deixa de assinalar os sacramentos, sendo Cristo que neles age e comunica a graça que significam (cf. n. 1127). E para não delimitar a questão, que jamais se encerra aqui, bastaria considerar que o Espírito faz ouvir a sua voz e age onde quer, conforme explica o próprio Jesus por ocasião de sua conversa noturna com Nicodemos (cf. Jo 3, 8).

Ora, uma vez que Deus é pródigo em comunicar-se, cabe ao homem estar atento, não só vigilante, mas também orante, (cf. Mt 26, 41) ou seja, respondendo à interpelação que lhe é dirigida e cuja fé exige, além do mais, as obras (cf. Tg 2, 14-26). É inerente ao homem, enquanto ser simultaneamente corporal e espiritual, uma necessidade de entrar em contato com o Criador. Deverá fazê-lo por meio de “sinais e símbolos materiais”, conforme nos explica o Catecismo: “Como ser social, o homem precisa de sinais e de símbolos para comunicar-se com os outros, pela linguagem, por gestos, por ações. Vale o mesmo para sua relação com Deus” (CIC 1146).

São Tomás de Aquino afirma ser a nossa peculiar linguagem obra própria da razão, uma porta para o homem manifestar o que vai no seu íntimo.4 E descreve o reto processo da linguagem desta forma:

“[A potência intelectiva] primeiro, apreende simplesmente algo e esse ato se chama inteligência. Depois, ordena o que ela apreendeu para conhecer ou operar alguma outra coisa, e é a intenção. Enquanto persiste na investigação daquilo a que se propõe, pensa. Ao examinar o que refletiu em função de princípios certos, conhece ou sabe; então a sabedoria leva a julgar […] Quando já possui alguma coisa como certa, porque foi comprovada, pensa na maneira de comunicá-la aos demais: e é a disposição da palavra interior, da qual procede a linguagem”.5

De modo semelhante, mesmo quanto ao processo, surge a elevação da mente a Deus, ou seja, a oração, que poderá ser vocal, e manifesta a fé do crente enquanto “rationabile obsequium” (cf. Rm 12, 1). O primeiro termo aparece também na oração eucarística do Cânone Romano, onde se reza para que Deus aceite a oferenda como “rationabile“. Mas esta disposição interior parece não ser suficiente, íntegra ou mesmo coerente, se não se manifestar e comunicar aos demais, através do testemunho e da autenticidade na vida e nos atos do crente. Entende-se então a necessidade de prestar a Deus um culto que não seja meramente interno, o que o tornaria incompleto, mas de um culto externo, que deve repercutir na esfera pública, dado que toda a sociedade é devedora de Deus, e desta forma, deve render-lhe um culto público.6

E como lembrava Paulo VI, baseando-se na Sacrosanctum Concilium (n. 13), já no último ano de seu pontificado: “O que é a liturgia senão o culto público da Igreja, sua voz comunitária dirigida ao mistério de Deus Pai, por meio de Cristo, no Espírito Santo?”.7 E acrescenta a necessidade não só da expressão colectiva das vozes dos fiéis, como também a “obrigação e possibilidade do diálogo pessoal com Deus”.8 A interatividade que deve existir no diálogo entre Deus que interpela, e a resposta do crente, deverá levar a que a “semente do Reino produza seu fruto na terra fértil”. E por isso “as ações litúrgicas significam o que a Palavra de Deus exprime: a iniciativa gratuita de Deus e ao mesmo tempo a resposta de fé de seu povo” (CIC 1153).

Ainda que a nossa linguagem pareça ser insuficiente, não só para explicarmos quem é Deus, como também para nos dirigirmos a Ele, não nos esqueçamos de que o “Verbo fez-se carne” (Jo 1, 14), e assumindo a condição humana (cf. Fl 2, 7), semelhante a nós em tudo exceto no pecado (Hb 4, 14), falou aos homens (cf. Hb 1, 2). Por isso afirma a Dei Verbum: “As palavras de Deus com efeito, expressas por línguas humanas, tornaram-se intimamente semelhantes à linguagem humana, como outrora o Verbo do eterno Pai se assemelhou aos homens tomando a carne da fraqueza humana” (n. 13).

“Assim falando de Deus, nossa linguagem se exprime, sem dúvida, de maneira humana, mas ela atinge realmente O próprio Deus, ainda que sem poder exprimi-lo em sua infinita simplicidade” (CIC 43). E para São Tomás de Aquino, esta simplicidade não fica comprometida quando a Deus se atribuem algumas coisas, uma vez que partem do conhecimento que possui nosso intelecto relativamente aos efeitos divinos, cuja relação têm Nele seu fim.9

E quanto a dirigir-nos a Deus, é sempre possível, mesmo recorrendo ao emprego de palavras humanas, pois a melhor referência e o exemplo foram oferecidos pela segunda pessoa da Santíssima Trindade, que assim nos ensinou a orar: “Pai nosso…” (Cf. Mt 6, 5-15; Lc 11, 1-4).

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1 Adão nomeia todos os seres vivos (cf. Gn 2, 20), dirige-se a Eva, mulher que lhe foi dada para não ficasse só e que constituía com ele uma só carne (cf. Gn 2, 23-24) e ela, por sua vez, responde à indagação da serpente (Gn 3, 2). Estão compreendidas, nestas três passagens, as primeiras palavras registradas nas Sagradas Escrituras.

2 São Tomás de Aquino refere-se várias vezes à natureza social do homem e da sua necessidade. Ver, por exemplo, S. Th. I, q. 96, a. 4; S. Th. I-II, q. 61, a. 5. Cont. Gent. III, c. 128; 129; 131.

3 Quanto a essa questão, ver o excelente capítulo a ela dedicada no manual de GOUVEIA, Carlos et al. Introdução à Linguística Geral e Portuguesa. 2. ed. Lisboa: Caminho, 2006.

4 Cf. S. Th. I-I, q. 91, a. 3; S. Th. I-I q. 107, a. 1.

5 S. Th. Q. 79, a. 10, resp. 3.

6 Tanto os autores clássicos como Jolivet, Collin, nos seus manuais de Filosofia de inspiração tomista, quanto os mais recentes, como CHALMETA, Gabriel. Ética social: familia, profesión y ciudadanía. 2a. ed. Pamplona: Eunsa, 2003 defendem esta necessidade do culto público. Também a constituição conciliar Sacrosanctum Concilium, como os decretos Apostolicam Actuositatem e Christus Dominus dedicam alguns parágrafos a esta temática.

7 PAOLO VI. Udienza Generale, 12 abr. 1978. Disponível em: <www.vatican.va>. Último acesso em 5 set. 2011. (Tradução nossa).

8 Loc. cit.

9 Cf. Cont. Gent. II, c. 13-14, 3-4.

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