Ciência e ideologia

Pe. François Bandet, EP
A autêntica ciência não tem a necessidade de formar uma ideologia em torno de controvérsias com outras disciplinas. Assim sendo, o conflito da ciência não é com a Fé, mas com as interpretações filosóficas da Fé. A ciência e a Fé não estão em contradição. Afirmar que são inimigas uma da outra é uma das grandes distorções culturais dos tempos modernos. A vulgarização da ciência é o problema e é, geralmente, fruto de uma questão ideológica.
Essas distorções devem-se ao fato de os pseudo-cientistas caírem em certos esquemas, promovidos muitas vezes por interesses econômicos ou políticos. A descrença não é fruto das novas descobertas e do progresso, mas de ideologias.
“Nós devemos defender a liberdade religiosa contra a caracterização de uma ideologia que se apresenta como se fosse a única expressão da razão […]”(J. RATZINGER, La Repubblica, 19 November 2004, Interview of Cardinal Ratzinger with Marco Politi).
Na verdade, hoje, para entender o homem, a humanidade volta-se para a ciência, embora esta não pareça dizer nada acerca do homem: suas preocupações, suas alegrias, seus medos etc.
A Fé e a sua experiência transcendental poderá ajudar a ciência a ultrapassar essa dimensão utilitarista do conhecimento e se abrir à verdade que é, ao mesmo tempo, esperança e fidelidade.

A universalidade da lei natural

Pe. Leopoldo Werner, EP
A lei natural é universal e igual para todos os homens, pois possuem a mesma natureza racional criada por Deus. Está inscrita no íntimo do seu coração e tem seu papel no desenrolar dos acontecimentos históricos e no aperfeiçoamento de todas as potências da alma e do corpo que refletem, por sua vez, em todas as atividades e instituições humanas.

Na verdade, o caráter de universalidade e obrigatoriedade moral estimula e impele o crescimento da pessoa. Para se aperfeiçoar na sua ordem específica, a pessoa deve praticar o bem e evitar o mal, deve vigiar pela transmissão e conservação da vida, aperfeiçoar e desenvolver as riquezas do mundo sensível, promover a vida social, procurar o verdadeiro, praticar o bem, contemplar a beleza (JOÃO PAULO II, 2002: 5).
É uma lei universal que não admite privilégios nem distinções de raças, sexo, idade ou fortuna. Ela não precisa ser promulgada para ser conhecida pelos homens, por isso não pode ser objeto de uma ignorância invencível. Esta universalidade se impõe a todos os homens de todas as épocas. Ela respeita, no entanto, a individualidade, unicidade e a irrepetibilidade de cada ser humano. Ela abraça pela raiz todos os atos livres, e é uma bússola que norteia os atos humanos rumo ao fim último.
Essa mesma universalidade, em vez de ser um entrave para o desenvolvimento do gênero humano, pede que todos procurem a perfeição em
Referênciassuas atividades e realizem um progresso no conhecimento da verdade e das ciências em todos os campos.

JOÃO PAULO II. Discurso aos participantes na Assembléia Geral da Academia Pontifícia para a Vida. 27/2/2002 In: AAS 94 (2002).

Belém, os Magos e Herodes

Mons. João Clá Dias, EPmagos

“Tendo, pois, Jesus nascido em Belém de Judá, no tempo do rei Herodes, eis que Magos vieram do Oriente a Jerusalém”.

Como nos diz São Paulo: “Se a tivessem conhecido [a misteriosa sabedoria de Deus], nunca teriam crucificado o Senhor da glória” (I Cor 2, 8). Não era dos desígnios de Deus que o nascimento de Jesus Menino fosse manifestado a toda a humanidade, pois isso provavelmente impediria que se realizasse a Redenção. Por outro lado, se Sua vinda ao mundo fosse acompanhada por sinais fulgurantes e grandiosos, seriam anulados os méritos da fé.

O nascimento, sinal prévio da segunda e plena manifestação

Por estes e outros motivos, nos explica São Tomás de Aquino: “É inerente à ordem da sabedoria divina que os dons de Deus e os segredos de sua sabedoria não cheguem da mesma forma a todos, mas que cheguem imediatamente a alguns e, por meio deles, se estendam aos outros. Assim, no que concerne ao mistério da Ressurreição, diz o livro dos Atos: ‘Deus ressuscitou Cristo ao terceiro dia e Lhe concedeu manifestar a sua presença, não ao povo em geral, mas às testemunhas designadas de antemão por Deus’. O mesmo devia ser observado em relação a Seu nascimento: que Cristo não Se manifestasse a todos, mas a alguns, por meio dos quais poderia chegar aos outros”.3

Várias também são as razões pelas quais a Providência Divina escolheu primeiro os judeus, e só depois os gentios, para manifestar o nascimento de Jesus. Claro está que tendo Deus um especial apreço pelo princípio de hierarquia, deveria preferir iniciar Sua grande obra pelo Povo Eleito. Daí continuar a discorrer sobre esse pormenor o mesmo Doutor Angélico:

“A manifestação do nascimento de Cristo foi uma antecipação da manifestação plena que haveria de vir. E assim como na segunda manifestação a graça de Cristo foi anunciada por Cristo e por Seus Apóstolos, primeiro aos judeus, e depois aos pagãos, assim também, os primeiros a aproximar-se de Cristo foram os pastores, que eram as primícias dos judeus e estavam perto; depois vieram os Magos, de longe, como ‘primícias dos pagãos’, na expressão de Agostinho”.4

Considerações e profecias

Quanto à referência à cidade de Belém de Judá neste versículo, devemos considerar a afirmação feita pelo próprio Salvador, décadas mais tarde: “Eu sou o pão vivo que desceu do Céu” (Jo 6, 41). Por isso fazem os comentaristas uma aproximação entre o significado do nome Belém – ou seja, “casa do pão” – e a instituição do Sacramento da Eucaristia, Pão dos Anjos. Havia uma outra Belém, ao norte, na terra de Zabulon, daí procurar o Evangelista especificar a tribo de Judá.

O rei Herodes, na realidade, não pertencia à raça dos judeus, pois era idumeu. Chegou ao trono por apoio dos romanos, devido a lhe serem contrários os judeus, por se tratar de um estrangeiro. Foi muito habilidoso, restaurando com esmero o Templo de Jerusalém, no intuito de que se esquecessem de suas origens. Porém, sua fama perpetuou-se pelas grandes máculas de seus costumes dissolutos e de sua crueldade.

Sobre este particular, pondera Teodoro de Mopsuéstia: “O patriarca Jacó havia já discernido com exatidão esse momento, ao dizer: ‘Não se apartará o cetro de Judá, nem o bastão de comando dentre seus pés, até que venha aquele a quem pertence por direito, e a quem devem obediência os povos’ (Gn 49, 10). Mateus apresenta esses dados para, por meio deles, pôr em evidência que tudo estava correndo de acordo com as palavras proféticas. Por um lado, o profeta tinha dito que nasceria em Belém (cf. Mq 5, 1); por outro, o fato de ocorrer isso no tempo de Herodes cumpria, ademais, a predição de Jacó. Primeiro reinou sobre eles a estirpe de Davi, da tribo de Judá, irmão de Levi, mas a descendência provinha da estirpe de Judá, que se mesclara com a tribo levítica, especialmente com sumos sacerdotes, e tinham prerrogativas reais. Em seguida – depois que os irmãos Aristóbulo e Hircano disputaram entre si o poder – a dignidade real passou finalmente para Herodes, o qual não era judeu de raça, por ser filho de Antípatro, o idumeu. Foi então, no tempo desse reinado, que apareceu Cristo Senhor, não havendo mais reis e governantes do povo judeu”.5

Mateus se cala sobre maiores detalhes a respeito dos Magos; daí a multiplicidade de hipóteses e a não pouca divergência entre os autores sobre este particular. Entretanto, podemos afirmar que o nome Magos não deve ser tomado com as conotações próprias aos nossos tempos. Naquela época, significava pessoas de certo poder e muito distintas, em especial pelos conhecimentos científicos, sobretudo de astronomia. Além disso, a tradição nolos apresenta como reis. É também por tradição que consta serem três, terem sido batizados mais tarde por São Tomé Apóstolo e, tempos depois, martirizados. As relíquias dos Reis Magos foram veneradas recentemente por um Papa. Nosso Pontífice Bento XVI, felizmente reinante, visitou a catedral de Colônia para diante delas rezar, em 18 de agosto de 2005, por ocasião da XX Jornada Mundial da Juventude.

Sobre o país de origem – Caldeia, Arábia ou Pérsia -, o que consta são puras hipóteses; como também quanto ao momento da chegada deles a Jerusalém e a Belém, que parece terse dado depois da Apresentação do Menino Jesus.

O certo e admitido por todos é que, sendo a Redenção de âmbito universal, deveria ser anunciada a todos.6

III – Os Reis perante Herodes

“Perguntaram eles: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a Sua estrela no Oriente e viemos adorá-Lo'”.

Torna-se claro, por este versículo, o real e profundo motivo da longa viagem empreendida por eles; nada houve de pura curiosidade, razões profanas, ou até mundanas. Ademais, demonstram possuir grande fé, e não pouca intrepidez, ao formularem uma pergunta tão incisiva, tanto mais que poderia ser interpretada por Herodes como sendo uma negação de seu título e de seu poder, conquistados com tantos esforços.

A estrela que guiava os Magos

Sobre a estrela, comenta o Revmo. Padre Manuel de Tuya, OP: “Os magos alegam, para terem vindo adorar o Rei dos judeus recém-nascido, que viram ‘sua estrela no Oriente’. De maneira muito acentuada, fala-se precisamente da estrela do Rei dos judeus. No mundo da astrologia, os homens se consideram governados pelos astros. Mas também na Antiguidade estava difundida a crença de que o nascimento dos homens de grande importância era precedido de algum sinal do céu. Isto se refletia até nos escritos cuneiformes. Surgiram várias teorias a respeito dessa ‘estrela vista pelos Magos'”.7

Também o Doutor Angélico não deixou de exprimir seu pensamento a respeito desta passagem. Depois de discorrer sobre as razões pelas quais aos judeus revelou Deus Seu nascimento através de Anjos e, aos gentios, por sinais, cita Santo Agostinho: “Os Anjos moram nos céus que são adornados pelas estrelas”.8 E a partir daí, passa a analisar a estrela em si mesma, mostrando como ela “não era uma das estrelas do céu”, mas sim um astro inteiramente sui generis.9

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Não foi uma das estrelas do céu

Segundo Crisóstomo, existem muitos indícios que manifestam que aquela estrela que apareceu aos Magos não era uma das estrelas do céu.

1º – Porque nenhuma outra estrela seguiu este caminho, pois esta se movia de norte a sul; tal é a situação da Judeia com relação à Pérsia, donde vieram os Magos. 2º – Pelo tempo em que aparece, pois não aparecia só de noite, mas também em pleno dia; o que não está no poder de uma estrela, nem mesmo da Lua. 3º – Porque às vezes aparecia e outras vezes se ocultava; quando entraram em Jerusalém se escondeu, para aparecer depois que deixaram Herodes. 4º – Porque não tinha um movimento contínuo: andava quando era preciso que os Magos caminhassem, e se detinha quando eles deviam se deter, como a coluna de nuvem no deserto. 5º – Porque mostrou o parto da Virgem não só permanecendo no alto, mas também descendo, como diz o Evangelho de Mateus: “A estrela que tinham visto no Oriente ia à sua frente até parar em cima do lugar onde estava o Menino”. Daí se deduz claramente que a palavra dos Magos, “vimos sua estrela no Oriente”, não deve ser entendida como se, encontrando-se eles no Oriente, lhes tivesse aparecido uma estrela que estava na Judeia, mas que viram uma estrela situada no Oriente e que os precedeu até a Judeia (embora alguns duvidem disto). Mas não teria podido indicar claramente a casa se não estivesse próxima da terra. E, como diz o mesmo Crisóstomo, isso não parece próprio de uma estrela, mas de “algum poder racional”. “Parece, pois, que esta estrela era um poder invisível transformado na aparência de uma estrela”.

Por isso alguns afirmam que, assim como o Espírito Santo desceu sobre o Senhor batizado sob a forma de pomba, apareceu também aos Magos sob a forma de estrela. – Outros, porém, dizem que o Anjo que apareceu aos pastores sob forma humana apareceu aos Magos na forma de estrela. – É, contudo, mais provável que se tratasse de uma estrela criada de novo, não no céu, mas na atmosfera próxima à terra, e que se movia segundo a vontade de Deus. É por isso que afirma o Papa Leão (Sermão 31, sobre a Epifania): “Apareceu aos três Magos, na região do Oriente, uma estrela de uma nova claridade, mais brilhante e formosa do que os outros astros, que atraía os olhos e os corações dos que a olhavam, para que compreendessem imediatamente que não carecia de significação o que parecia tão insólito”.

(AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36, a.7 resp).

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 Jerusalém ficou perturbada

“Ouvindo isto, o rei Herodes ficou perturbado e toda Jerusalém com ele”

É de fácil compreensão esse temor de Herodes, dada sua irrefreável ambição, inveja e crueldade. Sua esposa e seus três filhos puderam experimentar a violência de seu péssimo e impetuoso temperamento, pois foram mortos por uma determinação tirânica sua, nascida do medo de que o destronassem.

Para um homem com essa moral desregrada e tão mau caráter, o anúncio do surgimento miraculoso de um novo rei só poderia causar perturbação; tanto mais que “havia-se difundido então por todas as partes do Império Romano, no Oriente mais do que em qualquer outra, certo pressentimento – às vezes vago, às vezes mais preciso – de uma nova era que se abriria para a humanidade”.10

E qual a causa da perturbação dos habitantes de Jerusalém? Era-lhes anunciado o nascimento de um Rei judeu: não seria esta uma alvissareira notícia? E não deveriam eles acompanhar os Magos para, com alegria, comprovar os fatos? Não causaria estranheza que o povo, a essas alturas, já estivesse acomodado e relaxadamente complacente com o criminoso tirano. Quiçá pudesse concorrer para essa perturbação o receio de represálias e vinganças. Ou ainda o amor próprio ferido, o orgulho pisado, o desprezo de uma graça, pois esperavam um Messias com maior esplendor e, ademais, anunciado a eles diretamente, e não a estrangeiros.

A esse propósito, comenta São João Crisóstomo: “Porque continuavam na mesma disposição de seus antepassados – os quais, apesar de todos os benefícios recebidos, afastaram-se de Deus – e gozavam de plena liberdade, recordavam-se das carnes do Egito”.11

Iniquidade fraudulenta de Herodes

“Convocou os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo e deles indagou onde havia de nascer o Cristo”.

Péssimo, mas habilidoso, Herodes dissimula seu satânico plano de matar o Messias e procura saber quais são os desígnios de Deus para, com eficácia, impedi-los. Com ares de hipócrita piedade, convoca o Sinédrio. Sua pergunta demonstra o quanto todos eram conhecedores da possibilidade de que aquele recém-nascido bem poderia ser o Cristo. Daí também a maldade do Sinédrio e do próprio povo.

“Disseram-lhe: ‘Em Belém de Judá, porque assim foi escrito pelo profeta: E tu, Belém de Judá, não és de modo algum a menor entre as cidades de Judá, porque de ti sairá o chefe que governará Israel, meu povo'” (Mq 5, 2).

Os doutores da Lei não temem dizer a Herodes que, segundo Miqueias, o Cristo deveria nascer na cidade de Belém de Judá. Entretanto, suprimem da profecia oficial a frase subsequente, que clarissimamente insinuava a origem divina de Cristo: “Et egressus eius a temporibus antiquis, a diebus æternitatis” – “Suas origens remontam aos tempos antigos, aos dias da eternidade” (Mq 5, 1). Talvez por malícia, ou por orgulho, não possuíam suficiente fé para crer nessa revelação. Ou, ainda, quiçá por amolecimento de caráter. Essa péssima atitude levou São João Crisóstomo a associá-los na culpabilidade pela morte dos Santos Inocentes, pois Herodes não se enfureceria se soubesse que se tratava de um Rei da eternidade, portanto, não de um rival terrestre.

“Herodes, então, chamou secretamente os Magos e perguntou- lhes sobre a época exata em que o astro lhes tinha aparecido”.

Chama-nos a atenção o emprego do advérbio secretamente. Segundo um famoso historiador daqueles tempos, Flávio Josefo, era muito comum Herodes vestir-se como um qualquer e imiscuir- se em meio às gentes para sondar de modo direto o que pensavam sobre seu reinado.12 Era o seu habilidoso modo de proceder. Estando já seguro quanto à cidade onde teria nascido seu inimigo Messias, desejava agora conjecturar sua idade, pois aproximava a data do nascimento do Menino ao dia do aparecimento da estrela.

“E, enviando-os a Belém, disse: ‘Ide e informai-vos bem a respeito do Menino. Quando o tiverdes encontrado, comunicai- me, para que eu também vá adorá-lo'”.

Hipócrita, se faz de piedoso e suave para enganar a simplicidade, candura e inocência dos Magos. Não sem fundamento, alguns autores denominam essa atitude de “iniquidade fraudulenta”.

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Malícia de Herodes

Herodes maquina sua morte [do Messias] com dolosa malícia. O homem mau é capaz de compreender as coisas de Deus; não pode, porém, realizá-las, pois a inteligência do homem foi criada por Deus, mas a ação depende da vontade.

Herodes viu certamente o grande fervor dos Magos em relação a Cristo. E como não podia contar com a cumplicidade deles para matar o futuro rei por meio de bajulações que os amolecessem, nem de ameaças que os atemorizassem, nem de dinheiro que os corrompesse, ocorreu-lhe enganá-los. De modo algum conseguiria seduzi-los com adulações para traírem Aquele pelo qual fizeram uma tão fatigante viagem. Tampouco poderiam ter medo, a ponto de atraiçoarem Cristo, aqueles que não tinham interesse algum em Herodes nem em César, pois haviam entrado em seu reino anunciando a vinda de outro rei. Nem poderiam ambicionar coisa alguma senão Cristo, aqueles que Lhe traziam preciosos presentes de uma terra tão distante.

E quando percebeu que não conseguiria outra coisa, Herodes começou a tomar ares de devoção enquanto afiava a espada e pintava com cores de humildade a perversidade de seu coração. Assim procedem todos os perversos: quando querem causar ocultamente algum dano muito grave a alguém, mostram-se humildes e amigos em relação a ele.

(ANÔNIMO. Obra incompleta sobre o Evangelho de Mateus, 2, PG 56, 640-641).

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IV – De Jerusalém a Belém

“Tendo eles ouvido as palavras do rei, partiram. E eis que a estrela, que tinham visto no Oriente, os foi precedendo até chegar sobre o lugar onde estava o Menino, e ali parou. A aparição daquela estrela os encheu de profunda alegria”.

Assim sempre procede Deus, recompensando aqueles que são fiéis à Sua graça. É comovedora a confiança penetrada de coragem desses Reis Magos, diante de um tirano de tal má fama. Não há dúvida de estarem sustentados por especial moção do Espírito Santo.

Reaparece a estrela

Terão partido à noite, ou durante o dia? De Jerusalém a Belém, levava-se duas horas de caminhada por via conhecidíssima. Entretanto, uns poucos autores defendem a tese de esse deslocamento ter-se efetuado durante o dia. Mas, como se explicaria o reaparecimento da estrela? Uns dizem não terem sido necessárias as sombras da noite, por tratar-se de um corpo luminoso em regiões atmosféricas mais próximas dos Magos. Outros interpretam essa passagem como se a estrela tivesse reaparecido só na entrada de Belém, uma vez que não havia como errar o caminho.

Ao ler estes versículos com devoção, chega-se, por momentos, a participar da alegria dos primeiros peregrinos aos Lugares Santos. O desaparecimento da estrela lhes pusera à prova a confiança; agora é a consolação como prêmio. Uma pergunta aqui surge, também. Por que se ocultara a estrela ao chegar a Jerusalém e reapareceu só em Belém? Será que já àquelas alturas Jerusalém não era digna de um sinal tão evidente e público? Ou, pelo contrário, escondendo-se, ela propiciou uma permanência maior dos Magos na cidade, e com isso a autenticidade do acontecimento tornou-se mais patente a todos os seus habitantes?

Adoraram-No, inspirados pelo Espírito Santo

“Entrando na casa, acharam o Menino com Maria, Sua mãe. Prostrando-se diante dEle, O adoraram. Depois, abrindo seus tesouros, ofereceram-Lhe como presentes: ouro, incenso e mirra”.

Emociona esta descrição de Mateus: “acharam o Menino com Maria, Sua mãe”. Palavras proféticas, inspiradas pelo Espírito Santo, para deixar constando pelos séculos afora que não se pode encontrar Jesus sem Maria, e menos ainda, Maria sem Jesus. A História comprova – e muito mais o fará – o quanto a devoção à Mãe conduz à adoração ao Filho, e vice-versa.

Chama-nos a atenção a referência de Mateus ao local onde Se encontrava o Menino: uma casa, não uma gruta. “Alguns autores antigos – entre eles São Justino – julgaram que ‘casa’ era um eufemismo, em lugar de ‘gruta’. São Jerônimo, em compensação, menciona várias vezes a gruta e nunca fala da lembrança nem da presença dos Magos nela. Não seria nada improvável que a palavra ‘casa’ tenha em Mateus seu sentido real. Situada essa cena à distância de um ano e meio do nascimento de Cristo, não é de crer-se que a Sagrada Família tenha permanecido alojada naquela gruta circunstancial; parece natural que ela tenha habitado uma modesta casa. Ademais, o versículo 22 sugere que ela havia se estabelecido em Belém”.13

Essa adoração prestada pelos Magos comprova mais uma vez a realidade da ação do Espírito Santo nas almas deles, tal qual afirma São Tomás de Aquino:

“Os Magos são ‘as primícias dos pagãos’ a crerem em Cristo. Neles apareceram, numa espécie de presságio, a fé e a devoção dos pagãos vindos a Cristo de lugares remotos. Por isso, sendo a fé e a devoção dos pagãos isentas de erro, por inspiração do Espírito Santo, também devese crer que os Magos, inspirados pelo Espírito Santo, se comportaram sabiamente ao prestarem homenagem a Cristo”.14

Quanto aos presentes, eles cumprem, com esse gesto, a profecia de Isaías: “Virão todos de Sabá, trazendo ouro e incenso, e publicando os louvores do Senhor. Todo o gado menor de Cedar se reunirá junto a ti, os carneiros de Nabaiot ficarão à tua disposição; fá-los-ão subir sobre meu altar para minha satisfação, e para a honra de meu templo glorioso” (Is 60, 6-7).

“Ao reconhecê-Lo como rei, ofereceram as primícias excelentes e preciosas do templo: o ouro que guardavam; por entender que Ele era de natureza divina e celestial, ofertaram incenso perfumado, forma de oração verdadeira, oferecida como suave odor do Espírito Santo; e em reconhecimento de que sua natureza humana receberia sepultura temporal, ofereceram mirra”.15

3 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36, a. 2, resp. c.
4 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36, a. 3 ad I.
5 MopsuÉstia, Teodoro de, Fragmentos sobre o Evangelho de Mateus, 6.
6 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36 a. 3c.
7 TUYA OP, Pe. Manuel de. Bíblia Comentada. Madrid: BAC, 1964, v. II, p. 35.
8 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36, a. 5 resp.
9 Ver quadro anexo: Não foi uma das estrelas do céu.
10 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: Rialp, 2000. v. I. p. 7-8.
11 Homilias sobre o Evangelho de Mateus, 6, 4: PG 57, 67-68.
12 Cf. Antiguidades dos Judeus, l. XV, c. 10, 4.
13 TUYA OP, Pe. Manuel de. Op. Cit. p. 39.
14 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36 a. 8, resp.
15 ANÔNIMO. Obra incompleta sobre o Evangelho de Mateus, 2: PG 56, 642.

(Revista Arautos do Evangelho, Jan/2009, n. 85, p. 10 à 19)

O Menino que reverteu a História

Mons. João S. Clá Dias, EP

Entremos numa certa gruta e ali veremos um Menino adorado por sua Mãe Santíssima e São José, reunidos em família, oferecendo mais glória a Deus do que toda a humanidade idólatra, e até mesmo mais do que os próprios anjos do Céu em sua totalidade. Já em seu nascimento, numa singela manjedoura, aquele Divino Infante reparava os delírios de glória egoísta sofregamente procurada pelos pecadores. Ele se encarnava para fazer a vontade do Pai e, assim, dar-nos o perfeitíssimo exemplo de vida.

Nenhum pensamento, desejo, palavra ou ação surgida de sua alma divinamente santa terá outro fim que não seja o de glorificar o Pai, a quem tudo consagrou desde o primeiro instante. Não tardarão muitos séculos, depois daquele natal, para os altares dos falsos deuses serem arrasados, os ídolos quebrados, os templos pagãos destruídos — ou convertidos em santuários — e os próprios demônios se calarem. Sim, aquele Menino nascido numa gruta reverterá o trabalho realizado por Satanás durante milênios, e a Roma pagã será a sede do Cristianismo; transformada na Cidade Eterna, dentro de ­suas muralhas, sobre uma pedra inabalável, se estabelecerá até o fim dos tempos  uma infalível cátedra da moral e da verdade.

Arautos do Evangelho, n. 73

Ele é o “Príncipe da Paz” – Meditação de Natal

presepio-01Mons. João S. Clá Dias, EP

I – Divina solução para os problemas atuais

“O presépio de Belém nos mostra o Homem perfeito que, unindo numa só pessoa a natureza divina e a natureza humana, restitui a esta a melhor parte de seus privilégios, perdidos pelo pecado, e a plenitude dos benefícios daí decorrentes. Donde se segue que não temos outro meio de sermos homens – tanto do ponto de vista espiritual quanto do social – senão o de nos aproximarmos do Homem perfeito, da plena estatura da vita de Cristo: ‘donec occurramus in virum perfectum, in mensuram ætatis plenitudinis Christi’”. 1

O caminho para obter a harmonia, a concórdia e a paz

Por essa razão, ajoelhando-nos diante do Menino Deus – como o fizeram os Sagrados Esposos, os pastores, os Reis Magos e tantos outros -, estaremos contemplando os mais altos ensinamentos para ordenar toda a nossa vida cristã e social. Naquela Manjedoura se encontra “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6).

Naquele Menino vemos o Redentor, iniciando a Aula Magna do Seu Magistério, não ainda por meio de palavras, mas ensinando-nos, com não menor eloqüência, através do exemplo, o único e excelente meio para o restabelecimento da antiga atmosfera de nosso éden perdido: o espírito de sacrifício, de pobreza e de resignação no sofrimento.

Inúteis são as grandes assembléias para discutir de forma acalorada os dramas que, hoje em dia, atravessam as nações. Basta-nos essa belíssima lição posta diante de nossos olhos para recuperarmos nossa dignidade, nossa justiça original e até mesmo para a humanidade viver na harmonia, a concórdia e a paz que em tão alto grau existia no Paraíso Terrestre.

Nem a ciência com todo o seu progresso, nem a política com sua multissecular experiência, nem sequer o auxílio de todas as riquezas, são eficazes para solucionar os inúmeros problemas atuais. Se a sociedade resolvesse enveredar pelas vias que o Salvador nos oferece na simples recordação de Seu Santo Natal, viveria feliz, em meio à tranqüilidade universal.

Ele quis ser tudo para todos, e os seus não O receberam

Quão maravilhosa não teria sido a história de uma família que, por piedade e compaixão, tivesse aberto suas portas, na mais bela de todas as noites, para dar hospitalidade àqueles predestinados e bem-aventurados pais? Porém, narra-nos São Lucas que não houve lugar para eles em nenhuma hospedagem (cf. Lc 2, 7). Diz-nos São João: “Ele veio aos seus, e os seus não O receberam” (Jo 1, 11).

Mais terrível ainda é a conduta dos povos, nações, e da própria humanidade dos presentes dias, que não só não querem ver nascer em seu meio esse Menino Deus e Sua Santa Igreja, mas, pior ainda, dão- Lhes as costas, e além de caluniá-Los e persegui-Los, põem-Lhes toda espécie de obstáculos para o exercício de Sua missão.

O Menino-Mestre não poderia ter escolhido melhor meio para colocar- Se à disposição de todos, manifestando um caráter de universalidade em Seu nascimento. Realizou-o em lugar público de livre acesso, sem que ninguém pudesse ser impedido de aproximar- se. Quis nascer pobre para facilitar a todos irem até Ele e, por outro lado, quis descender de sangue real para que os nobres não se sentissem inclinados a desprezá-Lo. Portanto, não chamou uma única classe social, mas quis ser tudo para todos.

Entretanto, os seus não só não O receberam, como, depois de Ele ter devolvido a vista aos cegos, a fala aos mudos, a audição aos surdos, a deambulação aos paralíticos, a saúde aos leprosos, a vida aos mortos, crucificaram- No. Triste e incompreensível acontecimento que se renova até os dias de hoje.

Porém, é por cima de todas as infidelidades que, na noite de Natal, ainda nos dias atuais, recordamos aquele canto: “Gloria in altis simis Deo et in terra pax hominibus bonæ voluntatis” – Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens objeto da Boa Vontade de Deus (Lc 2, 14).

II – A paz cantada e oferecida pelos anjos

“E subitamente apareceu com o Anjo uma multidão da milícia celeste louvando a Deus e dizendo: ‘Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens objeto da Boa Vontade de Deus’” (Lc 2, 13-14).

Trata-se de um fato de grandeza incomensurável. O Unigênito gerado desde toda a eternidade é idêntico ao Pai e desejou encarnar-Se para, de dentro de uma natureza criada, poder louvá-Lo com toda submissão. O Divino Infante, ao nascer, oferece ao Pai um culto perfeito, além de reconciliar com Deus a humanidade, tornando-a, assim, apta para glorificá- Lo.

Essa é a causa da grande glória que Lhe prestam os puros e celestiais espíritos, pois exaltam a maior obra de Deus, na qual Ele manifesta ao universo Sua sabedoria, Sua misericórdia, Seu poder e tantas outras perfeições absolutas. Cumpre, desse modo, com superabundância e fidelidade, Suas mais antigas promessas.

Os Anjos, no Céu, cantam em ação de graças pelo mais extraordinário benefício realizado por Deus ao homem. Eles mesmos, puros espíritos, obtiveram frutos de tão grande obra, e até mesmo a própria perseverança deles teve a Redenção como fonte.

Nasceu o “Príncipe da Paz”

Nascemos sob a ira de Deus, devido ao pecado de nossos primeiros pais, mas podemos ser reconciliados com Ele por esse Divino Nascimento que, ademais, nos traz a tranqüilidade da consciência, a paz da alma e a harmonia entre os homens (cf. Ef 2, 14; Cl 1, 20).

“Quando a paz começava a reinar, os Anjos diziam: ‘Glória nas alturas e paz na terra’ (Lc 2, 14). Quando, porém, os de baixo receberam a paz dos de cima, eles proclamaram: ‘Glória na terra e paz nos Céus’ (Lc 19, 38). Quando a Divindade desceu à terra e se revestiu de humanidade, os Anjos proclamavam: ‘Paz na terra’. E quando a humanidade subiu e foi elevada, imergiu na Divindade e sentou-se à sua direita, os meninos clamavam diante dela: ‘Paz nos Céus, hosana nas alturas!’ (Mt 21, 9). Assim, o Apóstolo pôde dizer: ‘Por intermédio dAquele que, ao preço do próprio sangue na cruz, restabeleceu a paz a tudo quanto existe na terra e nos céus’ (Cl 1, 20).

“Os Anjos diziam: ‘Glória nas alturas e paz na terra’; e os meninos: ‘Paz nos Céus e glória na terra’ (Lc 19, 38). Aparece assim com clareza que, como a graça da misericórdia de Cristo alegra os pecadores na terra, assim também seu arrependimento atinge os Anjos do Céu” (cf. Lc 15, 7-10).2

O Menino louvado pelos Anjos é o “Príncipe da Paz” anunciado sete séculos antes por Isaías (9, 5) e que, anos mais tarde, afirmará serem bem-aventurados os pacíficos – aqueles que sabem estabelecer em si mesmos e nas almas dos outros o reino da paz – dando-lhes o título de Filhos de Deus.

Precioso dom que não nos será retirado

O beata nox! Sim, bendita noite que assiste ao nascimento de um Menino a inaugurar uma nova era histórica. Naquela noite foi oferecido à humanidade um precioso dom que não lhe seria retirado nem mes mo quando aquele Menino retornasse à eternidade: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração nem se atemorize” (Jo 14, 27).

Qual é o sentido destas palavras? Eis: Eu não vo-la dou como dão os homens que amam o mundo. Estes, com efeito, oferecem a paz, a fim de – livres de preocupações, de processos e de guerras – poderem gozar, não de Deus, mas do mundo, ao qual entregaram o seu afeto. E quando eles oferecem a paz aos justos, cessando de persegui-los, não é uma paz verdadeira, porque não há verdadeiro acordo onde os corações estão desunidos. Chamamos consortes àqueles que unem sua sorte. Aqueles que unem seus corações, do mesmo modo, devem se chamar concordes. Para nós, meus caríssimos irmãos, Jesus Cristo nos deixa a paz e nos dá sua paz, não como a dá o mundo, mas como a dá Aquele por quem foi criado o mundo. Ele no-la dá para que todos estejamos de acordo, para que estejamos unidos de coração e, tendo um só coração, o elevemos ao alto, não nos deixando corromper na terra”.3

A pseudo-paz que o mundo nos oferece

Todas as palavras de Jesus são de vida eterna e misteriosamente atraentes, mas, sendo recordadas bem junto ao Presépio, levam-nos a querer penetrar a fundo em seu significado, sobretudo, as que se referem à paz trazida a nós naquela noite. Qual será sua natureza? É ela que toda criatura humana com sofreguidão deseja, mas quão freqüentemente a busca onde ela não se encontra e, mais ainda, se equivoca quanto ao seu verdadeiro conteúdo e substância!

Não consistirá nesse equívoco a causa principal de o mundo estar quase sempre pervadido por guerras e catástrofes ao longo de vários milênios? Tudo fruto da pseudopaz que o mundo nos oferece, bem diferente da que os Anjos cantaram aos pastores, naquela bendita noite de Natal.

A esse propósito, comenta Orígenes: “Onde não está Jesus, há disputas e guerras, mas onde Ele está presente tudo é serenidade e paz”.4 Santo Agostinho afirma que a paz consiste em um “bem tão nobre que, mesmo entre coisas mortais e terrenas, nada há de mais grato ao ouvido, nem mais doce ao desejo, nem superior em excelência”.5 E São Beda acrescenta: “A verdadeira, a única paz das almas neste mundo consiste em estar cheias de amor de Deus e animadas da esperança do Céu, a ponto de considerar pouca coisa os êxitos ou reveses deste mundo. […] Engana-se quem imagina que poderá encontrar a paz no gozo dos bens deste mundo e nas suas riquezas. As freqüentes perturbações nesta terra e o fim deste mundo deveriam convencer o homem de que ele construiu sobre areia os fundamentos de sua paz”. 6

Paz e pecado não podem viver juntos

A paz cantada e oferecida pelos Anjos encontra-se na santidade para a qual todos nós somos chamados. Fomos criados por Deus e para Ele; enquanto a suma Verdade não ilumine nossa inteligência, enquanto o Bem supremo não ocupe um lugar primordial em nosso coração, serão frustrados nossos esforços em busca da paz. Num mesmo coração não podem viver juntos a paz e o pecado. “Não há paz no coração do homem carnal, nem no do homem entregue às coisas exteriores, mas somente no daquele que é fervoroso e espiritual”. 7 Por isso, quanto mais procuro a paz nos gozos deste mundo, mais me acusará minha consciência pelo fato de me colocar fora da ordem do universo, e sobretudo se, por desgraça, venha eu a abraçar as vias do pecado. Neste caso, serei objeto do ódio de Deus e dos raios de Sua santa cólera. Pior ainda será minha situação se eu conseguir abafar a voz de minha consciência; aí, no silêncio profundo de meu inveterado e pérfido coração, se evanescerão os remorsos, angústias e temores pela virtude perdida. E neste caso, a morte ocupará o lugar deixado em minha alma pela antiga paz.

Em realidade, o que é a verdadeira paz?

Diz-nos São Tomás de Aquino: “Quem tem um desejo, deseja também a paz, uma vez que ele almeja obter tranqüilamente e sem impedimentos o objeto desejado. E nisso consiste a paz, que Santo Agostinho define como ‘a tranqüilidade da ordem’”. 8 Portanto, nossos anseios sempre são acoplados a uma busca de paz. E a única capaz de satisfazer o coração humano é aquela oferecida pelos Anjos a toda a humanidade, na pessoa dos pastores.

Tranqüilidade e ordem são os elementos constitutivos dessa paz. Pode vir a existir tranqüilidade sem ordem, e vice-versa: em nenhum desses casos haverá verdadeira paz, ainda que desta possam existir aparências.

Não é por mera expansividade que os Anjos cantam em primeiro lugar: “Glória a Deus no mais alto dos Céus…” (Lc 2, 14), pois a verdadeira paz procede do Espírito Santo, como as plantas nascem das sementes ou das raízes, tal qual ressalta São Paulo: a paz é “fruto do Espírito Santo” (Gl 5, 22) e “está acima de todo entendimento” (Fl 4, 7). O Doutor Angélico afirma, e torna-se óbvio, que vive em perfeita ordem quem está unido a Deus, pois Ele ordena as potências da alma, com seus sentidos e faculdades, por ser Ele mesmo o primeiro princípio e último fim de toda a criação. Daí produzir essa união o repouso interior. Ademais, quando nossa união com Deus é plena, não pode haver perturbação porque tudo o que não é Deus, reputamos como sendo nada, conforme proclama São Paulo: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós?” (Rm 8, 31).

É-nos fácil compreender como o homem que está em paz com Deus também o estará consigo mesmo, assim como com os demais, pois o fundamento da verdadeira paz é viver em paz com Deus Nosso Senhor. Por isso nos diz São Cirilo: “Envergonhemonos de prescindir do dom da paz, que o Senhor nos deixou quando ia sair do mundo. A paz é um nome e uma coisa saborosa, a qual sabemos que provém de Deus, como diz o Apóstolo aos filipenses: a paz de Deus. E que ela é de Deus, mostra-o também quando diz aos efésios: Ele é nossa paz. A paz é um bem recomendado a todos, mas observado por poucos. Qual é a causa disso? Talvez a ambição de poder, a inveja, o ódio ao próximo, ou algo do gênero, que vemos naqueles que desconhecem o Senhor. A paz procede de Deus, o qual é quem une tudo […] Transmitea aos Anjos […] e se estende também a todas as criaturas que verdadeiramente a desejam”.9

Principal razão pela qual os homens de hoje não acham a paz

Se, como acima dissemos a paz é fruto do Espírito Santo, a base dela se encontra fixa na vida da graça e da caridade. Ora, o Autor da graça é Jesus Cristo: “A graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1, 17). E, portanto, é Ele também o autor da paz: “Cristo é a nossa paz” (Ef 2, 14).

Essa é a principal razão de não encontrarem os homens de hoje a verdadeira paz. Claro! Pois ela não surge dos tratados. Quando muito, aordem externa das nações consegue reparar os estragos materiais do pósguerra, mas somente a tranqüilidade e ordem da alma é que – enquantoelementos essenciais – trazem a autêntica paz. Esta se evanesceu do concerto das nações e nem sequer no interior das mesmas nós a podemos desfrutar.

E o que dizer das dissensões no seio das famílias, instituição que a cada passo ainda mais se deteriora pela agressão de vários fatores adversos conjugados: corrupção moral progressiva, desfazimento da autoridade paterna, generalizada violação da fidelidade conjugal, desprezo da Lei de Deus e até mesmo do bem social no cumprimento dos sagrados deveres para com os filhos?

Todas essas desordens têm sua causa no próprio homem atual, penetrado de descontentamento em seu coração, irmão siamês do fastio, acidez e inquietação. Quase toda criatura humana, hoje em dia, é possuída por um espírito de insubordinação a qualquer tipo de autoridade, seja ela eclesiástica, religiosa, política, familiar, etc. Sem falar da processiva perda do pudor, que constitui hoje o mal de todos os povos…

Magistério dos Papas

Sábias, a esse propósito, foram as palavras do Beato João XXIII em sua famosa Encíclica Pacem in Terris:

“A paz na terra, anseio profundo de todos os homens de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus. […] Contrasta clamorosamente com essa perfeita ordem universal, a desordem que reina entre indivíduos e povos, como se as suas mútuas relações não pudessem ser reguladas senão pela força. […]”

Em última análise, só haverá paz na sociedade humana, se essa estiver presente em cada um dos membros, se em cada um se instaurar a ordem querida por Deus. Assim interroga Santo Agostinho ao homem: ‘Quer a tua alma vencer tuas paixões? Submeta-se a quem está no alto e vencerá o que está em baixo. E haverá paz em ti, paz verdadeira, segura, ordenadíssima. Qual é a ordem dessa paz? Deus comandando a alma, a alma comandando o corpo. Nada mais ordenado’”.10

E em recente pronunciamento, Bento XVI, nosso Pontífice felizmente reinante, assim se exprimiu sobre o mesmo tema: “Em primeiro lugar, a paz deve ser construída nos corações.

De fato é neles que se desenvolvem sentimentos que podem alimentá-la ou, ao contrário, ameaçá-la, enfraquecê-la, sufocá-la. Aliás, o coração do homem é o lugar das intervenções de Deus. Portanto, ao lado da dimensão ‘horizontal’ das relações com os outros homens, revela- se de importância fundamental, nesta matéria, a dimensão ‘vertical’ da relação de cada um com Deus, no qual tudo tem o seu fundamento”.11

Glória no Céu e paz na terra

Por isso, neste Natal, em meio aos múltiplos dramas atuais, ecoam mais do que nunca para nós os cânticos dos Anjos, como outrora para os pastores. Eles nos oferecem a verdadeira paz, a cada um de nós em particular, convidando-nos a subordinarmos nossas paixões à razão, e esta, à Fé. Oferecem- nos também o término da luta civil, da luta de classes e das próprias guerras entre as nações, com a condição de observarmos cuidadosamente as exigências impostas pela hierarquia e pela justiça. Em síntese, é-nos indispensável, para recebermos dos Anjos essa oferta tão ansiada por nós, estarmos em ordem com Deus, reconhecendo nEle o nosso Legislador e Senhor, e amando-O com todo entusiasmo.

É o que, com tanta lógica e unção, comenta São Cirilo: “Não O olhes simplesmente como um menino depositado num presépio, mas em nossa pobreza devemos vê-Lo rico como Deus, e por isso é glorificado inclusive pelos Anjos: ‘Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade’. Pois os Anjos e todas as potências superiores conservam a ordem que lhes foi dispensada e estão em paz com Deus. De modo algum se opõem ao que Lhe agrada, mas estão firmemente estabelecidos na justiça e na santidade. Nós somos desgraçados ao colocar nossos próprios desejos em oposição à vontade do Senhor, e nos colocamos nas fileiras de seus inimigos. Isso foi abolido por Cristo, pois Ele mesmo é a nossa paz (cf. Ef 2, 14) e nos une por sua mediação com Deus Pai, tirando o pecado, causa de nossa inimizade, justificando-nos pela fé e aproximando os que estão distantes. Além disso, modelou os dois povos em um homem novo, fazendo a paz e reconciliando ambos em um só corpo com o Pai (cf. Ef 2, 15-16). Com efeito, agradou a Deus Pai reunir nEle todas as coisas, e unir os de cima com os de baixo, os do Céu e os da terra, e dizer que há um só rebanho. Cristo tem sido para nós paz e boa vontade”.12 E com não menor espiritualidade, acrescenta São Jerônimo: “Glória no Céu, onde não há dissensão alguma, e paz na terra, onde há guerras diariamente. ‘E paz na terra’. E em quem essa paz? Nos homens. […] ‘Paz aos homens de boa vontade’, isto é, àqueles que recebem Cristo recém-nascido”. 13(Revista Arautos do Evangelho, Dez/2008, n. 84, p. 10 à 19)

1 PIO X, São. Discurso de 23/12/1903 apud Lettres Apostoliques de S. S. Pie X. Paris: Maison de la Bonne Presse, v. I, p. 210.

2 EPHREM DE NISIBE, Saint. Commentaire de l’Évanglile Concordant ou Diatessaron, Lc 2, 14. Paris: Éditions du Cerf, 1966, p. 73.

3 AUGUSTINUS HIPPONENSIS, Sanctus. In Evangelium Ioannis, t. 77.

4 Apud: AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea, in Mt. c. 27, l. 4.

5 AUGUSTINUS HIPPONENSIS, Sanctus. De Civitate Dei. L. XIX, 11

6 BEDA VENERABILIS, Sanctus. Homilia XI in Vigilia Pentecostes.

7 KEMPIS, Tomás de. Imitación de Cristo, Libro I, cap. 6, 2.

8 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica II-II, q. 29, a. 2.

9 Apud: AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea, in Lc 24, vv. 36-40.

10 JOÃO XXIII, Carta Encíclica Pacem in Terris, 11/4/1963, nn. 1, 4 e 164.

11 BENTO XVI, Mensagem no XX aniversário do Encontro Inter-Religioso de Oração pela Paz, 2/9/2006.

12 CIRILLUS ALEXANDRINUS, Sanctus. Commentarii in Lucam, 2, 14.

13 HIERONYMUS PRESBYTERUS, Sanctus. Homilia de Nativitate Domini, n. 65 (Morin n. 394).

A beleza da verdade e a verdade da beleza

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Gostos se discutem, sim! Não é cada um com a sua verdade, pois da mesma forma que não convém à verdade ser mutável, a beleza não deveria depender de preferências ou tendências subjetivas. Se ambas fossem passíveis de volatilidade ou diversidade, não teria sentido falar em verdade ou em beleza, pois estas teriam como medida os gostos e opiniões contraditórios de cada um… Submeter os critérios de verdade e de beleza a divergências de carácter pessoal ou cronológico é próprio a uma cultura relativista com repercussões no campo da ética e da estética. A beleza e a verdade são grandes demais para ficarem sujeitas ao individualismo e ao tempo.

Antes de haver o homem, as coisas já eram belas e verdadeiras, fruto daquela bondade criadora, luz de eterna formosura, que tudo tirou do nada. Da mesma forma que o diálogo está chamado a identificar a verdade que o precede, a beleza poderá ser encontrada na criação e partilha de elementos estéticos, em busca da perfeição e do absoluto. São discutíveis, portanto, não as coisas belas e as verdades, mas as idealizações e argumentações que levem os homens a identificá-las. A verdade e a beleza não podem ser regidos pela história e pelo tempo, pelos homens e pelas ideias dominantes, mas estes é que estão chamados a sujeitarem-se e a serem regidos por aquela verdade e beleza subsistentes.

A verdade da beleza e a beleza da verdade têm a sua referência em Cristo, ao mesmo tempo Verdade (Jo 14, 6) e beleza que salva.[1] Ambas se impõem por si e não são passíveis de esconder debaixo do alqueire (Mt 5, 15) e por isso devem conduzir ao testemunho. Quem contempla e se encontra com Cristo, fato constitutivo do ser cristão (Deus Caritas Est 1), não pode senão comunicar esta experiência. A flecha da beleza que nos atinge tem sua origem no mais belo entre os filhos dos homens (Sl 45, 3).[2] Dele provém e para ele atrai.


[1] Quanto à beleza, encontra-se um excelente texto sobre o pensamento de Bento XVI em RATZINGER, Joseph. A Caminho de Jesus Cristo. Coimbra: Tenacitas, 2006.

[2] Idem.

As duas vindas de Nosso Senhor

jesus3Mons. João S. Clá Dias, EP

O círculo e o losango são as mais perfeitas figuras geométricas segundo o conceito de São Tomás de Aquino, pois representam o movimento do efeito que retorna à sua causa. Cristo é a mais alta realização dessa simbologia porque, além de ser o princípio de todo o criado, é também o fim último. Daí encontrarmos, tanto no término do ano litúrgico, como em sua abertura, os Evangelhos que transcrevem as revelações de Jesus sobre sua última vinda.

A expectativa do Natal

A Igreja não elaborou suas cerimônias através de um planejamento prévio. Organismo sobrenatural como é, nascido do sagrado costado do Redentor e vivificado pelo sopro do Espírito Santo, possui uma vitalidade própria com a qual se desenvolve, cresce e se torna bela, de maneira orgânica. Assim foi-se constituindo o ano litúrgico ao longo dos tempos, em suas mais diversas partes. Em concreto, o Advento surgiu entre os séculos IV e V como uma preparação para o Natal, sintetizando a grande espera dos bons judeus pelo aparecimento do Messias.

À expectativa de um grande acontecimento místico-religioso, corresponde uma atitude penitencial. Por isso os séculos antecedentes ao nascimento do Salvador foram marcados pela dor dos pecados pessoais e do de nossos primeiros pais. Mais marcante ainda se tornou o período anterior à vida pública do Messias: uma voz clamante no deserto convidava todos a pedirem perdão de seus pecados e a se converterem, para que assim fossem endireitados os caminhos do Senhor.

Esperança pervadida pelo desejo de santidade

Desejando criar condições ideais para participarmos das festividades do Nascimento do Salvador — sua primeira vinda —, a Liturgia selecionou textos sagrados relativos à sua segunda vinda: a nota dominante de uma é a misericórdia e a da outra, a justiça. Entretanto, esses dois encontros com Jesus formam um todo harmônico entre o princípio e o fim dos efeitos de uma mesma causa. Os Padres da Igreja comentam largamente o contraste entre uma e outra, mas, segundo eles, devemos ver na Encarnação do Verbo o início de nossa Redenção e na ressurreição dos mortos a sua plenitude.

Para estarmos à altura do grandioso acontecimento natalino, é indispensável colocarmo-nos diante da perspectiva dos últimos acontecimentos que antecederão o Juízo Final. Daí o fato de a Igreja durante muito tempo ter cantado na Missa a seqüência “Dies Irae”, a famosa melodia gregoriana.

Mais do que simplesmente recordar-nos o fato histórico do Natal, a Igreja quer fazer-nos participar das graças próprias à festividade, tal qual delas gozaram a Santíssima Virgem, São José, os Reis Magos, os Pastores, etc. Ora, uma grande esperança, pervadida pelo desejo de santidade e por uma vida penitencial, sustentava o povo eleito naquelas circunstâncias. E nós devemos imitar seu exemplo e seguir seus passos, em face não só do Natal como também da plenitude de nossa redenção: a gloriosa ressurreição dos filhos de Deus.

Primeira e segunda vindas de Jesus se unem diante de nossos horizontes neste período do Advento, fazendo-nos analisá-las quase numa visão eterna; talvez, melhor dizendo, de dentro dos próprios olhos de Deus, para Quem tudo é presente. Eis algumas razões pelas quais se entende a escolha do roxo para os paramentos litúrgicos, nessas quatro semanas.

Arautos do Evangelho, n. 47

O Advento: espectativa do Natal e esperança pervadida pelo desejo de santidade

Mons. João S. Clá Dias, EParco

O círculo e o losango são as mais perfeitas figuras geométricas segundo o conceito de São Tomás de Aquino, pois representam o movimento do efeito que retorna à sua causa. Cristo é a mais alta realização dessa simbologia porque, além de ser o princípio de todo o criado, é também o fim último. Daí encontrarmos, tanto no término do ano litúrgico, como em sua abertura, os Evangelhos que transcrevem as revelações de Jesus sobre sua última vinda.

A Igreja não elaborou suas cerimônias através de um planejamento prévio. Organismo sobrenatural como é, nascido do sagrado costado do Redentor e vivificado pelo sopro do Espírito Santo, possui uma vitalidade própria com a qual se desenvolve, cresce e se torna bela, de maneira orgânica. Assim foi-se constituindo o ano litúrgico ao longo dos tempos, em suas mais diversas partes. Em concreto, o Advento surgiu entre os séculos IV e V como uma preparação para o Natal, sintetizando a grande espera dos bons judeus pelo aparecimento do Messias. À expectativa de um grande acontecimento místico-religioso, corresponde uma atitude penitencial. Por isso os séculos antecedentes ao nascimento do Salvador foram marcados pela dor dos pecados pessoais e do de nossos primeiros pais. Mais marcante ainda se tornou o período anterior à vida pública do Messias: uma voz clamante no deserto convidava todos a pedirem perdão de seus pecados e a se converterem, para que assim fossem endireitados os caminhos do Senhor.

Desejando criar condições ideais para participarmos das festividades do Nascimento do Salvador — sua primeira vinda —, a Liturgia selecionou textos sagrados relativos à sua segunda vinda: a nota dominante de uma é a misericórdia e a da outra, a justiça. Entretanto, esses dois encontros com Jesus formam um todo harmônico entre o princípio e o fim dos efeitos de uma mesma causa. Os Padres da Igreja comentam largamente o contraste entre uma e outra, mas, segundo eles, devemos ver na Encarnação do Verbo o início de nossa Redenção e na ressurreição dos mortos a sua plenitude. Para estarmos à altura do grandioso acontecimento natalino, é indispensável colocarmo-nos diante da perspectiva dos últimos acontecimentos que antecederão o Juízo Final. Daí o fato de a Igreja durante muito tempo ter cantado na Missa a seqüência “Dies Irae”, a famosa melodia gregoriana. Mais do que simplesmente recordar-nos o fato histórico do Natal, a Igreja quer fazer-nos participar das graças próprias à festividade, tal qual delas gozaram a Santíssima Virgem, São José, os Reis Magos, os Pastores, etc. Ora, uma grande esperança, pervadida pelo desejo de santidade e por uma vida penitencial, sustentava o povo eleito naquelas circunstâncias. E nós devemos imitar seu exemplo e seguir seus passos, em face não só do Natal como também da plenitude de nossa redenção: a gloriosa ressurreição dos filhos de Deus. Primeira e segunda vindas de Jesus se unem diante de nossos horizontes neste período do Advento, fazendo-nos analisá-las quase numa visão eterna; talvez, melhor dizendo, de dentro dos próprios olhos de Deus, para Quem tudo é presente. Eis algumas razões pelas quais se entende a escolha do roxo para os paramentos litúrgicos, nessas quatro semanas.

CLA DIAS, João. O Advento. in: Arautos do Evangelho. São Paulo: Associação AE, n. 47, nov. 2005, p. 6,7.

Sermão do Primeiro Domingo do Advento (1655) – PADRE ANTÓNIO VIEIRA

pe-antonio-vieiraTudo passa, e nada passa. Tudo passa para a vida, e nada para a conta. A verdade e desengano de que tudo passa (que é o nosso primeiro ponto) posto que seja por uma parte tão evidente, e que parece não há mister prova., é por outra tão dificultoso, que nenhuma evidência basta para o persuadir. Lede os filósofos, lede os profetas, lede os apóstolos, lede os santos padres, e vereis como todos empregaram a pena, e não uma senão muitas vezes, e com todas as forças da eloqüência, na declaração deste desengano, posto por si mesmo tão claro.

Sabiamente falou quem disse que a perfeição não consiste nos verbos, senão nos advérbios: não em que as nossas obras sejam honestas e boas, senão em que sejam bem feitas. E para que esta condicional tão importante se estendesse também às coisas naturais e indiferentes, inventou o apóstolo S. Paulo um notável advérbio. E qual foi? Tanquam non, como senão: Ut qui habent uxores, tanquam non habentes sint: et qui flent, tanquam non flentes: et qui gaudent, tanquam nan gaudentes: et qui emunt, tanquam non possidentes: et qui utuntur hoc mundo, tanquam non utantur. Sois casado? (diz o apóstolo) pois empregai todo o vosso cuidado em Deus, como se o não fôreis. Tendes ocasiões de tristezas? pois chorai, como se não choráreis. Não são de tristeza, senão de gosto? pois alegrai-vos, como se não vos alegráreis. Comprastes o que havíeis mister, ou desejáveis? pois possuí-o, como se não possuíreis. Finalmente usais de alguma outra coisa deste mundo? pois usai dela, como se não usáreis. De sorte que quanto há, ou pode haver neste mundo, por mais que nos toque no amor, na utilidade, no gosto, a tudo quer S. Paulo que acrescentemos um, como se não, tanquam non. Como se não houvera tal coisa, como se não fora nossa, como se não nos pertencera. E por quê? Vede a razão:Præterit enim figura hujus mundi (3) . Porque nenhuma coisa deste mundo pára, ou permanece; todas passam. E como todas passam e são como se não foram, assim é bem que nós usemos delas, como se não usáramos: Tanquam non utantur. Por isso a essas mesmas coisas não lhes chamou o oráculo do terceiro céu coisas, senão aparências, e ao mundo não lhe chamou mundo, senão figura do mundo:Præterit enim figura hujus mundi.

Considerai-me o mundo desde seus princípios, e vêlo-eís sempre, como nova figura no teatro, aparecendo e desaparecendo juntamente, porque sempre está passando. A primeira cena deste teatro foi o paraíso terreal, no qual apareceu o mundo vestido de imortalidade, e cercado de delícias; mas quanto durou esta aparência? Estendeu Eva o braço à fruta vedada, e no brevíssimo espaço em que o bocado fatal passou pela garganta do homem, passou também com ele o mundo do estado da inocência ao da culpa, da imortalidade à morte, da pátria ao desterro, das flores aos espinhos, do descanso aos trabalhos, e da felicidade suma ao sumo da infelicidade e miséria. Oh miserável mundo, que se pararas assim, e te contentaras com comer o teu pão com o suor do teu rosto, foras menos miserável! Mas não serias mundo, se de uma miséria grande não passasses sempre, e por tua natural inclinação, a outra maior. Os homens naquela primeira infância do mundo todos vestiam de peles, todos eram de uma cor, todos falavam a mesma língua, todos guardavam a mesma lei. Mas não foi muita o tempo em que se conservaram na harmonia desta natural irmandade. Logo variaram e mudaram as peles com tanta diferença de trajos, que cada dia, dos pés à cabeça, aparecem com nova figura. Logo variaram e mudaram as línguas com tanta dissonância e confusão, como a da torre de Babel. Logo variaram e mudaram as cores com a diversidade das terras e climas, e com a mistura do sangue, posto que todo vermelho. Logo variaram e mudaram as leis, não com as de Platão, Sólon, ou Licurgo, mas com a do mais imperioso e violento legislador, que é o próprio alvedrio. Tudo mudaram, ou tudo se mudou, porque tudo passa.

As vidas naquele princípio costumavam ser de sete, de oito, de novecentos e quase de mil anos; e que brevemente se acabou este bom costume? Então o viver muitos séculos era natureza, hoje chegar, não a um século, mas perto dele, é milagre. Tardaram em passar até Noé, e também passaram. Com aquelas vidas não só cresciam os anos, senão também os corpos: e dos filhos de Deus, que eram os descendentes de Set, e das filhas dos homens, que eram as descendentes de Caim, nasceram os gigantes, de quem diz a Escritura: Erant gigantes super terram .Alguns ossos que ainda duram destes que o mesmo texto sagrado chama varões famosos, demonstraram pela simetria humana, que não podiam ser menos que de vinte, e mais côvados: e ainda na história das batalhas de Davi temos memória de outros quatro, posto que de muito menor estatura Mas, enfim, acabou a era dos gigantes; porque tudo nesta vida, e mais depressa o que é grande, acaba e passa.

Diminuídos os homens nos corpos e nas idades, quando tinham a morte mais perto da vista (quem tal crera! ) então cresceram mais na ambição e soberba. E sendo todos iguais e livres por natureza, houve alguns que entraram em pensamento de se fazer senhores dos outros por violência, e o conseguiram. O primeiro que se atreveu a pôr coroa na cabeça, foi Membroth, que também como o nome de Nino, ou Belo, deu princípio aos quatro impérios, ou monarquias do mundo. O primeiro foi o dos assírios e caldeus; e onde está o império caldaico? O segundo foi o dos persas; e onde está o império persiano? O terceiro foi o dos gregos; e onde está o império grego? O quarto, e maior de todos, foi o dos romanos; e onde está o império romano? Se alguma coisa permanece deste, é só o nome: todos passaram, porque tudo passa. Em três famosas visões representou Deus estes mesmos impérios a um rei, e a dois profetas. A primeira visão foi a Nabucodonosor na estátua de quatro metais; a segunda a Zacarias em quatro carroças de cavalos de diferentes cores; a terceira a Daniel em um conflito dos quatro ventos principais, que no meio do mar se davam batalha. Pois se todas estas visões eram de Deus e todas representavam os mesmos impérios, por que variou tanto a sabedoria divina as figuras, e sobre a primeira da estátua, tão clara e manifesta, acrescentou outras duas tão diversas em tudo? Porque a estátua, na dureza dos metais de que era composta, e no mesmo nome de estátua, parece que representava estabilidade e firmeza: e porque nenhum daqueles impérios havia de preservar firme e estável, mas todos se haviam de mudar sucessivamente, e ir passando de umas nações a outras; por isso os tornou a representar na variedade das carroças na inconstância das rodas, e na carreira e velocidade dos cavalos. Mas não parou aqui a energia da representação, como não encarecida ainda bastantemente. A estátua estava de pé, e as carroças podiam estar paradas. E porque aqueles impérios correndo mais precipitadamente que a rédea solta, não haviam de parar no mesmo passo, nem por um só momento, e sempre se haviam de ir mudando, e passando; por isso, finalmente, os representou Deus na causa mais inquieta, mudável, e instável, quais são os ventos, e muito mais quando embravecidos e furiosos: Et ecce quatuor venti cœli pugnabant in mari magno.

Sermões, col. Obras Imortais da Nossa Literatura,  Rio de Janeiro: Editora Três, 1974.

A linguagem em São Tomás de Aquino

tomas-de-aquinoPe. António Coluço, EP

Em geral a antropologia interpreta a língua como sendo um produto histórico-social. Já na ramificação filosófica desta ciência, o homem é considerado como sendo um ser de “linguagem” e um ser “social” e ao utilizar-se da linguagem, ele se revela e revela a realidade do mundo. Numa perspectiva tomista e antropológica cristã, o homem por ser naturalmente social, não lhe basta sentir, julgar ou querer. Ele deseja comunicar as suas impressões e pensamentos aos seus semelhantes e como veremos, até mesmo com o próprio Deus.

Por isto, não podendo manifestar a idéia propriamente, ele dá sinais e fala. Desta maneira, a linguagem se fundamenta na capacidade que os homens têm para comunicar-se entre si, e isto é feito através de símbolos, entre outros os lingüísticos, fazendo com que as sensações ou impressões sejam detectadas por um ou vários dos nossos sentidos.

4.2.1 A capacidade racional do homem e a linguagem

Segundo o Doutor Angélico, os homens superam as outras criaturas devido a sua capacidade racional. No ensaio “Deus – finalidade teleológica do homem, segundo Tomás de Aquino” este conceito é assim explicado:

Esta, [capacidade racional], faz com que os homens tenham o domínio sobre os seus atos, assumindo assim um papel ativo. Some se a isso, o fato do homem caminhar para um fim, a partir de sua própria ação, quando conhece e ama a Deus.

Por motivos especiais, o Aquinense julga que as criaturas racionais estão sujeitas à providência Divina de uma forma diferente dos outros animais. Um desses motivos seria a perfeição da natureza, pois a partir desta os homens passam a ter domínio sobre todos os seus atos, podendo assim, ser considerados livres, ou seja, eles podem agir por si mesmos nas suas operações. Além disso, coloca o homem numa posição mais privilegiada: ‘a dignidade do fim’. (COSTA; ANDRADE, 2007, p.2)

Tomás de Aquino coloca o homem numa posição mais privilegiada por causa da “dignidade do fim”. [1] (AQUINO, 2006)

Continuam Costa e Andrade:

As outras criaturas são mais passivas nas suas ações e só podem atingir uma finalidade por certa semelhança de sua participação. Dito de outra forma, os animais possuem uma natureza instrumental [atuado por outro], ou seja, eles são naturalmente sujeitos à servidão. Já o homem, possui uma natureza de agente principal. [Atuado por si mesmo] (COSTA; ANDRADE, 2007, pp. 2-3)

Sobre este conceito o Magistério da Igreja Católica ensina:

De todas as criaturas visíveis, só o homem é capaz de conhecer e amar o seu Criador, é a única criatura sobre a terra que Deus quis por si mesma; só ele é chamado a partilhar, pelo conhecimento e pelo amor, a vida de Deus. Com este fim foi criado, e tal é a razão fundamental da sua dignidade. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2001, p. 103)[2]

A capacidade lingüística do ser humano faz com que ele se diferencie radicalmente do resto dos animais. Por isto, de acordo com esta escola de pensamento, que difere das outras enunciadas neste trabalho, considera que a linguagem não pode ser meramente explicada em termos de operações mecânicas de um corpo material, mas como o resultado de uma mente reacional.

Ao que se conclui, que a incapacidade que os animais têm de utilizarem de uma linguagem – como o vocábulo é empregado neste trabalho – é uma evidência de que não possuem inteligência. Somente os homens, entre os seres vivos, têm o habito de comunicar um pensamento de um para outro, e só ele, entre os seres espirituais, é capaz de expressar-los através de sons sensíveis. A linguagem não torna presente o objeto, mas sim a sua idéia, por meio de um signo que o substitui.

Na “S.C.G.” as naturezas intelectuais têm mais afinidades com o conjunto do que as outras naturezas, pois cada criatura intelectual identifica-se de certo modo com todas as coisas. Segundo Tomás de Aquino, todas as demais substâncias estão sujeitas à providência divina por causa das substâncias intelectuais.[3] (AQUINO, 2006)

Ao que Nunes Costa e Vilar Andrade fazem a seguinte avaliação sobre este postulado tomista:

A substância intelectual, a qual Aquino se refere, usa de todas as coisas por causa dela mesma e isso é uma tarefa constante, não por apenas por conveniência. O Criador do universo ordena todas as coisas para sua operação, esta operação é a ultima perfeição da coisa, ou seja, tanto o homem como os animais recebem de Deus a direção das suas ações, mas no caso do animal, essas direções são apenas por causa da espécie, no caso do homem, elas são em função da espécie do individuo. (COSTA; ANDRADE, 2007, p. 3)

Desta maneira, na linguagem a ligação que existe entre um som sensível com um sentido definido (significado) é possível porque no homem, composto de corpo e alma, não existe uma separação entre a percepção e os pensamentos espirituais, já que as idéias derivam da percepção por abstração e sempre mantêm certa relação com o esquema sensível.

Entre os homens, a compreensão recíproca entre o sujeito que fala e o receptor da mensagem, está no fato de terem uma natureza composta de corpo e alma, e que faz com que sejam capazes, numa dimensão sensível-espiritual, de identificarem intencionalmente o objeto com a idéia. (AGUILAR, 2005)

A função da linguagem é de manifestar exteriormente um pensamento, porém é necessário fazer uma precisão importante a este conceito pois ele pode ser insuficiente.

Para Tomás de Aquino o pensamento é entendido no senso conceptual, ou racional. De maneira que mesmo que alguns animais possam ter acesso a uma expressão simbólica abstrata, não são capazes, pelo menos ainda não se pode estabelecer, que sejam capazes de exprimir uma idéia ou conceito.

Por isto segundo a corrente espiritualista, apesar de que os animais possam utilizar um sistema sofisticado de comunicação para manifestar as suas necessidades (fome, sede) e emoções (desejos, medos, tristezas ou alegrias), porém ao contrário do homem, são incapazes de estabelecer um vinculo entre a exteriorização dos desejos com a transmissão de um pensamento racional.

Na visualização tomista, a linguagem é entendida como sendo um sistema de signos sensíveis pelos quais o homem transmite mensagens de caráter espiritual. Seus elementos, termos de relação e propriedades demonstram que brotam de um ser inteligente e racional, composto de corpo e alma.

4.2.2 O transcendental da linguagem

Na Antiguidade a ênfase está no ser e na natureza, no racionalismo cartesiano a linguagem é um elemento de verificação e já no existencialismo sartreano ela gira em função de uma necessidade individual sem desdobramentos e sem relação com nada de absoluto. Em Tomás de Aquino a linguagem ela está sob um prisma transcendental.

No cosmocentrismo dos antigos gregos, a “physis” é vista como uma realidade eterna e in-criada, na qual não há “alguém” transcendente que tenha criado o mundo. Já para o medieval este “alguém” existe, e é Deus e a realidade é divina e transcendente.

Ao contrário dos antigos gregos, para os medievais existe ‘alguém’ que criou o mundo ou a natureza. Esse ‘alguém’ é Deus. Dessa maneira, se para o pensamento cristão há “algo” além da natureza, então se trata de um pensamento do tempo – da história! – dirigido consoante os desígnios de um puro ser, isto é, Deus. (MEDEIROS, 2006, p.2)

E característica da cultura medieval está presente em Tomás de Aquino enquanto um paradigma.

Em “Santo Tomás de Aquino – Sobre a Diferença entre a Palavra Divina e a Humana” é analisado de como o falar é a operação própria da inteligência na qual entre a realidade descrita pela linguagem e o som da palavra existe um terceiro elemento:

Ora, entre a realidade designada pela linguagem e o som da palavra proferida, há um terceiro elemento, essencial na linguagem, que é o conceptus, o conceito, a palavra interior [verbum interius, verbum mentis, verbum cordis], que se forma no espírito de quem fala e que se exterioriza pela linguagem, que constitui seu signo audível [o conceito, por sua vez, tem sua origem na realidade]. (LAUAND, 1993, p. 6)

4.2.3 “Sumbolh”

O transcendental tomista pode ser relacionado com o “sumbolh” (símbolo) que na Grécia Antiga significava a metade de um objeto quebrado, por exemplo, uma moringa, em que as duas partes eram divididas entre dois contratantes. Para liquidar e terminar uma dívida era preciso dar provas da qualidade do contratante, sendo ele mesmo ou outro de direito, e para isto era necessário que se apresentasse uma das partes para que ao unir à outra, a moringa voltasse a ficar inteira. Para Fafián, a filosofia nasceu na Grécia Antiga ao procurarem fazer uma distinção entre a ciência com o mito e os símbolos, todavia para Platão isto acabou sendo uma constante procura de tentar colar e ligar as duas partes que estão separadas. (FAFIÁN, 2002)

O “sumbolh” em Tomás de Aquino consiste em que a criatura se reporte a Deus, não que o Criador precise de outro pedaço para se complementar, pois Ele é a unidade em essência, todavia para a Sua glória externa pede o que dEle volte para Ele, como encontramos em Isaías (55, 10-11):

Isto diz o Senhor: ‘Assim como a chuva e a neve descem do céu e para lá não voltam mais, mas vêm irrigar e fecundar a terra e fazê-la germinar e dar semente, para o plantio e alimentação, assim a palavra que sair de minha boca: não voltará para mim vazia; antes, realizará tudo que for de minha vontade e produzirá os efeitos que pretendi ao enviá-la’. (BIBLIA SAGRADA, 2000, p. 1015)

Contudo, para a criatura a “moringa” só fica inteira quando os dois pedaços estão ligados. É nessa relação entre Criador e criatura que a linguagem se manifesta, não só como um mero falar, mas atitudes e gestos que expressam o que vai ao seu coração e interior. O Magistério da Igreja interpreta esta formulação:

Os sinais e os símbolos ocupam um lugar importante na vida humana. Sendo o homem um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual, exprime e percebe as realidades espirituais através de sinais e símbolos materiais. Como ser social, o homem tem necessidade de sinais e símbolos para comunicar com o seu semelhante através da linguagem, dos gestos e das ações. O mesmo acontece nas suas relações com Deus. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2001, p. 323)[4]

Na “S.T.”, o filósofo medieval realça que para poder entender o que é Deus, é necessário utilizar-se de analogias para facilitar a compreensão dos nossos sentidos, e é principalmente pela linguagem analógica com os signos e símbolos, de que o “falar” com Deus se estabelece. Conceito com o qual João Paulo II assim se identifica:

De fato, a fé pressupõe claramente que a linguagem humana seja capaz de exprimir de modo universal — embora em termos analógicos, mas nem por isso menos significativos — a realidade divina e transcendente. Se assim não fosse, a palavra de Deus, que é sempre palavra divina em linguagem humana, não seria capaz de exprimir nada sobre Deus. (JOÃO PAULO II, 1998, art. 84)

De acordo com a concepção de Tomás de Aquino, como já descrevemos a linguagem humana é um sistema de signos sensíveis pelos quais nós transmitimos mensagens de caráter espiritual. Seus elementos, termos de relação e propriedades demonstram que brotam de um ser inteligente e racional, composto de corpo e alma.

Certamente ela tem uma função descritiva dos objetos, idéias e acontecimentos, mas não é simplesmente caracterizada por ser a manifestação e a expressão do pensamento, pois os surdos e mudos de nascença podem perfeitamente pensar o mesmo que as outras crianças, sem saber as mesmas palavras comuns e sem uma mesma linguagem articulada. Assim para Tomás de Aquino a linguagem é também uma palavra interior, enquanto um dialogo da alma com ela mesma.

Entretanto a linguagem humana é contingente, subordinada e relacionada aos atributos de um ser absoluto, e aqui temos a presença do transcendental que é o alicerce da escolástica tomista. (MEDEIROS, 2006)

4.2.4 O falar de Deus na Criação

Na concepção de Tomás de Aquino tudo tem a sua origem no Criador, seja a criatura ou a criação em geral é um produto do “falar” de Deus. Sobre este enunciado comenta Lauand:

Assim, para Tomás, a criação é também um ‘falar’ de Deus, do Verbum [razão materializada em palavra]: as criaturas são, porque são pensadas e ‘proferidas’ por Deus: e por isso são cognoscíveis pela inteligência humana.

[…] Assim como a palavra audível manifesta a palavra interior, assim também a criatura manifesta a concepção divina […], as criaturas são como palavras que manifestam o Verbo de Deus. (LAUAND, 2006, p. 23)

Macieras Fafián é participe desta idéia ao ponderar:

O primeiro autor da linguagem é Deus, que instruiu Adão na denominação das criaturas, mas é o homem quem configura a sua linguagem na medida em que se ia dando oportunidade à experiência e o uso das criaturas. (FAFIÁN, 2000, p.50, tradução nossa)

A manifestação da linguagem deve ser analisada a partir dos seus primórdios (ECO, 1993) tal como está descrita no Gênesis (1, 1-8):

No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas.

Deus disse: ‘Faça-se a luz!’ e a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas, Deus chamou à luz DIA, e às trevas NOITE. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o primeiro dia.

[…] Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam debaixo do firmamento daquelas que estavam por cima. E assim se fez. Deus chamou ao firmamento CÉUS. (BIBLIA SAGRADA, 2000, p. 49)

Para Eco a criação foi um “falar” de Deus, pois “faça-se a luz! e a luz foi feita” (Gênesis 1,3), com isto postula:

A criação se produziu por um ato da palavra, e pelo fato de dar nome as coisas na medida em que vão sendo criada, isto confere a Deus um estatuto ontológico: “E Deus chamou a luz ‘dia’ e as trevas ‘noite’… [e] chamou o firmamento ‘céu’”. (ECO, 1993, p.11, tradução nossa) [5]

Notamos aqui a relação existente entre a criação do universo, enquanto uma realização da vontade divina manifestada através da palavra. As Escrituras no Hino à Providência de Deus confirma esta interpretação quando diz que “A palavra do Senhor criou os céus” e que quando falou “toda a terra foi criada”:

A palavra do Senhor criou os céus,

e o sopro de seus lábios, as estrelas.

Como num odre junta as águas do oceano, e

Mantém no seu limite as grandes águas.

Adore ao Senhor a terra inteira,

e o respeitem os que habitam o universo!

Ele falou e toda a terra foi criada,

Ele ordenou e as coisas existiram. (LITURGIA DAS HORAS, 2000, p. 1016)[6]

Ao desenvolver a sua teoria Umberto Eco se apóia no Gênesis (2, 15-17):

O Senhor Deus tomou o homem e colocou-o no jardim do Édem para cultivá-lo e guardá-lo. Deu-lhe este preceito: ‘Podes comer do fruto de todas as arvores do jardim; mas não comas do fruto da arvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente. (BIBLIA SAGRADA, 2000, p. 50)

Ao que o pensador italiano comenta:

No 2, 16-17 [Gênesis] pela primeira vez o Senhor fala com o homem, colocando à sua disposição todos os frutos do paraíso terrestre, e advertindo-o que não coma do fruto da árvore do bem e do mal. Há um dúvida em saber em que língua Deus falou com Adão, e uma grande parte da tradição pensará numa espécie de língua de iluminação interior, em que Deus, como acontece em outras partes da Bíblia, se expressa mediante de fenômenos atmosféricos: trovões e relâmpagos. Entretanto se pode interpretar, e aqui surge a primeira possibilidade de uma língua, mesmo sendo intraduzível em termos dos idiomas conhecidos, é compreendida, não obstante, por quem a escuta, por um dom ou estado de graça especial. (ECO, 1993, p. 11. tradução nossa) [7]

Desta maneira, para Tomás de Aquino não é só Deus que fala, mas as próprias criaturas são Suas palavras. No artigo “Diferença entre a Palabra Divina e a Humana” Lauand pondera:

Dentre as muitas e variadas formas de interpretação ‘Deus fala’, há uma especialmente importante nas relações entre Deus e o homem: não é por acaso que João emprega o vocábulo grego Logos [Verbum, razão, palavra] para designar a segunda Pessoa da Ssma. Trindade que ‘se fez carne’ em Jesus Cristo: o Verbum não só é imagem do Pai, mas também princípio da Criação [cfr. Jo 1,3]. E a Criação deve ser entendida precisamente como projeto, design feito por Deus através do Verbo.

[…] Essa concepção de Criação como fala de Deus, a Criação como ato inteligente de Deus, foi muito bem expressa numa aguda sentença de Sartre, que intenta negá-la: ‘Não há natureza humana, porque não há Deus para concebê-la’. De um modo positivo, poder-se-ia enunciar o mesmo desta forma: só se pode falar em essência, em natureza, em ‘verdade das coisas’, na medida em que há um projeto divino incorporado a elas, ou melhor, constituindo-as.

A ‘natureza’, especialmente no caso da natureza humana, não é entendida pela Teologia como algo rígido, como uma camisa de força metafísica, mas como um projeto vivo, um impulso ontológico inicial, um ‘lançamento no ser’, cujas diretrizes fundamentais são dadas precisamente pelo ato criador, que, no entanto, requer a complementação pelo agir livre e responsável do homem.

Nesse sentido, Tomás fala da moral como ultimum potentiae, como um processo de auto-realização do homem; corresponde-lhe continuar, levar a cabo aquilo que principiou com o ato criador de Deus. Assim, todo o agir humano [o trabalho, a educação, o amor, etc.] constitui uma colaboração do homem com o agir divino, precisamente porque Deus quis contar com essa cooperação. (LAUAND, 1993, p. 7)

De acordo com Tomás de Aquino, Deus se revela pela linguagem universal da criação, obra da sua Palavra. Mas, como vimos na citação acima, Deus no seu ato criador pede a cooperação e a participação do homem, e por isto o Seu falar tem que se manifestar através de uma linguagem humana para ser acessível e compreensível aos homens:

Na condescendência de sua bondade, Deus, para revelar-se aos homens, fala-lhes em palavras humanas. Com efeito as palavras de Deus, expressas por línguas humanas, tal como outrora o Verbo do Pai Eterno, havendo assumido a carne da fraqueza humana, se fez semelhante aos homens. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2001, p. 39)[8]

4.2.5 A Palavra e o Verbo

Nas Sagradas Escrituras, ferramenta fundamental no pensamento de Tomás de Aquino, a palavra de Deus é o Verbo, pois:

Por meio de todas as palavras da Sagrada Escritura, Deus pronuncia uma só Palavra, seu Verbo único, no qual se expressa por inteiro.

Lembrai-vos de que o discurso de Deus que se desenvolve em todas as Escrituras é um só e um só é o Verbo que Se faz ouvir na boca de todos os escritores sagrados, o qual, sendo no princípio Deus junto de Deus, não tem necessidade de sílabas, pois não está sujeito ao tempo. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2001, p. 39)[9]

Para Tomás de Aquino “verbum” em latim, significa não só a palavra enquanto um som sensível com um sentido definido (significado), mas é também a segunda Pessoa da Ssma. Trindade, que é o Filho. Sobre esta diversidade de significados Lauand pondera:

Uma tal acumulação semântica não se dá em português e, assim, das 58 ocorrências de verbum no opúsculo de Tomás, somente numas poucas [cerca de meia dúzia] ele se refere estritamente à palavra sonora. Quando não se trata do Verbo divino, a maior parte das incidências de verbum diz respeito ao conceito e, principalmente, àquilo que há de comum entre a palavra sonora e o conceito [e o Verbo Divino também, por vezes].

Ora, dado o relevo que a linguagem ocupa no pensamento e na metodologia de Tomás, o leitor contemporâneo perderia muito de sua argumentação, se não estivesse prevenido para este fato e sua importância. Assim, sempre que depararmos com ‘palavra’, ‘conceito’ e ‘Verbo’ devemos nos lembrar que, para Tomás, estas idéias estão natural e espontaneamente identificadas em verbum. (LAUAND, 1993, p.4)

Fundamentando-se em Tomás de Aquino, Lauand pondera que a palavra é aquilo que está presente interiormente na nossa alma e que exteriormente é significado pela voz, que é caracterizado como sendo o “verbum”. (LAUAND, 1993)

O pensador tomista brasileiro salienta que existe uma diferença entre a nossa palavra “verbum” e a Palavra divina “Verbum”, é que a nossa é imperfeita, contingente e limitada, que desaparece e desvanece, enquanto que a Divina é perfeitíssima e fonte de vida eterna. (LAUAND, 1993)

Este conceito é explicado na Liturgia das Horas:

João era a voz, mas o Senhor, no princípio, era a Palavra [Jo 1,1]. João era a voz passageira, Cristo, a Palavra eterna desde o princípio.

Suprimi a palavra, o que se torna a voz? Esvaziada de sentido, é apenas um ruído. A voz sem palavras ressoa ao ouvido, mas não alimenta o coração.

Entretanto, mesmo quando se trata de alimentar nossos corações, vejamos a ordem das coisas. Se penso no que vou dizer a palavra já está em meu coração. Se quero, porém, falar contigo, procuro o modo de fazer chegar ao teu coração o que já está no meu, recorro à voz e por ela falo contigo. O som da voz te faz entender a palavra; e quando te faz entendê-la, este som desaparece, mas a palavra que ele te transmitiu permanece em teu coração, sem haver deixado o meu.

[…] Guardemos a palavra; não percamos a palavra concebida em nosso íntimo. (LITURGIA DAS HORAS, 2000, p. 223) [10]

Na concepção de Tomás de Aquino, O Verbo e a Palavra formam “um” em Nosso Senhor Jesus Cristo, dando a Palavra o aspecto cristolólico:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o verbo era Deus. Ele estava no principio junto de Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. [Jo 1, 1-3] João, muito conscientemente voltou às palavras que estão no começo da Bíblia e leu de novo o relato sobre a Criação a partir de Cristo para contar, outra vez e definitivamente, por meio de imagens que é a Palavra com que Deus quer mover os nossos corações. (RATZINGER, 1992, p. 25 tradução nossa) [11]

Para o homem o escutar e entender o falar de Deus é por onde ele se auto-realiza, como diz o Salmo:

Vossa palavra é uma luz para os meus passos, é uma lâmpada luzente em meu caminho.

Eu fiz um juramento e vou cumpri-lo: Hei de guardar os vossos justos julgamentos!

Ó Senhor, estou cansado de sofre; vossa palavra me devolva a minha vida!

Que vos agrade a oferenda dos meus lábios; ensinai-me, ó Senhor, vossa vontade!

Constantemente está em perigo a minha vida, mas não esqueço, ó Senhor, a vossa lei.

Os pecadores contra mim armaram laços; eu porém não reneguei vossos preceitos

Vossa palavra é minha herança para sempre, porque ela é que me alegra o coração!

Acostumei meu coração a obedecer-vos, a obedecer-vos para sempre, até o fim! (LITURGIA DAS HORAS, 2000, p. 1078) [12]

Assim na concepção de Tomás de Aquino, o homem é um ser naturalmente social e de linguagem: não lhe basta querer expressar o que sente e quer, pois sendo racional deseja também comunicar as suas impressões e seus pensamentos aos seus semelhantes e com Deus.

Por isto, a linguagem humana, como interpretada pela corrente espiritualista, é um sistema de signos sensíveis pelos quais o homem transmite mensagens de caráter racional como também espiritual, como uma palavra interior num dialogo da alma com ela mesma.

Através do “verbum” (razão materializada em palavra), Deus se torna cognoscível à inteligência humana, e esta só alcança o seu objetivo pleno quando se orienta para o seu fim transcendental ao se reportar a outra metade do “sumbolh”, que é Deus.

[1] Praecellunt enim alias creaturas et in perfectione naturae, et in dignitate finis. “S.C.G.” III, cap. CXI, 1. (grifo nosso)

[2] Art. 356.

[3] Ex his quidem quae supra determinata sunt, manifestum est quod divina providentia ad omnia se extendit. Oportet tamen aliquam rationem providentiae specialem observari circa intellectuales et rationales naturas, prae aliis creaturis. “S.C.G.” III, cap. CXI, 1.

[4] Art. 1146

[5] La creación se produce por un acto de habla, y sólo al nombrar las cosas a medida que las va creando les confiere Dios un estatuto ontológico: “Y Dios llamó a la luz “dia” y a las tinieblas “noche”… (y) llamó al firmamento “cielo”.

[6] Laudes, Quaresma.

[7] En 2, 16-17 el Señor habla por vez primera al hombre, poniendo a su dispo-sición todos los frutos del paraíso terrenal, y advirtiéndole que no coma el fruto del árbol del bien y del mal. Resulta dudoso saber en qué lengua habló Dios a Adán, y una gran parte de la tradición pensará en una especie de lengua de iluminación in-terior, en la que Dios, como por otra parte ocurre en otras páginas de la Biblia, se expresa mediante fenómenos atmosféricos: truenos y relámpagos. Pero si se inter-preta así, se apunta entonces la primera posibilidad de una lengua que, aun siendo intraducibie en términos de idiomas conocidos, es comprendida, no obstante, por quien la escucha, por un don o estado de gracia especial.

[8] Art. 101

[9] Art. 102

[10] Advento. Sto Agostinho. Sermo 293, 3: PL 38, 1328-1329

[11] “En el principio la Palabra existía y la Palabra estaba con Dios y la Palabra era Dios. Ella estaba en el principio con Dios. Todo se hizo por ella y sin ella no se hizo nada de cuanto existe.” (/Jn/01/01-03). Juan, muy conscientemente, ha vuelto a tomar aquí las palabras con las que comienza la Biblia y ha leído de nuevo el relato de la Creación a partir de Cristo para contar, otra vez y definitivamente, por medio de las imágenes qué es la Palabra con la que Dios quiere mover nuestro corazón.

[12] Quaresma. Salmo 118 (119), 105-112 XIV (Nun)