O mistério da Santíssima Trindade

Mons. João S. Clá Dias, EP

O mistério da Santíssima Trindade é o principal de nossa fé. Essencialmente se concentra num mistério de conhecimento e de amor. O primeiro precede o segundo, não por anterioridade de tempo mas, por pura lógica. Em face disto, podemos afirmar que a primeira atividade de Deus é a de conhecer. O Filho é gerado pelo Pai por via do conhecimento. Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado, revela-nos algumas maravilhas desse íntimo conhecimento no seio da Trindade Santíssima: “Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece o Filho senão o Pai; nem alguém conhece o Pai senão o Filho” (Mt 11, 27). “Em verdade, em verdade vos digo: O Filho não pode de si mesmo fazer coisa alguma, mas somente o que vir fazer o Pai; porque tudo o que fizer o Pai, o faz igualmente o Filho. Porque o Pai ama o Filho, e mostra-lhe tudo o que ele faz” (Jo 5, 19-20).

Quem melhor nos revelaria o Pai, do que Jesus, Seu Unigênito? Ele nos torna possível penetrar nos segredos da vida íntima de Deus, através dessa virtude teologal, não como no enunciado de um teorema abstrato, mas de maneira toda divina e sobrenatural: “Nós agora vemos [a Deus] como por um espelho, um enigma; mas então [O veremos] face a face. Agora conheço-O em parte; mas então hei de conhecê-Lo como eu mesmo sou [dele] conhecido” (1 Cor 13, 12-13).

É por essa mesma virtude que cremos na Revelação sobre a procedência, por via de amor, da terceira pessoa, o Espírito Santo. E ademais, permite-nos ela abarcar todos os mistérios da salvação.

In: Lumen Veritatis, n. 4.

Oração numa atmosfera de harmonia e concórdia

IMG_2148Mons. João S. Clá Dias, EP

Como outras tantas festas litúrgicas, Pentecostes nos faz recordar um dos grandes mistérios da fundação da Igreja por Jesus. Encontrava-se ela em estado ainda quase embrionário — alegoricamente, poder-se-ia compará-la a uma menina de tenra idade — reunida em torno da Mãe de Cristo. Ali no Cenáculo, conforme nos descrevem os Atos dos Apóstolos na primeira leitura, passaram-se fenômenos místicos de excelsa magnitude, acompanhados de manifestações sensíveis de ordem natural: ruído como de um vento impetuoso, línguas de fogo, os discípulos exprimindo-se em línguas diversas sem tê-las antes aprendido. A alta significação simbólica do conjunto desses acontecimentos, como de cada um em particular, constituiu matéria para inúmeros e substanciosos comentários de exegetas e teólogos de grande valor.

Enquanto figura exponencial, destaca-se Maria Santíssima, predestinada desde toda a eternidade a ser Mãe de Deus. Dir-se-ia que havia atingido a plenitude máxima de todas as graças e dons, entretanto, em Pentecostes, mais e mais Lhe seria concedido. Assim como fora eleita para o insuperável dom da maternidade divina, cabia-Lhe agora o tornar-se Mãe do Corpo Místico de Cristo e, tal qual se deu na Encarnação do Verbo, desceu sobre Ela o Espírito Santo, por meio de uma nova e riquíssima efusão de graças, a fim de adorná-La com virtudes e dons próprios e proclamá-La “Mãe da Igreja”.

Em seguida estão os Apóstolos; constituem eles a primeira escola de arautos do Evangelho. Observavam as condições essenciais para estarem aptos à alta missão que lhes destinara o Divino Mestre, conforme nos relata a Escritura: “Todos estes perseveraram unanimemente em oração, com algumas mulheres e com Maria, Mãe de Jesus, e com os seus irmãos” (At 1, 14). Essa perseverança na oração se realizou de forma continuada e no silêncio, na solidão e clausura do Cenáculo. A atmosfera era de máxima concórdia, harmonia e união entre todos, de verdadeira caridade fraterna. São Lucas em seu relato faz questão de realçar a presença de Maria, certamente para tornar patente o quanto Ela mesma se alegrava em ser uma fiel participante da Comunidade. Uma nota marcante é a submissão e obediência ao Vigário de Cristo tal qual transparece nos versículos subseqüentes, ao relatarem o primeiro ato de governo e jurisdição de São Pedro (At 1, 15-22).

Em síntese, a verdadeira eficácia do apostolado está aí evidenciada, sob o manto da Santíssima Virgem, na união efetiva e afetiva de todos com a Pedra sobre a qual Cristo edificou sua Igreja.

Benefícios da Ascenção

AscençãoMons. João S. Clá Dias, EP

Fomos beneficiados por incontáveis dons com a Ascensão. Segundo São Leão Magno, passamos a conhecer melhor Jesus a partir do momento em que Ele retornou às glórias do Pai. Nossa fé, “mais esclarecida, aprendeu a elevar-se pelo pensamento, sem necessidade do contato com a substância corporal de Cristo, na qual Ele é menor que o Pai, dado que, embora permanecendo a mesma substância do corpo glorificado, a fé dos fiéis é convidada a tocar, não com a mão terrena, mas com o entendimento espiritual, o Unigênito, igual Àquele que O engendrou. É este o motivo pelo qual o Senhor, após a Ressurreição, disse a Madalena — que representava a pessoa da Igreja —, ao aproximar-se para tocá-Lo: ‘Não me toques, pois ainda não subi ao meu Pai’ (Jo 20, 17). Quer dizer, não quero que procures minha presença corporal nem que me reconheças com os sentidos carnais; chamo-te para coisas mais elevadas, destino-te a bens superiores. Quando subir a meu Pai, Me tocarás de forma mais real e verdadeira, tocando no que não apalpas e crendo no que não vês” (1).

Fortalecimento da fé

Demonstra-nos São Tomás de Aquino que, privando-nos de sua presença corporal, ao penetrar na glória eterna, Jesus Cristo tornou-se ainda mais útil para nossa vida espiritual.

Primeiro, “para aumento da fé, que é sobre o que não se vê. Por isso, o próprio Senhor diz no Evangelho de João que o Espírito Santo, ao vir, ‘argüirá o mundo a respeito da justiça’, ou seja, da justiça ‘dos que crêem’, como diz Santo Agostinho: ‘A própria comparação dos fiéis com os infiéis é uma censura’. Por isso, acrescenta: ‘Porque Eu vou para o Pai e não Me vereis mais, pois são bem-aventurados os que não vêem e crêem. Será nossa a justiça, de que o mundo será argüido, porque credes em Mim, a Quem não vedes’” (2).

A esse propósito, São Gregório Magno externa sua convicção: “Com sua facilidade em crer, Maria Madalena nos aproveita menos do que Tomé duvidando por muito tempo, porque este, em meio a suas dúvidas, exigiu tocar as cicatrizes dessas chagas, e com isso nos tirou todo pretexto para vacilação” (3).

Aumento da esperança

Em segundo lugar, “para reerguer a esperança”, pois, “pelo fato de Cristo ter elevado ao Céu sua natureza humana assumida, deu-nos a esperança de lá chegarmos, porque ‘onde quer que esteja o corpo, ali se reunirão as águias’, como diz Mateus. Por isso, diz também o livro de Miquéias: ‘Já subiu, diante deles, Aquele que abre o caminho’” (4).

Abrasamento da caridade

Uma terceira razão, ainda segundo São Tomás, torna a Ascensão mais benéfica a nós do que a própria presença física de Nosso Senhor, e esta se refere à caridade. Na seqüência dessa mesma questão da Suma, o Doutor Angélico, a fim de nos mostrar as vantagens para essa virtude, cita São Paulo: “Por isso, diz o Apóstolo: ‘Procurai o que está no alto, lá onde Se encontra Cristo, sentado à direita de Deus; aspirai às coisas de cima, não às da terra’, pois, como foi dito, ‘onde estiver o teu tesouro, ali também estará o teu coração’” (5). E, após discorrer sobre o amor enquanto propriedade do Espírito Santo e a respeito da grande necessidade que dele tinham os Apóstolos, termina com esta citação de Santo Agostinho: “Não podeis receber o Espírito enquanto persistirdes em conhecer a Cristo segundo a carne. Pois quando Cristo Se afastou corporalmente, não só o Espírito Santo, mas também o Pai e o Filho estavam espiritualmente em presença deles” (6).

1) Serm. 74 in Sermones escogidos, Ed. ASPAS, Madrid, p. 139. –

2) Suma Teológica III, q. 57, a.1 ad 3.

3) Homilía 29.

4) Suma Teológica, III, a. 1 ad 3.

5) Id., a. 1, ad 1.

6) In Io. Tr. 94: PL 35, 1864.

Eis o dia que o Senhor fez

Mons. João S. Clá Dias, EPResurreicao_NSJC_BasilicaPilar_001

Quia surrexit sicut dicit… Tal como havia anunciado aos seus (Mt 16, 21; 17,9; 17, 22; 20, 19; Jo 2, 19, 20 e 21; Mt 12, 40), Jesus ressuscitou. Esse supremo fato já havia sido previsto por David (Sl 15, 10) e por Isaías (Is 11, 10).

São Paulo ressaltará o valor desse grandioso acontecimento: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1 Cor 15, 14). Daí a importância capital da Páscoa da Ressurrei­ção, a magna festa da Cristandade, a mais antiga, e centro de todas as outras, solene, majestosa e pervadida de júbilo: “Haec est dies quam fecit Dominus. Exultemus et laetemur in ea” — esse é o dia que o Senhor fez, seja para nós dia de alegria e felicidade (Sl 117, 24).

Na liturgia, essa alegria é prolongada pela repetição da palavra “aleluia”, pelo branco dos paramentos e pelos cânticos de exultação. Com razão dizia Tertuliano: “Somai todas as solenidades dos gentios e não chegareis aos nossos cinquenta dias de Páscoa” (De idolatria, c 14).

Na Ressurreição do Senhor, além de contemplarmos o triunfo de Jesus Cristo, celebramos também a nossa futura vitória, sendo aplicáveis a nós as belas palavras de São Paulo: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está o teu aguilhão?” (1 Cor 15, 55).

A inveja, “cárie dos ossos”

Muerte Catedral de Salamanca 004Mons. João S. Clá Dias, EP

No que consiste esse vício? Na tristeza por causa do bem alheio. Tanquerey, no seu Compêndio de Teologia Ascética e Mística, salienta que o despeito causado pela inveja é acompanhado de uma constrição do coração, que diminui a sua atividade e produz um sentimento de angústia. O invejoso sente o bem de outra pessoa “como se fosse um golpe vibrado à sua superioridade”. Não é difícil perceber como esse vício nasce da soberba, a qual, como explica o fa­moso teólogo Frei Royo Marín, O.P., “é o apetite desordenado da excelência própria”. A inveja “é um dos pecados mais vis e repugnantes que se possa cometer”, faz questão de sublinhar o dominicano.

Da inveja nascem diversos pecados, como o ódio, a intriga, a murmuração, a difamação, a calúnia e o prazer nas adversidades do próximo. Ela está na raiz de muitas divisões e crimes, até mesmo no seio das famílias (basta lembrar a história de José do Egito). Diz a Escritura: “Por inveja do diabo, entrou a morte no mundo” (Sb 2, 24). Aqui está a raiz de todos os males de nossa terra de exílio. O primeiro homicídio da História teve esse vício como causa: “… e o Senhor olhou com agrado para Abel e para sua oblação, mas não olhou para Caim, nem para os seus dons. Caim ficou extremamente irritado com isso, e o seu semblante tornou-se abatido” (Gn 4, 4-5).

Esse vício comporta graus. Quando tem por objeto bens terrenos (beleza, força, poder, riqueza, etc.), terá gravidade maior ou menor, dependendo das circunstâncias. Mas se disser respeito a dons e graças concedidas por Deus a um irmão, constituirá um dos mais graves pecados contra o Espírito Santo: a inveja da graça fraterna.

“A inveja do proveito espiritual do próximo é um dos pecados mais satâ­nicos que se pode cometer, porque com ele não só se tem inveja e tristeza do bem do irmão, mas também da graça de Deus, que cresce no mundo”, comenta Frei Royo Marín.

Todas essas considerações devem gravar-se a fundo em nossos corações, fazendo-nos fugir desse vício como de uma peste mortal. Alegremo-nos com o bem de nossos irmãos, e louvemos a Deus por sua liberalidade e bondade. Quem agir assim notará, em pouco tempo, como o coração estará sossegado, a vida em paz, e a mente livre para navegar por horizontes mais elevados e belos. Mais ainda: tornar-se-á ele mesmo alvo do carinho e da predileção de nosso Pai Celeste.

A assinatura de Deus

Ilha dos Frades 083Pe. Edwaldo Marques

Nabucodonosor, rei da Babilônia, em certa ocasião, mandou erigir uma enorme estátua de ouro com o objetivo de instituir uma nova divindade, como se já não bastassem as muitas  que eram cultuadas no país.  Promulgou em seguida um decreto que obrigava a todos os seus súditos a se prostrarem num ato de  adoração, cada vez que as trombetas e outros instrumentos musicais soassem.  Para os que não obedecessem, o castigo era a morte: seriam imediatamente atirados numa fornalha ardente. (cfr. Dan. 3. 1-7, Bíblia Sagrada, 1964, p. 1213).

A Babilônia nessa época era também habitada por judeus cativos.  Destes, um certo número se recusou a obedecer a tal lei ímpia; entre esses estavam três jovens: Ananias, Azarias e Misael.

Como eram altos funcionários do rei, foram chamados pelo soberano e interrogados por ele, confirmaram que, de fato, não adorariam e não cumpririam o edito real, pois eram servidores do Deus verdadeiro, único a quem se deve adoração.

Fora de si, o rei ordenou que fossem lançados imediatamente na fornalha que foi, para esse efeito, aquecida sete vezes mais do que habitualmente o era.  Foram amarrados e lançados ao fogo conforme o rei determinara.

Deus, porém, interveio e nada de mal aconteceu aos três jovens, que tranqüilamente passeavam entre as chamas entoando louvores a misericórdia divina. [Ver Dan. 3, 57-89]

Sabedor do fato, Nabucodonor, cheio de admiração, louvou também o Deus de Ananias, Azarias e Misael e ordenando-lhes que saíssem da fornalha, restabeleceu-os com honra nos postos que  antes ocupavam.

O canto dos três jovens é para nós uma mensagem cheia de poesia e verdade, mas não é esta a razão fundamental de seu magnífico valor.

Qual o principal conteúdo dessa mensagem?  Ela nos mostra, nos revela, que todas as coisas existem para louvar e glorificar a Deus.  Tudo foi criado por Ele, existe em função d’Ele, sustentado por Ele, segundo leis estabelecidas por Ele para a sua própria glória e louvor.  De um modo ou de outro, Ele está refletido em tudo o que criou; em função disso, o conjunto da criação constitui um imenso livro no qual o homem que não seja um analfabeto espiritual, poderá conhecer e amar a Deus Nosso Senhor.

A ordem que rege todas as coisas, a ordem do Universo — é verdadeiramente a assinatura de Deus.

Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição

jesus2Pe. Carlos Werner Benjumea, EP

RATZINGER, J. / BENTO XVI. Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. São Paulo: Planeta, 2011. 272p. ISBN: 9788576656180.

O segundo volume do livro “Jesus de Nazaré”, do Papa Bento XVI, veio a lume recentemente, confirmando a grande expectativa causada pelo anúncio de sua iminente publicação. Foram já vendidos cerca de um milhão de exemplares da obra, editada em sete línguas. A versão em português do Brasil chegou às livrarias em maio de 2011, por meio da editoria Planeta.

O autor, com a fineza de pensamento e o acurado rigor científico que o caracterizam, apresenta uma Cristologia viva, profunda e enriquecedora a partir dos mistérios da vida de Jesus, desde “a entrada em Jerusalém até a Ressurreição”. A obra, porém, não adoece da frieza acadêmica de um estudo técnico e exaustivo. O propósito de Bento XVI é claro: partindo da exegese histórico-crítica e de seus resultados, vai mais longe, de modo a chegar à interpretação teológica. Este passo é decisivo, pois, se a árvore da exegese não dá bons frutos na área da Cristologia, corre o risco de tornar-se teologicamente estéril.

Trata-se, portanto, de procurar ressaltar o autêntico valor de uma exegese verdadeiramente católica, inspirada pelo sincero desejo de aprofundar à luz da Fé a verdade contida no texto sagrado (cf. Dei Verbum, n. 12), sem descuidar o auxílio da investigação histórica, semântica e arqueológica.

O estilo do livro é habitualmente um reflexo da disposição de espírito do autor. Assim, singeleza e sabedoria inspiram a pena do Papa, sempre aberto ao diálogo crítico e construtivo com a exegese histórica, mesmo quando se apresenta impregnada de positivismo, mostrando seus limites e explorando seus contributos ao estudo das Escrituras.

O livro, com efeito, é convidativo e atraente. Lê-se com paixão e amenidade, sendo difícil deter a leitura. Não se destina exclusivamente ao estudo de técnicos e especialistas. Nas suas páginas encontra-se uma mensagem acessível ao público católico e cristão em geral. O Cardeal Marc Ouellet, por ocasião da apresentação da obra na Sala Stampa do Vaticano, em doze de março deste ano, definiu “Jesus de Nazaré” como “um testemunho comovente, fascinante, libertador”.1

Pelo prestígio do autor e sua capacidade de comunicação, a obra pressagia uma nova aurora na exegese bíblica, por sua acertada aproximação científica e teológica à Pessoa de Jesus.

O conteúdo do livro é substancioso e muito rico, pois aborda os acontecimentos-chave narrados pelos Evangelistas, a fim de tornar possível conhecer melhor a figura e a mensagem de Jesus. A partir desses episódios trágicos e gloriosos — paixão, morte e ressurreição — é possível aprofundar muito especialmente o mistério da filiação divina e da missão redentora de Jesus, nas quais se manifesta o rosto amoroso de Deus.

A obra está estruturada em nove capítulos. Abarca o período que vai desde a entrada em Jerusalém e a expulsão dos vendilhões do Templo até a Ascensão de Jesus aos céus. O Autor põe em foco temas muito debatidos e de vivo interesse nos meios exegéticos e teológicos. À guisa de síntese, enunciamo-los em seguida: A análise do discurso escatológico de Jesus e seu conhecimento a respeito dos acontecimentos futuros; a mensagem de amor ao lavar os pés dos discípulos; a oração sacerdotal de Jesus no Evangelho de São João e sua profunda ligação com a Eucaristia e com a Páscoa; a Última Ceia e a atualidade do caráter expiatório da missão de Cristo; a agonia no Horto das Oliveiras como o grandioso embate da luz contra as trevas; o processo de Jesus com a descrição, em minuciosos detalhes, dos acontecimentos e das personagens envolvidas; a crucifixão e morte de Jesus vistas em seu mais profundo sentido bíblico-salvífico; a Ressurreição de Jesus de entre os mortos; e, por fim, a Ascensão aos céus.

O fio condutor de toda a obra, em continuidade com o primeiro volume, é o fundamento histórico do cristianismo e da própria Escritura. Para Joseph Ratzinger, a mensagem do Novo Testamento não é tão só um conjunto de verdades metahistóricas baseadas em narrações simbólicas. Isso seria transformar em fábula, ou em mito, acontecimentos reais. Pelo contrário, pertence à essência da Revelação o fato de estar fundada na história que aconteceu sobre a face da terra.

Ratzinger exemplifica a este respeito com a Eucaristia: se Jesus não tivesse dado a seus discípulos seu corpo e seu sangue sob as espécies do pão e do vinho, a celebração eucarística perderia seu conteúdo, seria uma “ficção piedosa” e não “uma realidade que estabelece a comunhão com Deus”.

No livro, aborda-se com seriedade o tema do caráter sacrifical da missão messiânica de Jesus, pedra de escândalo de alguns teólogos influenciados pela sensibilidade moderna, avessa à ideia de expiação. Embora a historicidade dos textos eucarísticos do Novo Testamento seja incontestada pelos exegetas, paira a dúvida e continua-se discutindo a respeito do verdadeiro sentido do “sangue derramado” e do “corpo entregue”. Para Ratzinger, estes textos evocam o sacrifício de expiação da Antiga Lei e o levam, ao mesmo tempo, a seu pleno cumprimento.

Depois de explicar a necessidade de deixar-se guiar pela Escritura, abandonando a atitude de querer confrontá-la de forma presunsuosa e racionalista com os critérios humanos, o Santo Padre desvenda primorosamente a força vencedora do sacrifício de Cristo sobre o pecado, a morte e o mal. Na paixão de Jesus, a imundície do mundo entra em contato com O imensamente puro, mas desta vez o mal não vence. Em Jesus, o bem é infinitamente mais forte, com poder para anular e transformar a sordície do pecado.

É o “extremo sim” ao Pai, após o combate interior travado no Horto das Oliveiras, que, por assim dizer, consagra a Cristo Sacerdote, no sentido mais pleno do termo, “segundo o rito de Melquisedec”. Sua doação voluntária leva a humanidade até o alto, até Deus, configurando-o como o Sacerdote perfeito. Ele, tal como o apresenta a epístola aos Hebreus, oferece-Se a Si mesmo: “Tu não queres sacrifícios e oferendas, mas me preparastes um corpo” (Hb 10, 5). São as palavras dirigidas ao Pai pelo Filho como sinal de total obediência e submissão, em atitude diametralmente oposta à soberba de Adão, que quis ser como Deus (cf. Gn 3, 5).

Ressalta-se na obra a diferença existente entre o Salmo que inspira esta passagem e a adaptação dele feita na Epístola aos Hebreus. Com efeito, o ato de “abrir o ouvido” (Sl 39, 7) é substituído pelo de “preparar um corpo” (Heb 10, 5). Eis apontado com clareza o caráter sacrifical e expiatório do sacerdócio de Cristo. Era necessário que o Filho de Deus reparasse com seu holocausto o pecado da humanidade. Mas não se trata só disso: a reparação é ao mesmo tempo triunfo sobre os males decorrentes da soberba e da revolta. A morte é vencida pela Vida Eterna.

Para Ratzinger, esta realidade é expressa de forma simbólica no Evangelho de São João, o qual situa a Ressurreição de Jesus e, portanto, a vitória definitiva sobre a morte, num horto onde havia um sepulcro ainda não utilizado, evocando por contraposição o jardim do Éden, lugar do primeiro pecado.

O Santo Padre, ao tratar da Ressurreição, afronta vários temas candentes. Em primeiro lugar, pergunta-se a respeito da essência da Ressurreição, o que sucedeu com Jesus e se teria Ele simplesmente voltado à vida como Lázaro. Estuda também os dois tipos de testemunhas do evento: a tradição em forma de confissão e a tradição em forma de narração. Em seguida oferece uma síntese conclusiva a respeito da natureza e da significação histórica da ressurreição. Usando a linguagem analógica, o autor explica a Ressurreição como um “salto qualitativo radical”, pois Jesus com seu mesmo corpo “pertence agora totalmente à esfera do divino e do eterno”.

A obra termina com uma perspectiva de índole escatológica, fundada na Ascensão do Senhor aos Céus. Com efeito, a alegria experimentada pelos Apóstolos ao testemunharem o fato indica a nova forma de presença de Jesus no meio deles. Cristo não partiu para uma zona longínqua do universo, mas entrou para sempre na comunhão de vida e de poder com o Deus vivente.

Nessa perspectiva, adquire pleno sentido a promessa de Jesus no Evangelho de João: “Não vos deixarei órfãos. Voltarei a vós” (Jo 14, 18). Ao subir ao Céu, Jesus “foi”, mas ao mesmo tempo “veio”, e sua presença fortalece os discípulos de maneira especial. Com isso, esclarece-se o mistério a respeito da cruz, da ressurreição e da ascensão.

Após oferecer a síntese da mensagem nuclear e central da obra e em razão da impossibilidade de esgotar a sua riqueza, serão destacados outros temas importantes nela tratados.

Ratzinger oferece um contributo à ética cristã definindo sua essência. Para ele, a Lei de Moisés oferecia ao homem um caminho de verdadeira perfeição, mas com a Encarnação do Filho, na Kenosis misericordiosa, manifesta-se o perfil do verdadeiro cristão. Amar como Cristo amou, eis a nota fundamental da moral cristã. E só mediante a participação pessoal na vida de Jesus é-nos comunicada sua ardentíssima caridade.

As reflexões teológicas da obra iluminam de forma especial a vida espiritual cristã. O verdadeiro teólogo deve ser um homem de Fé vivida e, em consequência, pode oferecer reflexões de alto teor espiritual. Ao estudar, por exemplo, a figura de Judas, o traidor desesperado, incentiva a prática da virtude da Esperança na misericórdia do bom Mestre, focalizando o arrependimento de São Pedro, o traidor arrependido.

Não menos oportunas são as reflexões — a propósito da oração de Jesus em Getsêmani e da sonolência dos discípulos — sobre a virtude da vigilância, tão esquecida nestes tempos de individualismo imprevidente: “A sonolência dos discípulos continua sendo uma ocasião propícia para o poder do mal”.

Reflexiona também sobre a surpreendente combinação entre a douta erudição e a profunda ignorância dos estudiosos apoiados sobre um saber que se pretende autossuficiente, incapaz de transformar o homem. Desta forma, interpela o leitor com agudeza, indagando-o acerca da verdade e daquilo que muitas vezes a ela se opõe: nós, o nosso saber, e a fuga à dolorosa verdade.

Desde o ângulo da exegese histórica, a obra traz contributos muito interessantes, como por exemplo, a datação da última ceia de Jesus. Os sinóticos afirmam que a última ceia foi a ceia de Páscoa; São João a situa na parasceve, véspera da Páscoa. Como resolver a aparente contradição? Depois de um acurado estudo, Ratzinger mostra a idoneidade cronológica da narração joanina e aponta para a concordância de fundo entre as duas tradições. Jesus no cenáculo não teria celebrado a páscoa judaica, mas a sua própria Páscoa.

Em síntese, o Santo Padre trata com maestria e par cœur daquilo que conheceu e amou na Pessoa de Jesus, com uma ciência — como ele mesmo explica — que cria comunhão com o conhecido. A mensagem de seu trabalho é, sem dúvida, a mesma de Jesus: “Que Te conheçam a Ti, o único Deus verdadeiro, e Aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17, 3).

Resenha In: Lumen Veritatis, n. 15 Abr./Jun. 2011

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1 In: www.radiovaticana.org. Último acesso a 2 jun. 2011.

A mulher na Bíblia

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Se levais em conta a distância que há entre a família gentílica e a hebreia, vereis logo que estão separadas entre si por um abismo profundo: a família gentílica compõe-se de um senhor e de seus escravos, enquanto a hebreia, do pai, da mulher e de seus filhos. Entram como elementos constitutivos da primeira, deveres e direitos absolutos; a segunda, deveres e direitos limitados. A família gentílica descansa na servidão; a hebreia funda-se na liberdade. A primeira é resultado de um esquecimento; a segunda, de uma recordação; o esquecimento e a recordação das divinas tradições, prova clara de que o homem não ignora, senão porque esquece, e não sabe, senão porque aprende.

Agora se compreenderá facilmente porque a mulher hebreia perde nos poemas bíblicos tudo o que teve entre os gentios de sombrio e de sinistro; e porque o amor hebreu, diferentemente do gentio, que foi incêndio dos corações, é bálsamo das almas. Abri os livros dos profetas bíblicos, e em todos aqueles quadros, risonhos ou pavorosos, com que davam a entender às sobressaltadas multidões, ou que ia desfazendo-se o nebuloso, ou que a ira de Deus estava próxima, achareis sempre em primeiro lugar as virgens de Israel, sempre belas e vestidas de resplendores aprazíveis, levantarem então seus corações ao Senhor em melodiosos hinos e em angélicos cantares, ou depositarem, sob o peso da dor, as cândidas açucenas de suas frontes. […]

Nem se contentaram os hebreus em confiar à mulher o brando cetro de seus lares mas puseram muitas vezes na sua mão fortíssima e vitoriosa o pendão das batalhas e o governo do Estado. A ilustre Débora governou a república na qualidade de juiz supremo da nação; como general dos exércitos, peleou e ganhou batalhas sangrentas; como poetiza, celebrou os triunfos de Israel e entoou hinos de vitória, manejando ao mesmo tempo, com igual soltura e maestria, a lira, o cetro e a espada.

No tempo dos reis, a viúva de Alexandre Janneo teve o cetro dez anos; a mãe do rei Asa governou em nome do seu filho, e a mulher de Hircano Macabeu foi designada por este príncipe para governar o Estado depois de seus dias. Até o espírito de Deus, que se comunicava a poucos, desceu também sobre a mulher, abrindo-lhe os olhos e o entendimento para que pudesse ver e entender as coisas futuras. Hulda foi iluminada com o espírito de profecia, e os reis aproximavam-se dela sobressaltados com um grande temor, contritos e receosos, para saber de seus lábios o que no livro na Providência estava escrito de seu império. A mulher, entre os hebreus, ora governa a família, ora dirige o Estado, ora fala em nome de Deus, ora avassala os corações, cativos de seus encantos. Era um ser benéfico, que já participava tanto da natureza angélica como da humana. Lede apenas o Cântico dos Cânticos e dizei-me se aquele amor suavíssimo e delicado, se aquela esposa vestida de odoríferas e cândidas açucenas, se aquela música harmônica, se aqueles arrebatamentos inocentes e elevados, e aqueles deleitosos jardins, não são mais que coisas vistas, ouvidas e sentidas na terra, coisas que se nos apresentam como sonhos do paraíso.

E entretanto, senhores, para conhecer a mulher por excelência; para ter notícia certa do encargo recebido de Deus; para considerá-la em toda a sua beleza imaculada e altíssima; para formar-se alguma ideia de sua influência santificadora, não basta colocar a vista naqueles belíssimos exemplos da poesia hebraica, que até agora deslumbraram os nossos olhos e docemente embargaram os nossos sentidos. O verdadeiro modelo e exemplo de mulher não é Rebeca, nem Débora, nem a esposa do Cântico dos Cânticos, cheia de fragrâncias como uma taça de perfumes. É necessário ir mais além, e subir mais alto; é necessário chegar à plenitude dos tempos, ao cumprimento da antiga promessa. Para surpreender à maneira de Deus, formando o tipo perfeito de mulher, é necessário subir até ao trono resplandecente de Maria. Ela é uma criatura aparte, mais bela por si só que toda a criação; o homem não é digno de tocar suas vestes brancas, a terra não é digna de servir-lhe de peanha, nem os tecidos de brocado como tapete; a sua brancura excede a neve que se acumula nas montanhas; o seu corado, o rosado dos céus; o seu esplendor ao resplandecente das estrelas. Maria é amada de Deus, venerada pelos homens, servida pelos anjos. […] O Pai a chama filha, e lhe envia embaixadores; o Espírito Santo a chama esposa, e lhe faz sombra com as suas asas; o Filho a chama mãe, e faz de sua morada o seu sacratíssimo ventre. Os Serafins compõem a sua corte; os céus a chamam Rainha; os homens a chamam Senhora: nasceu sem mancha, livrou o mundo, morreu sem dor, viveu sem pecado. Vede aí a mulher, senhores, vede aí a mulher, porque Deus em Maria as santificou: às virgens, porque Ela foi Virgem; às esposas porque Ela foi Esposa; às viúvas porque Ela foi Viúva; às filhas, porque ela foi Filha; às mães porque ela foi Mãe. Grandes e portentosas maravilhas obrou o cristianismo no mundo: fez as pazes entre o céu e a terra, destruiu a escravidão, proclamou a liberdade humana e a fraternidade dos homens. Mas com tudo isso, a mais portentosa de todas as suas maravilhas, a que mais profundamente influiu na constituição da sociedade doméstica e da civil, é a santificação da mulher, proclamada desde as alturas evangélicas. E além do mais, senhores, desde que Jesus Cristo habitou entre nós, nem sobre as pecadoras é lícito lançar o escárnio e o insulto, porque até os seus pecados podem ser lavados pelas suas lágrimas.

O Salvador dos homens colocou a Madalena sob o seu amparo. E quando chegou o tremendo dia em que se nublou o sol, estremeceram e deslocaram-se os despojos da terra, ao pé da sua cruz estavam juntas a sua inocentíssima Mãe e a arrependida pecadora, para dar-nos assim a entender que os seus amorosos braços estavam abertos igualmente à inocência e ao arrependimento.

Excerto de discurso proferido por Juan Donoso Cortés a 16 de abril de 1848, ao tomar assento na Real Academia de la Lengua. Tradução do original em espanhol presente em OBRAS de D. Juan Donoso Cortés. (Ord.) Gavino Tejado. Madrid: Imprenta de Tejado, 1854. Tomo III. p. 171-198, por Pe. José Manuel Victorino de Andrade, EP  para a revista Acadêmica Lumen Veritatis, n. 15, abr./jun. 2011.

A homilia

bento-xviPe. Mário Sérgio, EP

Entre as formas de pregação, destaca-se a homilia, que é parte da própria liturgia e se reserva ao sacerdote ou diácono; nela se devem expor, ao longo do ano litúrgico, a partir do texto sagrado, os mistérios da fé e as normas da vida cristã.

A Sagrada Teologia que é traduzida pelo sacerdote de forma acessível aos fiéis deve-se apoiar na Sagrada Escritura que é a “alma”, de todo ministério profético, sobretudo da homilia1. Por esta razão, a Igreja determina que em todas as missas que se celebram com participação do povo, nos domingos e festas de preceito, deve-se fazer a homilia, que não se pode omitir, a não ser por causa grave2.

À suficiente participação do povo, recomenda-se vivamente que se faça a homilia também nas missas celebradas durante a semana, principalmente no tempo do advento e da quaresma ou por ocasião de alguma festa ou acontecimento de luto3, pois os jovens afastados da participação dos mistérios recuperam o senso católico no encontro com o sacerdote nestas ocasiões, muitas vezes retornando à participação das Missas dominicais.

Ressalta a Evangelii Nuntiandi, que na homilia, “a evangelização não seria completa se ela não tomasse em consideração a interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social, dos homens”4. Entretanto, convém que a doutrina cristã seja apresentada de modo apropriado à condição dos ouvintes e, em razão dos tempos, adaptada às necessidades.  O Código de Direito Canônico estimula aos párocos que “as pregações, que se denominam exercícios espirituais e santas missões, ou ainda outras formas adaptadas às necessidades”5.

Deve-se ressaltar que os párocos, devem mostrar-se solícitos a fim de que a palavra de Deus seja anunciada também aos fiéis que, por sua condição de vida, não podem usufruir suficientemente da ação pastoral comum e ordinária, ou que dela são totalmente privados, sobretudo, àqueles que mais afetados pelo secularização do mundo, os não-crentes, pois “paradoxalmente, neste mesmo mundo moderno não se pode negar a existência de verdadeiras pedras de junção cristãs, valores cristãos pelo menos sob a forma de um vazio ou de uma nostalgia. Não seria exagerar o falar-se de um potente e trágico apelo para ser evangelizado”6.

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1 DV 24

2 SC 52

3 PAULUS VI. Litt. Ap. Sacram Liturgiam, 25. 1964, III. AAS 56 (1964) 141.

4 EN 29

5 CIC 770; CD 28; CD 30.

6 EN 55,58

Se tudo é verdade, o que é a verdade?

tibidabo

Diác. José Victorino de Andrade, EP

O homem hodierno julgar-se-ia menos moderno se não criticasse os antigos. Para ele, as verdades passaram a possuir uma validade. As descobertas do passado foram ultrapassadas pelo presente, e sofrerão reparos no futuro. Tudo é transitório. Apenas a opinião alheia se enche de brios, pouco disposta a dialogar, ou pelo menos, a reconhecer uma verdade exterior.

Consequentemente, muitos autores contemporâneos, ao pretenderem apoderar-se da verdade, sentam-se em sua cátedra embevecida de pretensões infalíveis, cujos escritos destilam os seus próprios dogmas, muito distantes, por vezes, do mundo real. E quanto mais escandalosos, provavelmente, mais publicitados e comentados.

As fátuas inverdades emanadas vão ao encontro de homens ávidos de mudanças que transformem a sua existência, consequência do vazio deixado pelo rechaço à metafísica e aos seus interlocutores. Ao enveredarem por novas vias que criam uma ruptura com as antigas, aderem facilmente a novos projectos que lhes tragam uma libertação dos velhos preconceitos éticos.

Numa cultura hedonista, na qual as a igreja foi substituída pelo shopping, a beleza da virtude pela estética corporal, o jejum e a penitência pela dieta e o suor no ginásio, uma religião de dogmas e prescrições morais só poderia surgir ao pensamento contemporâneo como algo ultrapassado, impositivo, que asfixia a própria pretensão de verdade.

Assim, nega-se a verdade na sua transcendência absoluta, da qual dimanam todas as demais, e corre-se o sério risco de “panteistizá-la”. Todos com a verdade, e a verdade com todos. Se tudo é verdade, terá sentido o próprio termo? Como convidar o homem a sair de si, e dos seus preconceitos recentemente criados, a esmo, conforme o cardápio apresentado por verdades relativizadas, engolidas sem mastigar, que o empanturram de critérios pouco judiciosos, assimilados com a mesma rapidez com que muda o canal da TV?

A resposta não é uma verdade abstracta, mas uma pessoa concreta: Jesus Cristo, a “Palavra eterna que se exprime na criação e comunica na história da salvação” (Verbum Domini n. 11). Para o cristão, a Verdade absoluta, Deus, encarnou e fez-se homem (Cf. Jo 1, 14), possui um rosto — “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9) — e um nome, não havendo debaixo do céu salvação em nenhum outro (Cf. At. 4, 12). Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida (Cf. Jo 14, 6). Esta é a grande novidade do cristianismo, um Deus pessoal, não distante, que entra na História.

Como renunciar Àquele que possui palavras de vida eterna (cf. Jo 6, 68), e trocá-las por palavras humanas, levadas e esquecidas pelo tempo, ou superadas por uma nova erudição ou pensamento falível? Em Jesus, “a Palavra não se exprime primariamente num discurso, em conceitos ou regras; mas vemo-nos colocados diante da própria pessoa de Jesus. A sua história, única e singular, é a palavra definitiva que Deus diz à humanidade” (VD n.11). Esta, excede toda e qualquer capacidade intelectual humana que “com as suas próprias capacidades racionais e imaginação, jamais teria podido conceber” (Loc. Cit.).

Como chegarmos à conclusão de que não nos enganamos? São João é nossa testemunha: “‘Nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai, como Filho único cheio de graça e de verdade’ (Jo 1, 14b). A fé apostólica testemunha que a Palavra eterna Se fez Um de nós” (VD n. 11). Apenas a Revelação poderia trazer uma verdade plena que orientasse os homens em sua peregrinação terrena e os levasse a um seguro conhecimento, tanto quanto possível à sua natureza limitada.

Descobrimos assim que a verdade não é abstracta, variável, limitada, mas que é o próprio Deus encarnado, que entrando na história concreta dos homens, com Palavras de vida eterna, orienta-os na sua peregrinação terrena, convidando-os a conformar a sua vida à luz da Revelação.