A Metafísica: para quê?

Diác. Felipe Ramos, EP

Metafísica é considerada por São Tomás de Aquino como a filosofia prima, porque todas as ciências tomam seus princípios como fundamento para qualquer ulterior investigação. Mas, ao mesmo tempo, é considerada o cume de todo o esforço filosófico porque trata das coisas divinas e das causas altíssimas. Não é por menos que a Congregação para a Educação Católica tenha insistido recentemente em seu Decreto de Reforma dos Estudos Eclesiásticos de Filosofia, a respeito do papel da metafísica para superação da crise atual da filosofia e buscar algo de absoluto e que serve de fundamento.

A Metafísica, ao oferecer uma visão ampla das realidades, propõe aquilo que nenhuma riqueza pode comprar: a Sabedoria, a qual “sabe e conhece todas as coisas. Ela me guiará prudentemente em minhas ações e me protegerá com a glória dela”. (Sb 9, 11). Em suma, a sabedoria tende a considerar tudo na contemplação do divino pela penetração dos mistérios mais profundos e assim poder manifestar aos demais.

Sob essa perspectiva, a Metafísica longe de ser um conjunto de elucubrações fantasiosas, é a ciência mais importante de todas porque não visa as realidades particulares, mas a totalidade. Mas então, a Metafísica para que serviria propriamente?

Decerto como fundamento para aquela busca de Verdade que brota no interior de todos os homens…

A polémica com o progredir da história e a solução paulina

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Existe um debate em torno da existência ou não de um progresso linear na História. Alguns defendem uma evolução cíclica, outros, porém, consideram haver uma progressão, um trajeto rumo a um auge, tais como Hegel, Fichte, Schelling, ou Spencer.[1] Mistura-se muitas vezes esta ideia com um conceito de evolucionismo adaptado de Darwin e aplicado à sociologia e mesmo à História.

Alguns visaram uma alternativa, como Marx e Engels no materialismo histórico. Segundo eles, “a História não é um progresso linear e contínuo, uma seqüência de causas e efeitos, mas um processo de transformações sociais determinadas pelas contradições entre os meios de produção (a forma da propriedade) e as forças produtivas (o trabalho, seus instrumentos, as técnicas)”.[2] Spengler, na sua obra sobre A Decadência do Ocidente, apresenta as civilizações “como ciclos cerrados, onde a experiência humana surge, desenvolve-se, atinge o apogeu, entra em crepúsculo, definha e morre”.[3]

Nos nossos dias, estas perspectivas acabaram por fenecer e reconhecem-se pressupostos axiológicos geradores das civilizações, impossíveis de isolar, entre os quais se encontram as fontes espirituais[4]. Ratzinger, na sua obra Introdução ao Cristianismo, defendia que na perspectiva cristã “existe uma única história completa do mundo, a qual mantém um rumo geral e vai “adiante” com seus altos e baixos, nos progressos e regressos que a assinalem”[5]. E afirma: “O cristão tem certeza de que a história avança; ora, avanço, progresso exige o definitivo da direção – eis o que distingue o cristão do movimento em círculo, que não leva a meta nenhuma”[6].

Em 2006, já como Pontífice, ao comentar a passagem: “todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele” (Col 1, 16), Bento XVI salientou que, com estas palavras, São Paulo “indica uma verdade muito importante: a história tem uma meta, tem uma direção. A história caminha para a humanidade unida em Cristo, vai assim para o homem perfeito, para o humanismo perfeito. Com outras palavras São Paulo nos diz: sim, há um progresso na história. Há – se quisermos – uma evolução da história”[7].


[1] A este respeito ver o 12º capítulo de ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. Lisboa: Presença, 2002. Vol. 11.

[2] CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000. p. 537.

[3] REALE, Miguel. Filosofia do fireito. 19a. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 232.

[4] Loc. Cit.

[5] RATZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo. São Paulo: Herder, 1970. p. 154.

[6] Ibíd., p. 124.

[7] “[…] indica una verità molto importante: la storia ha una meta, ha una direzione. La storia va verso l’umanità unita in Cristo, va così verso l’uomo perfetto, verso l’umanesimo perfetto. Con altre parole san Paolo ci dice: sì, c’è progresso nella storia. C’è – se vogliamo – una evoluzione della storia”. (BENEDETTO XVI. Udienza generale: Mercoledì, 4/1/2006. In: Insegnamenti, II, 1 (2006). p. 11. Tradução minha).

Oração composta e rezada diariamente por São Tomás

Concedei-me, Deus misericordioso,
Aquilo que vos agrada:
Ardentemente desejar,
Prudentemente investigar,
Sinceramente apreciar,
Perfeitamente consumar.
Para louvor e glória de vosso nome,
Ordenai o meu estado;
O que me quereis conceder,
Fazei-me conhecer;
O que é necessário e útil à minha alma,
Ajudai-me a exercer.
Que minha via rumo a Vós, Senhor, seja segura e reta,
Sem esmorecer nas prosperidades ou adversidades,
Agradecendo-Vos nas prosperidades,
Conservando a paciência nas adversidades,
Não me deixando exaltar por aquelas,
Nem desanimando com estas.
Que nada me alegre senão o que me leva a Vós,
Nem me entristeça, senão o que me afasta de Vós,
Que a ninguém deseje comprazer, ou temer desagradar, senão a Vós.
Que as coisas passageiras a mim se aviltem por Vós,
Estimadas me sejam todas as vossas coisas, mas Vós,
Ó Deus, mais que tudo.
Que me causem desgosto todas as alegrias sem Vós,
Que nada mais deseje além de Vós.
Que me deleite o trabalho por Vós,
E que me seja tedioso o repouso sem Vós.
Dai-me constantemente um coração por Vós elevado,
Com dor e propósito de emenda por minhas faltas, ponderado.
Fazei-me, meu Deus:
Humilde sem simulação,
Alegre sem dissipação,
Sério sem depressão,
Oportuno sem opressão,
Ágil sem frivolidade,
Veraz sem duplicidade,
Temendo-Vos sem desesperação,
Confiante sem presunção,
Corrigindo o próximo sem pretensão,
Edificando-o pela palavra
E pelo exemplo, sem ostentação;
Obediente sem contradição,
Paciente sem murmuração.
Dai-me, ó dulcíssimo Deus, um coração:
Vigilante, que não se afaste de Vós por nenhuma curiosa cogitação,
Nobre, que não o rebaixe nenhuma indigna afeição,
Invencível, para que não fraqueje sob nenhuma tribulação,
Íntegro, que não seja seduzido por nenhuma violenta tentação,
Reto, que não se desvie por nenhuma perversa intenção.
Concedei-me, generosamente, Senhor meu Deus:
Uma inteligência para Vos conhecer,
Um amor para Vos buscar,
Uma sabedoria para Vos encontrar,
Uma vida para Vos agradar,
Uma perseverança fiel para Vos esperar,
E, por fim, uma confiança para Vos abraçar.
Que eu seja transpassado por vossas penas, pela penitência,
Que no caminho seja agraciado por vossos benefícios, pela graça,
E possa gozar de vossas alegrias na Pátria, pela glória.
Amém.

 

Texto latino da oração Concede michi extraído de: Guilelmus de Tocco. Ystoria sancti Thome de Aquino, cap. 29. In: Ibid. Ed. Claire Le Brun-Gouanvic. Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 1996, p. 156, l. 56-86. Tradução pelo Diác. Felipe de Azevedo Ramos, EP, com ligeiras adaptações para a língua portuguesa. Embora não conste o formato versificado no texto original acima mencionado, optou-se por dividi-lo em versos, a fim de obter uma melhor compreensão e destacar o estilo rimado do original. In: Lumen Veritatis, n. Lumen Veritatis n. 18; p. 115-117.

Quando os homens decidem cooperar com Deus

catedral-de-strasbourgPe. José Victorino de Andrade, EP

Deus manifesta-se na obra da criação. São Paulo escreveu aos Romanos: “Com efeito, o que é invisível nele – o seu eterno poder e divindade – tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras” (Rm 1, 20). Além da perfeição e da bondade com que Deus se manifestou na obra de suas mãos, coube ao homem, criado à sua imagem “cooperar com o Criador no aperfeiçoamento da criação e imprimir, por sua vez, na terra, o cunho espiritual que ele próprio recebeu”.[1] Conforme Paulo VI:

“Deus, que dotou o homem de inteligência, de imaginação e de sensibilidade, deu-lhe assim o meio para completar, de certo modo, a sua obra: ou seja artista ou artífice, empreendedor, operário ou camponês, todo o trabalhador é um criador. Debruçado sobre uma matéria que lhe resiste, o trabalhador imprime-lhe o seu cunho, enquanto para si adquire tenacidade, engenho e espírito de invenção”.[2]

Os homens, ao longo dos tempos, fizeram maravilhas que certamente reflectiram sobremaneiramente a Deus. Saíram das suas mãos obras de arte esplendorosas, pinturas, esculturas, edifícios públicos, administrativos, catedrais, jardins, palácios e castelos… Encontram-se um pouco por todo o mundo obras de grande valor histórico, cultural e artístico que se inspiraram em valores metafísicos e que deslumbram a todos que os contemplam. Portanto, que aliaram o fenómeno religioso aos demais. Compreende-se assim o conselho dado por João Paulo II num encontro com o mundo das religiões, da política, da cultura e da arte:

“Vós, homens e mulheres da cultura, da arte e da política, deveis sentir a religião como a vossa aliada. Ela encontra-se ao vosso lado para oferecer aos jovens sérios motivos de compromisso. Efectivamente, que ideal é capaz de mobilizar para a procura da verdade, da beleza e do bem do credo em Deus, que abre à mente, de par em par, os horizontes incomensuráveis da suma perfeição?”[3]

Vemos assim que a Igreja tem algo a dizer a esta sociedade, que a religião abre novas fronteiras e visualizações, sobretudo quando os homens decidem cooperar com a voz da Graça.

[1] PAULO VI. Populorum Progressio, 27

[2] Idem.

[3] JOÃO PAULO II. Viagem Apostólica ao Azerbaijão e à Bulgária. Baku, 22 de Maio de 2002. 


As diferentes cruzes

Mons. João S. Clá Dias, EP

Cruz“Se alguém quer seguir-Me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me.Porque quem quiser salvar a sua vida, a perderá; mas quem perder a vida por amor de Mim e do Evangelho, salva-la-á” (Mc 8, 35).

Esta afirmação tão categórica exige de nossa parte uma especial análise e degustação, por ser repetida, ademais, nos outros Evangelhos (cf. Mt 10, 38-39; Lc 17, 33; Jo 12, 25). Aqui se encontram as condições para sermos verdadeiros discípulos de Cristo.

1. “Se alguém quer…” Depende de nossa livre vontade. Esperar por uma graça que realize em nós a plenitude de nossa salvação, sem o menor concurso de nossa vontade, é confundir Redenção com Criação, ou a vida eterna com a natural. Esse convite, evidentemente, deve receber uma resposta afirmativa de nossa parte. E é indispensável que seja fervorosa, pertinaz e contínua. Ou, por outra, não podemos nos esquecer um só segundo dessa determinação.

2. “…negue-se a si mesmo…” A origem de todos os pecados encontra-se no amor desordenado a nós mesmos, em detrimento da verdadeira caridade. E o melhor remédio para essa terrível enfermidade é essa renúncia a nós mesmos, para encontrar-nos em Deus. Seu primeiro grau consiste no horror ao pecado mortal, preferindo morrer a consentir nessa aversão a Deus. O segundo diz respeito ao pecado venial consciente e deliberado. O terceiro incide sobre as imperfeições e o amor próprio, tão sorrateiro em imiscuir-se até na prática das virtudes. Ao se progredir neste último grau, maior se torna nossa liberdade interior, como também o gozo da paz e de consolações. Quem vive no oposto a esses três graus, ou não entendeu a grandeza deste convite, ou conscientemente o recusou.

3. “…tome sua cruz …” — Há cruzes e cruzes! As extraordinárias se apresentam diante de nós em épocas de perseguição religiosa. São os suplícios e a própria morte. Devemos enfrentá-los tal qual o fizeram Jesus e todos os mártires, jamais renegando a nossa fé.

Outras haverá que são comuns a todos os tempos. Boa parte delas não são procuradas por nós, mas indesejadas, como por exemplo, as doenças, as debilidades da ancianidade, os rigores do clima, etc. Outras, ainda, são oriundas do acaso: as perdas financeiras, as desgraças, os contratempos, a pobreza, a incompreensão e o ódio gratuito da parte dos outros, perseguições, injustiças. Às vezes, são os efeitos do nosso próprio caráter, temperamento, inclinações, etc.

Como são numerosas as cruzes que surgem ao longo de nossa vida!… Não as podemos evitar; pelo contrário, temos obrigação de carregá-las. E a experiência nos mostra como elas se tornam mais pesadas sobre nossos ombros quando as conduzimos entre choramingos e lamúrias, ou, pior ainda, se contra elas nos revoltamos. Ademais, nestes casos diminuímos, ou até perdemos, os correspondentes méritos.

Por fim, há também as cruzes escolhidas livremente por nós. Abraçar a via do matrimônio, ou a de uma comunidade religiosa, ou ainda a de leigo solteiro vivendo cristãmente no mundo, significa compreender e desejar todos os sofrimentos que são correlatos a cada situação. O cumprimento perfeito de cada uma das exigências do respectivo estado de vida, a subordinação das paixões, o freio dos caprichos, a privação destas ou daquelas comodidades, etc., constituem um campo florido de cruzes, inerentes ao caminho eleito por nossa deliberação. Sem contar a aridez, o tédio, o desgosto que de tempos em tempos nos assaltam ao longo da estrada percorrida por nós, e sem volta atrás. Mas se nossa decisão foi consciente e, sobretudo, se teve origem num sopro do Espírito Santo, jamais devemos nos arrepender. Muito pelo contrário, enchamo-nos de ânimo e até de entusiasmo, dando passos firmes rumo à meta final de nossa salvação.

4. “… e siga-Me” — Se empregássemos o melhor de nossos esforços, praticando os maiores sacrifícios para carregar nossa cruz, mas num caminho diferente do traçado por Jesus, não bastaria! É preciso abraçar a própria cruz, “por Ele, com Ele e n’Ele”. Na contemplação dos padecimentos da Paixão de Cristo, encontrarei as energias para carregar minha própria cruz.

Quanto a perder ou salvar a vida, comenta o Pe. Andrés Fernández Truyols SJ: “O que o Mestre quer gravar no coração de seus ouvintes é que  devemos estar dispostos a passar por tudo, até mesmo a morte, desde que seja para salvar a alma. Porque de nada adianta ao homem ganhar o mundo todo se, no fim, vier a perder a sua alma, ou seja, se não alcançar a salvação eterna” (1).

1) Vida de Nuestro Señor Jesucristo, BAC, Madrid, 1954, vol. III, p. 369.

Obediência: O exemplo de São Tomás de Aquino

Diác. Inácio de Almeida, EP

Um dos hábitos pessoais de São Tomás era o de caminhar em torno do claustro. Andava depressa, com ímpeto e de cabeça erguida. Chesterton dizia que este modo de proceder do Angélico era uma “ação muito própria dos homens que travam as suas batalhas na inteligência”.1

Provavelmente foi numa dessas suas caminhadas que ocorreu o seguinte fato: um jovem frade do convento de Bolonha, necessitando fazer algumas compras, solicitou ao superior que lhe designasse alguém para acompanhá-lo até a cidade. Foi-lhe respondido que o primeiro frade que encontrasse pelo caminho deveria ser o seu acompanhante. Naquela ocasião, Tomás ali se encontrava apenas de passagem e, como de costume, passeava a passos largos em torno do claustro, certamente em altas meditações. Os dois acabaram se encontrando, ocasião em que o jovem frade se dirigiu ao Aquinate com as seguintes palavras: “Meu bom irmão, o superior lhe ordena que venha comigo”.2

Então Frei Tomás, com um gesto de cabeça, assentiu ao chamado e seguiu-o sem nada dizer. Como o outro religioso era mais jovem e caminhava ainda mais depressa, o Mestre Tomás ia ficando para trás, sendo constantemente repreendido pelo companheiro por isso. O santo desculpava-se humildemente e esforçava-se em segui-lo. Por outro lado, alguns cidadãos de Bolonha, que conheciam Frei Tomás, ficaram admirados por vê-lo seguir com tanta dificuldade um frade de pouca idade. Intuíram então que se tratava de algum engano, aproximaram-se do noviço e informaram-lhe quem era o ilustre acompanhante. Assustado, o bom frade se voltou para São Tomás pedindo perdão, o qual foi imediatamente concedido. O povo, por sua vez, dirigindo-se ao mestre, perguntou o motivo daquele modo de agir, ao que o Angélico respondeu: “A obediência é a perfeição da vida religiosa, pela qual o homem se submete ao homem por Deus, como Deus obedeceu ao homem em favor do homem”.3

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1) Chesterton, G.K. Santo Tomás de Aquino. Santo Tomás de Aquino: Biografia. Trad. Carlos Ancêde Nougué. São Paulo: LTr, 2003, p. 109.

2) Guilelmus de Tocco. Ystoria sancti Thome de Aquino. Ed. intr. e notas: Claire Le Brun-Gouanvic. Toronto: PIMS, 1996, cap. 25, p. 148: “Bone Frater, prior mandat quod veniatis mecum”.

3) Loc. cit.: “Quod in obedientia perficitur omnis religio, qua homo homini propter Deum subicit, sicut Deus homini propter hominem obediuit”.

A castidade da inteligência

Mons. João S. Clá Dias,EP

A castidade natural da inteligência consiste numa lealdade em face da realidade objetiva, numa busca da verdade, sem apego às próprias opiniões ou inclinações, uma vez que o homem é criado com a faculdade para conhecer retamente, e não para deformar sua visualização sobre a obra da criação. Na proporção em que penetra nas realidades dos seres em busca de uma união maior com Deus, ela cresce em sua capacidade de analisá-las com integridade, elevação e pureza.

Pelo contrário, se o homem perde essa castidade natural da inteligência, ao negar-se a procurar a Deus na obra da criação — e isso acontece sempre — as trevas penetram de certo modo em seu coração, podendo levá-lo à idolatria, conforme nos afirma o apóstolo: “Com efeito, a ira de Deus manifesta-se do céu contra toda a impiedade e injustiça daqueles homens que retêm a verdade de Deus na injustiça[1], porque o que se pode conhecer de Deus é-lhes manifesto, pois Deus lho manifestou. De fato, as coisas invisíveis dele, depois da criação do mundo, compreendendo-se pelas coisas feitas, tornaram-se visíveis, e assim o seu poder eterno e a sua divindade[2], de modo que são irrecusáveis, porque, tendo conhecido a Deus, não O glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, mas desvaneceram-se nos seus pensamentos e obscureceu-se o seu coração insensato, pois, dizendo ser sábios, tornaram-se estultos, e mudaram a glória de Deus incorruptível na figura de um simulacro de homem corruptível, de aves, de quadrúpedes e de serpentes” (Rm 1, 18-23).

Depois de empreender os movimentos iniciais nas veredas do uso da razão, com seus puros e naturais recursos, logo nos primeiros esforços para compreender os seres criados que o circundam, pode o homem conceber a idéia da existência de Deus. Verá que Ele se constitui no ser absoluto, causa eficiente de toda criação, conservador do universo. Não tardará em se dar conta de ser Ele o fim supremo de cada criatura em particular, como também do conjunto de todas elas. Por isso, conforme lemos nesses versículos de São Paulo, uma inteligência virginal, jamais “retém” em si mesma o conhecimento desinteressado e, portanto, nunca recusa os ensinamentos nascidos das realidades criadas, assim trilhando as vias em busca de Deus, a não ser que já O tenha encontrado. E mesmo neste caso, crescerá nela, o desejo de ainda mais e mais reencontrá-Lo.

Eis, naturalmente falando, uma inteligência casta. Nesse caminho da descoberta de Deus, essa inteligência, nEle repousará, contemplando Seus esplendores em Sua obra, com inteira abertura, sem a menor resistência, e até mesmo reticência, com integridade, submissão à realidade que conduz ao divino, e na mais perfeita lealdade.

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[1] É preciso inteligir e agir em consequência do conhecimento que o homem tem de Deus e de Sua natureza através da obra da criação, caso contrário, esse conhecimento se torna enclausurado na maldade do pecado original, na qual todos nós nascemos. Uma vez retida essa “verdade de Deus”, o conhecimento passa a ser inativo.

[2] “Deus, criando e conservando todas as coisas por meio de Seu Verbo, proporciona aos homens nas coisas criadas, um testemunho permanente de si mesmo…” (Dei Verbum, 3 – Concílio Vaticano II).

Caráter das inteligências elevadas conforme São Tomás de Aquino

s-tomas

BALMÈS, Jacques. Art d’arriver au vrai: Philosophie pratique. Paris: Auguste Vaton, 1850. p. 138-140 (Capítulo XVI). Traduzido do Francês por: Pe. José Victorino de Andrade, EP.

 

Por que certas verdades simples não se apresentam a todas as inteligências? Como o gênero humano acaba admirando um homem tido por extraordinário, se soube ver certas coisas que o mundo inteiro (ao menos assim parece) poderia ter visto como ele? Isto é perguntar a razão de um segredo da Providência, é questionar por que o Criador concede a alguns espíritos de elite uma grande força de intuição, ou, por assim dizer, uma visão intelectual imediata, recusada ao maior número (de pessoas).

 

São Tomás expõe sobre esse fato particular uma admirável doutrina. Segundo o santo doutor, o raciocínio é uma marca da fraqueza de nosso espírito. A faculdade de desenvolver as ideias nos foi dada para superar essa debilidade. Os anjos compreendem, mas não raciocinam. Quanto mais uma inteligência é elevada, mais o número de suas ideias diminui, porque ela encerra, num pequeno número desse tipo de coisas, aquilo que as inteligências de um grau inferior repartem em número maior. Assim, os anjos do mais alto grau abraçam, com a ajuda de algumas ideias apenas, um círculo imenso de conhecimentos. O número de ideias vai-se reduzindo sempre nas inteligências criadas, à medida que elas se aproximam do Criador. E Ele, a Ideia por excelência, o Ser infinito, a Inteligência infinita, quer tudo numa mesma ideia, simples, única, imensa, ideia que não é outra que a sua essência. Que sublime teoria. Ela revela um conhecimento admirável dos segredos do espírito e nos sugere inumeráveis aplicações relativamente às faculdades do homem.

 

De fato, os espíritos de elite não se distinguem pela quantidade de suas ideias. Eles não possuem senão um pequeno número, no qual eles envolvem o mundo. A ave das planícies se fadiga de rasar a terra; ela passa e repassa pelos mesmos lugares, não passando jamais as sinuosidades e os limites do vale onde nasceu. A águia, em seu voo majestoso, sobe, sobe sempre, não se detém antes dos mais altos cumes, e de lá seu olhar acurado contempla as montanhas, os cursos dos rios, as vastas planícies cobertas de cidades populosas, as verdes pradarias e as ricas pastagens.

 

Há em todas essas questões um ponto de vista culminante, em que se posiciona o gênio. Desta feita, o seu olhar domina e envolve as coisas. Se ele não é dado ao comum dos homens de se elevar até lá numa primeira volta, ao menos ele deve tender para isso sem cessar. Os resultados pagam o esforço ao cêntuplo. Como pudemos observar, toda a questão, ou mesmo toda a ciência, resume-se em um pequeno número de princípios essenciais, dos quais todos os outros decolam. Devem-se compreender esses princípios e o resto se tornará simples e fácil, e não nos deteremos mais em detalhes (escusados).

 

Apresente ao espírito o objeto simplificado o mais possível e desembaraçado por assim dizer, de toda a folhagem inútil. A sua singeleza exige. Para obter que ele multiplique sua atenção, evite exigir muito dele. Trate de circunscrevê-lo. Esse método lhe facilita a compreensão das coisas, dá às suas percepções a exatidão e a lucidez, e ajuda possantemente a memória.

 

Devemos concluir acerca das doutrinas aqui contidas […] que se deve renunciar ao raciocínio e mesmo ao estudo, e se abandonar à sorte de um quietismo intelectual? Isto, a Deus não agrada! Se há uma condição indispensável ao progresso de toda a faculdade, é o trabalho. Tanto na ordem intelectual, como na ordem física, um órgão que não funcione entorpece e perde uma porção de sua vida. Um membro que não se mova, paralisa. Os gênios mais dotados não entram plenamente em posse de suas forças sem um trabalho penoso e sustido. A inspiração não desce sobre o desocupado; ela exige, antes, produzir uma espécie de fermentação de ideias e sentimentos elevados. A intuição, quer dizer, a vista de espírito, não se adquire sem um longo hábito de olhar. O golpe de vista rápido, seguro e delicado de um grande pintor não é um dom gratuito da natureza; é um dom que se deve à contemplação apaixonada, à observação, ao estudo paciente de bons modelos. O sentimento divino da harmonia não se desenvolveria jamais na organização, mesmo a mais harmoniosa, se contrastasse sem cessar dos seus [aspectos] ásperos e discordantes.

 

in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 7, abr-jun 2009. p. 124-126.

 

Liberdade e graça no homem ferido pelo pecado

Pe. Antônio Guerra, EP

Quem pode entender o pecado?”[1] Santo Agostinho comentava a ausência da inteligibilidade que existe no pecado

“Os delitos, de fato, quem os compreende? Pai, perdoa-os porque não sabem o que fazem. Por isto, disse, o servo é aquele que conserva essa doçura, suavidade de caridade e amor pela unidade. Mas eu mesmo que a conservo, ainda te peço, pois os delitos quem os compreende?”. [2]

O pecado é algo não inteligível e como tal, contrário à natureza inteligente. Nele muitas vezes encontramos esta procura da suavidade do deleite, como diz o Hiponense. Entretanto, esta é contrária à verdadeira suavidade que se fala na Dignitatis Humanae, com a qual a providência divina faz com que o homem: “possa conhecer cada vez mais a verdade imutável[3]. Mas a falsa suavidade que se encontra na transgressão da Lei Eterna turba os olhos que são feitos para a Verdade. Deteriorada a inteligência pela vontade pecaminosa, o homem perde a consciência reta.

A verdadeira liberdade ― afirmada na Gaudim et Spes ― é: “um sinal altíssimo da imagem divina”[4] impresso no homem que é criado à imagem e semelhança de Deus. Da liberdade provém a dignidade, quando: “libertando-se da escravidão das paixões, tende para o fim pela livre escolha do bem”[5].

Porém, ferida a alma pelo pecado voluntariamente cometido, o homem somente consegue realizar tal libertação das paixões com a ajuda da divina graça. Não esqueçamos que na DH, o Concílio cita como fonte os textos de São Tomás, nos quais fica claro que: “devido à corrupção da natureza se inclina ao bem privado, enquanto não seja curado pela graça divina[6].

O mesmo repete a Gaudium et Spes: “A liberdade do homem, ferida pelo pecado, só com a ajuda da graça divina pode tornar plenamente efetiva esta orientação para Deus[7].


[1] Salmo 18, 13.

[2] Santo Agostinho, Super Salmos, 18.

[3] DH 3.

[4] Gaudium et spes, 17: AAS 58 (1966) 1037.

[5] Ibidem.

[6] Suma Teológica I-II q. 109 a. 3 co.: “propter corruptionem na­tu­rae sequitur bonum privatum, nisi sanetur per gratiam Dei”.

[7] Gaudium et spes, 17: AAS 58 (1966) 1037.

A eficácia das obras com Fé

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Na segunda metade do séc. IV, Juliano pretendeu que o Império Romano promovesse algumas ações caritativas em detrimento das eficientes e inovadoras práticas sociais cristãs. Não pretendia somar esforços, mas dividir ou mesmo totalizar, por isso, não tardou em perseguir os seguidores de Jesus. Entretanto, seria Juliano a sair desta vida precocemente, à semelhança de suas obras, morrendo numa desastrosa campanha contra os persas. E as obras sociais por ele estimuladas, imitações das ações caritativas impulsionadas pelo amor, revelaram a fragilidade e inconstância das ações puramente humanas.

Também hoje, a solidariedade que não tem seus fundamentos em Deus e no amor ao próximo, corre sempre o risco de ser instrumentalizada e reduzida a uma prestação de serviços. Para não ser manipulada por interesses que se desviam do bem comum e da dignidade humana, é sempre necessária uma referência que transcenda o homem e o seu egoísmo. Ora, o mandamento novo dado por Jesus (Jo 13, 34) leva os cristãos a um dinamismo próprio, pois continuamente estão chamados a conciliar, coerentemente, a Fé e as obras (Tg 2, 14).

A caridade praticada por uma coletividade tem sempre tendência a ser mais eficaz do que a dos indivíduos, mas esta corre sempre o risco de ser sufocada pelas exigências e desafios contemporâneos se não contar com uma colaboração ativa e efetiva de todas as instituições empenhadas na construção de um mundo mais justo e pacífico. Neste sentido, a Igreja tem um forte aporte a dar ao Estado: transforma a Fé num “serviço ao bem comum” fazendo com que a sociedade caminhe para um “futuro de esperança” (Lumen Fidei, n. 51). Sabe, ademais, que o que é de Deus permanece…

À ordem temporal, a Igreja lembra em seu Compêndio de Doutrina Social a responsabilidade de “tornar acessíveis às pessoas os bens necessários materiais, culturais, morais, espirituais”, tendo presente que o “fim da vida social é o bem comum historicamente realizável” (n. 168). E continua o documento: “O bem comum da sociedade não é um fim isolado em si mesmo; ele tem valor somente em referência à obtenção dos fins últimos da pessoa e ao bem comum universal de toda a criação. Deus é o fim último de suas criaturas e por motivo algum se pode privar o bem comum da sua dimensão transcendente” (n. 170).