A Verdadeira Estabilidade Matrimonial e Familiar

Familia2Pe. Álvaro Mejía Londoño EP

Deus que é Amor e criou o homem por amor, chamou-o também a amar criando o homem e a mulher; e chamou-os no matrimônio a uma íntima comunhão de vida e amor, de maneira a já não serem dois, mas uma só carne.[i] O homem se completa na união com o outro sexo. É assim que ele é impelido ao matrimônio, a uma ligação caracterizada pela unicidade e para sempre, um amor exclusivo e definitivo, “ícone do relacionamento de Deus com Seu povo e vice-versa; o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano”.[ii]

Ao abençoá-los disse-lhes: “Crescei e multiplicai-vos”.[iii] Portanto, uma forma de vida em que se realiza aquela comunhão de pessoas que implica o exercício da faculdade procriativa, conforme afirmam diversas passagens da escritura: “[…] serão uma só carne”.[iv] São assim chamados a colaborar com Deus na geração e educação de novas vidas.

Fundado e estruturado com leis próprias — dadas pelo próprio Criador — e ordenado pela natureza à comunhão e ao bem dos cônjuges, à procriação e à educação dos filhos, o Divino Mestre ensina que, segundo desígnio original divino, a união matrimonial é indissolúvel pois, “o que Deus uniu, não o separe o homem” (Mc 10, 9). Ele quis, com uma santa pedagogia, ressaltar a Aliança de Deus com o povo de Israel, pré-figura da Aliança nova do Filho de Deus — Jesus Cristo — com Sua esposa, a Igreja Santa. Dessa forma, o matrimônio cristão é também sinal eficaz da aliança entre Cristo e a Igreja.

O matrimônio não é, pois, uma união qualquer entre pessoas humanas. Foi instituído pelo Criador que o dotou de uma natureza própria, propriedades essenciais e finalidades.[v] Essa união entre o homem e a mulher foi elevada por Cristo à dignidade de Sacramento.

O sacramento do matrimônio constitui os cônjuges num estado público de vida da Igreja e, por isso, se faz uma celebração pública na qual o ministro é um testemunho. Pela sua própria natureza, o matrimônio rato e consumado entre batizados nunca pode ser dissolvido, devido à unidade exclusiva do amor conjugal. Mesmo que não possa ser possível uma convivência normal e que, por isso, recorram à separação, os cônjuges não são livres para contrair uma nova união, a não ser que o matrimônio seja expressamente declarado nulo pela Igreja. Recorda-nos São Marcos no seu Evangelho as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Quem se divorciar da sua mulher e casar com outra, comete adultério contra a primeira. E se a mulher se divorciar do seu marido e casar com outro, comete adultério”.[vi]

Conforme alocução de Bento XVI ao Tribunal da Rota Romana:
Os contraentes devem se comprometer de modo definitivo, precisamente porque o matrimônio é tal no desígnio da criação e da redenção. E a juridicidade essencial do matrimônio reside exatamente nesse vínculo, que para o homem e a mulher representa uma exigência de justiça e de amor ao qual, para o seu bem e para o bem de todos, eles não se podem subtrair sem contradizer aquilo que o próprio Deus realizou neles.[vii]

A família é um bem necessário e imprescindível para toda a sociedade, núcleo e realidade natural, fundamento da própria sociedade, e tem o direito de ser protegida e reconhecida pela sociedade e pelo Estado. Ela tem uma dimensão social única, pela sua natureza, posto que a procriação situa-se como princípio “genético” da sociedade, como lugar primário de transmissão e cultivo de valores e, conseqüentemente, como princípio da cultura e garantia da própria sobrevivência da sociedade. Podemos dizer com toda a segurança que o matrimônio tem as suas próprias leis, não dependendo do arbítrio das pessoas ou da sociedade. Não é um fenômeno meramente cultural e dependente do “sentir” subjetivo da época atual, mas tem como fundamento o próprio Deus.

É preciso ter presente que a estabilidade do matrimônio e da família não está exclusivamente confiada à intenção e à boa vontade dos implicados; ele tem um caráter institucional, adquire caráter público, inclusive após o reconhecimento jurídico por parte do Estado. Está em causa a própria dignidade do(s) gerado(s) ser o fruto de uniões íntimas permanentes, provir de pais unidos, estabilidade essa que deve ser do interesse de todos, sobretudo velando por estes que são os mais débeis: os filhos.
Com o matrimônio se assumem publicamente, mediante o pacto de amor conjugal, todas as responsabilidades do vínculo estabelecido. Dessa assunção pública de responsabilidades resulta um bem não só para os próprios cônjuges e filhos no seu crescimento afetivo e formativo, como também para os outros membros da família. Dessa forma, a família que tem por base o matrimônio é um bem fundamental e precioso para a sociedade inteira, cujos entrelaces mais firmes estão sob os valores que se manifestam nas relações familiares que encontram sua garantia no matrimônio estável. O bem gerado pelo matrimônio é básico para a própria Igreja, que reconhece na família a “Igreja doméstica” (Lumen gentium n.11, Decr. Apostolicam auctositatem, n.11). Tudo isso se vê comprometido com o abandono da instituição matrimonial implícito nas uniões de fato.[viii]

Uma pretendida equiparação entre família e uniões de fato vai contra a verdade das coisas, anulando diferenças substanciais e introduzindo “modelos” de família que de nenhum modo podem se comparar entre si, e que acabam por desacreditar injustamente a família tipo, que a história da humanidade de todos os tempos viu desde sempre, não como uma relação genérica, mas como uma realidade que tem a sua origem no matrimônio, ou seja, no pacto estipulado entre pessoas de sexo diverso, realizado a partir de uma eleição que se pretende recíproca e livre, e que compreende, pelo menos como projeto, uma relação procriadora.

Santo Agostinho e São Tomás nos ensinam que a lei positiva humana tem força quando é justa e não contradiz a lei natural. Doutra forma já não seria lei, senão corrupção da lei… É certo que há distinção entre lei moral e lei civil; distinção, porém, que não é separação e muito menos contradição, não podendo o poder civil, sob a égide de uma certa e questionável tolerância, registrar certas situações e colocar-lhes um selo de legalidade, como continua a acontecer um pouco por todo o lado.

Toda a sociedade está baseada na noção sólida de que a família é uma comum união de amor e de vida entre um homem e uma mulher, provavelmente geradora de vida. O amor humano entre sexos distintos que cria um vínculo de unidade estável e aberta à vida constitui uma verdade e um valor antropológico. A negação e ausência dessa fundamental e elementar verdade levaria à destruição do tecido social. Logo, dar às uniões do mesmo sexo um status de semelhança com as uniões propriamente matrimoniais constitui um atropelo e um desconhecimento do que é o bem comum e a verdade do homem, do que é e comporta o verdadeiro matrimônio, exigência interna do amor conjugal que faz do casal heterossexual partícipe da ação criadora de Deus.
Não existe nenhum fundamento para assimilar ou estabelecer analogias, nem mesmo as remotas, diante das uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimônio e a família. O matrimônio é santo, enquanto as relações homossexuais contrastam com a lei moral natural. Na realidade, as relações homossexuais não permitem o dom da vida pelo ato sexual. Não são frutos de uma verdadeira complementação afetiva e sexual. Não podem receber aprovação em caso algum.[ix]

Nessas uniões, encontramos uma impossibilidade objetiva de fazer frutificar o matrimônio mediante a transmissão da vida, que é realmente o projeto do próprio Deus, na própria estrutura do ser humano. Há uma ausência radical de caráter sexual, tanto no plano físico-biológico como no psicológico, que apenas se dá na relação homem-mulher.

Há uma série de razões que se opõem a essas uniões:

a) De ordem racional — As leis devem ser conformes o direito natural; o Estado não pode legalizá-las sem faltar ao dever de promover e tutelar uma instituição essencial para o bem comum, como é o matrimônio. Estaria obscurecendo a percepção de alguns valores fundamentais frente ao corpo social. O costume tem força de lei e, portanto, qual será o efeito desses “reconhecimentos” para as novas gerações?

b) De ordem biológica e antropológica — Há uma ausência completa, impossível de complementaridade sexual; não se promove a ajuda mútua dos sexos, como no verdadeiro matrimônio, e não há a possibilidade de transmissão de vida. Com a eventual adoção infantil, a ausência da bipolaridade sexual cria obstáculos ao desenvolvimento normal das crianças.

c) De ordem social A sociedade deve a sua sobrevivência à família estabelecida sobre o verdadeiro matrimônio. O reconhecimento dessas uniões leva a uma redefinição do conceito de matrimônio, pois perderia a referência essencial aos fatores associados à heterosexualidade, especialmente à procriação e à educação.

d) De ordem jurídica — O matrimônio tem a grande missão de garantir a ordem da procriação e como tal é de interesse público; por isso é brindado com um reconhecimento institucional. Isso até pela sobrevivência da própria sociedade.

Termino as considerações feitas com este texto de São Josemaría Escrivá, que tanta importância deu à família:
É verdadeiramente infinita a ternura de Nosso Senhor. Reparemos com que delicadeza trata os Seus filhos. Fez do matrimônio um vínculo santo, imagem da união de Cristo com a Sua Igreja (cf. Ef 5, 32), um grande Sacramento em que se alicerça a família cristã, que há de ser, com a graça de Deus, um ambiente de paz e de concórdia, escola de santidade. Os pais são cooperadores de Deus. Daí procede o amável dever de veneração que cabe aos filhos. Com razão se pode chamar o quarto mandamento de dulcíssimo preceito do Decálogo. […] Quando se vive o matrimônio como Deus quer, santamente, o lar torna-se um recanto de paz, luminoso e alegre.[x]


[i]Cf. Mt 19, 6.

[ii] BENTO XVI, Deus Caritas Est, 11.

[iii] Gn 1, 28.

[iv] Ef 5, 31; 1 Cor 6, 16; Gn 2, 24.

[v] Cf. Gaudium et spes, n. 48.

[vi] Mc 10, 11-12.

[vii] BENTO XVI. Discurso por ocasião da inauguração do Ano Judiciário do Tribunal da Rota Romana. 27 jan. 2007.

[viii] Conselho Pontifício para a Família. Família – Matrimônio e “Uniões de fato”. 26 jul. 2000.

[ix] Congregação para a Doutrina da fé. Considerações a cerca dos projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais. 3 jun. 2003; Catecismo da Igreja Católica, n. 2357.

[x] ESCRIVÁ, Josemaría. 7 jan. 2007. Disponível em: <http://www.opusdei.org.br/art.php?p=5149>. Acesso em: set. 2008.

A castidade da inteligência

Mons. João S. Clá Dias, EP

A virtude da Fé facilita penetrar além dos umbrais de nossa acanhada natureza, e tomar consciência das profundezas dos liames que unem o universo a Deus. O Criador o transcende infinitamente e, portanto, não há a menor confusão entre Ele e a criação. Porém, é Deus quem mantém as criaturas no ser, como também cada um de seus elementos constitutivos, e até mesmo, é a causa eficiente da santidade que possa existir em cada uma delas. Daí ser-nos necessário o apoio das Sagradas Letras para aprimorar em nós o senso de Deus. Nelas encontraremos as verdades claramente expostas com extremo fervor por Cristo Jesus, sobre a vida íntima de Deus, os atributos do Pai e do Espírito Santo etc.

Assim, a presença de Deus e a própria ação divina, tanto a permanente quanto a atual, sobre todas as criaturas, serão discernidas — ainda que muitas vezes em meio a uma certa penumbra — por uma Fé robusta e viva. E isto consistirá, de certo modo, em alguma participação no conhecimento que Deus possui sobre Si mesmo e sobre o universo. Será a mais elevada vida intelectual, na qual a intensidade dessa virtude teologal determinará maior ou menor penetração (e domínio) desta, naquela.

A Fé, portanto, não constitui um estorvo para a cultura como erroneamente poderia parecer a espíritos menos avisados. Muito pelo contrário, determinação, certeza e substância são conferidas à inteligência que nela se fundamenta. Ela diviniza as qualidades humanas, e jamais as prejudica. E nossa inteligência, assim divinizada, passa a compreender tudo sob o prisma de Deus. Aí estará alojada a castidade de nossa inteligência que consistirá numa íntegra lealdade em face das realidades objetivas e do próprio Deus, tudo analisado com uma esplendorosa clareza devido a uma maior ou menor participação no conhecimento incriado. Ela é um precioso fruto da plena doação de nossa inteligência a Deus, fruto, por sua vez, da iniciativa dEle em nos escolher e de nós tomar posse: “Não fostes vós que me escolhestes mas, fui eu que vos escolhi” (Jo 15, 16).

A eficácia do ministério sacerdotal

Mons. João S. Clá Dias, EP

A santidade de vida do sacerdote, como exemplo para os fiéis de Cristo, é possante elemento para conduzi-los à perfeição. Bem ressalta Dom Chautard que a um sacerdote santo corresponde um povo fervoroso; a um sacerdote fervoroso, um povo piedoso; a um sacerdote piedoso, um povo honesto; a um sacerdote honesto, um povo ímpio.[1] Grande é, pois, o papel da virtude do ministro, para o êxito de seu ministério.

No que respeita à aplicação do valor da Santa Missa, com finalidade propiciatória, é que se pode falar de sua eficácia subjetiva, dependente das disposições de quem a celebra e daqueles aos quais ela é aplicada, como explica São Tomás:

“Na satisfação atende-se mais à disposição de quem oferece do que à quantidade da oferenda. Por isso, o Senhor observou, a respeito da viúva que oferecia duas moedinhas, que ela ‘depositou mais que todos os outros’. Ainda que a oferenda da Eucaristia, quanto à sua quantidade, seja suficiente para satisfazer por toda a pena, contudo ela tem valor de satisfação para quem ela é oferecida ou para quem a oferece, conforme a medida de sua devoção, e não pela pena inteira”.[2]

A respeito deste trecho do Doutor Angélico, Robert Raulin faz o seguinte comentário: “Seria perniciosa ilusão acreditar que o ofertante está dispensado do fervor, sob pretexto de que Cristo, oferecendo-Se na Missa, satisfez plenamente por todos os pecados do mundo”.[3]

Outro argumento, ainda, apresenta o Aquinate, para vincular a eficácia da Eucaristia à devoção dos que se beneficiam do valor infinito deste augusto Sacramento:

“A Paixão de Cristo traz proveito a todos para a remissão da culpa, a obtenção da graça e da glória, mas o efeito só é produzido naqueles que se unem à Paixão de Cristo pela fé e caridade. Assim, também este Sacrifício, que é o memorial da Paixão do Senhor, só produz efeito naqueles que se unem a este Sacramento pela fé e caridade. […] Aproveitam, no entanto, mais ou menos, segundo a medida de sua devoção”.[4]

A especial obrigação dos sacerdotes em trilhar o caminho da santidade é reafirmada no decreto Presbyterorum ordinis: “Estão, porém, obrigados por especial razão, a buscar essa mesma perfeição visto que, consagrados de modo particular a Deus pela recepção da Ordem, se tornaram instrumentos vivos do sacerdócio eterno de Cristo”.[5] E de seu aperfeiçoamento pessoal, ensina o mencionado documento conciliar, decorrerá maior ou menor abundância de frutos de sua ação pastoral:

“A santidade dos presbíteros muito concorre para o desempenho frutuoso do seu ministério; ainda que a graça de Deus possa realizar a obra da salvação por ministros indignos, todavia, por lei ordinária, prefere Deus manifestar as suas maravilhas por meio daqueles que, dóceis ao impulso e direção do Espírito Santo, pela sua íntima união com Cristo e santidade de vida, podem dizer com o Apóstolo: ‘Se vivo, já não sou eu, é Cristo que vive em mim’” (Gl 2, 20).[6]

Ante esta realidade, o sacerdote tem dois grandes deveres. Um para consigo mesmo e outro para com o povo, pois ambos se beneficiam dos frutos da Santa Missa, especialmente o celebrante, conforme o grau de fervor ou devoção.[7]

Segundo alguns teólogos, este fruto especialíssimo da Santa Missa, destinado ao sacerdote, é maior do que o destinado aos demais participantes do Sacrifício Eucarístico, ou àqueles aos quais se aplica o seu valor. É neste manancial inesgotável da misericórdia de Deus que cada ministro ordenado deve ir buscar as melhores graças para a sua santificação, assim como a daqueles que lhe estão confiados:

“Por causa do poder do Espírito Santo, que pela unidade da caridade comunica os bens dos membros de Cristo entre si, acontece que o bem particular presente na Missa de um bom sacerdote se torna frutuoso para outras pessoas”.[8]

Dessa maneira, corresponderá ele à altíssima dignidade de seu ministério, segundo dizia o Santo Cura d’Ars:

“Sem o sacramento da Ordem, não teríamos o Senhor. Quem O colocou ali naquele sacrário? O sacerdote. Quem acolheu a vossa alma no primeiro momento do ingresso na vida? O sacerdote. Quem a alimenta para lhe dar a força de realizar a sua peregrinação? O sacerdote. Quem há de prepará-la para comparecer diante de Deus, lavando-a pela última vez no sangue de Jesus Cristo? O sacerdote, sempre o sacerdote. E se esta alma chega a morrer [pelo pecado], quem a ressuscitará, quem lhe restituirá a serenidade e a paz? Ainda o sacerdote. […] Depois de Deus, o sacerdote é tudo! […] Ele próprio não se entenderá bem a si mesmo, senão no Céu”.[9]


[1] Cf. CHAUTARD, OCSO, Jean-Baptiste. A Alma de todo o apostolado. Porto: Civilização, 2001, p. 34-35.

[2] S Th III, q. 79, a. 5, Resp.

[3] In: AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2006, v. 9, p. 358.

[4] S Th III q. 79, a. 7, ad 2.

[5] PO, n. 12.

[6] Idem.

[7] Cf. ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología Moral para Seglares. Madrid: BAC, 1994, v. 2, p. 158.

[8] S Th III q. 82, a. 6, ad 3.

[9] Palavras de São João Maria Vianney, citadas pelo Papa Bento XVI na Carta para Proclamação do Ano Sacerdotal, 16 jun. 2009.

A moral ideal convive com a razão e a lei inscrita no coração

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Com certa força, reivindica-se hoje a aprovação de certas leis cuja índole a Igreja desaprova, o que constitui cada vez mais um desafio. Na verdade, o pós-modernismo tem tendência a desprezar as raízes da sua própria civilização, recusar qualquer hierarquia e suas representações e distanciar-se do Absoluto. Com reflexos no âmbito moral, este posicionamento fez com alguns pensadores pugnem por uma ética que não obrigue o legislador a ser influenciado por uma moral que se apoia na lei natural, a fim de unir os homens e fazê-los viver como se Deus não existisse.[1]

Entretanto, Sergio Belardinelli repara que “o esforço moderno de construir uma sociedade justa, feita de homens capazes de reconhecerem-se reciprocamente como se Deus não existisse, tem-se revelado um desastre”.[2] E adverte que pensar um mundo sem Deus, poderá significar em descaracterização e comprometimento do próprio homem. Flavia Monceri vai mais longe e pensa mesmo chamar ao diálogo aqueles que, sendo contrários à Igreja, possuem a responsabilidade histórica por tomarem certas posições filosóficas que resultaram no secularismo e no relativismo e consequente deriva niquilista da sociedade ocidental.[3]

Não é qualquer moral amiga da pessoa humana, conforme ensina Bento XVI na Caritas in Veritate (n. 45). É necessária uma moral descomprometida com ideologias e divergências, que não se submeta a tendências relativistas e transitórias de tempo e de lugar, mas que possa invariavelmente considerar o homem como imagem de Deus (Gn 1, 27). Esta moral não prescinde da razão, mas convive continuamente com Ela, tonificando-se por um lado e purificando-a por outro, a fim de que não se sobreponham interesses pessoais, mas subsista “a dignidade inviolável da pessoa humana e também o valor transcendente das normas morais naturais” (Caritas in Veritate, n. 45).

Em nossos dias, partindo da Revelação, a Igreja continua a provocar aquelas opções humanas redutoras do ser a utilitarismos hedonistas, egoístas e materialistas. Ela observa, julga e interage, colabora e intervém, para garantir que as perenes referências éticas não desrespeitem os mais básicos direitos humanos. Cria espaços para denunciar sempre que são feridos os princípios mais elementares da liberdade e da legítima autonomia institucional, ou mesmo quando certas decisões, apoiadas por massas equivocadas, optam por posições contrárias à dignidade e existência do ser, ou corrompem a recta razão e aquela ordem cujas referências nos foram deixadas pela Sabedoria Eterna e Encarnada.


[1] Cf. LECALDANO, Eugenio (2008). Un’etica senza Dio. Roma: Laterza. Também HOTTOIS, Gilbert (2005). De la Renaissance à la Postmodernité: Une histoire de la philosophie moderne et contemporaine. 3. ed.  Bruxelles: De Boeck Supérieur.

[2] D’AGOSTINO, Francesco et all. Cinisello Balsamo (It): San Paolo Edizioni. p. 146

[3] Idem.

O homem deve voltar-se para uma realidade que o transcende

Mons. João S. Clá Dias, EP

Deixou Deus a lei natural vincada de forma indelével no coração do homem, para que ela sempre lhe lembrasse o bem a ser praticado e o mal a ser evitado. Esta lei, todavia, não possui a eficácia de outrora sobre o livre-arbítrio do homem que, quando o emprega mal, a pode desprezar. Consentindo em realizar atos diferentes dos indicados pela própria consciência inocente e reta, ele busca justificá-los com falsos argumentos, a fim de encontrar abertas diante de si as portas para realizar novas ações contrárias à Lei.

Ao abraçar essa via, a criatura racional paulatina e progressivamente obnubila seu senso moral até reduzir ao mínimo sua noção de bem e de mal, assim como a dos outros transcendentais do ser. Trata-se de um dos maiores infortúnios que pode suceder ao homem, pois como consequência, passará a ostentar um “coração de pedra” (Ez 11, 19), no qual quase não mais se notarão as amorosas marcas da Lei impressas pelo dedo de Deus.

Com efeito, é inegável ter havido no século XX um vertiginoso progresso em todos os campos do conhecimento humano, do qual não ficou excluído o da filosofia. Empenhado este ramo do saber na busca da verdade, acabou, em nossa época, por concentrar sua atenção sobre o homem, favorecendo de alguma forma o progresso da cultura.

No entanto, como assinalou o Papa João Paulo II na Encíclica Fides et Ratio, a razão, por se ter voltado demasiadamente para a investigação do homem, “parece ter-se esquecido de que este é sempre chamado a voltar-se também para uma realidade que o transcende” (n. 5).

Cabe à Igreja, depositária da Revelação de Jesus Cristo, recordar ao homem moderno a necessidade da reflexão sobre a verdade, tarefa que o Papa João Paulo II retomou na sua mencionada encíclica. Ao fazê-lo, o Pontífice apontou também alguns desvios do pensamento que caracterizam certas correntes contemporâneas:

“A razão, sob o peso de tanto saber, em vez de exprimir melhor a tensão para a verdade, curvou-se sobre si mesma, tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar e de ousar atingir a verdade […]. Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo. […] Ganharam relevo diversas doutrinas que tendem a desvalorizar até mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter alcançado. […] Neste horizonte, tudo fica reduzido a mera opinião” (Idem).

Já no meio-dia do século XX, o Concílio Vaticano II uma vez mais insistia na necessidade de que o mundo hodierno endireitasse suas vias se quisesse colher os frutos de um verdadeiro progresso cultural, pois este, furtando-se à solicitude retificadora da Igreja, acabaria por se desviar de sua própria finalidade que é a elevação do espírito humano:

“A boa nova de Cristo renova continuamente a vida e a cultura do homem decaído e combate e elimina os erros e males nascidos da permanente sedução e ameaça do pecado. Purifica sem cessar e eleva os costumes dos povos. Fecunda como que por dentro, com os tesouros do alto, as qualidades de espírito e os dotes de todos os povos e tempos; fortifica-os, aperfeiçoa-os e restaura-os em Cristo. Deste modo, a Igreja, realizando a própria missão, já com isso estimula e ajuda a cultura humana, e com a sua atividade, incluindo a liturgia, educa o homem à liberdade interior” (Gaudium et Spes, n. 58).

Os aspectos espirituais da sociedade temporal favorecem a contemplação

Mons. João S. Clá Dias, EP

Encontra-se generalizada a ideia de que a sociedade temporal existe apenas para satisfazer as necessidades materiais do homem. Ora, este é composto de alma e corpo, no qual a primeira ocupa a primazia. Por isso, a sociedade temporal deve também atender aos anseios espirituais da alma humana, embora o aspecto sobrenatural pertença ao âmbito exclusivo da Igreja. O homem é, por natureza, um ser contemplativo, pois está destinado a ver a Deus face a face na eternidade. Portanto, já nesta vida ele deve exercitar essa capacidade, reconhecendo os reflexos de Deus na obra da Criação e, mais ainda, nos outros homens, que são a imagem mais perfeita do Criador no universo visível.

O homem poderá desenvolver a capacidade contemplativa, com maior grau de perfeição, no convívio humano e na consideração dos bens mais elevados que são o resultado da vida social, quer sejam os ambientes, a arte, a cultura e a civilização. Estes são elementos caracteristicamente espirituais produzidos pela sociedade temporal, e que grande influência têm sobre a alma humana. Animando com o espírito cristão as realidades temporais, objeto da contemplação mais imediata do homem, a alma humana terá muito mais facilidade de se elevar até as verdades da Fé. Dessa forma, a intimidade com Deus não se restringe apenas a determinados momentos reservados às obrigações religiosas, mas se estende a todo o operar humano, tal como a respiração não se interrompe em nenhum momento da existência. Ela é natural, sem esforço, contínua e aprazível.

A doutrina do Concílio Vaticano II, expressa no Decreto Apostolicam Actuositatem, é igualmente clara ao ressaltar a importância da esfera temporal no plano salvífico de Deus:

“A obra redentora de Cristo, que por natureza visa salvar os homens, compreende também a restauração de toda a ordem temporal. Daí que a missão da Igreja consiste não só em levar aos homens a mensagem e a graça de Cristo, mas também em penetrar e atuar com o espírito do Evangelho as realidades temporais. Por este motivo, os leigos, realizando esta missão da Igreja, exercem o seu apostolado tanto na Igreja como no mundo, tanto na ordem espiritual como na temporal. Estas ordens, embora distintas, estão de tal modo unidas no único desígnio divino que o próprio Deus pretende reintegrar, em Cristo, o universo inteiro, numa nova criatura, dum modo incoativo na terra, plenamente no último dia. O leigo, que é simultaneamente fiel e cidadão, deve sempre guiar-se, em ambas as ordens, por uma única consciência, a cristã”. (AA, n. 5)

É importante salientar aqui como o Concílio Vaticano II, ainda nos dias em que o assunto não havia adquirido o devido destaque nos meios eclesiais, deu novo impulso ao papel dos leigos na Igreja. Nele se anteciparam os imensos desafios que o terceiro milênio reservava. Com efeito, um deles é a “Consecratio Mundi”. Quase se poderia dizer, caso a Igreja não fosse imortal, ser essa uma questão de vida ou morte. Se no século XXI a Igreja não conseguisse influenciar as realidades temporais com o espírito cristão, os erros e a mentalidade secularista desta época poderiam, em certa medida, dessacralizá-la.

Diante dessa perspectiva, compete aos leigos zelar para que os ambientes, a arte, os costumes, as leis e as instituições, de alto a baixo na escala social, estejam todos impregnados do espírito cristão de forma que a obra redentora de Cristo produza também seus efeitos na esfera temporal. Deverá ela refletir, a seu modo, a luz e o esplendor daquele que subiu aos céus para “levar tudo à plenitude” (Ef 4, 10)

A frequência à comunhão eucarística na História da Igreja

Pe. Alex Barbosa de Brito, EP

O costume da comunhão era tão frequente nos primeiros séculos que Jungmann atesta: até o séc. IV, além da comunhão em cada missa assistida, em geral aos Domingos, podia-se, depois de receber a hóstia consagrada, levar uma porção para casa, onde as pessoas guardavam cuidadosamente e, dia após dia, consumiam antes de qualquer outro alimento. Contudo, “de modo geral, porém, o recebimento de sacramento é reservado à missa que se tornou, normalmente, mais frequente desde que a Igreja tinha conquistado a paz”. (Cf. 2009, p. 802-803).

Considerando que o aspecto “banquete” é o que se percebe em primeiro lugar na celebração, não é de admirar que a Patrística, nos primeiros séculos, apresente a Eucaristia dando ênfase à “comida e bebida espiritual de vida eterna” (Didaqué 10); ao “pão e remédio de imortalidade, antídoto que afasta a morte e dá a vida em Cristo” (Inácio, Efes. 20); ao “alimento que nutre com o corpo e o sangue do Senhor” (Irineu, Adv. Haeres, 4,18,5); “a fim de que por eles também a alma seja alimentada” (Tertuliano, De Resurr. 8:PL 2,806); como “alimento que nutre as almas… como bebida que inebria o coração”. (Orígenes, in Matth. Comment., séries 85: PG 13,1734).

Por isso mesmo, os Padres da Igreja[2] apontam nos Evangelhos os primeiros indícios da comunhão frequente. Por exemplo, Santo Agostinho[3], falando do capítulo VI de São João, recorda no sermão 28, incluído no livro De Verbi Domini: Iste panis quotidianus est: accipe quotidie quod quotidie tibi prosit. (“Este pão é diário: toma cada dia o que cada dia te aperfeiçoa”, tradução nossa.)

Praticamente o mesmo conselho é dado por Santo Ambrósio (340-397), mestre de S. Agostinho (354-430), quando afirma: “Si quotidianus est panis, cur post annum illum sumis, (quemadmodum Graeci in Oriente facere consuerunt)?. Accipe quotidie, quod quotidie tibi prosit.”[4]

Tertuliano (De idolatria, c. VII) fala “das mãos que tocam diariamente o corpo do Senhor[5]”. São Cipriano (De oratione Dominica, XVIII) exorta com particular insistência à comunhão diária, e o Bispo de Hipona (Epist. LIV, n. 2) recomenda que, além do Domingo, seja recebida em certos dias.

Nesses tempos felizes, é incompreensível assistir à missa sem a comunhão, porque a comunhão é “essencialmente e no sentido mais profundo, o rito de participação do convívio sacrifical” (VAGAGGINI, 2009, p. 258). E àqueles que não estivessem presentes, por justa razão, era-lhes enviada a Eucaristia, recorda São Justino (Apologia I, n. 65).

Contudo, comenta Jungmann (2009, p. 803): “a alta frequência do recebimento da eucaristia diminui com surpreendente rapidez, pelo menos em alguns países”. Tal ruptura deste convívio diário, parece ter se iniciado ainda nos tempos de Santo Ambrósio[6], uma vez que, sem meias palavras, dizia: “Se o pão é cotidiano, por que esperais um ano para recebê-lo, como fazem os gregos?”[7]. (De Sacramentis, V, 25)

São João Crisóstomo comprova a ruptura com os tempos apostólicos, ao se queixar de que “em Constantinopla muitos só comungarem uma vez por ano” (in Hebraeos 17,4); e não sem certa melancolia finaliza: “em vão se celebra o sacrifício todos os dias; em vão estamos todos os dias no altar, ninguém vem comungar”. (In Ephesios, h. 3,4).

Já no século V, Santo Agostinho fazia o seguinte reparo: “Em alguns lugares não se transcorre um dia sem que se ofereça o sacrifício, enquanto em outros ele é oferecido somente aos sábados e domingos, e em outros só aos domingos”. (Epistola ad Ianuarium 54, II, 2).

A normativa se pressentia necessária. Na Gália, por exemplo, o Sínodo de Agde (506), prescreveu o mínimo de três comunhões anuais: no Natal, na Páscoa e em Pentecostes;[8] decretou também a comunhão dominical, sobretudo nos Domingos da Quaresma, mas com resultados tênues e passageiros. (Cf. JUNGMANN, 2009, p. 803).

Três terão sido, talvez, as principais causas da diminuição da frequência à comunhão eucarística dos fiéis: O arianismo, o purismo ritual ou legal e a pureza de consciência mal entendida. Esta última razão fortemente influenciada pelo arianismo e muito semelhante ao que se veria muitos e muitos anos mais tarde no movimento jansenista (séc. XVIII).

As invasões bárbaras (entre 300 a 800) trouxeram em seu bojo o arianismo. Após a queda do Império Romano, quando os missionários católicos entraram em contato com eles, muitos já eram arianos, sobretudo os povos oriundos do Norte da Europa que sofreram a pseudoevangelização de Wulfila, monge-bispo ariano do clero de Bizâncio. Onde a influência da heresia foi menos perniciosa, “a comunhão frequente e vinculada naturalmente com a celebração do sacrifício permanecia em vigor por mais tempo.”[9] (JUNGMANN, 2009, p. 804).

Quanto à pureza ritual, encontramos no Antigo Testamento uma série de regras que lhe diziam respeito (Cf. Lv 15,1-30; 12,1-8). Anacronismos à parte, esta concepção de modo misterioso reapareceu entre os cristãos dos séculos IV e V, colaborando fortemente para o afastamento da Comunhão Eucarística. Proibições da ordem da pureza ritual são encontradas nas fontes desde o século III. (Cf. JUNGMANN, 2009, p. 805). São Jerônimo sugere abstinência aos casados nos dias de receber a Eucaristia (Epistola 49,15; Contra Jovinianum 1,20) e o Doutor de Hipona, Santo Agostinho, recomenda que se deve receber a Eucaristia nos dias em que se vive maior pureza e continência (Epistola LIV, II).

No que diz respeito à pureza de consciência, em I Cor 11,28 o Apóstolo prescreve que o homem se examine antes de comungar, probet se ipsum homo. Na baixa Idade Média, não faltou quem entendesse esta norma como se todos estivessem obrigados à confissão sacramental antes de cada Comunhão. Ora, tornava-se muito difícil atender em confissão toda a comunidade de fiéis, antes de cada Missa, tanto mais que não era permitido aos católicos receberem os sacramentos fora do território paroquial. Outro fator digno de nota foi o pio costume das chamadas missas privadas, que desde o século VII se generalizou. Até então, costumava-se celebrar a Eucaristia de modo solene, com a presença do clero e do povo. Com a multiplicação das missas, bastaria a representação de um fiel que ajudasse à Missa. Multiplicaram-se as missas, multiplicou-se número dos altares, menos o número de comunhões, a maioria dos fiéis comungava apenas na Pascoa, “por mais que se recomendasse o costume antigo de comungar todos os Domingos”. (GARCIA-VILLOSLADA, MMIII, p. 227; Tradução e grifo do autor).

A situação ficou tão calamitosa que no século XI, o IV Concílio Lateranense (1215), em seu famoso capítulo 21 Omnis utriusque sexus, estabeleceu o preceito da confissão anual e da comunhão pascal:

Cada fiel, de um e de outro sexo, chegando à idade da razão, confesse lealmente, sozinho, todos os seus pecados a seu próprio sacerdote, ao menos uma vez ao ano, e se aplique a cumprir, segundo suas forças, a penitência que lhe foi imposta; receba com reverência ao menos pela Páscoa o sacramento da Eucaristia. (Denz. 812).

O preceito conciliar remediou a situação, mas ainda estava longe a solução definitiva do problema. Exemplo característico desse tempo foi o de S. Luís IX, rei de França (1214-1270). O mítico e piedoso monarca comungava cerca de seis vezes ao ano. (Cf. ROPS, 1993, p. 72). A literatura canônica insistia na obrigação do jejum eucarístico com severidade tal, que alguns autores chegavam a exigir implacáveis sacrifícios. Em 1237, o Sínodo de Coventry (Inglaterra) prescrevia jejum preparatório de meia semana. Outros afirmavam que o fato de não se frequentar o sacramento aumentaria a reverência para com o mesmo. (Cf. JUNGMANN, 2009, p. 805). O Doutor Universal, que conviveu de perto com esta mentalidade formada ao longo de séculos, foi grande defensor da comunhão frequente. Citando Santo Agostinho teceu esta belíssima consideração sobre o temor reverencial e o temor filial:

Deve-se dizer que o respeito devido a este sacramento deve unir o temor ao amor. Pois o temor reverencial a Deus é chamado temor filial. O desejo de comungar é provocado pelo amor; do temor, porém, nasce a humildade do respeito. Desta sorte, ambos pertencem ao respeito devido a este sacramento, seja quando se comunga todos os dias, seja quando, às vezes, se abstém dele. (Suma III, q. 80, a. 10, quanto ao 3º).

Como fossem raras as comunhões sacramentais, incentivavam-se as espirituais. Mas, o desequilíbrio levou não poucos a desenvolverem uma controversa devoção: a comunhão vicária, ou seja, o sacerdote comungava em substituição à comunhão dos fiéis[10].

Era desejo dos Padres no Concílio de Trento que os fiéis comungassem todos os dias. Com o objetivo de facilitar o acesso dos fiéis à comunhão eucarística, a partir deste Concílio introduziu-se o costume de ministrar a comunhão sem relação com a celebração do sacrifício, ou seja, extra missam. (Cf. SARAIVA MARTINS, 2005, p. 239). A luta contra os pseudo reformistas, que negavam a presença real e o caráter sacrifical da Missa, fez com que a Igreja concentrasse seus esforços em desenvolver a teologia nesses dois campos, ademais de normatizar, tendo em vista os aspectos que eram especialmente atacados. Ao longo de quase toda a Idade Média estabeleceu-se a devoção à Santa Missa enquanto sacrifício eucarístico. Ne declines ad dexteram neque ad sinistram, averte pedem tuum a malo[11] (Pv 4,27), nos ensina o livro dos Provérbios. Na busca constante do equilíbrio, a Igreja no Concílio de Trento voltou a incentivar a participação dos fiéis na comunhão eucarística.


[1] Cipriano Vagaggini, monge beneditino camaldulense (+1999), foi um dos principais artífices da Constituição Sacrosantum Concilium e um dos animadores da reforma litúrgica, com contribuições originais na redação das novas Orações Eucarísticas II e IV (2009, contracapa).

[2] Tertuliano, além do valor histórico e literário de seus escritos, merece destaque particular pelas informações mais particularizadas que nos fornece. Ademais, foi o primeiro dos escritores latinos a apresentar o termo grego de Paulo pelo latino “coena Dei” (De spect. 13, loc. cit.) e “convivium dominicum” (Ad uxor, 2,4). Faz-nos ele ainda ver o corpo de Cristo no “pão cotidiano” que pedimos na oração do Pai nosso (De orat, 6: PL 1,1263); além de atestar que o “sacramento da Eucaristia” era “recebido” habitualmente na celebração que se realizava “antes do amanhecer, somente da mão do presidente” (De cor. 3: PL 2,79).

[3] Serm. 84, inter Opp. Aug., al de Verbis Domini., serm. 28, n. 3; ML 39, 1908

[4] Sancti Ambrosii Mediolanensis Episcopi. De Sacramentis. Libri Sex. (C. G. S.). Liber quintus. Caput IV. PL. Vol. 16, col. 452b.

[5] Além de incentivar a comunhão eucarística, Tertuliano chama atenção a respeito de algumas normas a ser observadas: “ante omnem cibum gustes”, ou seja, que os fiéis tivessem o cuidado de tomar a Eucaristia antes de qualquer outro alimento; e que não comesse dela quem não fosse cristão. (Tertuliano, Ad. Uxor, 2,5, PL 1408).

[6] Crisóstomo, In Eph. Hom. 3,4 (PG 62,29), cf. In I Tim hom. 5,3 (PG 62,529s.); In Hebr. Hom 17,4 (PG 63,131s.).

[7] Quemadmodum Graeci in Oriente facere consuerunt. Tradução nossa.

[8] Can. 18 (Mansi VIII, 327).

[9] Isso atestam para o séc. VII-VIII os ordinários romanos que são voltados primeiramente para a missa estacional. Esta, porém, acontecia na Quaresma quase diariamente. […] Também segundo Beda (+ 735), Ep. 2 ad Egbertum (PL 94, 666A), naquela época cristãos de todas as idades comungavam em Roma em cada Domingo. Em 88, o papa Nicolau I, Ep. 97, n. 9 (PL 119, 983) dá uma resposta afirmativa à pergunta dos búlgaros se devem comungar diariamente na Quaresma, desde que estejam na atitude certa. (JUNGMAN, 2009, nota n. 32 da p. 804).

[10] À primeira vista, o que poderia ser um belo gesto de piedade, foi se tornando um meio a mais para que as pessoas deixassem de comungar. Havia mesmo quem dissesse que, quando o sacerdote comunga, “alimenta a si mesmo na alma, e a todos nós”. Combatendo-o, o Sínodo de Tréveris (1227) proibiu que o sacerdote recebesse o corpo de Cristo em lugar dos enfermos. (Cf. JUNGMANNM, 2009, p. 806-807 e notas).

[11] Não te desvies nem para a direita, nem para a esquerda e afasta os teus pés do mal.

Referências

GARCIA-VILLOSLADA, Ricardo. Historia de la Iglesia Católica: Edad Media (800-303), La cristiandad en el mundo europeo y feudal. 6. ed. Madrid: BAC, MMIII.

JUNGMANN, J. A. Missarum Sollemnia: Origens, Liturgia, História e Teologia da Missa Romana. Tradução de Monika Ottermann. São Paulo: Paulus, 2009, 961 p.

VAGAGGINI, Cipriano. O Sentido Teológico da Liturgia. Trad. Francisco Figueiro de Moraes. São Paulo: Edições Loyola. 2009, 843 p.

SARAIVA MARTINS, Cardeal José. Eucaristia. Lisboa: Universidade Católica Editora. 2005.

A verdade deve ser buscada na Igreja de Cristo

Pe. Antônio Guerra, EP

A Verdade que o homem procura por conaturalidade ― e também por obrigação moral ― não pode ser procurada em qualquer lugar, pois não a encontraria. A verdade deve ser procurada onde ela se encontra. Ela é única, insubstituível, e deve corresponder aos anseios mais profundos do ser humano. Depois da Encarnação do Verbo, a verdade deve ser buscada na Igreja fundada por Jesus Cristo Nosso Senhor. Ele que é a Verdade, deixou-nos a Igreja como sacramento de santificação, a qual, como mãe amorosa e paciente, ensina o homem a chegar até a Verdade íntegra e incomensurável, Jesus, filho de Maria.

Conhecida a Verdade em sua Igreja, o homem tem o direito e a obrigação de abraçá-la e segui-la. Entretanto, deve-se recordar as dificuldades decorrentes da natureza limitada do homem e dos desfiguramentos oriundos do pecado original. Já antes da queda de nossos primeiros pais, o homem não conseguiria chegar totalmente a esse conhecimento da verdade a não ser com a ajuda divina. São Tomás é muito claro ao tratar da hipótese de o homem ter sido criado em estado de pura natureza, sem a graça

O homem em estado de integridade ordenava o amor de si mesmo ao amor de Deus como seu fim, e outro tanto com o amor que tinha às demais coisas. E assim amava a Deus mais que a si mesmo e por cima de tudo. Mas no estado de natureza decaída o homem fraqueja neste terreno, porque o apetite da vontade racional, devido à corrupção da natureza, se inclina ao bem privado, enquanto não seja curado pela graça divina. Devemos, pois, concluir que o homem, em estado de integridade, não necessitava de um dom gratuito acrescido aos bens de sua natureza para amar a Deus sobre todas as coisas, ainda que necessitasse do impulso da moção divina. Mas no estado de corrupção necessita o homem, inclusive para lograr este amor, do auxílio da graça que cure sua natureza[1].

Nessa hipótese que o homem tivesse sido criado sem a graça ― a qual lhe tivesse sido concedida depois ― “em estado de natureza íntegra” não precisava da graça para amar a Deus mais do que a si mesmo, pois esse amor, já o vimos, é conatural ao homem.

Ele precisava, porém, do impulso da moção divina”[2] para chegar a amar ao Criador mais do que a si mesmo. Esse amor a Deus sobre todas as coisas o homem o praticava sem o auxílio da graça. Bastava a ele certo auxílio de Deus.

Porém, no estado de natureza corrompida pelo pecado original, o homem, para ter esse amor a Deus mais do que a si mesmo, precisa do auxílio da graça, que: “cure sua natureza[3]. Sem a divina graça o homem (batizado ou não) muito dificilmente (quiçá seja impossível) encontrará em si forças para procurar a Verdade e amar inteiramente o Bem.


[1] Suma Teológica I-II q. 109, a. 3 co.

[2] Suma Teológica I-II q. 109, a.3 co.

[3] Ibidem.

Cristo, novo Adão

Nas suas conferência quaresmais de 1981, quando era arcebispo em Munique, Joseph Ratzinger fez belas considerações cuja tradução transcrevemos a seguir:

 Cristo se converte num novo Adão com o qual o ser humano começa novamente.   Ele que, desde o fundamento, é nosso ponto de referência, o filho, restabelece corretamente de novo as relações.  Seus braços estendidos são a referência aberta, que continua a estar aberta para nós.  A cruz, o lugar da sua obediência, se converte na verdadeira árvore da vida.  Cristo se converte na imagem oposta da serpente como diz João em seu evangelho  (Jo 3, 14).

Desta árvore vem, não a palavra da tentação, mas a palavra do amor salvador, a palavra da obediência, na qual Deus se fez obediente para oferecer-nos sua obediência como espaço da liberdade. A cruz é a árvore da vida novamente acessível.  Com a Paixão, Cristo fez obedecer o som, por assim dizer, inflamado da espada, atravessou o fogo e levantou a cruz como o verdadeiro eixo do universo sobre o qual este de novo ficou reto.  Por isso, a Eucaristia, como presença da cruz, é a verdadeira árvore da vida que está sempre em nosso centro e nos convida a receber o fruto da verdadeira vida.  Isto significa que a Eucaristia nunca poderá ser uma simples purificação comunitária.  Recebê-la, comer da árvore da vida significa, por isso, receber o Senhor Crucificado, isto é, aceitar sua forma de vida, sua obediência, seu Sim, à medida de nosso ser criatura.  Significa aceitar o amor de Deus que é nossa verdade, aquela dependência de Deus que não significa para nós uma determinação estranha, como tão pouco para o filho, é a filiação uma resolução estranha.  Precisamente esta dependência é liberdade porque é Verdade e Amor.

Que este tempo da Quaresma nos ajude a sair das nossas negativas, do receio da aliança de Deus, da falta de medidas e da mentira da nossa “auto-determinação”, para ir em busca da árvore da vida que é nossa medida e nossa esperança.

E que nos encontremos de novo com as palavras completas de Jesus: o Reino de Deus está próximo.  Convertei-vos e crede no evangelho (Mc 1, 15).

Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim deve ser levantado o Filho do Homem, para que todo homem que n’Ele crer tenha a vida eterna (Jo 3, 14 –15)

(RATZINGER, Joseph. Creación y pecado. (Navarra): Ediciones Universidad de Navarra, 2005. p. 103-104 ).

O sigilo na confissão

Pe. Caio Newton de Assis Fonseca, EP

Sigilo vem do latim sigillum, selo, lacre. Como em tempos já bem idos, se fechavam as cartas ou documentos contendo coisas reservadas com um selo ou lacre, a palavra metaforicamente passou a designar segredo.

Na Teologia da Penitência, chama-se sigilo a obrigação absoluta, perpétua e inviolável que tem o confessor de guardar segredo sobre a matéria da confissão. Ou, mais laconicamente, sigillum est debitum confessionem celandi: obrigação de ocultar a confissão (AQUINO, Tomás de. Suplemento de la Suma, q. 11, a. 3, ad resp.).

Porém, não é só sobre o sacerdote que pende a obrigação do segredo da matéria da confissão. Ela pende também sobre o intérprete, se houver, e sobre todos aqueles a quem, por qualquer motivo, tenha chegado o conhecimento de pecados por meio de confissão. Mas, neste caso, tal obrigação se chama segredo de confissão.

Esta distinção entre sigilo para o confessor e segredo de confissão para todos os outros a estabeleceu o CIC de 1983, atualmente vigente (c. 983). Antes dele, o CIC de1917 não fazia semelhante distinção, como se vê:

889 § 1. O sigilo sacramental é inviolável; guarde-se, pois, muito bem o confessor de revelar no mais mínimo o pecador nem por palavra, nem por algum sinal, nem de qualquer outro modo e por nenhuma causa.

§ 2. Estão do mesmo modo obrigados a guardar o sigilo sacramental o intérprete e todos aqueles a quem de um modo ou de outro tivesse chegado a notícia da confissão.