A verdade deve ser buscada na Igreja de Cristo

Pe. Antônio Guerra, EP

A Verdade que o homem procura por conaturalidade ― e também por obrigação moral ― não pode ser procurada em qualquer lugar, pois não a encontraria. A verdade deve ser procurada onde ela se encontra. Ela é única, insubstituível, e deve corresponder aos anseios mais profundos do ser humano. Depois da Encarnação do Verbo, a verdade deve ser buscada na Igreja fundada por Jesus Cristo Nosso Senhor. Ele que é a Verdade, deixou-nos a Igreja como sacramento de santificação, a qual, como mãe amorosa e paciente, ensina o homem a chegar até a Verdade íntegra e incomensurável, Jesus, filho de Maria.

Conhecida a Verdade em sua Igreja, o homem tem o direito e a obrigação de abraçá-la e segui-la. Entretanto, deve-se recordar as dificuldades decorrentes da natureza limitada do homem e dos desfiguramentos oriundos do pecado original. Já antes da queda de nossos primeiros pais, o homem não conseguiria chegar totalmente a esse conhecimento da verdade a não ser com a ajuda divina. São Tomás é muito claro ao tratar da hipótese de o homem ter sido criado em estado de pura natureza, sem a graça

O homem em estado de integridade ordenava o amor de si mesmo ao amor de Deus como seu fim, e outro tanto com o amor que tinha às demais coisas. E assim amava a Deus mais que a si mesmo e por cima de tudo. Mas no estado de natureza decaída o homem fraqueja neste terreno, porque o apetite da vontade racional, devido à corrupção da natureza, se inclina ao bem privado, enquanto não seja curado pela graça divina. Devemos, pois, concluir que o homem, em estado de integridade, não necessitava de um dom gratuito acrescido aos bens de sua natureza para amar a Deus sobre todas as coisas, ainda que necessitasse do impulso da moção divina. Mas no estado de corrupção necessita o homem, inclusive para lograr este amor, do auxílio da graça que cure sua natureza[1].

Nessa hipótese que o homem tivesse sido criado sem a graça ― a qual lhe tivesse sido concedida depois ― “em estado de natureza íntegra” não precisava da graça para amar a Deus mais do que a si mesmo, pois esse amor, já o vimos, é conatural ao homem.

Ele precisava, porém, do impulso da moção divina”[2] para chegar a amar ao Criador mais do que a si mesmo. Esse amor a Deus sobre todas as coisas o homem o praticava sem o auxílio da graça. Bastava a ele certo auxílio de Deus.

Porém, no estado de natureza corrompida pelo pecado original, o homem, para ter esse amor a Deus mais do que a si mesmo, precisa do auxílio da graça, que: “cure sua natureza[3]. Sem a divina graça o homem (batizado ou não) muito dificilmente (quiçá seja impossível) encontrará em si forças para procurar a Verdade e amar inteiramente o Bem.


[1] Suma Teológica I-II q. 109, a. 3 co.

[2] Suma Teológica I-II q. 109, a.3 co.

[3] Ibidem.

A Igreja é amiga do progresso

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Uma superficial consideração do mundo de hoje leva a crer que a Igreja é contra o progresso. Tal seria, pois, enquanto tal e na verdadeira acepção da palavra, é uma coisa boa. A este respeito, escreveu Paulo VI em seu último livro, ainda enquanto Cardeal Montini, em 1963: “A cristandade não é um obstáculo ao progresso moderno porque não o considera apenas nos seus aspetos técnicos e econômicos, mas no total de seu desenvolvimento. Os bens temporais poderão certamente ajudar o completo desenvolvimento do homem, mas eles não constituem o ideal da perfeição humana ou a essência do progresso social”.[1]

O problema com o aparente progresso, este sim, criticado pela Igreja, está no fato de ter sido acompanhado por uma filosofia que parecia dispensar Deus e confiar na mera técnica, ou no próprio homem, tal como advertiu o então cardeal Ratzinger: “Não é a expansão em si das possibilidades técnicas que é má, mas a arrogância iluminista que, em muitos casos, esmagou estruturas desenvolvidas e calcou as almas de homens cujas tradições religiosas e éticas foram postas de parte de forma displicente”.[2]

Thomas S. Kuhn, chegou mesmo a colocar o dedo na ferida e a levantar o problema para onde caminhava a ciência e a técnica em meados do séc. XX, pois, seu processo parecia partir de estágios primitivos e aparentava não levar a pesquisa para mais perto da verdade ou em direção a algo, o que significava que um número inquietante de problemas poderiam advir.[3] Anteriormente, já Kierkegaard alertava que, tornando-se a ciência um modo de vida, então esse seria o modo mais terrível de viver: “encantar todo o mundo e se extasiar com as descobertas e a genialidade, sem, no entanto, [o homem] conseguir compreender-se a si mesmo”.[4]

O progresso, não pode senão trazer benefícios para a humanidade; se não os traz, e até tantas vezes concorre para agravar os problemas humanos, deve-se atribuir isto ao fato de que o progresso contemporâneo, sob muitos aspectos, não é um progresso autêntico. Este desvio deverá ser possível porque existe na humanidade um factor de desordem, causado pelo pecado original, tantas vezes esquecido pelos homens e lembrado pela Igreja (Caritas in Veritate, n. 34). Não basta o desenvolvimento técnico. Ele tem de ser acompanhado pelo ético, humano, deve ter em visto o homem todo e todos os homens. Um progresso integro e integral.

O remédio para os males do falso progresso estão na caridade, porém, caridade na Verdade, ou seja,em Jesus Cristo. Se d’Ele não se tivesse afastado o homem, não teria o progresso sofrido tal desvio. Ao voltar-se para Deus, e valorizar o amor conforme o mandamento novo trazido por Jesus, o progresso se desenvencilhará de suas deturpações e produzirá os frutos mais excelentes. Esta forma de progresso vem muito bem delineado no recente Compêndio de Doutrina Social da Igreja:

“A humanidade compreende cada vez mais claramente estar ligada por um único destino que requer uma comum assunção de responsabilidades, inspirada em um humanismo integral e solidário: vê que esta unidade de destino é freqüentemente condicionada e até mesmo imposta pela técnica ou pela economia e adverte a necessidade de uma maior consciência moral, que oriente o caminho comum. Estupefactos pelas multíplices inovações tecnológicas, os homens do nosso tempo desejam ardentemente que o progresso seja votado ao verdadeiro bem da humanidade de hoje e de amanhã”. (n. 6)


[1] MONTINI, Giovanni Battista. The Christian in the Material World. Baltimore: Helicon, 1964. (tradução minha).

[2] RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância. Traduções UCEDITORA: Lisboa, 2007. P. 71

[3] Cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia: Do romanismo até nossos dias. V. 3. São Paulo: Paulus, 1991. p. 1046.

[4] Idem, p. 250.

Não é qualquer beleza que salva

Pe. José Victorino de Andrade, EPaurora

O Catecismo da Igreja Católica ensina que a obra da criação se nos apresenta sob a forma de vestígios do próprio Criador,[1] a fim de a inteligência poder relacionar as coisas visíveis com o invisível. Este contínuo apelo daquilo que nos rodeia à sua causa e sustento, leva o homem a sair de si para deixar-se surpreender e enlevar, através de experiências estéticas que lhe falam no mais íntimo de realidades superiores, metafísicas, transcendentais.

Diversos autores deixaram testemunhos surpreendentes em torno de especulações perante as múltiplas manifestações de Deus, nas suas criaturas. Nesse sentido, há um célebre episódio de Napoleão no qual, certa noite, interrompe uma discussão materialista entre soldados a fim de apontar as cintilantes estrelas do céu e questioná-los: “Vós podeis falar quanto tempo quiserdes, senhores, mas quem terá feito tudo isso?”.[2]

Não só diante da magnanimidade da Criação houve reações. Também a ordem e complexidade do Universo levariam Newton, ou mesmo Voltaire, a afirmarem que não há relógio sem relojoeiro,[3] reportando-se à necessidade de um Criador, ainda que envolto em concepções filosóficas distantes da Teologia cristã.

Entretanto, encontramos ainda no homem, em meio ao secularismo de hoje, um conjunto considerável de interrogantes e disposições que o levam a sair de si e ter a capacidade de se maravilhar com os vestígios de Deus.[4] Já São Tomás de Aquino fazia uma interessante reflexão ao considerar o 13º Capítulo do Livro da Sabedoria,[5] servindo-se para isso da seguinte imagem:

Se alguém indo a uma casa e desde a porta fosse sentindo calor e cada vez mais nela penetrasse e mais calor sentisse, evidentemente perceberia que havia fogo no seu interior, mesmo que não estivesse vendo o fogo. Acontece o mesmo conosco, ao considerarmos as coisas deste mundo. Todas as coisas estão ordenadas conforme diversos graus de beleza e de nobreza, e quanto mais próximas de Deus, tanto melhores e mais belas.[6]

Vemos, desta forma, o quanto a beleza pode ser comparada a uma chama. Quem será insensível ao seu calor? Este abrasa e arrebata, alça-nos a considerações salutares, tira-nos da nossa condição, do “eu”. Esta especulação tinha sido feita por Platão, em Fedro, e não foi estranha a Santo Agostinho. O então Cardeal Ratzinger aproveitou os escritos de ambos para comparar o belo a uma flecha capaz de ferir o homem no seu íntimo, para desse modo “lhe conferir asas e o elevar às alturas”.[7] Não será esta uma solução para o mundo materialista e relativista no qual vivemos? Não se apresentará à Igreja como um instrumento preciosíssimo, desde sempre ao seu alcance, quer através da Liturgia, quer através da arte sacra? Mons. Luigi Giussani já o reconhecia ao propor, certa vez, em seus exercícios: “Noi dobbiamo lottare per la bellezza. Perché senza la bellezza non si vive. E questa lotta deve investire ogni particolare: altrimenti come faremo un giorno a riempire la piazza San Pietro?”.[8]

“A beleza salvará o mundo”, propôs Dostoiévski,[9] numa frase múltiplas vezes utilizada em variadas reflexões. O próprio Papa João Paulo II citou-a na sua Carta aos Artistas (1999), e o Pontifício Conselho para a Cultura viria a desenvolvê-la no excelente documento elaborado em torno deste assunto, que se intitula Via Pulchritudinis.

Entretanto, cabe aqui realizar uma importante precisão, de acordo com estes dois documentos: não se trata de qualquer beleza, capaz de salvar o mundo, como se coubesse ao conceito, mesmo com todo seu valor, qualquer força própria e redentora. É para Cristo, “o mais belo dos filhos dos homens” (Sl 44, 3), que o nosso pensamento deve remeter; Aquele em cuja face a glória de Deus resplandece (cf. 2Cor 4, 6).

Encontra-se traçada a pedagógica via que nos conduzirá à fonte absoluta da pulcritude, de onde dimana a relativa, os vestígios, através dos quais aprendemos “quão mais belo que tudo é o Senhor, o próprio autor da beleza” (Sb 13, 3). Porque, como escreveu Bento XVI, quando ainda cardeal: “nada há que melhor nos possa pôr em contacto com a beleza do próprio Cristo do que o mundo do Belo criado pela fé, bem como a luz resplandecente no rosto dos santos, através da qual se torna visível a Sua própria Luz”.[10]

VICTORINO DE ANDRADE, José. Editorialin: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 10, Jan-Mar 2010. p. 3-5.


[1]Cf. n. 1147.

[2] Cf. BOURRIENNE, Louis. Memoirs of Napoleon Bonapart. V.1. [s.l.]: Bibliobazaar, 1891. p. 327.

[3] Ver FIORIN, José (org.). O pensamento humano na história da filosofia. Ijuí: Sapiens, 2007, p. 261. BANDET, François. Estará a ciência oposta à Fé? Lumen Veritatis, n. 6, jan-mar, 2009, p. 70.

[4] Ver, por exemplo: JOÃO PAULO II. Angelus de 21 de Julho de 1996, ed. port. de L’Osservatore Romano de 27/7/1996, p. 1.

[5] Especificamente, as seguintes passagens: “Sim, insensatos são todos aqueles homens em que se instalou a ignorância de Deus e que, a partir dos bens visíveis, não foram capazes de descobrir Aquele que É, nem, considerando as obras, reconheceram o Artífice” (Sb 13, 1); “na grandeza e na beleza das criaturas se contempla, por analogia, o seu Criador” (Sb 13, 5).

[6] AQUINO, Tomás de. Exposição sobre o Credo. 5 ed. São Paulo: Loyola, 2002, p. 27.

[7] Publicado em 30 Giorni, n. 91 (2002). Messaggio al XXIII Meeting per l’amicizia fra i popoli. Rimini, 21 agosto 2002.

[8] Esercizi a Varigotti, 1964. Apud FARINA, Renato. Ratzinger ricorda don Gius, «mio vero amico», Libero, 25 marzo 2007.

[9] Ver DOSTOÉVSKI, Fiódor. L’idiota. Trad. PACINI G. Parte III, cap. V. Milão, 2005, p. 478.

[10] RATZINGER, Joseph. A Caminho de Jesus Cristo. Coimbra: Tenacitas, 2006, p. 45.

Cada homem tem também uma vocação única

Pe. José Victorino de Andrade, EP

A vocação de cada homem pode ser entendida num sentido genérico, aplicando-se a todos os batizados, como o pode ser num sentido estrito. Cada homem tem uma vocação única. No Documento Final do Congresso sobre Vocações para o Sacerdócio e a Vida Consagrada na Europa (1998, p.22), da Pontifícia Obra para as Vocações Eclesiásticas decorrente de 5-10 maio 1997, nos é dada a definição de vocação entendida nos seus vários sentidos:

“Como a santidade é para todos os batizados em Cristo, assim existe uma vocação específica para cada vivente; e, como a primeira tem suas raízes no Batismo, assim a segunda se liga ao simples fato de existir. A vocação é o pensamento providente do Criador sobre cada criatura, é a sua idéia-projeto, como um sonho muito querido por Deus, porque a criatura é muito querida por Ele. Deus-Pai o quer diferente e específico para cada vivente”.

De fato, o ser humano “chamado” à vida encontra em si a imagem daquele que o chamou. Vocação é, portanto, a proposta divina de realizar-se segundo essa imagem, e é única, singular, irrepetível, justamente porque tal imagem é inexaurível. Cada criatura está chamada a exprimir um aspecto particular do pensamento de Deus. Ali encontra seu nome e sua identidade; afirma e coloca em segurança a sua liberdade e originalidade.

Portanto, se todo ser humano, desde o nascimento, tem a própria vocação, existem na Igreja e no mundo várias vocações que, enquanto num plano teológico exprimem a semelhança divina impressa no homem, em nível pastoral-eclesial respondem às várias exigências da nova evangelização, enriquecendo a dinâmica e a comunhão eclesial: A Igreja particular é como um jardim florido, com grande variedade de dons e carismas, movimentos e ministérios (cf. ibidem).

Via Pulchritudinis: caminho privilegiado

Diác. Felipe Ramos, EP

São Tomás não compôs nenhum tratado específico sobre a beleza, e tampouco a tratou de modo esquemático.

Por outro lado, o Aquinate interpreta o conceito de graduação para remeter a um máximo sempre no conceito dos transcendentais,[1] “facetas” do ser, por assim dizer. Os exemplos que ele nos oferece na quarta via são bonum, verum e nobile. Bonum e verum ele sempre enumerou entre os transcendentais,[2] mas e o nobile? Seria também um transcendental?

Não é possível dizer com absoluta certeza o que o Angélico quis dizer exatamente com nobile, pois há inclusive diversas interpretações. Uma delas é o conceito filosófico de valor que também pode ser interpretado como propriedade transcendental.[3]

Entretanto, podemos bem crer que ele quis se referir à beleza quando fala de nobreza na quarta via. Em outras obras relaciona a nobreza com a beleza: “Quia est nobilis, sive pulcher[4] ou “nobilitas enim seu pulchritudo[5] ou “nam ipse invenit res omnes secundum diversos gradus pulchritudinis et nobilitatis esse dispositas”.[6] Portanto, ele os toma nessas partes praticamente como sinônimos.

Independentemente do significado implícito da palavra nobile, podemos relacionar a beleza como uma das perfeições absolutas aplicáveis à quarta via. Mas faz-nos crer que de modo mais arquitetônico tratasse ele da beleza.

A apreensão do belo é mais misterioso e matizado do que parece. A beleza ― este “transcendental esquecido” segundo expressão de E. Gilson ― não é apenas uma qualidade sensorial (quae visa placent)[7], mas uma verdadeira “epifania do ser” em que Deus manifesta a Sua ação embelezadora[8] nas criaturas segundo um mais e um menos.

Quando entendemos o belo segundo os axiomas: “splendor veritatis”,[9] splendor bonitatis ou “splendor ordinis”,[10] contemplamos o esplendor da criação em seus diversos graus nos transcendentais.[11] Assim, o belo enquanto transcendental na linha do bonum,[12] possui propriedades fundamentais de integritas (perfeição), proportio (equilíbrio entre as partes) e claritas (clareza) do objeto conhecido. Desta forma, aquilo que é apetecível (bonum), inteligível (verum) e aprazível se torne como numa síntese, admirável.

Diante disso, a alma humana ao admirar o belo se eleva de tal maneira sobre si mesma que poderíamos glosar a São Paulo: não sou em quem vivo, mas é a própria Beleza que vive em mim. Tornamo-nos verdadeiramente reflexos d’Aquele que admiramos. Por isso, sob influxo de atração ao sublime, chegamos a ter um conhecimento de Deus superior ainda que as vias da verdade, a ponto que o conhecido esteja no conhecedor e o desejado esteja em quem o deseja[13]. Neste âmbito afirma o documento Via Pulchritudinis:

“Esse apelo aos filósofos pode surpreender, mas a Via Pulchritudinis não é, talvez, uma Via Veritatis na qual o homem se empenha por descobrir a bonitas do Deus de Amor, fonte de toda beleza, de toda verdade e de toda bondade? O belo, como também a verdade ou o bem, nos conduz a Deus, Verdade primeira, Bem supremo e Beleza. Mas o belo fala mais do que a verdade ou o bem. Dizer de um ser que é belo não significa apenas reconhecer nele uma inteligibilidade que o torna amável. E dizer, ao mesmo tempo, que especificando o nosso conhecimento ele nos atrai, também nos cativa através de um influxo capaz de despertar um maravilhar-se. Se ele expressa certo poder de atração, ainda mais, talvez, o belo expressa a própria realidade na perfeição de sua forma. Isso é a epifania. Ele a manifesta expressando sua íntima clareza. Se o bem expressa o desejável, o belo expressa ainda mais o esplendor e a luz de uma perfeição que se manifesta” (ASSEMBLEIA PLENÁRIA DOS BISPOS, 2007, p. 17).

Com muito propósito foi a Via Pulchritudinis qualificada como “caminho régio para conduzir a Deus” (Ass. Plen. dos BISPOS, 2007, p. 17). Quase que se poderia dizer que esta seria a única via para chegar a Deus pelo homem hodierno.

Ora, se utilizarmo-nos desta grande força de atração que é a beleza, ela poderá verdadeiramente salvar o mundo.[14] Caso contrário, esta terra só poderá tender a uma autêntica antinomia do desígnio divino nas criaturas.

In: Lumen Veritatis, n. 10.


[1] Ver o belo como transcendental: LOBATO, Abelardo apud PICKAVÉ, Martin, & AERTSEN Jan A.. Die Logik des Transzendentalen. Berlin: de Gruyter, 2003.

[2] No De Veritate I, 1 enumera ele seis: ens, res, unum, aliquid, verum, bonum. Já no I Sent., dist. 8, q. 1, a. 3. enumera apenas três: unum, verum, bonum.

[3] Ver MONDIN, Battista. Dizionario enciclopedico del pensiero di San Tommaso d’Aquino. Bologna: Ed. Studio Domenicano, 2000, p. 709-714.

[4] Super Epistolam B. Pauli ad Galatas lectura, cap. 2, lect. 2.

[5] Idem.

[6] In Symbolum Apostolorum, a. 1.

[7] S. Theol. Ia., q. 5 a. 4, ad 1.

[8] (Pulchrifica) Cf. In Div. Nom., IV, lect. 5, n. 340.

[9] Segundo Platão.

[10] Segundo Santo Agostinho.

[11] O belo é chamado por Maritain: «Splendeur de l’être et de tous les transcendantaux réunis». MARITAIN, Jacques ; MARITAIN, Raïssa. Oeuvres complètes 1, [1906 – 1920]. Fribourg, Suisse: Ed. Univ, 1986, p. 663.

[12] (Sola ratione differens). S. Theol. q. 27, a. 1, ad tertium.

[13] Cf. S. Theol. Ia., q. 8, a. 3, co.

[14] Cf. DOSTOIEVSKI, Fiodor Mikhailovitch, O idiota. (trad. José Geraldo Vieira) São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 422-423

A proposta de santidade impele à perfeição na caridade

Pe. José Victorino de Andrade, EP

“Sede perfeitos como vosso Pai do Céu é perfeito” (Mt 5, 48). Para São Tomás de Aquino, esta proposta que Nosso Senhor nos faz na sequência do Sermão das Bem-Aventuranças não pode ser inatingível pelo homem, pois neste caso jamais lhe poderia ser prescrito.[1] Portanto, tem de ser possível chegar à perfeição nesta vida, e esta consiste, de acordo com Santo Agostinho, na ausência dos desejos desordenados que se opõem à caridade. O Aquinense acrescenta a esta doutrina tudo quanto possa impedir que o afecto da mente se dirija totalmente a Deus, sem o que não poderá haver caridade, que é a perfeição da vida cristã.[2]

O Catecismo da Igreja Católica aclara esta questão:

O exercício de todas as virtudes é animado e inspirado pela caridade, que é o ‘vínculo da perfeição’ (Cl 3,14); é a forma das virtudes, articulando-as e ordenando-as entre si; é fonte e termo de sua prática cristã. A caridade assegura e purifica nossa capacidade humana de amar, elevando-a à perfeição sobrenatural do amor divino (n. 1827).

Embora alguns autores prefiram distinguir o convite à perfeição da vocação relativamente à santidade, os termos se interpenetram na medida em que a perfeição pode e deve ser um notável caminho para a santificação.[3] De acordo com São Paulo (Cl 1, 28), é a perfeição em Cristo que os homens devem almejar para se apresentar diante de Deus e dos demais. A Lumen Gentium recorda que “todos os fiéis, seja qual for o seu estado ou classe, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade” (n. 40), ou seja, à santidade.

Esta comum vocação de todos os homens à santidade, seja qual for o seu estado, é atestada pelo Catecismo da Igreja Católica[4] e por numerosos documentos do Concílio Vaticano II.[5] Conforme Bento XVI: “No contexto da vocação universal à santidade (I Ts 4, 3) encontra-se a vocação especial para a qual Deus exorta todos os indivíduos”.[6]

A Constituição Dogmática Lumen Gentium dedica-lhe um capítulo inteiro,[7] exortando o cristão a ser exemplo para todo o próximo na medida em que, praticando os conselhos evangélicos, edifica toda a sociedade:

A prática destes conselhos, abraçada sob a moção do Espírito Santo por muitos cristãos, quer privadamente quer nas condições ou estados aprovados pela Igreja, leva e deve levar ao mundo um admirável testemunho e exemplo desta santidade (n. 39).

E que maior caridade poderá haver do que aquela que se manifesta na santidade? Esta é a verdadeira caridade, que permanecerá sempre, conforme nos explica o Papa Bento XVI na sua encíclica, caridade na verdade. Por isso afirmava já São Tomás: “Quem vive na caridade, participa em todo o bem que se faz no mundo”,[8] e ainda: “O ato de um realiza-se mediante a caridade do outro, daquela caridade por meio da qual todos nós somos um só em Cristo”.[9]


[1] Cf. S. Th. II-II Q. 184, a. 2.

[2] Loc. Cit.

[3] Ver a este respeito NETTO DE OLIVEIRA, José. Perfeição ou Santidade e outros textos espirituais. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2002.

[4] Ver, por exemplo, n. 941, 1533, 2013.

[5] Entre outros: Lumen Gentium, n. 32; Gaudium et Spes, n. 34 ; Gravissimum Educationis, n. 2; Presbyterorum Ordinis, n. 2.

[6] Visita Ad Limina Apostolorum dos Bispos do Canadá – Atlântico. 20 mai. 2006. Disponível em : <www.vatican.va>.

[7] Capítulo V: A Vocação de todos à santidade na Igreja.

[8] Symb. Apost.

[9] IV Sent. d. 20, a. 2; q. 3 ad 1.

O hedonismo sofredor e a caridosa felicidade

Dom Miguel de Mañara fundador Santa Caridad Sevilla

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Sócrates falava da eudaimonia, referindo-se ao homem que procura a felicidade como um princípio de vida. Na verdade, estamos sempre à procura dela. É muito raro, ou praticamente inexistente, aquele que não deseja ser feliz, ou que não quer ver o salutar sentimento de alegria estampada no rosto daqueles que o rodeiam. Porém, ser verdadeiramente feliz, não significa a permanente ausência de dificuldades nesta vida, mas conviver com elas, superá-las, deixar-se purificar e vencer pelo constante apelo à conversão.

Imagine qual destas duas personagens poderiam ser objeto de maior admiração: Um marinheiro que passou por tempestades e tormentas, com o rosto marcado pela aventura e pelas dificuldades que enfrentou… ou um barqueiro de água doce que rema em águas mansas e adormece embalado… A vida passa pelas dificuldades do nosso marinheiro, e há que remar contra a maré, contra o vento e as tempestades, que são os sofrimentos da vida. Entretanto, a mentalidade hedonista do homem contemporâneo, tende mais a identificar-se com o segundo elemento, o barqueiro… cuja vida mansa não quer ser interrompida por nada que quebre as delícias e os prazeres, em que até mesmo remar um pouco, custa muito.

Mas, a fuga ao infortúnio provoca geralmente um fenômeno adverso e incontornável. Pergunte-se, a quem tem mais experiência na vida, se nunca passou por uma doença, infelicidade, problemas… Entretanto, raramente procurados. Uma vez que o homem se depara diante deles, não se tornam vãos, e têm a capacidade de tornar as pessoas mais maduras, e por vezes até mesmo mais felizes. A patente alegria quando uma dor passou, é maior do que quando permanecemos sem o quadro doloroso; uma enfermidade debelada, acarreta uma satisfação acrescida. O desafio ultrapassado, maior júbilo. O que significa que a dificuldade passageira poderá ser uma ponte para um estado de felicidade maior do que a estabilidade permitiria.

Afinal, a dor e o sofrimento também parecem ser necessários a fim de que se manifestem alguns dos sentimentos mais elevados do ser humano, tais como o amor e a alteridade. Por exemplo, a atenção que é devotada a alguém quando está doente ou sofrendo. Fisicamente, a pessoa pode não estar bem, mas é sensível ao fato de que o carinho e a atenção a ela aumentaram. Por outro lado, o nosso amor pelos outros também dilata, quando vemos que estão necessitados ou com sofrimentos. E a solidariedade torna-se realidade, ou melhor, caridade, diante da perspectiva de todos aqueles pequeninos, aos quais Jesus devota o seu pedido de atenção (Mt 25, 40), fazendo-se além de servo, sofredor com eles (cf. Isaías 53).

Não escolhemos viver, porque haveremos de escolher morrer?

Fe Notre Dame ParisPe. José Victorino de Andrade, EP

A opção fundamental de um católico deve tender sempre a adoptar uma cultura de vida, uma vez que em Deus está a vida em abundância (Jo 10, 10), Jesus morreu para nos libertar do pecado e da morte (Rm 8, 2) e o próprio Jesus identificou-se como “Caminho, Verdade e Vida” (Jo 14, 6). Entretanto, não são apenas motivações de carácter bíblico ou teológico que levam a Igreja a ser a favor da vida. A Fé caminha juntamente com a razão, à semelhança de um pássaro que voa com as duas asas. Por isso, a Filosofia ajuda a tornar a Fé algo bem maior e mais nobre do que a falsa fé, mero sentimento ou obséquio irracional.

Nesta perspectiva, a fuga ao sofrimento, seja no suicídio ou na eutanásia, para um estado no qual se deixa de sofrer, pois se deixa de existir, pode ser analisada sobre duas dinâmicas ou prismas: individual e coletivo. Não é apenas do ponto de vista da sociedade que o homem deve conservar a vida, pois ainda que alguém fosse acidentalmente parar num local desértico, teria obrigações relativamente à sua própria pessoa, de procurar alimento, hidratação, descanso, cultivar o intelecto e a memória, pensar em modos de alerta e resgate, ainda que as possibilidades de salvamento fossem remotas. E não são tão raros os históricos casos de resgatados em semelhantes condições.

Por isso, o suicídio:

— Do ponto de vista individual:

1. Atenta contra os direitos humanos – decálogo da razão humana e fruto do amadurecimento das raízes cristãs Ocidentais –, em que o respeito pela vida, deve também englobar a própria vida;

2. Vai contra os instintos do homem. Enquanto participação da própria natureza animal, ele procura em todas as circunstâncias preservar a vida, sendo capaz até de feitos extraordinários para conservá-la. Ou seja, faz parte do nosso ser, conservar o ser. E isso pode encontrar-se em qualquer animal: torna-se agressivo, defende-se, esconde-se, etc. para não morrer às mãos do caçador ou do predador;

3. A opção pela morte é uma recusa a aceitar que a vida é feita de dificuldades, e sofrimentos, alguns deles até grandes, mas que não se resolvem ou justificam com a aniquilação do próprio ser;

4. É também o abandono a algo que é fundamental na vida de todos: a esperança, e já diz o velho adágio, essa deve ser sempre “a última a morrer”;

5. Devemos estimar-nos e amarmos a nós mesmos, e o suicídio ou a eutanásia é um abandono da justa auto-estima que devemos devotar à nossa pessoa;

6. Em último lugar, poder-se-ia colocar a derrota, ou mesmo a deserção, no momento em que simplesmente se abandona a grande batalha da vida, preferindo a morte, trocando-se o positivo pelo negativo, a coragem pela covardia. Este exemplo já era dado por Platão, na sua Apologia de Sócrates.

*

— Do ponto de vista coletivo, uma vez que vivemos em sociedade:

1. O mau exemplo perante os demais membros da sociedade, de alguém que desistiu de viver;

2. Causa um sofrimento enorme nos outros, sobretudo amigos e familiares. É um egoísmo pensar apenas em si e não no sofrimento causado, quando alguém põe termo à sua existência, abruptamente;

3. Abandona-se a sociedade e a participação nela, seja como membros de uma família, trabalhadores, colaboradores, a amizade, as ideias, a original personalidade estética e intelectual, quantas coisas vão antecipadamente para “debaixo da terra”.

4. Causa prejuízos aos que permanecem, a todos os níveis, não só financeiros, o que seria secundário, mas também morais, pessoais, entre muitos outros.

5. Acarreta consigo aquela peculiar sensação de culpa, o peso de consciência, seja daqueles que não lograram evitar o trágico desfecho, mas sobretudo os cúmplices, que com a morte precoce colaboraram formal ou materialmente.

É semelhante ao corredor que evitou os obstáculos, saindo da pista, pois acharia que seria mais fácil chegar à meta… Enquanto isso, outros permanecem na corrida, pulando os obstáculos, por vezes caindo e voltando a levantar-se, mas a caminho da meta. Que impressão ficará nos espectadores que estão na bancada. Com quem ficarão edificados, com os que saíram da pista, ou com aqueles que, mesmo caindo, se voltam a levantar, e não desistem… Quem receberá a medalha? São Paulo (Fl 3, 14) usa uma metáfora semelhante, para justificar o prêmio, daqueles que se esforçaram por alcançar a meta. Ele mesmo considerou ter chegado ao fim da corrida (2 Tm 4, 7), merecendo a coroa de glória (2 Tm 4, 8).

A vida é um dom gratuito. Quem escolheu existir? Ninguém. É algo que foi dado (por Deus), transmitido (pelos pais). Se recebemos esse bem, sem pedir, porque haveremos de desfazer-nos dele? Não será uma revolta contra aqueles que deram a vida? Não escolhemos viver, porque haveremos de escolher morrer? A vida parece ser um grande dom para nós tomarmos conta, tratarmos bem, com todo o cuidado. Imagine que alguém recebesse uma empresa para gerir. Ele tem de prestar contas ao patrão. Não lhe compete destruir a empresa… pois não foi ele que a criou. Foi-lhe dada. Poderá incendiá-la, arrasá-la, destruí-la… mas não é dele. Quando estiver diante daquele a quem compete de fato, daquele que lhe deu, do senhor a quem pertence… receberá então “o justo salário”.

Uma palavra mais concreta quanto à eutanásia, e um facto. Este último, como dizem os italianos, “si non  è vero, è bene trovato”:

Os médicos fazem o juramento de hipócrates, no início da carreira, o que significa que faz parte da vocação deles promover a vida, e não a morte. A medicina chegou a tais avanços, que, hoje, é possível manter com dignidade o paciente até à morte natural, inclusive com ausência parcial ou total de dor. Ao autor da vida cabe, também ser o autor da morte. Não se aplica aos agentes de saúde abreviar a vida e conceder a morte, pois o trabalho deles é simplesmente diferente do carrasco. E uma vez que já superamos a pena de morte em grande número de nações, por quê darmos um fim aos doentes que, e ainda bem, já não damos nem sequer aos piores entre os criminosos? Não parece nem justo, nem mesmo racional.

Existe um especialista mundial em Ética, cujo nome é preferível omitir, por variadas razões, autor de numerosos e populares livros traduzidos em várias línguas do mundo, muito afamado na internet, que defende a eutanásia, com toda a logorreia. Certo dia, a mãe dele ficou muito doente, acamada e debilitada. Perguntaram-lhe porque ele não a encomendava a uma instituição que pudesse exercer a eutanásia, e abreviar-lhe a vida. Mas isso era para os outros. Ele amava a sua mãe, e a solução drástica ele só dava para quem não fosse mais útil na sociedade. A mãe dele ainda era objecto de algo, talvez o principal: o amor, capaz de vencer o utilitarismo…

A educação católica, educação de valores

105-0594_IMGPe. Ricardo Basso, EP

A educação, desde os filósofos gregos até o século XVIII, visava a formação do homem como um todo, procurando desenvolver suas habilidades e capacidades, explorando suas apetências, seguindo um currículo muito flexível, quase que adaptado a cada aluno. As aulas das universidades ocorriam com frequência em espaços públicos, com acesso a qualquer um. A respeito dessa informalidade, conta-se, até, na vida de São Clemente Maria Hofbauer um fato significativo. Na sua juventude, sendo aprendiz de padeiro, sentou-se na praça em Viena, Áustria, para assistir a uma aula de famoso teólogo. Em determinado momento ele interrompeu a exposição observando: “Mestre, não sei explicar por quê, mas o que o Sr. acaba de falar está errado!” Indignado, o professor expulsa o jovem da aula. Anos depois, encontrando-se com São Clemente, agora sacerdote, o mestre lhe agradece aquela intervenção, explicando que fora tirar a limpo e, realmente, estava ensinando algo equivocado. Era o senso católico prevalecendo sobre a mera erudição.

Competia nessa época ao mestre ou preceptor atender às legítimas curiosidades e pontos vivos de interesse do discípulo, pois se compreendia que cada indivíduo é único e tem uma visão do universo personalíssima, originalíssima e riquíssima. E São Tomás de Aquino (século XIII) “introduz um princípio pedagógico moderno e revolucionário para seu tempo: o de que o conhecimento é construído pelo estudante e não simplesmente transmitido pelo professor” (Revista Nova Escola, julho de 2008, p. 22, sem autor). Vê-se por aí que Piaget e o construtivismo não representaram nenhuma novidade pedagógica na História, como tantas vezes são apresentados. Hoje fala-se de inter e transdisciplinaridade. Até a Revolução Francesa se ensinava assim… O conhecimento era uno, coeso, formava um todo coerente, harmônico entre as partes, baseado na mesma concepção religiosa do universo. Todos os conhecimentos se relacionavam entre si. Hoje fala-se que a criança deve aprender brincando ou que o aprendizado deve ser prazeroso. Na pesquisa bibliográfica, pudemos constatar que São Tomás de Aquino já ensinava isso na Suma Teológica (II-II, q. 168, art. 2, 3 e 4), no século XIII, tendo inclusive escrito um Tratado sobre o brincar. E São João Bosco (século XIX) tinha como pedra fundamental de seu sistema preventivo na educação a “amorevolezza”: a benquerença; a criança deveria ser benquista e sentir-se benquista pelo professor que, assim, conquistava a confiança do discípulo. Nos recreios salesianos havia uma só regra: é proibido estar triste. Hoje dá-se muita importância aos laboratórios, às experiências (John Dewey, 1978); os antigos da Escola peripatética, de Aristóteles, a qual possuía uma orientação empírica, já procediam assim pelo ano 320 a.C. …

Ou seja, as melhores tendências da pedagogia atual vão no sentido de restaurar o que a educação cristã vem fazendo há séculos. A chamada pedagogia “tradicional” – distinta da católica de que tratamos acima – é da idade moderna, fruto da Revolução Francesa. Um dos filósofos dessa escola foi Johann Friedrich Herbart (1776-1841), considerado o organizador da Pedagogia como ciência. O conhecimento humano ficou compartimentado, fragmentado com o iluminismo e o racionalismo, gerando as incontáveis especializações estanques modernas.

Por se basear no princípio de que a mente humana apenas apreende novos conhecimentos e só participa do aprendizado passivamente, o herbartianismo resultou num ensino que hoje qualificamos de tradicional. “[…] um ensino totalmente receptivo, sem diálogo entre professor e aluno e com aulas que obedeciam a esquemas rígidos e preestabelecidos” (Revista Nova Escola, dezembro de 2004, p. 24, sem autor).

O sistema de ensino prevalente nas universidades medievais era baseado na intensa participação dos alunos através da “disputatio”, o debate, que se seguia à apresentação de um tema, a “lectio”, no qual cada um defendia sua opinião. Nem o mais ousado sistema educacional hodierno chega a ser tão participativo como o medieval.

A pedagógica beleza da solene celebração eucarística

Pe. José Victorino de Andrade, EPbento-xvi-_-celebr

A missa celebrada com decoro, compenetração e beleza, poderá proporcionar ao fiel um manancial de graças e levá-lo a uma fidelidade ao sacramento que se traduza numa vida íntegra. E para este efeito, o decoro do rito assume uma importância incontornável, conforme nos explica o Papa Bento XVI na sua Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis: “A relação entre mistério acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no valor teológico e litúrgico da beleza. De fato, a Liturgia, como, aliás, a Revelação cristã, tem uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade”; e apoiado neste fato, reafirma a necessidade do celebrante colocar uma especial atenção e empenho na “ação litúrgica para que brilhe segundo a sua própria natureza” (n. 35).

Para o Sumo Pontífice, a beleza do rito deve ser um reflexo da Beleza infinita, da qual as celebrações serão sempre uma pálida imagem, conforme ressaltou Bento XVI, nas Vésperas celebradas na Catedral de Notre Dame, por ocasião de sua visita à França, em 2008:

“A beleza dos ritos nunca será, certamente, suficientemente procurada, nem  cuidada nem elaborada, porque nada é demasiado belo para Deus, que é a Beleza infinita. Nossas liturgias na terra não poderão ser senão um pálido reflexo da liturgia celeste, que se celebra na Jerusalém do alto, ponto de chegada de nossa peregrinação sobre a terra. Possam, portanto, nossas celebrações, aproximar-se o mais possível dela, e fazer com que a antegozemos!” 1

Mons. João Scognamiglio Clá Dias reconhece, a partir desta insistência do Santo Padre, uma especial necessidade do pulchrum na liturgia, não como um elemento secundário, variando segundo as circunstâncias e as conveniências, mas que deve fazer-se presente por seu papel essencial, pois o sacerdote, praticando a ars celebrandi com perfeição, com mais facilidade eleva a assembléia à contemplação de Deus.2 Verifica-se assim, para o Pe. Matias Augé, C.M.F., a necessidade de cultivar uma peculiar espiritualidade mistagógica própria à celebração eucarística, que faça o crente transpor na sua vida aquilo que recebe e aprende com o ritual eucarístico, sobretudo, pelo “exemplo moralizador” de seu encontro com Cristo na celebração.3

Além de existir uma beleza intrínseca e peculiar relativamente à celebração litúrgica, esta vai mais além, reflete-se de modo extrínseco por sua essência e força simbólica, capaz de uma divina pedagogia, que tem seus desdobramentos na própria sociedade, conforme explica Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP:

“Além da beleza que lhe é própria, a liturgia realiza por seu simbolismo e essência, e do modo mais esplendoroso possível, essa sacralização das realidades temporais, em que se devem empenhar todos os fiéis. Na Celebração Eucarística, é o Céu que se liga à Terra, o espiritual ao temporal. É Cristo, ao mesmo tempo o arquétipo do gênero humano e o Filho de Deus, que se oferece ao Pai, para interceder por seus irmãos”.4

Esta sacralização das realidades temporais, ou seja, influência e transbordo das graças recebidas pela celebração eucarística – sobretudo no contexto de uma liturgia celebrada de modo digno e solene, com a compenetração de que desta forma se perpetua Cristo Sacerdote na terra –, é passível de trazer para a própria sociedade uma profunda e radical mudança. Ou seja, não é apenas no âmbito da comunidade dos crentes que a metanóia poderá ter lugar, mas também em torno dos que vivem com autenticidade e verossimilhança o sacramento recebido. Deste modo, o apelo a um sentido mais alto da nossa existência torna-se latente, e a história não é alheia a este fenômeno, conforme nos explica o Santo Padre na Sacramentum Caritatis:

“Enfim, para desenvolver uma espiritualidade eucarística profunda, capaz de incidir significativamente também no tecido social, é necessário que o povo cristão, ao dar graças por meio da Eucaristia, tenha consciência de o fazer em nome da criação inteira, aspirando assim à santificação do mundo e trabalhando intensamente para tal fim. A própria Eucaristia projeta uma luz intensa sobre a história humana e todo o universo. Nesta perspectiva sacramental, aprendemos dia após dia que cada acontecimento eclesial possui o caráter de sinal, pelo qual Deus Se comunica a Si mesmo e nos interpela” (n. 92. Grifo nosso).

Uma vez criada esta espiritualidade eucarística de que nos fala o Santo Padre, a liturgia eucarística passa a desempenhar um papel de grande importância no mundo de hoje, transmitindo as verdades da fé de modo mistagógico, simples e atraente, à semelhança de uma substanciosa catequese, e levando o homem a imitar aquilo que contemplou, guardou em seu coração e, portanto, amou. E o homem é tendente a reproduzir aquilo que admira, conforme explica Mons. João Clá Dias: “uma liturgia celebrada com a devida compenetração e manifestando toda a beleza que lhe é inerente há de ter uma ação benéfica sobre os fiéis, moldando a fundo sua mentalidade e levando-os a imitarem em alguma medida o ritual presenciado”.5

Esta rememoração poderá verificar-se, por exemplo, no seio de uma família, que vive diariamente uma espiritualidade que se nutriu com o pão da palavra e da eucaristia, transpondo-a e traduzindo-a em atos concretos, em relacionamento humano, e em laços de solidariedade, antes de mais com aqueles que lhes são mais próximos, começando na intimidade do lar:

“O pai ou a mãe que assiste a uma celebração esplendorosa, desdobrará instintivamente no dia-a-dia, no “ritual” da igreja doméstica, o cerimonial presenciado na Igreja. Dar a bênção aos filhos, ou rezar antes das refeições, por exemplo, são maneiras de praticar o espírito católico na vida da família”.6

___________

1 “La beauté des rites ne sera, certes, jamais assez recherchée, assez soignée, assez travaillée, puisque rien n’est trop beau pour Dieu, qui est la Beauté infinie. Nos liturgies de la terre ne pourront jamais être qu’un pâle reflet de la liturgie céleste, qui se célèbre dans la Jérusalem d’en haut, objet du terme de notre pèlerinage sur la terre. Puissent, pourtant, nos célébrations s’en approcher le plus possible et la faire pressentir!” (BENEDETTO XVI. Celebrazione dei vespri nella cattedrale di Notre-Dame Paris, 12 set. 2008. In: Insegnamenti IV, 2 (2008). p. 284. Tradução nossa).

2 Cf. CLÁ DIAS, João S. Beleza e Sublimidade: Clave teológica da Nova Evangelização. In: Lumen Veritatis. São Paulo: ACAE, n. 10, jan./mar. 2010. p. 28.

3 Cf. AUGÉ, Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 2005. p. 312-313.

4 CLÁ DIAS, João S. A gênese e o desenvolvimento do movimento dos Arautos do Evangelho e seu reconhecimento canônico. Tese de doutoramento em Direito Canônico – Angelicum. Roma, 2009. p. 274-275.

5 Ib. p. 278.

6 Loc. cit.