A pedagógica beleza da solene celebração eucarística

Pe. José Victorino de Andrade, EPbento-xvi-_-celebr

A missa celebrada com decoro, compenetração e beleza, poderá proporcionar ao fiel um manancial de graças e levá-lo a uma fidelidade ao sacramento que se traduza numa vida íntegra. E para este efeito, o decoro do rito assume uma importância incontornável, conforme nos explica o Papa Bento XVI na sua Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis: “A relação entre mistério acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no valor teológico e litúrgico da beleza. De fato, a Liturgia, como, aliás, a Revelação cristã, tem uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade”; e apoiado neste fato, reafirma a necessidade do celebrante colocar uma especial atenção e empenho na “ação litúrgica para que brilhe segundo a sua própria natureza” (n. 35).

Para o Sumo Pontífice, a beleza do rito deve ser um reflexo da Beleza infinita, da qual as celebrações serão sempre uma pálida imagem, conforme ressaltou Bento XVI, nas Vésperas celebradas na Catedral de Notre Dame, por ocasião de sua visita à França, em 2008:

“A beleza dos ritos nunca será, certamente, suficientemente procurada, nem  cuidada nem elaborada, porque nada é demasiado belo para Deus, que é a Beleza infinita. Nossas liturgias na terra não poderão ser senão um pálido reflexo da liturgia celeste, que se celebra na Jerusalém do alto, ponto de chegada de nossa peregrinação sobre a terra. Possam, portanto, nossas celebrações, aproximar-se o mais possível dela, e fazer com que a antegozemos!” 1

Mons. João Scognamiglio Clá Dias reconhece, a partir desta insistência do Santo Padre, uma especial necessidade do pulchrum na liturgia, não como um elemento secundário, variando segundo as circunstâncias e as conveniências, mas que deve fazer-se presente por seu papel essencial, pois o sacerdote, praticando a ars celebrandi com perfeição, com mais facilidade eleva a assembléia à contemplação de Deus.2 Verifica-se assim, para o Pe. Matias Augé, C.M.F., a necessidade de cultivar uma peculiar espiritualidade mistagógica própria à celebração eucarística, que faça o crente transpor na sua vida aquilo que recebe e aprende com o ritual eucarístico, sobretudo, pelo “exemplo moralizador” de seu encontro com Cristo na celebração.3

Além de existir uma beleza intrínseca e peculiar relativamente à celebração litúrgica, esta vai mais além, reflete-se de modo extrínseco por sua essência e força simbólica, capaz de uma divina pedagogia, que tem seus desdobramentos na própria sociedade, conforme explica Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP:

“Além da beleza que lhe é própria, a liturgia realiza por seu simbolismo e essência, e do modo mais esplendoroso possível, essa sacralização das realidades temporais, em que se devem empenhar todos os fiéis. Na Celebração Eucarística, é o Céu que se liga à Terra, o espiritual ao temporal. É Cristo, ao mesmo tempo o arquétipo do gênero humano e o Filho de Deus, que se oferece ao Pai, para interceder por seus irmãos”.4

Esta sacralização das realidades temporais, ou seja, influência e transbordo das graças recebidas pela celebração eucarística – sobretudo no contexto de uma liturgia celebrada de modo digno e solene, com a compenetração de que desta forma se perpetua Cristo Sacerdote na terra –, é passível de trazer para a própria sociedade uma profunda e radical mudança. Ou seja, não é apenas no âmbito da comunidade dos crentes que a metanóia poderá ter lugar, mas também em torno dos que vivem com autenticidade e verossimilhança o sacramento recebido. Deste modo, o apelo a um sentido mais alto da nossa existência torna-se latente, e a história não é alheia a este fenômeno, conforme nos explica o Santo Padre na Sacramentum Caritatis:

“Enfim, para desenvolver uma espiritualidade eucarística profunda, capaz de incidir significativamente também no tecido social, é necessário que o povo cristão, ao dar graças por meio da Eucaristia, tenha consciência de o fazer em nome da criação inteira, aspirando assim à santificação do mundo e trabalhando intensamente para tal fim. A própria Eucaristia projeta uma luz intensa sobre a história humana e todo o universo. Nesta perspectiva sacramental, aprendemos dia após dia que cada acontecimento eclesial possui o caráter de sinal, pelo qual Deus Se comunica a Si mesmo e nos interpela” (n. 92. Grifo nosso).

Uma vez criada esta espiritualidade eucarística de que nos fala o Santo Padre, a liturgia eucarística passa a desempenhar um papel de grande importância no mundo de hoje, transmitindo as verdades da fé de modo mistagógico, simples e atraente, à semelhança de uma substanciosa catequese, e levando o homem a imitar aquilo que contemplou, guardou em seu coração e, portanto, amou. E o homem é tendente a reproduzir aquilo que admira, conforme explica Mons. João Clá Dias: “uma liturgia celebrada com a devida compenetração e manifestando toda a beleza que lhe é inerente há de ter uma ação benéfica sobre os fiéis, moldando a fundo sua mentalidade e levando-os a imitarem em alguma medida o ritual presenciado”.5

Esta rememoração poderá verificar-se, por exemplo, no seio de uma família, que vive diariamente uma espiritualidade que se nutriu com o pão da palavra e da eucaristia, transpondo-a e traduzindo-a em atos concretos, em relacionamento humano, e em laços de solidariedade, antes de mais com aqueles que lhes são mais próximos, começando na intimidade do lar:

“O pai ou a mãe que assiste a uma celebração esplendorosa, desdobrará instintivamente no dia-a-dia, no “ritual” da igreja doméstica, o cerimonial presenciado na Igreja. Dar a bênção aos filhos, ou rezar antes das refeições, por exemplo, são maneiras de praticar o espírito católico na vida da família”.6

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1 “La beauté des rites ne sera, certes, jamais assez recherchée, assez soignée, assez travaillée, puisque rien n’est trop beau pour Dieu, qui est la Beauté infinie. Nos liturgies de la terre ne pourront jamais être qu’un pâle reflet de la liturgie céleste, qui se célèbre dans la Jérusalem d’en haut, objet du terme de notre pèlerinage sur la terre. Puissent, pourtant, nos célébrations s’en approcher le plus possible et la faire pressentir!” (BENEDETTO XVI. Celebrazione dei vespri nella cattedrale di Notre-Dame Paris, 12 set. 2008. In: Insegnamenti IV, 2 (2008). p. 284. Tradução nossa).

2 Cf. CLÁ DIAS, João S. Beleza e Sublimidade: Clave teológica da Nova Evangelização. In: Lumen Veritatis. São Paulo: ACAE, n. 10, jan./mar. 2010. p. 28.

3 Cf. AUGÉ, Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 2005. p. 312-313.

4 CLÁ DIAS, João S. A gênese e o desenvolvimento do movimento dos Arautos do Evangelho e seu reconhecimento canônico. Tese de doutoramento em Direito Canônico – Angelicum. Roma, 2009. p. 274-275.

5 Ib. p. 278.

6 Loc. cit.

Desafios da Igreja no terceiro milênio da Era Cristã

bentoMons. João Clá Dias, EP

Um dos grandes desafios da Igreja no início deste terceiro milênio da Era Cristã é a recondução daqueles de seus filhos que deixaram de praticar os deveres religiosos e se desligaram da plena comunhão eclesial. É o que em linguagem corrente se denomina de “católicos à sua maneira”. No entanto, convém ressaltar que para atrair esse tipo de católicos seria mais eficaz apresentar a religião sob uma perspectiva inovadora, uma vez que os métodos e práticas convencionais, para eles, de certa forma se desgastaram, deixando de ter significado. O Pontifício Conselho para a Cultura, no já mencionado Documento Final (2006), oferece uma proposta para atrair os descrentes e os indiferentes, que podemos também aplicar frutuosamente aos católicos não praticantes: 

Devant les défis historiques, sociaux, culturels et religieux relevés dans les deux précédentes Assemblées plénières, quels aspects de la pastorale l’Église est-elle appelée à privilégier dans son dialogue apostolique avec les hommes et les femmes de notre temps, notamment les non-croyants et les indifférents? (…)Dans cette perspective, la Via pulchritudinis se présente comme un itinéraire privilégié pour rejoindre beaucoup de celles et ceux qui éprouvent de grandes difficultés à recevoir l’enseignement, en particulier moral, de l’Église.

Essa impostação de alma — de amor aos aspectos mais sublimes da ordem do Universo —, não se trata tão só de uma operação da razão natural, pela qual se busca entender o simbolismo das criaturas e discernir nelas um espelho das qualidades de Deus.

Com efeito, para adquirir uma penetrante e vasta visão da beleza do criado e sua relação com o Criador, não se pode deixar de considerar a ação do Espírito Santo nas almas, conduzindo-as pelas mais diversas vias. O exemplo da conversão do conhecido escritor francês Paul Claudel (1878-1955) ilustra bem o que se pretende afirmar. Foi durante o canto do Magnificat, na celebração de Vésperas na Catedral de Notre-Dame de Paris, que ele se converteu, deslumbrado com o esplendor e a beleza da liturgia.

A descrição desse momento, por suas próprias palavras, é mais eloqüente que qualquer explicação teórica:

C’est alors que se produisit l’événement qui domine toute ma vie. En un instant, mon cœur fut touché et je crus. Je crus, d’une telle force d’adhésion, d’un tel soulèvement de tout mon être, d’une conviction si puissante, d’une telle certitude ne laissant place à aucune espèce de doute que, depuis, tous les livres, tous les raisonnements, tous les hasards d’une vie agitée, n’ont pu ébranler ma foi, ni, à vrai dire, la toucher.[1]

Essa iluminação súbita do entendimento e afervoramento do coração, tal como se um “flash” se acendesse na alma, é uma das formas características de atuação do Espírito Santo. Trata-se de uma experiência de Deus, sem que Ele se faça perceptível aos sentidos externos, como explica Tanquerey, “S. Bernard l’appelle la connaissance savoureuse des choses divines[2]

DIAS, João Scognamiglio Clá. Considerações sobre a gênese e o desenvolvimento do movimento dos Arautos do Evangelho e seu enquadramento jurídico, 2008. Tese de Mestrado em Direito Canônico — Pontifício Instituto de Direito Canônico do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. p. 93-94.


[1][1] Cf. P. Claudel, Ma conversion, dans Contacts et circonstances, Gallimard, 1940, p. 11 sq ; repris dans Ecclesia, Lectures chrétiennes, Paris, No 1, avril 1949, p. 98-100.

[2][2] Cfr. TANQUEREY, A. Précis de Théologie Ascétique et Mystique, n.1348.