As fontes que saciam a sede de sublimidade

aliancaDiác. José Victorino de Andrade, EP

O homem foi criado com uma alta finalidade, a bem-aventurança — contemplação direta de Deus —, e “para antecipar em alguma medida este objetivo já nesta vida, ele deve progredir incessantemente para uma vida espiritual, uma vida em diálogo com Deus”,1 procurando a perfeição a que o Senhor chama (cf. Mt 5, 48), e assemelhando-se cada vez mais ao Modelo Divino.

Entretanto, coube também aos homens cooperar com o Criador no aperfeiçoamento da criação e imprimir nos elementos desta terra, o cunho espiritual que eles próprios receberam. Ao longo dos tempos fizeram maravilhas. Saíram das suas mãos obras de arte esplendorosas: pinturas, esculturas, catedrais, jardins… Encontram-se um pouco por todo o mundo obras de grande valor histórico, cultural e artístico inspiradas em valores metafísicos que continuam deslumbrando repetidas gerações.

Assim sendo, de acordo com Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, o homem tem necessidade de fixar a atenção sobre determinadas cenas do cotidiano, sejam elas uma paisagem, um monumento ou um evento social, entre muitas outras, extraindo as suas próprias conclusões, tirando da observação ou daquilo que os sentidos lhe indicam, elações que poderão passar pela impressão que tenha de algo ser verdadeiro ou falso, bom ou mau, e diante disto, tirar uma série de princípios. Sendo profundamente comunicativo, o homem transmitirá de alguma forma as impressões que as coisas lhe causam, isto é, comunica o que lhe vai na alma, fala da abundância do coração, e isto conduz também ao serviço, pois, o homem, pela sua própria natureza, serve aquilo que ama.2

É patente a necessidade da alma humana entrar em contato com múltiplos objetos externos, sem descurar aspectos como a beleza, a sublimidade e o sagrado. Porém, o homem poderá elevar-se a um ato de louvor através da contemplação ou rejeitar esta elevação de alma e se deter na fruição egoística e circunscrita do ser que tem diante de si. Isto traz como consequência o realce da matéria e a negação das relações daquilo com o Ser absoluto.3 A sua hipotética carência levaria a alma a um operar tão defeituoso e resultaria num tal desequilíbrio que o homem correria o risco de atrofiar suas potências.4

Sentindo a necessidade de sair da rotina e da monotonia de sensações que lhe possam ser causadas, inclusive, por um trabalho cotidiano e repetitivo, compreendem-se múltiplas formas lícitas de lazer e entretenimento que lhe possam ser oferecidas. Aqui entra o importante papel do Estado no oferecimento de alternativas formativas que permitam ao homem desfrutar de lícitos prazeres e atrações. Embora estes jamais possam suprir a necessidade espiritual, inerente ao homem por força da atração exercida por Deus e nunca substituída por qualquer outra atividade que não compreenda este aspecto, como a participação na eucaristia dominical. É em Cristo, fonte de água viva, que o homem sacia a sua sede, enquanto as outras apenas temporariamente satisfazem e não conduzem à vida eterna (cf. Jo 4, 10-15).

Neste sentido, a ordem espiritual pode ser uma poderosa aliada da temporal, quando se trata de imprimir aos objetos saídos de suas mãos um caráter de verdadeiro, bom e belo. Uma sociedade edificada sobre tais alicerces, que favoreça este desabrochar metafísico no homem, seria fruto de uma harmonia e concórdia entre a esfera civil e religiosa, uma vez que a Igreja não retira à sociedade temporal nada do que lhe é próprio; pelo contrário, sublima, conforme atesta a Lumen Gentium: “[A Igreja] não subtrai coisa alguma ao bem temporal de nenhum povo, mas, pelo contrário, fomenta e assume as qualidades, as riquezas, os costumes e o modo de ser dos povos, na medida em que são bons; e assumindo-os, purifica-os, fortalece-os e eleva-os” (n. 13).

Vemos assim que a Igreja tem algo a dizer a esta sociedade, que a religião abre novas fronteiras e visualizações, sobretudo quando os homens decidem cooperar com a voz da Graça. Compreende-se assim o conselho dado por João Paulo II: “Vós, sobretudo, homens e mulheres da cultura, da arte e da política, deveis sentir a religião como a vossa aliada. Ela encontra-se ao vosso lado para oferecer aos jovens sérios motivos de compromisso. De fato, que ideal é capaz de mobilizar para a procura da verdade, da beleza e do bem do credo em Deus, que abre a mente, de par em par, aos horizontes incomensuráveis da Sua suma perfeição?”.5

Desta forma, o Evangelho e a tradição cristã podem e devem oferecer aos homens de hoje um enriquecimento ímpar, que marque não só o campo da cultura, do ensino e das artes, como impregnar todos os outros aspectos, de tal forma que represente um testemunho d’Aquele que é a Bondade, a Verdade, e a Beleza. E neste contributo, conforme a exortação Christifidelis Laici, todo o cristão deve empenhar-se, transmitindo e sendo testemunha das “originais riquezas do Evangelho” (n. 44).

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1 BENEDETTO XVI. Udienza Generale: Mercoledì, 29 ago. 2007. In: Insegnamenti, III, 2 (2007). p. 174. (Tradução nossa).

2 Cf. CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Notas para a Conceituação da Cristandade. Década de 50. p . 7.

3 Loc. cit.

4 Cf. Ibid. p. 8.

5 JOÃO PAULO II. Viagem Apostólica ao Azerbaijão e à Bulgária. Baku, 22 de Maio de 2002. 22/05/2002. In: Insegnamenti. Vaticano: Editrice Vaticana, 2004. Vol. XXV, 1. p. 847. Tradução nossa).

A medida de toda a verdade

Mons. João Clá Diastrindade2

O Criador de todas as coisas é como um artista que estabelece a verdade de sua obra. Ao criar, ele determinou também o modo de existência de cada coisa. Assim, a verdade que criatura realiza em si expressa uma idéia do divino Artista. Por isso, diz São Tomás que cada ser está posto entre dois intelectos: o do Criador e o do homem.[1] O primeiro é o “medidor” (mensurans) de cada coisa. Por sua vez, as coisas são “medidas e medidoras“, ou seja, elas são definidas segundo a verdade e, de seu turno, definem a verdade. Já o intelecto humano é tão-só “medido” pelas coisas.[2]

Cada ser individual,  por menor que seja — mesmo os irracionais, que recebam sua forma pela ação da natureza —, foi pensado por Deus. Uma formiguinha que vemos carregar laboriosamente uma folha muito maior e mais pesada do que ela tem participação na Verdade eterna, e sua verdade é medida pelo divino Criador. O que dizer de cada homem, por mais apagado, humilde e privado de qualidades naturais? Nós não fomos “jogados” aleatoriamente neste mundo e “esquecidos” aqui. Cada um de nós é medido amorosamente em sua verdade por Aquele que nos idealizou desde toda a eternidade, e bastaria a lembrança disso para nos encher de maravilhamento.

Assim, a norma ou medida da verdade “é a inteligência divina, causa exemplar de toda verdade, tanto ontológica como lógica, em que a conformidade do ato e o objeto especificamente chega a ser identidade”.[3]

A verdade se encontra no intelecto segundo este apreende uma coisa tal como ela é, e encontra-se na coisa segundo ela tenha um ser que possa se conformar ao intelecto. Ora, isso se encontra em Deus no mais alto grau. Pois não apenas seu ser é conforme a seu intelecto, mas Ele é sua própria intelecção, e esta é a medida e a causa de qualquer outro ser e de qualquer outro intelecto. Ele mesmo é seu ser e sua intelecção. Segue-se que não apenas a verdade está n’Ele, mas que Ele próprio é a suprema e primeira verdade.[4]

O ensinamento de São Tomás a propósito dessa maravilhosa conexão entre o conhecimento humano, a verdade presente nas criaturas e a Verdade do Intelecto divino remete para a noção de participação. Nos dizeres de Aertsen, “a origem da verdade de Deus é concebida como participatio. Todas as outras coisas participam na Verdade única, máxima”.  E ele observa que nem mesmo conhecer os anjos, que são verdadeiros porque são também seres por participação, pode constituir “o fim último do desejo de conhecer a verdade, no qual consiste a bem-aventurança humana. Pois só a contemplação de Deus, que é verdade por essência, faz o homem perfeitamente bem-aventurado”.[5]

Eis aqui um princípio teleológico da verdade que cumpre acentuar. O homem não se aperfeiçoa intelectualmente, segundo seu fim, apenas no conhecer pelo conhecer, mas tendo em vista o movimento de sua inteligência em direção à contemplação da Verdade suprema.

Em seu desdobramento mais importante, essa doutrina da participação na verdade tem necessariamente uma relação direta com o Verbo encarnado, o Filho de Deus feito homem, em função do qual todas as coisas foram criadas. E aqui têm papel central as seguintes palavras de Jesus, numa das últimas conversas com os Apóstolos antes da Paixão:

E vós conheceis o caminho para ir aonde vou. Disse-lhe Tomé: Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho? Jesus lhe respondeu: Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim. Se me conhecêsseis, também certamente conheceríeis meu Pai; desde agora já o conheceis, pois o tendes visto. (Jo. 14, 4-7)

Referindo-se às palavras de Jesus, de que Ele é “o caminho, a verdade e a vida”, Aertsen diz que, segundo Tomás, elas devem ser entendidas “como significando que Cristo, de acordo com sua natureza humana, é o caminho (via) para a verdade; pois o fim do desejo humano é o conhecimento da verdade. Porém, ao mesmo tempo, Cristo é o término do caminho, pois, segundo sua divindade, ele é a Verdade”.[6]

 CLÁ DIAS, João. Ensaio: A fidelidade ao primeiro olhar. São Paulo: IFAT, 2008. p. 36-38.


[1] De Veritate, q. 1, a. 2 co: Inter duos intellectus constituta.

[2] De veritate, q. 1, a. 2 co: Sic ergo intellectus divinus est mensurans non mensuratus; res autem naturalis, mensurans et mensurata; sed intellectus noster mensuratus et non mensurans res quidem naturales, sed artificiales tantum.

[3] DERISI, Los Fundamentos…, p. 368-369.

[4] Summa Theol. I, q. 16, a 5: Et suum intelligere est mensura et causa omnis alterius esse, et omnis alterius intellectus; … Ut sequitur quod non solum in ipso sit veritas, sed quod ipse sit ipsa summa et prima veritas. (Grifos nossos.)

[5] AERTSEN, Jan. Nature and Creature: Thomas Aquinas’s Way of Thought. Leiden/New York: Brill, 1988, p. 161-162.

[6] AERTSEN, Nature and Creature…, p. 161; Super Ioannem, c. 14, lect. 2.