A assinatura de Deus

Ilha dos Frades 083Pe. Edwaldo Marques

Nabucodonosor, rei da Babilônia, em certa ocasião, mandou erigir uma enorme estátua de ouro com o objetivo de instituir uma nova divindade, como se já não bastassem as muitas  que eram cultuadas no país.  Promulgou em seguida um decreto que obrigava a todos os seus súditos a se prostrarem num ato de  adoração, cada vez que as trombetas e outros instrumentos musicais soassem.  Para os que não obedecessem, o castigo era a morte: seriam imediatamente atirados numa fornalha ardente. (cfr. Dan. 3. 1-7, Bíblia Sagrada, 1964, p. 1213).

A Babilônia nessa época era também habitada por judeus cativos.  Destes, um certo número se recusou a obedecer a tal lei ímpia; entre esses estavam três jovens: Ananias, Azarias e Misael.

Como eram altos funcionários do rei, foram chamados pelo soberano e interrogados por ele, confirmaram que, de fato, não adorariam e não cumpririam o edito real, pois eram servidores do Deus verdadeiro, único a quem se deve adoração.

Fora de si, o rei ordenou que fossem lançados imediatamente na fornalha que foi, para esse efeito, aquecida sete vezes mais do que habitualmente o era.  Foram amarrados e lançados ao fogo conforme o rei determinara.

Deus, porém, interveio e nada de mal aconteceu aos três jovens, que tranqüilamente passeavam entre as chamas entoando louvores a misericórdia divina. [Ver Dan. 3, 57-89]

Sabedor do fato, Nabucodonor, cheio de admiração, louvou também o Deus de Ananias, Azarias e Misael e ordenando-lhes que saíssem da fornalha, restabeleceu-os com honra nos postos que  antes ocupavam.

O canto dos três jovens é para nós uma mensagem cheia de poesia e verdade, mas não é esta a razão fundamental de seu magnífico valor.

Qual o principal conteúdo dessa mensagem?  Ela nos mostra, nos revela, que todas as coisas existem para louvar e glorificar a Deus.  Tudo foi criado por Ele, existe em função d’Ele, sustentado por Ele, segundo leis estabelecidas por Ele para a sua própria glória e louvor.  De um modo ou de outro, Ele está refletido em tudo o que criou; em função disso, o conjunto da criação constitui um imenso livro no qual o homem que não seja um analfabeto espiritual, poderá conhecer e amar a Deus Nosso Senhor.

A ordem que rege todas as coisas, a ordem do Universo — é verdadeiramente a assinatura de Deus.

O sublime reflexo de Deus nas criaturas

aurora

Felipe de Azevedo Ramos

Vemos que no mundo sensível é fato evidente a graduação das perfeições transcendentais numa maravilhosa hierarquia. É fácil compreender que todas as coisas são ontologicamente boas secundum magis et minus. A apreensão dos graus se torna ainda mais evidente quando se considera o pulchrum, escada segura de contemplação hierárquica das coisas, com a qual atinge, em seu vértice, a sua Suma Perfeição.

Tal Perfeição, absolutamente desproporcional ao homem, nos é revelada por meio desse sublime reflexo de Deus nas criaturas: a beleza.

Ao analisar a Criação e sua multifacetada variedade podemos nos perguntar por que Deus quis criar tal imensidade de seres. Pois sendo Ele infinitamente perfeito, bastaria-se a Si mesmo, sem a absoluta necessidade de criá-los. Porém, na Sua infinita bondade e misericórdia, assim o desejou.

Ora, Seu intuito, ao criar quantidade insondável de seres, foi para que estes não somente refletissem Sua perfeição infinita, mas também a reproduzisse em seus mais variados graus. Deste modo se explica o caráter hierárquico que Deus imprimiu ao Universo.

Contudo, não poderia Deus originar uma única criatura que por si só refletisse todas as suas perfeições tão bem como o conjunto dos seres criados? Parece que isso seria metafisicamente impossível. Pois Deus criou um Universo composto de muitas criaturas para que elas, de um lado pela sua pluralidade, de outro pela sua hierarquização, espelhassem convenientemente a Sua beleza e perfeição divina. Pois assim como um acorde sonoro é belo pela formação de uma unidade harmoniosa numa “terça”, mais belo ainda quando acrescentamos apenas uma nota num acorde de “quinta”, constituindo o que se chama “consonância perfeita”. Analogamente, a ordem da criação é ainda mais bela por sua rica pluralidade, quando coesa na unidade. Portanto, o homem, ao contemplar o mundo ao seu redor pode — aliando-se com a quarta via, ou seja, a partir da observação da gradualidade dos seres criados — inferir nestes, os esplêndidos reflexos da divina Pulchritudo.

Deste modo, o espírito hierárquico dos diversos graus aliados à ordem, às desigualdades harmônicas, ao pulchrum, em suma, leva-nos de proche en proche até a demonstração da existência de Deus, à Sua consideração e, por fim, à contemplação de Sua Suma Perfeição, causa de todas as perfeições.

Uma tese de teologia sobre o “Big Bang”

UniversoPe. Eduardo Miguel Caballero Baza, EP

Na atualidade parece que a ciência nunca será capaz de levantar o véu que encobre o mistério da criação. Para o cientista que durante toda a sua vida se guiou pela crença no poder da razão, esta história termina como um pesadelo. Ele escalou as montanhas da ignorância e está a ponto de chegar ao mais alto pico; quando consegue alcançar a última rocha, é recebido por um grupo de teólogos que ali estão sentados há séculos”.1

Esse testemunho pessoal de Robert Jastrow, renomado cientista norte-americano, fundador do Goddard Institute for Space Studies (GISS) da NASA, ilustra bem como a Teologia não está alheia às questões científicas, mas as explica e transcende.

Aspecto pouco conhecido da história científica

Os pioneiros das ciências naturais no século XVII, assim como muitos de seus continuadores nos séculos seguintes, eram homens profundamente religiosos, persuadidos de que suas investigações não passavam de uma contribuição para desvendar a obra do Criador.

Basta pensar nos importantes estudos do Bispo dinamarquês Beato Niels Stensen (1638-1686) sobre geologia e mineralogia, pelos quais ele é considerado o fundador da geologia moderna. Ou nos filhos espirituais de Santo Inácio de Loyola – entre os quais o padre Athanasius Kircher (1602-1680), erudito em inúmeros campos científicos; o padre Giovanni Battista Riccioli (1598-1671), cuja enciclopédia astronômica marcou época; o padre Francesco Maria Grimaldi (1618-1663), descobridor da difração da luz; o padre Ruggero Boscovich (1711-1787), considerado o criador da física atômica fundamental – que contribuíram significativamente para as conquistas da ciência e da técnica, e foram correspondentes assíduos de cientistas influentes de sua época.2

Depois desses pioneiros, não têm faltado católicos fervorosos na vanguarda dos mais diversos campos da ciência. O francês Augustin Louis Cauchy (1789-1857) – cujo nome figura inúmeras vezes nos livros de ciências exatas, física e engenharia – era católico convicto, membro da Sociedade de São Vicente de Paulo. Um dos maiores cientistas da História, Louis Pasteur (1822-1895), foi um católico exemplar em pleno século do positivismo ateu e do racionalismo agnóstico. Seu contemporâneo, o abade agostiniano austríaco Gregor Johann Mendel (1822- 1884), é considerado o pai da genética. O físico italiano Alessandro Volta (1745-1827), inventor da pilha elétrica, 3 era homem de Missa e Rosário diários, enquanto seu contemporâneo, o cientista francês André-Marie Ampère (1775-1836), fundador da eletrodinâmica, 4 tem uma obra intitulada Provas históricas da divindade do Cristianismo.

E muitos outros poderiam ser citados como exemplo até nossos dias.

 A ciência e a Fé se complementam

De outro lado, o Magistério Pontifício tem sido unânime em mostrar como ciência e Fé convergem para a única verdade, por vias diversas mas complementares.5

O Concílio Vaticano II confirmou isso, lembrando que as realidades profanas e as da Fé têm origem no mesmo Deus: “A investigação metódica em todos os campos do saber, quando levada a cabo de um modo verdadeiramente científico e segundo as normas morais, nunca será realmente oposta à Fé, já que as realidades profanas e as da Fé têm origem no mesmo Deus. Antes, quem se esforça com humildade e constância por perscrutar os segredos da natureza, é, mesmo quando disso não tem consciência, como que conduzido pela mão de Deus, o qual sustenta as coisas e as faz ser o que são”.6

Ora, para ser possível uma relação frutuosa entre ciência e Fé, é necessária a mediação de uma filosofia realista, reconhecedora de que as entidades materiais observadas pela ciência são reais, que existem independentemente do observador, que possuem uma racionalidade coerente, que estão governadas por leis determinadas e que formam um todo ordenado.

Diz-se que a sã filosofia é aquela que diz coisas evidentes, mas que não são ditas por ninguém; pois bem, essa é a filosofia realista, a filosofia de São Tomás de Aquino e de tantos outros pensadores católicos.

 O cosmos: uma dimensão da realidade inatingível pela ciência

A ciência – mesmo quando se baseie numa filosofia realista e considere o universo como contingente – deve estar consciente de que nunca poderá revelar todos os mistérios do cosmos, por mais que progrida a técnica, pois há toda uma série de dimensões da realidade que escapam completamente a seu alcance. Por isso, a ciência jamais poderá demonstrar a existência de Deus nem tampouco negá-la; simplesmente não tem autoridade para se pronunciar sobre tal matéria.

Quem observa o céu estrelado com um mínimo de espírito contemplativo é naturalmente levado a formular a si mesmo uma série de perguntas para as quais a astrofísica não tem resposta: Por que existe o universo? Por que possui a ordem que observamos nele? É fruto de um projeto inteligente? Teve origem? Quando e como? Sempre foi assim como o vemos hoje?

A ciência procura dar resposta a essas e outras perguntas do gênero por meio da cosmologia, um ramo do saber que trata, de um lado, da formação do universo, de sua estrutura e evolução (aspecto físico ou científico), e de outro, de sua origem e finalidade (aspecto filosófico-teológico). Na realidade, a cosmologia é uma disciplina fronteiriça entre as ciências naturais, a Filosofia e a Teologia. É uma ciência da totalidade, que, entre outras coisas, busca a resposta à pergunta sobre a totalidade do universo no sentido ontológico. A resposta a essa pergunta, porém, não se encontra na totalidade física do universo, que é o objeto de estudo da cosmologia, mas fora dela; a totalidade do universo encontra sua explicação somente em uma Causa superior que transcende sua realidade física.

As questões relacionadas com a origem do universo e sua evolução, portanto, suscitam fortemente perguntas fundamentais como essas, que de um modo natural põem em relação à Fé e a ciência. Esta é a razão que me levou a escolher o Big Bang como tema para a tese de licenciatura em Teologia, na Faculdade de Teologia da Universidade Pontifícia Gregoriana, na especialidade de Teologia Fundamental, pois a Teologia não só tem o direito de dizer uma palavra no debate científico, mas, mais do que isso, sua voz é indispensável para se poder entender em profundidade a realidade do universo.

Influiu também poderosamente na minha escolha o Revmo. Pe. Paul Haffner, da diocese de Portsmouth (Grã Bretanha), licenciado em Física pela Universidade de Oxford e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, da qual é Professor convidado. Autor de mais de 30 livros e 150 artigos, estudou ele durante décadas as relações entre religião e ciência, com especial ênfase na cosmologia e na obra do Revmo. Pe. Stanley L. Jaki, OSB, que conhece em profundidade.

Por fim, não foi alheia a essa escolha minha formação acadêmica de Engenheiro Aeronáutico pela Universidade Politécnica de Madri, embora nunca tenha exercido a profissão, pois, logo após o término de meus estudos, tive a graça de dedicar-me inteiramente ao serviço da Igreja.

 Aspectos filosóficos e teológicos da origem do universo

Hoje, os astrônomos sustentam quase unanimemente que o universo primitivo começou a expandir-se a uma grande velocidade – num processo tão rápido quanto violento, denominado “inflação cósmica” – faz uns 13 bilhões de anos, a partir de uma minúscula e incrivelmente quente “bola de fogo”. É o denominado “modelo standard” do universo, ou “modelo do Big Bang”.

Em torno desta concepção e de outros modelos cosmológicos, existe hoje em dia um aceso debate relacionado com os aspectos mais estritamente científicos, como a história térmica do universo, a causa do deslocamento para o vermelho dos espectros eletromagnéticos das radiações estelares, radiação cósmica de fundo de microondas, a suposta existência da matéria escura e da energia escura, a explicação da abundância relativa dos elementos químicos que se observa no universo, a descrição do nucleossíntese estelar, bem como dos processos de formação das estrelas e das galáxias, e tantos outros. Mas o debate não se limita aos aspectos científicos da questão. Estão em jogo concepções filosóficas e teológicas da maior importância.

Se o modelo do Big Bang explica a origem do universo a partir do nada, que necessidade há de um Criador? Podem ser separadas a dependência temporal do universo e sua dependência ontológica em relação ao Criador? O cosmos é autossuficiente e conduzido exclusivamente por uma causalidade cega, ou obedece à amorosa Providência Divina?

Como justificar, então, a existência de leis naturais imutáveis? Por outro lado, se Deus intervém na criação, que sentido têm os fenômenos puramente casuais? Como se harmonizam a autonomia das criaturas e sua dependência essencial do Criador, imanência e transcendência? Uma das variantes do modelo do Big Bang postula uma futura contração paulatina cada vez mais rápida do universo, culminando num colapso gravitacional sobre si mesmo. Quer isso dizer que o modelo do Big Bang prevê o fim do mundo?

Responder aqui a cada uma dessas perguntas alongaria demasiadamente esta matéria e me obrigaria a tratar de forma sumária um assunto rico e apaixonante. Proponho, portanto, voltar ao tema em outros artigos. Assim poderei compartilhar com nossos leitores a preparação de minha futura tese de doutorado.

 

Notas:

1 Cf. R. Jastrow. God and the Astronomers. New York: 1978, p. 116.

2 Entre outros com os quais mantinham frequente correspondência, cabe mencionar os seguintes: o matemático francês Pierre de Fermat (1601- 1665), pai do cálculo diferencial; o astrônomo, matemático e físico holandês Christiaan Huygens (1629-1695), inventor do relógio de pêndulo; o alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646- 1716), espírito multifacetado que formulou os princípios fundamentais do cálculo infinitesimal; ou o britânico Isaac Newton (1642-1727), que deduziu a lei da gravidade universal.

3 Em sua honra, chama-se “volt” a unidade de medida da tensão elétrica.

4 Em sua honra, denominase “ampère” a unidade de medida da intensidade da corrente elétrica.

5 Neste sentido, ver por exemplo, P. HAFFNER. Creazione e scienze. Roma: 2008, p. 1-60.

6 Constituição pastoral Gaudium et spes, 7/12/1965, n. 36.

 (Revista Arautos do Evangelho, Novembro/2009, n. 95, p. 37 à 39)

O desejo de conhecer no homem

alianca

Dartagnan Alves de Oliveira Souza, EP 

O desejo de conhecer o que está além das aparências materiais leva o homem, enquanto todo, com todas as suas capacidades e inclinações, à procura de um Ser Superior capaz de criar e sustentar todas as coisas, sendo, portanto, Causa e explicação de tudo.

 

 

Desejo do Absoluto

Ao investigar a natureza pela simples razão natural, o homem é levado a encontrar a verdade,[1] esse é o seu objetivo quando busca as razões e causas das coisas. Entretanto, essa busca recai sobre um Ordenador universal — não um demiurgo simplesmente —, mas um Provedor e Sustentador de todas as coisas, no qual se encontra o modelo de bondade e beleza em seu máximo grau.

Jolivet,[2] ao tratar da religião natural, diz que, como efeito das inclinações naturais, o ser humano tende a procurar a verdade no Ser que a possui em grau absoluto. Assim, seguindo essa tendência, ele sente no íntimo de seu ser uma atração para o bem e para o belo que o conduz a encontrar em Deus o exemplo e fonte da Bondade e da Beleza.

Corrêa de Oliveira afirma que o homem inocente, por meio do maravilhamento com a natureza criada, sente em si uma tendência que o arrasta a contemplar o Absoluto: “À medida que vai procurando o maravilhoso, de etapa em etapa, o inocente afina as exigências de sua alma até chegar ao Ser que é o píncaro, a cúpula de toda a ordem do ser, autor da Criação, perfeitíssimo, infinito, absoluto, eterno”.[3]

Vias para conhecer o Criador

A busca sedenta de uma causa primeira para a origem do Universo, presente em todos os tempos, converge para determinadas vias pelas quais o homem, analisando e argumentando, pode encontrar o ponto de partida da Criação. Esse Universo pode ser considerado materialmente em duas partes essenciais: seres irracionais e seres racionais. A primeira serve como via de acesso para que a segunda a utilize nas cogitações transcendentes acerca do Universo.

As vias para se ascender ao conhecimento do Criador têm seu ponto de partida na Criação, no mundo material, captável pelos sentidos externos. Dessa maneira, os seres racionais podem, por meio de argumentos convincentes, chegar a ortodoxas certezas que afirmam a existência de um Ser Superior a todos os demais, pelo fato de ser necessário, enquanto os demais são contingentes,[4] pois necessitam de uma sustentação que não emana da essência de seus próprios seres,[5] mas dAquele que possui em si a causa de seu próprio existir.[6]

Detendo-se o homem por alguns instantes, breves que sejam, na contemplação, por exemplo, de um panorama montanhoso banhado pelos últimos raios do sol que declina no horizonte, no qual o céu parece oscular a terra, normalmente tenderia a maravilhar-se diante do espetáculo. Vendo cores e formas feéricas, ele se sentiria atraído e, poderíamos dizer, quase que arrastado a refletir sobre o que aquele ambiente paradisíaco transmite ao intelecto ou ao sentimento humano. É a ocasião onde o homem, vendo e admirando os efeitos, procura a Causa.[7]

Da beleza à Beleza

As belezas contidas no Universo nos falam de uma Beleza maior, não mutável, mas da qual emanam todas as demais belezas (relativas), sujeitas à mudança.[8] Essas belezas mutáveis são apenas reflexos de uma matriz de Beleza de onde se origina esse transcendental.[9]

Santo Agostinho em um de seus sermões, tratando sobre a beleza, diz:

Interroga pulchritudinem terrae, interroga pulchritudinem maris, interroga pulchritudinem dilatati et diffusi aeris, interroga pulchritudinem coeli, interroga ordinem siderum, interroga solem fulgore suo diem clarificantem, interroga lunam splendore subsequentis noctis tenebras temperantem, interroga animalia quae moventur in aquis, quae morantur in terris, quae volitant in aere [] interroga ista, Respondent tibi omnia: Ecce vide, pulchra sumus. Pulchritudo eorum, confessio eorum. Ista pulchra mutabilia quis fecit, nisi incommutabilis pulcher?[10]

 

Por meio dos atrativos bons, belos e verdadeiros encontrados na natureza material que nos rodeia a todo momento, podemos nos elevar Àquele que é propriamente o Bem, o Belo e a Verdade por excelência.

A respeito da beleza Platão já falara em seu tempo. Para ele, o princípio de uma ascensão à ideia divina de Beleza tem como ponto de partida o amor. É por meio do amor que o homem poderá contemplar as criaturas corpóreas e dar um passo rumo à beleza moral. Atingindo essa beleza posta nos costumes, o homem poderá ascender aos belos ensinamentos — que outra coisa não é, senão a beleza intelectual — para assim chegar à consideração da ideia de Beleza em si mesma — a Beleza enquanto tal — da qual as demais belezas particulares não são senão mera participação.[11] Assim sendo, segundo esse filósofo, o homem ascende como que a graus que o levam a encontrar e a conhecer, paulatinamente, belezas superiores, até chegar à Beleza em si mesma, que é incriada.[12]

Essa ideia, exposta no Banquete, nos mostra de forma claríssima o que Platão pensava sobre a beleza. Encontramos nesse pensamento a conceitualização da ideia do amor vinculada com a ideia de beleza; para ele, é por meio do amor que o filósofo chegará a uma ciência verdadeira (a contemplação da Beleza em si mesma). Platão atribuirá à ideia de Beleza qualificativos “divinos”. O próprio ser humano, ao entrar em contato com ela, poderá haurir essa “divinização”. Ele chega a afirmar que toda participação de beleza contida no Universo tem como modelo essa Beleza “inmutable, que no nace ni perece, autosuficiente, simple, incorpórea, divina y que diviniza al hombre que la posee…”.[13]

Esse pensamento platônico é uma primeira ideia, ainda não nítida, a respeito da relação da beleza por participação com a Beleza subsistente. Claro está que o pensamento em torno da beleza, em todos os seus graus e formas, foi-se desenvolvendo à medida que o próprio ser humano a foi contemplando.

 

 

OLIVEIRA SOUZA, Dartagnan.  Pulchrum: Caminho para o Absoluto? in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 8, jul-set 2009. p. 84 – 87.

 

 

 

 


[1] STORK, Ricardo Yepes; ECHEVARRÍA, Javier Aranguren. Fundamentos de antropologia: um ideal da excelência humana. Tradução de Patrícia Carol Dwyer. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2005. p. 151.

[2] JOLIVET, Régis. Tratado de Filosofia II: Psicologia. 2. ed. Tradução de Gerardo Dantas Barretto. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editôra, 1967. p. 328.

[3] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Primeiro olhar e inocência. Obra póstuma, em preparação. Parte II, cap. 3, 6.

[4] G. P. Manuel de Filosofia: Resumido e adaptado do “Cours de Philosophie” de C. Lahr. 4. ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1948. p. 742.

[5] MOLINARO, Aniceto. Metafísica: curso sistemático. Tradução de João Paixão Netto e Roque Frangiotti. São Paulo: Paulus, 2002. p. 62.

[6] JOLIVET, Régis. Tratado de Filosofia III: Metafísica. 2. ed. Tradução de Maria da Glória Pereira Pinto Alcure. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1972. p. 362.

[7] S. Th. I, q.2, a.1.

[8] JOLIVET, Tratado de Filosofia III: Metafísica, Op. Cit., p. 260.

[9] BRUYNE, Edgar de. L’Esthétique du Moyen Age. Louvain: Éditions de L’Institut Supérieur de Philosophie, 1947. p. 10.

[10] SANCTUS AUGUSTINUS, Sermo 241, 2. “Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar, interroga a beleza do ar dilatado e difuso, interroga a beleza do céu, interroga o ritmo ordenado dos astros; interroga ao sol, que ilumina o dia com fulgor; interroga a lua, que suaviza com seu resplendor a obscuridade da noite que segue ao dia; interroga aos animais que se movem nas águas, que habitam a terra e que voam no ar […] Interroga todas essas realidades. Todas elas te responderão: Olha-nos, somos belas. Sua beleza é um hino (confissão) de louvor. Quem fez essas coisas belas, ainda que mutáveis, senão a própria Beleza imutável?” (Tradução pessoal).

[11] PLATÃO. Fédon, XLIX, 100. Citado por MANDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo: História da Filosofia Greco-Romana I. 2. ed. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1966. p. 13.

[12] PLATÃO. O banquete. Citado por FRAILE, Guillermo, O. P. Historia de la filosofía I: Grecia y Roma. 5. ed. Madrid: La Editorial Catolica, S. A., 1982. p. 354-355.

[13] Ibid., p. 326-327. “…imutável, que não nasce e nem morre, auto-suficiente, simples, incorpórea, divina e que diviniza ao homem que a possui…” (Tradução pessoal).