Costumes pagãos entre os cristãos do Séc. V: Soluções e propostas nos Sermões de São Leão Magno

Diác. José de Andrade, EP

Leão MagnoVida e obra

            São Leão Magno (400-461),[1] Papa e Doutor da Igreja de personalidade vigorosa, nasceu em Toscana e foi educado em Roma onde se distinguiu por suas iniciativas junto ao clero desta cidade, mesmo antes de aceder ao pontificado. Foi conselheiro sucessivamente dos papas Celestino I (†432) e Xisto III (†440) e foi muito respeitado como teólogo e diplomata. Como Papa, reinou durante 21 anos e foi o primeiro que recebeu o título de Magno (grande).

            Em sua atuação no plano político, a História registrou e imortalizou suas duas intervenções: fragilizado Valentiniano III, Imperador Romano, sem forças, idade e credibilidade para enfrentar as hordas inimigas, foi o Papa São Leão Magno quem interveio junto a Átila, rei dos Hunos, em 452, garantindo o recuo de seu exército, e junto a Genserico, em 455, obtendo do líder militar dos Vândalos a garantia do respeito aos habitantes e igrejas de Roma, durante o saque realizado.

            Como teólogo, deixou-nos várias Cartas e Sermões,[2] tratando temas de cristologia e eclesiologia. Seu zelo pastoral, manifestado em suas pregações e cerimônias litúrgicas que transpiravam muita espiritualidade, foi excepcional.

            Tomou posição em uma série de conflitos disciplinares e doutrinários, em particular relativos ao pelagianismo e o maniqueísmo. Elaborou ainda uma Epístola Dogmática sobre o grave problema tratado no Concílio de Calcedônia, a condenação da heresia monofisita, o que provocou uma forte reação de adesão dos padres conciliares e a famosa proclamação unanime: “Pedro falou pela boca de Leão!”.

            Combateu também o paganismo, em meio à evangelização do Ocidente, problema que grassava na época quer fosse entre os Romanos ou entre os Bárbaros. Este foi um período extremamente difícil e um verdadeiro desafio para os Pontífices deste século. Bento XVI, em suas catequeses na audiência geral de quarta-feira, dedicou a São Leão Magno um belo pronunciamento, no qual destaca seu papel neste âmbito:

Os tempos nos quais viveu o Papa Leão eram muito difíceis: o repetir-se das invasões bárbaras, o progressivo enfraquecimento no Ocidente da autoridade imperial e uma longa crise social tinham imposto que o Bispo de Roma […] assumisse um papel de relevo também nas vicissitudes civis e políticas.

[…] Consciente do momento histórico no qual vivia e da transformação que se estava a verificar num período de profunda crise da Roma pagã para a cristã, Leão Magno soube estar próximo do povo e dos fiéis com a ação pastoral e com a pregação.[3]

 

            O Santo Padre salientou ainda na audiência a forma como o histórico Pontífice e Doutor da Igreja “contrastou as superstições pagãs”.[4] No período em que viveu São Leão Magno era costume, mesmo entre os cristãos, possuírem velhos costumes que não largavam com facilidade, tradições pagãs enraizadas que, mesmo após o batismo, tardavam em serem abandonadas.

           

O Problema do Paganismo

            Desde o Édito de Milão, em 313, os cristãos viveram em uma quase ininterrupta paz e prosperidade. Apenas a passagem de Juliano o apóstata tinha abalado o cristianismo com suas medidas que favoreciam o paganismo, equiparando em uma primeira etapa o culto aos deuses ao culto dos “galileus”, como ele apelidava, e promovendo a ereção de hospícios e albergues, movidos por princípios pagãos e promovidos pelo Estado, a fim de usar um princípio até então fundamentalmente cristão: a caridade.[5] A segunda etapa seria a perseguição e o silenciamento daqueles que adoravam um só Deus encarnado, morto e ressuscitado para a salvação de muitos.

            Morto Juliano, em 363, em uma célebre e desastrosa campanha contra os persas, e cessada a perseguição, o Cristianismo continuaria a florescer. Entretanto, com o passar do tempo e a virada do século, “os cristãos pouco habituados à luta haviam perdido o costume de combater e sucumbiam ao primeiro embate. Não tendo inimigos violentos que os obrigassem a viver atentos, muitos se tinham acostumado a uma vida mole e pouco cristã”.[6] Conta-nos também Daniel-Rops que a sociedade batizada, no início do séc. V já não tinha o vigor de outros tempos, pois “à medida que o cristianismo ia crescendo no meio de uma sociedade pagã, era-lhe mais difícil preservar-se da contaminação”.[7]

            O Papa São Leão Magno deparar-se-ia com esse joio que nascia em meio ao trigo, passando para a História a sua indignação ao ver os fiéis, antes de entrarem para o culto cristão no interior da primitiva edificação construída sobre o túmulo de São Pedro, saudando com costumeiro gesto ritual o sol invictus.[8] Sua indignação transparece de modo especial no Sermão 22, onde faz uma forte crítica contra aqueles que veneram os astros: “O coração desses homens está envolto em cujo coração está envolto em trevas, e eles são estranhos a todo o progresso da verdadeira luz, porque ainda seguem os erros mais estultos do paganismo”.[9]

            Verifica-se assim que, com verdadeiro zelo e solicitude pastoral, São Leão Magno servir-se-ia de um singular instrumento para instruir a comunidade cristã: seus sermões. Neles, exortava “o clero e os fiéis a viver o batismo imitando a Cristo, e à preservação na fé perante o perigo das heresias e dos costumes pagãos”.[10]

 

A importância dos Sermões em São Leão Magno[11]

            Nos primeiros séculos do cristianismo, o sermão assumia uma enorme importância não só na instrução e catequização dos membros da Igreja, como na própria evangelização e expansão do cristianismo. Transmitia um ensinamento dogmático ou moral e propunha uma firme adesão à fé, diferindo de certa forma da homilia na medida em que não se resumia apenas a uma exposição da mensagem contida nas escrituras. Entretanto, São Leão Magno fazia questão de incorporar a temática de seus sermões ao contexto litúrgico, enfatizando o aspecto soteriológico da cristologia e falando da presença de Cristo, Senhor e Salvador. O querigma assume, nos sermões do Pontífice, muito mais do que um mero pronunciamento histórico de um evento passado, mas o próprio anúncio da

 

morte e ressurreição de Cristo apresentado e vivido na fé pela comunidade como realidade presente: ação salvífica de Deus, em Cristo, por obra do Espírito Santo que está presente na “palavra” anunciada pelo apóstolo. Por isso, os ouvintes do querigma não podem permanecer indiferentes. São convidados a se converter e a crer. […] Por esta razão, São Leão se preocupa em apresentar a doutrina de maneira clara, mas firme, sempre de acordo com a tradição dos antepassados.[12]

 

            É notório observar em seus ensinamentos o atento respeito à Tradição, não só aos Padres da Igreja que o antecederam como, sobretudo, à autoridade das Sagradas Escrituras. No séc. V a Igreja possuía uma admirável riqueza doutrinária, um tesouro cada vez mais enriquecido pelos padres apologetas, doutores e santos, concílios e sínodos, entre disputas teológicas e decisões dogmáticas, reações a heresias e a excessos… São Leão Magno não era alheio a tudo isso e sabia a responsabilidade que lhe era inerente enquanto sucessor de Pedro. Ao mesmo tempo, em seu pontificado,

 

a Providência ia dotando o Papado do prestígio, da admiração e daquela força moral que viriam a ser, entre outros, os grandes recursos da Igreja. […] Não é sem uma razão providencial que santo Ambrósio por este tempo pôde escrever, Ubi Petrus, Ibi Ecclesia, e que de um sermão de Santo Agostinho pudesse ter sido extraída a famosa fórmula: Roma locuta, causa finita![13]

 

            Esta força e importância na Igreja é indiscutivelmente atribuída a São Leão, justificando inteiramente a nomenclatura de Magno, que São Gregório receberia mais tarde, constituindo assim o rol dos Pontífices que até nossos dias receberam esse título. Em seus escritos apresenta-se a força moral de um Papa, cujo exemplo de vida, linguagem “desassombrada” e ortodoxia de doutrina, elevá-lo-iam aos altares enquanto Santo, Padre e Doutor da Igreja.

            Os escritos que chegaram até nós são de uma clareza e elevação de linguagem características. Significativas também as cláusulas rítmicas e a cadência literária. Porém, não só o aspecto externo marcaria as suas intervenções, mas também sua “beleza mística”.[14]

            E não é por acaso que os seus sermões atravessaram os séculos. Organizados inicialmente pelo próprio autor e seus colaboradores, passaram a estar presentes em certo número de homiliarios e coleções reunidas e compiladas ao longo da história. O seu conteúdo foi usado nas mais variadas épocas litúrgicas ao longo dos tempos, o que constituiu, certamente, um dos principais agentes de transmissão.[15] 

 

Propostas contra o paganismo nos Sermões de São Leão Magno[16]

            Visando formar não só os neófitos, como também aqueles que eram já bem instruídos, São Leão Magno fazia questão de aproveitar as principais festas litúrgicas para acrescentar o “obséquio de sua palavra”.[17]

            Um dos principais pontos que o Pontífice pretendia chamar a atenção dos presentes na assembléia era a consideração da graça recebida com o Batismo, o que pressupunha largar o paganismo em que outrora viviam, e o ressurgir para uma vida nova, adorando um só Deus: “Pereça o que é velho, surja a novidade. […] ‘Ninguém pode servir a dois senhores’ (Mt 6, 24; Lc 16, 13)” (Sermão 71, 1). Estas alocuções visavam assim a integridade de todos os batizados, diante das solicitações do mundo e das insidias demoníacas, dando-se conta da condição de filhos de Deus e do resgate recebido pela morte de Jesus na Cruz:

 

Arrancados assim por tão alto preço e por tão grande mistério ao poder das trevas e libertados dos laços da antiga escravidão, tomai cuidado, caríssimos, para que o diabo não corrompa a integridade de vossas almas mediante algum artifício. Tudo o que vos foi inculcado contra a fé cristã, tudo o que vos for aconselhado em oposição aos mandamentos de Deus, tudo isso vem dos enganos do diabo: é ele que, por inúmeros artifícios, se esforça para vos desviar da vida eterna, aproveitando certas ocasiões ligadas à fraqueza humana, para fazer recair nos laços de sua própria morte as almas incautas e negligentes. Lembrem-se, pois, todos aqueles que foram regenerados pela água e pelo Espírito Santo, daquilo a que renunciaram […] (Sermão 52, 5)

 

            Esta consideração de que, uma vez membros da Igreja, somos portadores de uma vida nova que a todos chama à plenitude, leva São Leão Magno a considerar o inverso: aquele que se imiscui com os que andam nas trevas “se encontrará tanto mais próximo da morte quanto mais longe estiver da luz católica” (Sermão 47, 2). Desta forma, pretendia o Pontífice que aqueles que tivessem ingressado nos caminhos da verdade, não se deixassem aliciar por atrativos enganadores (Cf. Sermão 74, 5).

            Para ele, a força para trilhar os caminhos do Senhor e não olhar para trás viriam da Redenção, com a qual todos se deveriam configurar, e que impele à missão e à evangelização. A Cruz toma então um valor mais que simbólico para todos os cristãos. Significativas são as suas numerosas considerações neste âmbito; a título de exemplo:

“Como será a nossa participação na morte de Cristo, senão deixando de ser aquilo que fomos?” (Sermão 50, 1).

“Tomar a cruz é morte aos apetites, extinção dos vícios, fuga da vaidade, abdicação de todo o erro” (Sermão 72, 5)

“Confirme-se, segundo a pregação do sacratíssimo Evangelho, a fé de todos. Ninguém se envergonhe da cruz de Cristo, pela qual o mundo foi remido” (Sermão 51, 8).

            Entretanto, ensina os presentes a terem um amor pela Igreja e à fé na qual foram instruídos que os animasse a não vacilar na sã doutrina e nos costumes cristãos, voltando os olhos para os antigos cultos pagãos. Como vimos já anteriormente, uma das questões que mais preocupava São Leão Magno era o dos astros. Advertia ele em um dos sermões:

Caríssimos, quanto a vós, descendência santa de nossa mãe católica, que fostes instruídos pelo Espírito Santo de Deus na escola da verdade […] Não vos contamineis, pois, com o erro daqueles que maculam sobretudo sua observância, ‘que servem à criatura, ao invés do Criador’ (Rm 1, 25), dedicando uma abstinência tresloucada aos astros do céu: […] instituíram seu jejum para honrar ao mesmo tempo os astros e para desprezar a ressurreição do Senhor. Afastam-se assim, do mistério da salvação. […] e como para dissimular sua incredulidade, eles ousam penetrar em nossas assembléias […] (Sermão 42, 5).

 

            Notava São Leão Magno que alguns destes cultos pagãos se tinham infiltrado no seio da Igreja. Algumas medidas precisavam ser tomadas. Sem dúvida nenhuma, que a maior delas seria o exemplo e a integridade de vida, apoiados na vida sobrenatural e na piedade cristã. E a solução para estes problemas que minavam a Igreja encontrava-se na santidade dos católicos. E estes veriam na oração e no amor ao próximo um forte escudo e amparo contra o maligno, conforme ele confirma à assembléia dos batizados ao aconselhá-los que:

 

Todas as vezes que a cegueira dos pagãos os conduzisse com maior intensidade às suas superstições, o povo de Deus perseverasse ainda mais devotamente nas orações e nas obras de caridade. Pois, na verdade, quanto mais os espíritos imundos se alegram com o erro dos pagãos, tanto mais se sentem derrotados pela observância da verdadeira religião e, assim, o crescimento da justiça consome o autor da maldade (Sermão 8).

 

            Em seu 96º Sermão, também apelidado de Tratado contra a heresia de Êutiques, São Leão Magno revela a consciência que tem de seu ministério e de sua importância diante daqueles que queriam manchar a ortodoxia e a santidade da Igreja, e mostra-se preocupado com a imprescindível vigilância diante dos erros que surgiam: “O nosso ministério pastoral deve velar para que a deturpação da heresia não prejudique o rebanho do Senhor e mostrar como evitar a astúcia dos lobos e ladrões” (Sermão 96, 1). Entende-se deste modo porque, falecendo São Leão Magno em 461, o Papa Sérgio I reconheceria sua exemplaridade, compondo um apropriado epitáfio que o define como um verdadeiro e atento pastor: “A velar para que o lobo, sempre à espreita, não dizime o rebanho”.[18]

 Victorino de Andrade, José. Costumes pagãos entre os cristãos do Séc. V: Soluções e propostas nos Sermões de São Leão Magno. Mestrado en Teologia Moral. Universidad Pontificia Bolivariana, 2010.


[1] Para a história de São Leão Magno e respectivas datas baseamo-nos em BOGAZ, A.; COUTO, M.; HANSEN, J. Patrística: caminhos da tradição cristã. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2009. Também em GLAVAN, Arnóbio. História da Igreja. São Paulo: Curso São Tomás de Aquino – ITTA, 2003. Por fim, em DROBNER, Hubertus. Manual de Patrologia. Petrópolis: Vozes, 2003.

[2] Conservam-se hoje 143 Cartas e 96 sermões considerados autênticos. Johannes Quasten confirma este número, embora levanta a possibilidade de mais um sermão (97) de acordo com a nova edição crítica de A. Chavasse. Apud INSTITUTO PATRISTICO AUGUSTINIANUM. Patrología. Dir. BERARDINO, Angelo. Madrid: BAC, 1993. p. 727-728.

[3] BENTO XVI. São Leão Magno. Audiência Geral – Sala Paulo VI. Quarta-feira, 5 de Março de 2008. In: <www.vatican.va>. Último acesso em 9 de jul 2010.

[4] Idem.

[5] Cf. LLORCA, Bernardino. Historia de la Iglesia Católica. 6. ed. Madrid: BAC, 2005. Vol. I. p. 420.

[6] Idem, p. 481.

[7] DANIEL-ROPS. A Igreja dos tempos Bárbaros. São Paulo: Quadrante, 1991. p. 253.  

[8] Idem, p. 254.

[9] Continuando a expressar sua indignação, São Leão Magno condena aqueles que “não conseguindo elevar os olhos do seu espírito acima do que contemplam com seus olhos corporais, honram com o culto reservado a Deus, os luminares colocados a serviço do mundo. Longe das almas cristãs essa superstição ímpia e essa mentira monstruosa. O sol, a lua e os astros são úteis para aqueles que sabem tirar proveito deles; são belos para aqueles que os olham, seja; mas, que, por motivo deles sejam dadas graças ao seu autor e que seja adorado Deus que os criou, não a criatura que O serve”. PATRÍSTICA. Leão Magno: Sermões. 2. ed. Tradução SCHIRATO, Sérgio et all. São Paulo: Paulus, 2005. Vol. 6. p. 42.

[10] INSTITUTO PATRISTICO AUGUSTINIANUM. Patrología. Dir. BERARDINO, Angelo. Madrid: BAC, 1993. p. 721.

[11] Para este capítulo baseamo-nos, sobretudo, na introdução da obra PATRÍSTICA. Leão Magno: Sermões. 2. ed. Tradução SCHIRATO, Sérgio et all. São Paulo: Paulus, 2005. Vol. 6.

[12] PATRÍSTICA. Leão Magno: Sermões. 2. ed. Tradução SCHIRATO, Sérgio et all. São Paulo: Paulus, 2005. Vol. 6. p. 15.

[13] GLAVAN, Arnóbio. História da Igreja. São Paulo: Curso São Tomás de Aquino – ITTA, 2003. p. 25.

[14] Poderemos encontrar sintéticas, mas profundas análises da linguagem usada por São Leão em suas cartas e sermões nos estudos do INSTITUTO PATRISTICO AUGUSTINIANUM. Op. Cit. p. 726-729. Loquaz também a frase “Para sempre, a Igreja proclamará a beleza mística de seus sermões” em BOGAZ, A.; COUTO, M.; HANSEN, J. Op. cit. p. 199. Quanto à linguagem “desassombrada”, DANIEL-ROPS. Op. cit. p. 111, usa a expressão partindo da análise de uma carta do pontífice datada de 10 agosto 1446.

[15] Cf. INSTITUTO PATRISTICO AUGUSTINIANUM. Op. Cit. p. 728.

[16] Todas as citações dos sermões foram extraídas da versão portuguesa em PATRÍSTICA. Leão Magno: Sermões. 2. ed. Tradução SCHIRATO, Sérgio et all. São Paulo: Paulus, 2005. Vol. 6. Limitar-nos-emos a citar, doravante, a respetiva referência.

[17] Cf. Sermão 76, 1. Importante também aqui a frase que revela dirigir-se a todos: “Doutos e indoutos não menosprezem o serviço prestado por nossos lábios”.

[18] Apud DANIEL-ROPS. A Igreja dos tempos Bárbaros. São Paulo: Quadrante, 1991. p. 112-113.

Sem integridade não pode haver beleza

 

 Paulo Martosbruxelas

 

 

Sem integridade não pode haver beleza. A estátua de Moisés esculpida por Michelangelo é considerada uma obra-prima. Suponhamos que um indivíduo malévolo conseguisse amputar um dos braços da mesma. A escultura perderia sua integridade e, portanto, ficaria carente de beleza.

1.1 Unidade na variedade

Bruyne (1947, p. 80) assim sintetiza as teorias de São Boaventura e Santo Alberto Magno, a respeito da estética metafísica:

Admitindo-se que o próprio espírito é belo, deve-se construir uma definição de pulchrum abarcando os seres espirituais e os materiais. Assim, duas reduções desde logo se impõem: a da cor à luz espiritual, ou seja, ao resplendor metafísico da forma; a da proporção quantitativa à ordem como tal, isto é, à unidade na multiplicidade.

Para os medievais, explica Bruyne (1947, p. 250-251), a lei estética fundamental é a unidade na variedade. A multiplicidade superabundante que se observa nas artes — por exemplo, na catedral gótica, na canção de gesta — não faz senão reproduzir as inumeráveis variedades do universo físico.

A palavra ‘universo’ provém do latim ‘universus’ (unum y versus), significando que todas as coisas convergen para o uno. Ou seja, o universo é belo, pois nele se realiza a unidade na variedade.

A unidade na variedade se observava de modo excelente na Cristandade: as nações cristãs apresentavam uma rica diversidade de idiomas, trajes, canções, costumes, modos de ser, etc., constituindo um todo guiado, instruído e governado pela Igreja Católica (cf. DANIEL-ROPS, 1993, v. 3, p. 41).

1.2 Princípio da totalidade

Santo Agostinho, quando jovem, escreveu a obra De pulchro et aptoSobre o belo e o conveniente, na qual fez referência ao princípio da totalidade. Mesmo nos corpos, individualmente considerados, há uma beleza em sentido absoluto e que se ama por ela mesma. Existe também a beleza do conjunto em que cada coisa é adaptada ao todo e apreciada em função da forma global.

O princípio da totalidade é aplicado por todos os autores medievais, quando intentam definir a beleza de um conjunto. Escreve Guilherme d’Auvergne: Imaginai uma cor ou uma forma belas em si mesmas; se mancharem um conjunto, porque não convém que estejam ali, elas próprias e a forma inteira aparecerão como feias. O vermelho é belo em si, mas não na parte do olho que deve ser branca; o olho é pulcro em si mesmo, porém não no lugar que convém à orelha (cf. BRUYNE, 1947, p. 127).

1.3 O mal, o erro e a feiura

Se todos os seres são belos, como explicar que haja no mundo a feiura? Pergunta semelhante pode ser feita quanto ao mal e ao erro, pois todas as criaturas são boas e verdadeiras. Assim, analisemos conjuntamente as questões do errado, do mau e do feio.

Quanto ao problema do mal, São Tomás na “Suma contra os gentios” (AQUINO, 1953, v. 2, p. 96) afirma:

O mal não é senão privação do que um ser tem e deve ter por natureza; pois este é o sentido com que todos usam a palavra mal. Ora, a privação não é uma essência, mas negação na substância. Logo, o mal não é nenhuma essência na realidade.

Raciocínio análogo pode ser feito em relação ao erro e à feiura: são privações da verdade e da beleza.

Ulrico de Strasbourg escreveu um tratado intitulado De Pulchro, no qual declara: “A feiura é uma ausência de beleza […] A feiura e o mal resultam da privação” (apud BRUYNE, 1959, v. 3, p. 264 e 287).

A sentença: “Bonum ex integra causa, malum ex quocumque defecto O bem provém de uma íntegra causa, o mal de qualquer defeito” pode, com as devidas alterações, ser aplicada à verdade e à beleza. Estas derivam de una íntegra causa, enquanto que o erro e a fealdade, de qualquer defeito.

É preciso considerar o universo como um todo. O cosmos, ou seja, o conjunto ordenado de seres é bom, verdadeiro e belo. Ensina Santo Agostinho: O mundo é um maravilhoso quadro onde inumeráveis matizes são harmoniosamente traçados; os sombreados postos em lugar apropriado realçam o esplendor das cores brilhantes. Esta é a imagem do universo, onde as faltas morais realçam os atos virtuosos e os monstros servem para destacar a beleza (cf. BRUYNE, 1947, p. 128).

O problema da fealdade foi explicado, entre outros, pelo Doutor Irrefragável, Alexandre de Hales (1185-1245), teólogo franciscano inglês que ensinou Filosofia e Teologia em Paris e fundou a escola franciscana (cf. Grande Enciclopédia Larousse Cultural, 1998, v. 1, p. 184). Em sua “Suma”, na qual consagra um capítulo à beleza do mundo, escreve:

O universo é belo porque leva em si o rastro da beleza divina […] É perfeito em seu gênero, porque nada lhe falta de quanto lhe é essencial. Constitui um grande Todo e, por consequência, exige ser considerado antes de tudo em seu conjunto “secundum formam Totius”. Quando se o recorre em suas diversas partes é preciso referir cada detalhe à estrutura geral: o que parece feio, ao ser visto isolado do conjunto, surge belo no Todo (apud BRUYNE, 1959, v. 3, p. 119).

E, fundamentando-se em Santo Agostinho, assevera o mestre franciscano: as coisas deformadas e feias são necessárias à ordem universal, pois Deus fez tudo com número, peso e medida (cf. BRUYNE, 1959, v. 3, p. 120).

Afirma o Doutor da Igreja São João Damasceno que a beleza das estrelas se torna ressaltada, quanto mais escura é a noite (apud BRUYNE, 1959, p. 143).

1.4 O sofrimento pode ter sublime grandeza

A perfeita saúde física e mental de um indivíduo supõe que haja harmonia em seu corpo e sua alma. Ora, a dor é causada por alguma desarmonia na pessoa humana. Além disso, devemos considerar que o sofrimento entrou no mundo devido ao pecado original, em virtude do qual Adão perdeu o dom de integridade. Assim, a dor, sendo consequência da desarmonia e da falta de integridade, não tem nenhuma beleza.

Entretanto, é preciso analisar esse tema à luz da visão de conjunto, conforme esclarece Bruyne (1947, p.132):

Na perspectiva do Todo imenso e eterno — ou seja, Deus —, a própria dor adquire uma sublime grandeza, quer porque provoca a beleza moral infinitamente superior à beleza física, quer porque intensifica, por contraste, os matizes e as profundidades da alegria.

De fato, se uma pessoa sofre com resignação, serenidade e, sobretudo, por amor a Deus, sua dor adquire uma pulcritude particular. Compreende-se, assim, como a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo tem uma Beleza de infinitas proporções.

in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 10, Jan-Mar 2010. p. 45-47.