A medida de toda a verdade

Mons. João Clá Diastrindade2

O Criador de todas as coisas é como um artista que estabelece a verdade de sua obra. Ao criar, ele determinou também o modo de existência de cada coisa. Assim, a verdade que criatura realiza em si expressa uma idéia do divino Artista. Por isso, diz São Tomás que cada ser está posto entre dois intelectos: o do Criador e o do homem.[1] O primeiro é o “medidor” (mensurans) de cada coisa. Por sua vez, as coisas são “medidas e medidoras“, ou seja, elas são definidas segundo a verdade e, de seu turno, definem a verdade. Já o intelecto humano é tão-só “medido” pelas coisas.[2]

Cada ser individual,  por menor que seja — mesmo os irracionais, que recebam sua forma pela ação da natureza —, foi pensado por Deus. Uma formiguinha que vemos carregar laboriosamente uma folha muito maior e mais pesada do que ela tem participação na Verdade eterna, e sua verdade é medida pelo divino Criador. O que dizer de cada homem, por mais apagado, humilde e privado de qualidades naturais? Nós não fomos “jogados” aleatoriamente neste mundo e “esquecidos” aqui. Cada um de nós é medido amorosamente em sua verdade por Aquele que nos idealizou desde toda a eternidade, e bastaria a lembrança disso para nos encher de maravilhamento.

Assim, a norma ou medida da verdade “é a inteligência divina, causa exemplar de toda verdade, tanto ontológica como lógica, em que a conformidade do ato e o objeto especificamente chega a ser identidade”.[3]

A verdade se encontra no intelecto segundo este apreende uma coisa tal como ela é, e encontra-se na coisa segundo ela tenha um ser que possa se conformar ao intelecto. Ora, isso se encontra em Deus no mais alto grau. Pois não apenas seu ser é conforme a seu intelecto, mas Ele é sua própria intelecção, e esta é a medida e a causa de qualquer outro ser e de qualquer outro intelecto. Ele mesmo é seu ser e sua intelecção. Segue-se que não apenas a verdade está n’Ele, mas que Ele próprio é a suprema e primeira verdade.[4]

O ensinamento de São Tomás a propósito dessa maravilhosa conexão entre o conhecimento humano, a verdade presente nas criaturas e a Verdade do Intelecto divino remete para a noção de participação. Nos dizeres de Aertsen, “a origem da verdade de Deus é concebida como participatio. Todas as outras coisas participam na Verdade única, máxima”.  E ele observa que nem mesmo conhecer os anjos, que são verdadeiros porque são também seres por participação, pode constituir “o fim último do desejo de conhecer a verdade, no qual consiste a bem-aventurança humana. Pois só a contemplação de Deus, que é verdade por essência, faz o homem perfeitamente bem-aventurado”.[5]

Eis aqui um princípio teleológico da verdade que cumpre acentuar. O homem não se aperfeiçoa intelectualmente, segundo seu fim, apenas no conhecer pelo conhecer, mas tendo em vista o movimento de sua inteligência em direção à contemplação da Verdade suprema.

Em seu desdobramento mais importante, essa doutrina da participação na verdade tem necessariamente uma relação direta com o Verbo encarnado, o Filho de Deus feito homem, em função do qual todas as coisas foram criadas. E aqui têm papel central as seguintes palavras de Jesus, numa das últimas conversas com os Apóstolos antes da Paixão:

E vós conheceis o caminho para ir aonde vou. Disse-lhe Tomé: Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho? Jesus lhe respondeu: Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim. Se me conhecêsseis, também certamente conheceríeis meu Pai; desde agora já o conheceis, pois o tendes visto. (Jo. 14, 4-7)

Referindo-se às palavras de Jesus, de que Ele é “o caminho, a verdade e a vida”, Aertsen diz que, segundo Tomás, elas devem ser entendidas “como significando que Cristo, de acordo com sua natureza humana, é o caminho (via) para a verdade; pois o fim do desejo humano é o conhecimento da verdade. Porém, ao mesmo tempo, Cristo é o término do caminho, pois, segundo sua divindade, ele é a Verdade”.[6]

 CLÁ DIAS, João. Ensaio: A fidelidade ao primeiro olhar. São Paulo: IFAT, 2008. p. 36-38.


[1] De Veritate, q. 1, a. 2 co: Inter duos intellectus constituta.

[2] De veritate, q. 1, a. 2 co: Sic ergo intellectus divinus est mensurans non mensuratus; res autem naturalis, mensurans et mensurata; sed intellectus noster mensuratus et non mensurans res quidem naturales, sed artificiales tantum.

[3] DERISI, Los Fundamentos…, p. 368-369.

[4] Summa Theol. I, q. 16, a 5: Et suum intelligere est mensura et causa omnis alterius esse, et omnis alterius intellectus; … Ut sequitur quod non solum in ipso sit veritas, sed quod ipse sit ipsa summa et prima veritas. (Grifos nossos.)

[5] AERTSEN, Jan. Nature and Creature: Thomas Aquinas’s Way of Thought. Leiden/New York: Brill, 1988, p. 161-162.

[6] AERTSEN, Nature and Creature…, p. 161; Super Ioannem, c. 14, lect. 2.