Corrimãos da escada da vida

Mons. João S. Clá Dias, EP

A teologia moral de Santo Agostinho, tanto como a ética de Aristóteles, foram as fontes das doutrinasalianca escolásticas sobre a razão moral. Em De Libero Arbitrio, o bispo de Hipona afirmara que a moralidade exige da vontade humana sua conformidade com as prescrições da lei imutável e eterna, impressa na nossa mente. Tal lei, chamada de summa ratio (“razão suprema”), deve ser sempre obedecida. Por seus padrões é que são julgados os bons e os maus.[1]

Concorde com a tese agostiniana,[2] São Tomás procura definir meticulosamente a lei eterna acentuando de início que ela “não é senão a razão da sabedoria divina, na medida em que ela dirige todos os atos e movimentos”.[3] Essa lei — que se identifica com a Providência Divina — é, portanto, o princípio ordenador de todo o universo criado: “Toda a comunidade do universo é governada pela razão divina. E assim a própria razão do governo das coisas em Deus, como príncipe do universo, tem razão de lei”.[4] Assim, a suprema lei é o próprio Deus, sendo eterna como Ele é eterno; é a Sabedoria de Deus “que move todas as coisas para seu devido fim”.[5] E todas as coisas são avaliadas segundo a lei eterna, seguindo-se daí que dela todas participam de algum modo, e suas propensões para seus atos e fins próprios vêm da impressão em si dessa lei.

Nas questões 90 a 108 da Suma Teológica, parte I-II, São Tomás se estende genialmente sobre o significado e o alcance da lei eterna e sobre as outras leis que dela derivam: a lei natural, a lei divina e a lei humana.

Começando pela lei natural, ele a define como “a participação da lei eterna na criatura racional”, sendo proporcionada pela “luz do intelecto posta em nós por Deus, através da qual conhecemos o que devemos fazer e o que devemos evitar”,[6] por ser uma norma imperativa para dirigir os atos livres do homem.

Noutro lugar, São Tomás descreve a lei natural como os primeiros princípios da atividade moral humana, evidentes de si, não demonstráveis.[7]

Ninguém pode, com sinceridade e no uso normal de suas faculdades mentais,[8] negar a existência dessa lei natural, segundo a qual há obras boas e outras más por sua própria natureza. São Tomás afirma que todos os homens conhecem pelo menos os princípios comuns da lei natural.[9] Diz ele ainda que, “quanto aos princípios comuns da razão quer especulativa, quer prática, a verdade ou retidão é a mesma em todos, e igualmente conhecida”.[10] Quer dizer, não há quem não conheça a distinção entre bem e mal, e nossa obrigação de optar pelo primeiro e rejeitar o segundo se apresenta à inteligência com força de lei.

Também a lei humana positiva tem a obrigação de se conformar com a Sabedoria de Deus. É a ela que o Aquinate se refere quando afirma que, como “o fim último da vida humana é a felicidade ou bem-aventurança […] é necessário que a lei vise maximamente à ordem que é para a bem-aventurança”.[11] A lei temporal não pode colidir com a lei eterna, mas deve secundá-la.

A lei divina — consolidada nos Dez Mandamentos — mostra ao homem o caminho a seguir para praticar o bem e atingir seu fim. São Tomás se pergunta se, havendo já a lei natural e as leis humanas, é preciso também haver uma lei divina positiva. Ele inicia sua resposta lembrando que a bem-aventurança eterna, para a qual o homem foi criado, “excede a proporção da potência natural humana”. Assim faz-se necessário que, “acima da lei natural e humana, fosse dirigido também a seu fim pela lei divinamente dada”.[12]

Todas essas leis são como que corrimãos numa longa e difícil trajetória, numa escada colocada sobre um abismo. Pode ser que esses corrimãos pareçam limitações absurdas à liberdade. Na realidade, são anteparos que Deus nos concedeu para proteger a verdadeira liberdade e para nos auxiliar na ascensão até Ele.

Como estão equivocadas certas correntes de educação que procuram instilar na criança e no jovem a ideia de que os princípios morais são frios e cruéis! O certo, afirmam elas, seria optar por uma moral “amiga”, relativa, dependente apenas das circunstâncias, dos casos particulares, e esquecer tais princípios.

É supérfluo realçar a nocividade de tal doutrina para o tesouro acumulado a partir do primeiro olhar sobre o ser. E que resultados funestos trazem para a sociedade como um todo. Basta olharmos para o que vai se passando à nossa volta…


[1] De Libero Arbitrio, I, 1.6.15.48-49; 51: “Illa lex quae summa ratio nominatur cui semper obtemperandum est et per quam mali miseram, boni beatam vitam merentur […], potestne cuipiam intellegenti non incommutabilis aeternaque videri? An potest aliquando iniustum esse, ut mali miseri, boni autem beati sint? […] Ut igitur breviter aeternae legis notionem, quae impressa nobis est, quantum valeo, verbis explicem, ea est, qua iustum est, ut omnia sint ordinatissima”.

[2] Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 1: “Sed contra est quod Augustinus dicit quod lex aeterna est summa ratio, cui semper obtemperandum est”.

[3] S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Nihil aliud est quam ratio divinae sapientiae, secundum quod est directiva omnium actuum et motionum”.

[4] S. Th. I-II, q. 91, a. 1: “Tota communitas universi gubernatur ratione divina. Et ideo ipsa gubernationis rerum in Deo sicut in principe universitatis existens, legis habet rationem”.

[5] S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Moventis omnia ad debitum finem”.

[6] Collationes in decem praeceptis, Proœmium: “Lex naturae […] nihil aliud est nisi lumen intellectus insitum nobis a Deo, per quod cognoscimus quid agendum et quid vitandum”.

[7] Cf. S. Th. I-II, q. 94, a. 2. “Sunt quaedam principia per se nota”.

[8] “Alguma pessoa dotada de inteligência”, dizia Santo Agostinho (op. cit. 1.6.15.48).

[9] Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 2.

[10] S. Th. I-II, q. 94, a. 4. “Quantum ad communia principia rationis sive speculativae sive practicae, est eadem veritas seu rectitudo apud omnes, et aequaliter nota”.

[11] S. Th. I-II, q. 90, a. 2. “Oportet quod lex maxime respiciat ordinem qui est in beatitudinem”.

[12] S. Th. I-II, q. 91, a. 4. “Excedit proportionem naturalis facultatis humanae. Ut supra legem naturalem et humanam, dirigeretur etiam ad suum finem lege divinitus data”.

Algumas variações filosóficas da lei natural na modernidade

tibidabo Pe. Jorge Filipe Teixeira Lopes, EP

Nos séculos XVII e XVIII desenvolvem-se os dois veios centrais do pensamento jusnaturalista moderno: racionalismo e empirismo. Se eles são aparentemente opostos, há contudo um ponto que une as duas tendências: é a individualidade originária do ser humano, quer dizer, o homem no seu estado de natureza é solitário e livre.*

Thomas Hobbes
Para Hobbes, o homem tem uma natureza má e a vida humana é “solitária, miserável, repugnante, brutal e breve”.1 Torna-se então necessário a existência de um soberano que disponha impreterivelmente dos seus súbditos, sem limite de autoridade à excepção da sua vida. Desse modo, lei natural e lei civil não diferem e a primeira reduzir-se-á somente ao célebre axioma hobbesiano de que os contractos devem ser guardados. Cumpre obedecer cegamente à autoridade em vista do bem comum. Em Hobbes a sociedade é um grande homem artificial, uma estrutura humana erigida para proteger e fortalecer o homem natural. Considerado o “Pai” dos estados totalitários modernos, o seu Leviatã, de 1668, é um dos apogeus emblemáticos da modernidade no que tange à centralização antropológica.2

David Hume
David Hume glorificava-se de haver destruído a ideia de lei natural, o que, para Maritain, é perfeitamente natural; tendo reduzido a natureza à pura constatação dos factos, a lei natural perde a sua razão de ser. Não há natureza humana para ele, mas simplesmente paixões, inclinações e percepções.3

John Locke
Locke considera a sociedade como o produto utilitarista dos interesses individuais, sendo a lei natural simplesmente qualquer coisa como um mandamento do senso comum, com a única função de estabelecer os direitos inalienáveis de cada indivíduo.4 Puritano, Locke pretende que os homens livres são virtuosos — e não selvagens como em Hobbes — e obedecem à razão, quer dizer, a uma lei natural instituída por Deus. Segundo Bertrand Russell, a doutrina dos direitos do homem é uma derivação do puritanismo, e Locke um dos seus mais proeminentes idealizadores.5

Jean-Jacques Rousseau
Para Rousseau a lei natural existe, mas é de si, inacessível; de qualquer forma, o homem tem um direito natural que a razão acaba por destruir. Como? A natureza humana emerge de um estado humano pré-civilizacional, situação plena de liberdades e direitos. Sendo o homem naturalmente bom, este estado seria susceptível de se produzir eternamente, pelo que ele se priva de inúmeras vantagens ao decidir viver em sociedade; isto porque no convívio com os outros indivíduos, cada um vê-se forçado a seguir princípios novos — a voz do dever, da responsabilidade — deixando de poder olhar somente para si. A partir daí, ele necessitará de consultar a razão antes das suas inclinações naturais.6 Por isso, ao sair do estado natural para viver comunitariamente, o homem delimita, pelas leis, os seus direitos e liberdade naturais. Enfim, Rousseau explora a ideia do estado de natureza como nenhum outro filósofo.

Emmanuel Kant
Com Kant surge uma nova concepção de lei natural que não supõe mais a natureza ontológica mas que é deduzida da pura razão prática. A lei natural do homem vai confundir-se com a sua liberdade, e a moral com a vontade individual. “A autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres que lhe são conformes”,7 afirma. Isso significa que toda a obediência a um poder distinto do homem é indigna do homem. Só é moral a obediência à sua própria lei e serão os preceitos morais do imperativo categórico, o único ponto de conformação da ordem jurídica.
Fundada no conceito de que o homem é um ser livre e que por si mesmo se submete a leis incondicionais, a moral não precisa da ideia de um ser superior ao homem para que ele conheça o seu dever, nem precisa de um incentivo para o cumprir, a não ser a própria lei.8
A influência kantiana é inaudita para a história da filosofia do direito ocidental. Foi sob o seu impulso que nasceu toda a escola positivista, para a qual o conhecimento científico limita-se aos factos e às suas leis constantes. Delimitando dessa forma o conhecimento do homem na sua essência, Kant abriu terreno para as mais variadas especulações no campo do imperativo categórico, pelo que não é abusivo concluir que a DUDH representa um momento kantiano por excelência.9
Em Kant o problema moral deixa de existir como valor objectivo uma vez que passa a pertencer exclusivamente ao âmbito da vontade. Conclui-se então que a ideologia dos direitos humanos, baseando-se no pensamento kantiano, exclui qualquer noção de uma moral universal enraizada na natureza do homem, uma vez que esta simplesmente não existe. Então, o bem e o mal são determinados pela opinião pública, a qual deve procurar agir de tal forma que os seus actos possam ser tidos como princípios universais, segundo a expressão do imperativo categórico kantiano. É o reavivar do velho adágio vox populi vox Dei, mas com um novo e dramático componente: é que a vox Dei pode derivar do dia para a noite conforme a subtileza e maleabilidade do jogo de opiniões.

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* O homem no estado de natureza é, no fundo, uma macaqueação da situação humana no Paraíso antes do pecado original.
1 HOBBES, Thomas. Leviathan. [Em linha]. <Disponível em: http://books.google.pt/books?id=-Q4nPYeps6MC&printsec=frontcover&dq=hobbes+ leviathan &lr=&as_brr=1#PPA86,M1 [Consulta: 16 Jun., 2009]. Tradução nossa.
2 Cf. LOPES ALVES, Op. Cit., p. 125-126.
3 Cf. MARITAIN, La loi naturelle ou la loi non écrite, Op. Cit., p. 93.
4 Cf. Ibid. p. 92-94.
5 Cf. RUSSELL, Op. Cit., p. 164-165. Locke é o apóstolo da Revolução Inglesa de 1688 e os direitos do homem e a teoria do laissez-faire originadas no puritanismo tiveram, como é sabido, o seu impulso na Revolução Americana. A influência de Locke na Declaração Americana e nos factores revolucionários que davam coesão aos novos estados é confirmada por André Kaspi, para quem a filosofia lockeana inspirou os insurrectos da Revolução Americana. (Cfr. KASPI, André. La Constitution des États-Unis. Em: Revista Historia. Paris. No. 456 (Dic., 1984); p. 4-12).
6 Cf. ROUSSEAU, Jean Jacques. Du contrat social. Aubier: Montaigne, 1943. p. 114-115. Tradução nossa.
7 KANT, Emmanuel. Critique of the Practical Reason. [Em linha]. <Disponível em: http://books. google.pt/books?id=N549zroUaaUC&pg=PP1&dq=Critique+of+Practical+Reason&lr=&asbrr=1# PPA27,M1> [Consulta: 15 Jun., 2009] Tradução nossa.
8 Cf. KANT. Religion within the boundary of pure religion. Edinburg: Thomas Clark, 1838. p. 1. Tradução nossa.
9 Cf. LOPES ALVES, Op. Cit., p. 28.

A lei conforme a razão, gravada no coração humano

Diác. Leopoldo Werner, EPint-Basilica

Existem normas de caráter universal
Já na Antiguidade, Cícero escreveu de modo preciso e conciso:
A razão reta, conforme a natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo senado; não há que procurar para ela outro comentador nem intérprete; não é uma lei em Roma e outra em Atenas, uma antes e outra depois, mas una, sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os tempos; uno será sempre o seu imperador e mestre, que é Deus, seu inventor, sancionador e publicador; não podendo o homem desconhecê-la sem renegar-se a si mesmo, sem despojar-se do seu caráter humano e sem atrair sobre si a mais cruel expiação, embora tenha conseguido evitar todos os outros suplícios. (CÍCERO, 2009: 53).
Nesta definição de Cícero devemos reter as seguintes noções: há uma lei que é conforme com a razão, gravada no coração humano, imutável, que prescreve o bem e proíbe o mal. Esta lei vale para todos os povos e em todos os lugares. Não varia com o passar do tempo, nem pode ser derrogada ou anulada pela vontade do povo e pelo arbítrio da autoridade.
Há, portanto, uma lei que provém da própria natureza do homem, dirigindo-o para seu fim, que é o bem. Chega-se a ela pela razão natural. Esta lei chama-se lei natural, para distinguir-se da lei sobrenatural, que é atingível pela fé. E por esta chega-se ao conhecimento de Deus e das coisas divinas. Há ainda a lei positiva, que é promulgada pela autoridade competente e obriga em razão da sua promulgação.
Santo Agostinho, Bispo de Hipona, defende a existência de normas de caráter universal. Utiliza a expressão “lei eterna” para se referir à lei moral natural que se encontra gravada no coração de todos os homens. A lei eterna manda conservar a ordem natural e proíbe perturbá-la. As leis temporais, ou civis, devem fundar-se nas leis eternas, respeitando-as.

Emana da Lei Eterna
São Tomás de Aquino, conhecido também como o Doutor Angélico, advoga a existência de uma lei universal que regula o comportamento de todos os seres, incluindo o comportamento humano.
Entre as demais, a criatura racional está sujeita à providência divina de um modo mais excelente, enquanto a mesma se torna participante da providência, provendo a si mesma e aos outros. Portanto, nela mesma é participada a razão eterna, por meio da qual tem a inclinação natural ao devido ato e fim. E tal participação da lei eterna na criatura racional se chama lei natural. (AQUINO, 2005, Vol. IV: 531).
Enquanto ordenador da conduta humana, a Lei Natural está em harmonia com toda ordem do universo, baseada, em última instância, na Lei Eterna ou Divina — um reflexo da sabedoria divina que dispôs todas as coisas para um fim determinado, que é a sua própria glória. É por isso que São Tomás afirma:
Portanto, como a lei eterna é a razão de governo no governo supremo, é necessário que todas as razões de governo que estão nos governantes inferiores derivem da lei eterna. (AQUINO, 2005, Vol. IV: 551).
Uma lei inscrita no íntimo dos corações, imagem da Sabedoria de Deus, é o que o papa João Paulo II ministra a respeito da lei natural ensinada pela Igreja:
A Igreja referiu-se frequentemente à doutrina tomista da lei natural, assumindo-a no próprio ensinamento moral. Assim, o meu venerado predecessor Leão XIII sublinhou a essencial subordinação da razão e da lei humana à Sabedoria de Deus e à Sua lei. Depois de dizer que “a lei natural está inscrita e esculpida no coração de todos e de cada um dos homens, visto que esta não é mais do que a mesma razão humana enquanto nos ordena fazer o bem e intima a não pecar”. Leão XIII remete para a “razão mais elevada” do divino Legislador: “Mas esta prescrição da razão humana não poderia ter força de lei, se não fosse a voz e a intérprete de uma razão mais alta, à qual o nosso espírito e a nossa liberdade devem estar submetidos”. De fato, a força da lei reside na sua autoridade de impor deveres, conferir direitos e aplicar a sanção a certos comportamentos: “Ora, nada disso poderia existir no homem, se fosse ele mesmo a estipular, como legislador supremo, a norma das suas ações”.
E conclui: “Daí decorre que a lei natural é a mesma lei eterna, inscrita nos seres dotados de razão, que os inclina para o ato e o fim que lhes convém; ela é a própria razão eterna do Criador e governador do universo”. (JOÃO PAULO II, 1993: 44).
Se não houvesse essa luz infundida em nossa alma por Deus, quais seriam as relações dos homens entre si, ou mesmo a relação consigo mesmo? É urgente reacender essa luz nos homens para encontrar o farol que é o guia dos homens e a luz das nações. É o ensinamento de São Tomás de Aquino, assumido e relembrado pelo Papa João Paulo II:
[A lei natural] não é mais do que a luz da inteligência infundida por Deus em nós. Graças a ela, conhecemos o que se deve cumprir e o que se deve evitar. Esta luz e esta lei, Deus as concedeu na criação. (apud JOÃO PAULO II, 1993: 44).
Estas verdades parecem tão claras e evidentes que foram sempre aceitas como balizas para o pensamento humano. Leão XIII (1888) ensinou mais de uma vez essa doutrina tão própria a solidificar os fundamentos da sociedade humana em seu relacionamento mútuo. A razão humana é intérprete e voz de uma razão muito mais alta, que é a do próprio Deus, ao qual devem estar submetidos nosso entendimento e nossa vontade. A lei é reflexo de uma lei eterna que existe na mente da primeira Causa, o Criador e mantenedor do universo e de tudo que nele existe.
Tal é, acima de todas, a lei natural que está escrita e gravada no coração de cada homem, porque é a razão mesma do homem que lhe ordena a prática do bem e lhe interdiz o pecado. Mas esta prescrição da razão humana não poderia ter força de lei, se ela não fosse órgão e intérprete duma razão mais alta à qual o nosso espírito e a nossa liberdade devem obediência. Sendo, na verdade, a missão da lei impor deveres e atribuir direitos, a lei assenta completamente sobre a autoridade, isto é, sobre um poder verdadeiramente capaz de estabelecer esses deveres e definir esses direitos, capaz também de sancionar as suas ordens por castigos e recompensas; coisas todas que não poderiam evidentemente existir no homem, se ele desse a si próprio, como legislador supremo, a regra dos seus próprios atos. Disto se conclui, pois, que a lei natural outra coisa não é senão a lei eterna gravada nos seres dotados de razão, inclinando-os para o ato e o fim que lhes convenha; e este não é senão a razão eterna de Deus, Criador e Governador do mundo. (Leão XIII, 1888: 6).

Base moral para a construção da sociedade
O Catecismo da Igreja Católica ensina que:
A lei natural exprime o sentido moral original, que permite ao homem discernir, pela razão, o que é o bem e o mal, a verdade e a mentira. A lei “divina e natural” mostra ao homem o caminho a seguir para praticar o bem e atingir seu fim. (CIC, 2001: 516).
É por isso que o papa João Paulo II insistiu sobre a necessidade da recuperação da doutrina da Lei Natural, como a fonte de certeza moral para toda a humanidade. Por isso, ele afirma que a lei natural:
Pertence ao grande patrimônio da sabedoria humana, que a Revelação, com sua luz, tem contribuído para purificar e desenvolver ulteriormente. A lei natural, acessível por isso mesma a toda criatura racional, indica as normas primeiras e essenciais que regulam a vida moral. (JOÃO PAULO II, 2004: 5).
A lei natural é o fundamento sólido do edifício das regras morais e a base moral para construção da sociedade. É o que ensina o Catecismo da Igreja Católica a este respeito:
Obra excelente do Criador, a lei natural fornece os fundamentos sólidos sobre os quais pode o homem construir o edifício das regras morais que orientarão suas opções. Ela assenta igualmente a base moral indispensável para a construção da comunidade dos homens. Proporciona, enfim, a base necessária à lei civil que se relaciona com ela, seja por uma reflexão que tira as conclusões de seus princípios, seja por adições de natureza positiva e jurídica. (CIC, 2001: 518).
A natureza da pessoa humana fica assim atendida quando atinge seu fim; seus deveres e seus direitos são reconhecidos plenamente. E ela se sente dignificada na sua pessoa, como um ente racional, dotada de todas as prerrogativas que lhe garantem uma estabilidade de vida que condiz com a sua condição humana. A este respeito, corroboram as palavras de João Paulo II ao discorrer sobre tema tão importante:
Pode-se agora compreender o verdadeiro significado da lei natural: ela refere-se à natureza própria e original do homem, à “natureza da pessoa humana”, que é a pessoa mesma na unidade de alma e corpo, na unidade das suas inclinações tanto de ordem espiritual como biológica, e de todas as outras características específicas, necessárias para a obtenção do seu fim. “A lei moral natural exprime e prescreve as finalidades, os direitos e os deveres que se fundamentam sobre a natureza corporal e espiritual da pessoa humana. Portanto, não pode ser concebida como uma tendência normativa meramente biológica, mas deve ser definida como a ordem racional segundo a qual o homem é chamado pelo Criador a dirigir e regular a sua vida e os seus atos e, particularmente, a usar e dispor do próprio corpo.” (JOÃO PAULO II, 1993: 50)

Tende a unir todos os homens
É necessário, pois, contribuirmos para solidificação de princípios estáveis, imutáveis, de conduta de todos os seres humanos entre si, para haver a fecunda e duradoura prosperidade e a paz entre os homens, tanto no nível de suas próprias comunidades como também da convivência fraterna universal:
Convido-vos a promover iniciativas oportunas com a finalidade de contribuir para uma renovação construtiva da doutrina da lei moral natural, buscando também convergências com representantes das diversas confissões, religiões e culturas. (JOÃO PAULO II, 2004: 5)
A lei natural se estende além das fronteiras da própria personalidade humana e tende, pela sua unidade e universalidade, a unir todos os povos em busca de um bem comum, que é a felicidade e a prosperidade de todas as nações. Esta lei é a certeza da amizade entre as nações e um pacto de aliança entre os indivíduos que procuram um alicerce firme para uma convivência pacífica, duradoura e próspera. Por isso, a lei natural deve ser o fundamento para as relações pacíficas entre as diversas nações.
Embora o gênero humano, por disposição de ordem natural estabelecida por Deus, esteja dividido em grupos sociais, nações ou Estados, independentes uns dos outros, no que respeita ao modo de organizar e dirigir a sua vida interna, acha-se, contudo, ligado por recíprocos vínculos morais e jurídicos, numa grande comunidade, organizada para o bem de todos os povos e regulada por leis especiais que tutelam a sua unidade e promovem a sua prosperidade.
Ora, não há quem não perceba que a autonomia absoluta do Estado põe-se em aberto contraste com esta lei imanente e natural, ou melhor, nega-a radicalmente, deixando à mercê da vontade dos governantes a estabilidade das relações internacionais e tirando a possibilidade de uma verdadeira união e fecunda colaboração no que respeita ao interesse geral. Porque, veneráveis irmãos, para a existência de contatos harmônicos e duradouros e de relações frutuosas, é indispensável que os povos reconheçam e observem aqueles princípios de direito natural internacional, que regulam o seu normal funcionamento e desenvolvimento. Tais princípios exigem o respeito dos relativos direitos à independência, à vida e à possibilidade de um desenvolvimento progressivo no caminho da civilização; exigem, além disso, a fidelidade aos pactos estipulados e ratificados segundo as normas do direito das gentes. (PIO XII, 1939: 54)
A lei natural, inserida na sua natureza, atende aos anseios mais internos do coração humano e delineia claramente as relações com seus semelhantes, tornando o convívio humano digno de ser vivido em todos os níveis da sociedade humana, e lança uma base firme para um diálogo fecundo com todos os homens de boa vontade. Sobre isso, no seu discurso aos membros da Comissão Teológica Internacional, assim se expressou o papa Bento XVI a respeito da Lei Natural:
Com esta doutrina, alcançam-se duas finalidades essenciais: por um lado, compreende-se que o conteúdo ético da fé cristã não constitui um delineamento ditado à consciência do homem a partir de fora, mas uma norma que encontra o seu fundamento na própria natureza humana; por outro, partindo da lei natural por si mesma acessível a todas as criaturas racionais, lança-se com ela a base para entrar em diálogo com todos os homens de boa vontade e, de modo mais geral, com a sociedade civil e secular. (BENTO XVI, 2007a)
A mesma idéia é repetida com outras palavras pelo Papa:
A lei natural, escrita por Deus na consciência humana, é um denominador comum a todos os homens e a todos os povos; é um guia universal que todos podem conhecer e em cuja base todos se podem compreender. (BENTO XVI, 2008: 1)
Antes de prosseguirmos com nosso estudo, é interessante ver como os conceitos de ordem, paz e harmonia são conexos com o tema do direito natural que estamos desenvolvendo. Vejamos o que o iminente pensador católico Plinio Corrêa de Oliveira escreveu sobre este interessante assunto.
Em artigo publicado no Catolicismo, o catedrático brasileiro começa por mostrar quanto a ordem, a paz e a harmonia são noções que têm relação direta com a pessoa humana bem formada, são valores que devem ser procurados numa sociedade bem constituída. A partir desses conceitos universais, pode-se ter uma ideia da perfeição de uma organização social baseada na lei natural, reflexo de sua natureza e fim.
A ordem, a paz, a harmonia, são características essenciais de toda a alma bem formada, de toda a sociedade humana bem constituída. Em certo sentido, são valores que se confundem com a própria noção de perfeição.
Todo o ser tem um fim próprio, e uma natureza adequada à obtenção deste fim. Assim, uma peça de relógio tem fim próprio, e, por sua forma e composição, é adequada à realização deste fim. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1951: 1)

Para que uma sociedade esteja em ordem, é necessário que seus componentes ajam de acordo com a natureza mais profunda do seu ser e o fim da mesma sociedade, que é a vida em comum, harmonizados todos em ordem à felicidade geral. Neste sentido, o autor continua:

A ordem é a disposição das coisas, segundo sua natureza. Assim, um relógio está em ordem quando todas as suas peças estão ordenadas segundo a natureza e o fim que lhes é próprio. Diz-se que há ordem no universo sideral porque todos os corpos celestes estão ordenados segundo sua natureza e fim.
Existe harmonia quando as relações entre dois seres são conformes à natureza e o fim de cada qual. A harmonia é o operar das coisas umas em relação às outras, segundo a ordem. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1951: 1)

Dessa harmonia em torno de um objetivo comum, segundo a ordem posta por Deus na natureza humana, gera a tranquilidade social e paz entre os indivíduos e as comunidades. Comunidades essas que projetam e se expandem, desde as mais próximas de cada um até os mais vastos agrupamentos nacionais e internacionais.

A ordem engendra a tranquilidade. A tranquilidade da ordem é a paz. Não é qualquer tranquilidade que merece ser chamada paz mas apenas a que resulta da ordem. A paz de consciência é a tranquilidade da consciência reta: não pode confundir-se com o letargo da consciência embotada. O bem estar orgânico produz uma sensação de paz que não pode ser confundida com a inércia do estado de coma. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1951: 1)

A lei natural deve ser compreendida na sua natureza e fim. Pois dessa compreensão é que se entenderá a profundidade e sabedoria de Deus que não deixou o homem a mercê dos vagalhões de suas paixões, mas lhe deu os meios necessários para atingir seu fim e alcançar a perfeição e a paz.
E, logo a seguir, no mesmo estudo, mostra como a posse da verdade religiosa é a condição essencial da ordem, da harmonia, da paz e da perfeição:
Quando um ser está inteiramente disposto segundo sua natureza, está em estado de perfeição. Assim, uma pessoa com grande capacidade de estudo, grande desejo de estudar, posta em uma Universidade em que haja todos os meios para fazer os estudos que deseja, está posta, do ponto de vista dos estudos, em condições perfeitas.
Quando as atividades de um ser são inteiramente conformes à sua natureza, e tendem inteiramente para seu fim, estas atividades são, de algum modo, perfeitas. Assim, a trajetória dos astros é perfeita, porque corresponde inteiramente à natureza e ao fim de cada qual.
Quando as condições em que um ser se encontra são perfeitas, suas operações o são também, e ele tenderá necessariamente para o seu fim, com o máximo da constância, do vigor e do acerto. Assim, se um homem está em condições perfeitas para andar, isto é, sabe, quer e pode andar, andará de modo irrepreensível.
O verdadeiro conhecimento do que seja a perfeição do homem e das sociedades depende de uma noção exata sobre a natureza e fim do homem.
O acerto, a fecundidade, o esplendor das ações humanas, quer individuais, quer sociais, também está na dependência do conhecimento de nossa natureza e fim.
Em outros termos, a posse da verdade religiosa é a condição essencial da ordem, da harmonia, da paz e da perfeição. (CORREA DE OLIVEIRA, 1951: 1)

A dimensão de justiça existente no mistério de salvação que é a Igreja

image1954_043_1Pe. Alex Barbosa de Brito, EP

A narração do Gênesis faz perceber, no ato mesmo da criação, Deus que ordena todos os seres à sua finalidade: os luzeiros a servir de sinal para marcar o tempo (Cf. Gn 1, 14-18); os animais e os vegetais, multiplicando-se segundo sua própria natureza (Cf. Gn 1, 24-25).

Santo Ambrósio nos explica:

 

Com efeito, a palavra de Deus correu por toda a criação na constituição do mundo e, no futuro, pela prescrição da lei, para que todas [as criaturas] viessem a ter uma sucessão conforme sua própria espécie e semelhança; assim, leão gera leão, tigre gera tigre, boi gera boi, cisne gera cisne, águia gera águia. Definitivamente, o preceito se enraizou para sempre na natureza, e por isso a terra não deixa de prestar obediência a sua função.[1]

E para o homem, imagem e semelhança do Criador, além da norma inscrita na sua própria consciência, Deus, “criando” um dos princípios de legalidade — nulla poena sine lege —, deu-lhes preceito: “de ligno autem scientiae boni et mali ne comedas”, e justa pena: “in quocumque enim die comederis ex eo, morte morieris” (Gn 2, 17).

Essa breve reflexão da antropologia cristã faz recordar o que diz Ghirlanda ao comentar o homem como um ser em relação: “O estar em relação com o outro é uma necessidade estrutural do sujeito (ubi homo ibi societas)”, e das várias possibilidades de atuação, “o sujeito, em sua liberdade, encontra-se diante da responsabilidade das escolhas morais que deve fazer entre as várias possibilidades que se lhe oferecem”.[2]

Portanto, conclui o autor, “uma vez que as raízes do fenômeno do direito” se encontram na sociabilidade do homem (ubi societas ibi ius), também se pode dizer “ubi homo ibi ius”, pois “ao sócio se requer um empenho de verdade e de lealdade. A lei positiva compreende em si a eliminação do erro, mediante a coordenação estável e regular das ações”.[3]

A necessidade do Direito facilmente se observa mesmo nas sociedades primitivas, ainda que na concepção dos respectivos ordenamentos jurídicos pudessem estar, nestes ou naqueles aspectos, distantes dos planos do Criador.

Para São Tomás de Aquino, há uma só lei, a lei eterna: a parte revelada é a lei divina; a outra, que fica esculpida na consciência dos seres racionais, é o direito natural. Abaixo delas, a lei positiva, que é aquela convertida em norma posta pelos homens e que não pode contrariar nem a lei natural, nem a lei divina, ou seja, a lei positiva é mera transcrição, para entendimento dos homens, da lei eterna. Por isso o Doutor Angélico sustentava a possibilidade da resistência à lei iníqua, isto é, quando a lei positiva contrariar a lei natural, não deve ser obedecida.[4] 

A Igreja como Sociedade e como Povo de Deus

Se o homem em sociedade necessita de um direito para melhor atingir o seu fim, se o Povo Eleito recebeu, em pedra, os preceitos que Deus lhes escreveu no coração, o que dizer da Igreja de Cristo?[5]

A Igreja é chamada pelo Apóstolo o Corpo místico do Deus encarnado, em comparação com o corpo natural do homem (Cf. Ef 1, 23). Ele a cabeça, Ela o corpo; Ele o motor e o influxo, Ela a realizadora do bem; Ele o princípio da perfeição, Ela, embora perfeita na doutrina, caminha para a perfeição dos membros; Ele o governo e a autoridade, Ela protegida e ordenada; Ele o inigualável Fundador, Ela a magnífica fundação. Ele o escolhido das nações, Ela a sociedade dos homens eleitos, o Povo de Deus; Ele Deus e homem, Ela humana e divina, analogia perfeita do mistério da Encarnação.

Considerada como Povo de Deus é uma sociedade, cujos membros, unidos não mais pelos vínculos de parentesco ou nacionalidade, gozam da liberdade e dignidade de filhos de Deus, têm um fim comum, que é o Reino dos Céus, e como lei o mandamento novo, de amar uns aos outros como o próprio Cristo nos amou (Cf. LG 9).

E embora sejam de natureza essencialmente espiritual os vínculos sociais do Povo de Deus, ou seja, uma comunhão de afeto, entre irmãos (Cf.LG 9), “deve ser também entendida como uma realidade orgânica, que requer uma forma jurídica”, ao mesmo tempo que é animada pela caridade.[6]

Por isso é que o direito que deve regular e estruturar as relações desta sociedade, é um direito sui generis, o direito eclesiástico — a dimensão de justiça existente no mistério de salvação que é a Igreja —, o qual, por muitas vezes se expressar em cânones, é também chamado de Direito Canônico.

Há uma objeção feita por aqueles que, munidos de argumentos de ordem pastoral, afirmam que “a Igreja não precisa de um direito”. O único mandato do divino Redentor foi de que os discípulos, pelo mundo inteiro, anunciassem a Boa Nova; portanto, o direito não teria origem em Cristo, senão nos homens. O próprio Código de 1983 não reconhece a caducidade das leis, derrogando-as em aras à salvação das almas, como lei suprema?

Deve-se temer muito que, sob o pretexto de pastoral, se exclua o direito. Há um sério risco de requintado autoritarismo por parte dos que, desprezando o direito universal da Igreja, fazem-no substituir pelo arbítrio de suas vontades, fantasias e caprichos. Veja-se o que nos ensinam os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos.

Foi Cristo quem escolheu os Doze (Lc 6, 12-19), mas quando se tratou de nomear um substituto para o Iscariotes, coube aos Apóstolos estabelecer as regras para a sucessão, “dederunt sortes eis, et cecidit sors super Matthiam”, que foi logo incorporado ao número dos Apóstolos. (At 1, 21-26).

Isto também se aplica ao Sacramento da Eucaristia, deixando-nos o mesmo Cristo poucos detalhes a respeito do rito, talvez porque não fosse destinado a ser o quadro da celebração.[7] Santo Agostinho nos ensina que o Senhor assim o fez — dando-nos o Sacramento depois da ceia —, “para valorizar sobremaneira a profundidade deste mistério” e para com ele “marcar os corações e a mente dos discípulos”; contudo, “deixou a regulamentação aos Apóstolos que deviam organizar a Igreja”.[8]

Recorda João Paulo II, na Constituição Apostólica Sacrae Disciplinae Leges, por meio da qual foi pronulgado o Código de 1983, que “no decorrer dos tempos, a Igreja Católica costumou reformar e renovar as leis da disciplina canônica, a fim de, na fidelidade constante a seu Divino Fundador, adaptá-las à missão salvífica que lhe é confiada”, e que o objetivo do Código não é “substituir, na vida da Igreja ou dos fiéis, a fé, a graça e os carismas, nem muito menos a caridade. Pelo contrário, sua finalidade é, antes, criar na sociedade eclesial uma ordem que, dando primazia ao amor, à graça e aos carismas, facilite ao mesmo tempo seu desenvolvimento orgânico na vida, seja da sociedade eclesial, seja de cada um de seus membros”.

Ainda que caibam principalmente aos Bispos a guarda e vigilância das leis da Igreja, nos ensina o Papa São Celestino I que “a nenhum dos sacerdotes é lícito ignorar os cânones”,[9] e o IV Concílio de Toledo (633) prescreve que “os sacerdotes conheçam as escrituras sagradas e os cânones”, e que “a ignorância, mãe de todos os erros, deve ser evitada, principalmente nos sacerdotes de Deus”.[10]

 


[1] AMBRÓSIO. Examerão – Os seis dias da criação. Sexto dia. 3, 9. Coleção Patrística, Tradução Célia Mariana Franchi Fernandes da Silva. São Paulo: Paulus, 1996. Vol. 26. p. 230.

[2] GHIRLANDA, Gianfranco. O Direito na Igreja: Mistério de Comunhão. Tradução Pe. Carlos da Silva. São Paulo: Santuário, 2003. p. 17.

[3] GHIRLANDA, Gianfranco, op. cit. p. 18.

[4] Cf. S Th I-II q. 94, a. 2. O mesmo conceito se encontra em II Sent., 42, 1, 4 ad 3.

[5] (Salmo 57,1) Cf. AGOSTINHO, Santo. Comentário aos salmos. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2008. p. 136.

[6] Cf. Ghirlanda, op. cit. p. 43-44.

[7] Cf. JUNGMANN, J. A. Missarium Sollemnia. Tradução de Monica Ottermann. São Paulo: Paulus, 2009. p. 25.

[8] Apud S Th III, q. 80, a. 8, 1. Suma Teológica. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2003. Vol. 9.

[9] Papa Celestino em Carta aos Bispos constituídos na Apulia e Calábria, 21 de julho de 429. Apud HORTAL, Jesus. Prefácio ao Código de Direito Canônico. São Paulo: Loyola, 2004. p. 15.

[10] IV Concílio de Toledo, 633. Apud. HORTAL, Jesus. Prefácio, op. cit. p. 15.

O dever moral como raiz do direito

Diác. Jorge Filipe, EPnouvelle1

Em S. Tomás, o direito é uma ordenação ou exigência de perfeição do homem na convivência social. Essa ordenação dada, é eminente em maior ou menor grau segundo se trate de direitos naturais ou de direitos positivos, em maior ou menor dependência dos naturais[1]. Ao falar da lei natural ele descreve o seu efeito formal – o direito natural – como uma “inclinação natural ao acto e fim devidos”[2]. O aquinate faz corresponder a ordem das inclinações naturais à ordem dos preceitos da lei natural e dos consequentes deveres naturais. Essa ordenação ou inclinação constitutiva do direito dá-se em grau máximo na lei e direito naturais. Portanto, o acto justo, definidor da virtude da justiça é dar a cada um o que é seu, ou seja, aquilo que a sua perfeição exige ou necessita para o desenvolvimento da vida em sociedade, plasmados na lei natural em ordem à sociedade, e na lei humana de acordo com aquela[3].

Em termos de uma raiz metafísica dos direitos humanos, para Rodríguez o direito não é uma faculdade, nem uma realidade formalmente moral – honesta ou pecaminosa – mas uma ordenação que relaciona essencialmente o homem livre à sua perfeição sociopolítica, conforme a lei natural de convivência – no caso do direito natural – e as determinações da lei positiva – no caso do direito positivo. Nessa ordem de ideias, o direito natural é a potência ou faculdade volitiva do homem enquanto ordenada ou referida naturalmente àqueles bens que lhe são devidos ou seus, no seu comportamento sociopolítico, segundo os ditames de sindérese. Daí decorre o direito positivo que é a mesma faculdade volitiva do homem enquanto revestida de poder proveniente da autoridade – da potestas. Exercer correctamente a liberdade enquanto princípio e sujeito de acções e hábitos morais, é a autêntica vontade livre do homem[4]. Dentro dessa liberdade, o direito – ius subiectivum – constitui o fundamento da ordem da justiça, o justoiustum obiectivum -, concepção onde reside o fundamento último dos direitos humanos.

 


[1] Ibid.. p. 211. “Por isso é que o direito de um, uma vez que funda o correlativo dever do outro, está, por sua vez, fundado na exigência dada, obrigação ou necessidade mais ou menos natural de auto-aperfeiçoar-se com o exercício das suas funções, pelas quais é responsável perante Deus, autor da natureza individual e social do homem e das suas inclinações naturais”.

[2] AQUINO. S. Th. I-II. Q. 91. a.2. p. 531.

[3] RODRÍGUEZ, Estudios de antropología teológica, Op. Cit. p. 212-214. A razão pela qual há vários preceitos da lei natural é a mesma razão porque há vários bens e cada um desses bens deve ser desejado conforme o que o que a recta razão indicar. Agora, entre esses bens, há alguns a que o homem chega de forma imediata e outros que só são encontrados através de um processo lento de apreensão daquele bem, sendo que a inclinação natural é o prumo que indica a obrigação ou não de os buscar. Assim, conclui S. Tomás que como o bem tem natureza de fim e o mal do contrário, segue-se que tudo aquilo a que o homem se sente naturalmente inclinado, a razão apreende como uma coisa boa e que, portanto, deve ser procurado, sendo que o contrário o apreende como mau, devendo ser por isso evitado. Assim se entende que a ordem dos preceitos da lei natural seja correlata à ordem das inclinações naturais. (Cfr. AQUINO. S. Th. I-II. Q. 94. a.2. p. 562-563).

[4] Ibid., p. 217-218.