Documentos basilares para o estudo da formação dos seminaristas

Pe. Carlos Adriano, EP

Para se estabelecer um estudo a respeito da formação seminarística nos dias de hoje e sobre os diversos elementos que a compõem, é preciso delimitar onde se encontram as principais diretrizes que tenham servido de fonte para a elaboração da atual legislação do Código, ou para a interpretação da mesma.

Primeiramente, deve-se atentar para o decreto Optatam Totius sobre a formação sacerdotal, do Concílio Vaticano II:

[…] o Concílio Vaticano II, que teve como objetivo último a renovação de toda a Igreja, advertiu também a estreita relação entre essa desejada renovação e o ministério dos sacerdotes. Fruto deste convencimento dos Padres conciliares é o decreto Optatam Totius, em que se proclama a transcendental importância da formação sacerdotal e se expõem os princípios fundamentais que devem inspirá-la, conservando e confirmando o já provado pelos séculos de experiência, e inovando ao mesmo tempo com o que as novas circunstâncias podem exigir (RINCÓN-PEREZ, 1991, p. 178 — tradução minha).

Como se poderá observar, o documento não descarta a experiência da Igreja na formação dos sacerdotes, muito pelo contrário, valoriza-a, mas exorta a que, nas leis eclesiásticas dirigidas para a formação sacerdotal, sejam introduzidas inovações que correspondam à evolução dos tempos.

 O sagrado Concílio reconhece que a desejada renovação de toda a Igreja depende, em grande parte, do ministério sacerdotal, animado do espírito de Cristo; proclama, por isso, a gravíssima importância da formação dos sacerdotes e declara alguns dos seus princípios fundamentais, pelos quais sejam confirmadas as leis já aprovadas pela experiência dos séculos e se introduzam nelas as inovações que correspondam às suas constituições e decretos e à evolução dos tempos. Esta formação sacerdotal, por causa da unidade do mesmo sacerdócio, é necessária aos dois cleros e de qualquer rito. Portanto, estas prescrições, que se referem diretamente ao clero diocesano, devem ser acomodadas na devida proporção a todos os sacerdotes (OT, proêmio).

O decreto conciliar trata sobre diversos temas atinentes à formação sacerdotal: desde a promoção das vocações, organização dos seminários maiores, formação espiritual e ainda outros assuntos de exclusiva relevância.

Além desse documento, o presente estudo deve ter como base a Ratio Fundamentalis Institutiones Sacerdotalis, e a Exortação Apostólica Pastores dabo vobis:

O Concílio Vaticano II dedicou um decreto (Optatam Totius) à formação para o sacerdócio. A disciplina do CIC responde às suas orientações, que recolhem uma tradição multissecular, com as adaptações necessárias às circunstâncias atuais. Ademais, existe para a Igreja universal, um plano de formação (Ratio Fundamentalis Institutiones Sacerdotalis), cujas linhas básicas devem ser seguidas pelas Conferências Episcopais e pelos regulamentos dos seminários (cf. cc. 242-243). Em 25.III.1992, João Paulo II publicou a Exortação Apostólica Pastores dabo vobis, que trata da formação dos sacerdotes na situação atual (CENALMOR E MIRAS, 2004, p. 178).

A Ratio Fundamentalis Institutiones Sacerdotalis, que consiste em normas fundamentais para a formação sacerdotal, foi elaborada pela Congregação para a Educação Católica, e publicada primeiramente em 6 de janeiro de 1970, deixando de vigorar com a promulgação do Código de Direito Canônico de 1983.

Adaptando-se à necessidade de se criar uma nova Ratio, a Congregação para a Educação Católica publicou novas diretrizes em 10 de março de 1985, acrescentando, na verdade, muito poucas mudanças em relação ao documento anterior (cf. Enchiridium, p. 326).

Todos esses documentos têm uma particular influência na legislação atual em relação aos responsáveis pela formação dos seminaristas.

Os professores do seminário conforme o Código de Direito Canônico

Pe. Carlos Adriano, EP

Entre os que devem compor o seminário, encontram-se os que se destinam a ministrar a formação doutrinal aos seminaristas, de acordo com a prescrição do cânon 239 § 1:

 Cân. 239 § 1. Em cada seminário haja o reitor que o presida, e, se for o caso o vice-reitor, o ecônomo e, se os alunos fazem os estudos no próprio seminário, também professores que ensinem as diversas disciplinas coordenando-as entre si.

Segundo o que nos explica Davide Cito (2002, p. 232 – tradução minha) a respeito dessa prescrição, “o cânon descreve os principais ofícios destinados a dirigir a vida do seminário. Os titulares destes ofícios se apresentam como os colaboradores mais diretos do bispo na tarefa de formar o clero de sua diocese”. É verdade que o cânon menciona os professores que desenvolvem seu ofício dentro dos próprios seminários. O que não quer dizer que os demais não atuem também como longa manus do bispo no que tange à formação doutrinal. Ao menos, é o que se pode concluir de um dos trechos da Pastores dabo vobis, 67:

“Todos quantos introduzem e acompanham os futuros sacerdotes na sacra doutrina, por meio do ensino da teologia, assumem uma particular responsabilidade educativa, que a experiência demonstra ser muitas vezes mais decisiva, no desenvolvimento da personalidade presbiteral, que a dos outros educadores”.

É tal a importância que se deve dar ao cargo de professores das disciplinas filosóficas, teológicas e jurídicas em um seminário, que cabe aos bispos interessados a nomeação deles. Ademais, todos eles devem ser doutores, ou ao menos licenciados em alguma universidade, ou faculdade, aprovada pela Santa Sé:

Cân. 253 § 1. Para o encargo de professor nas disciplinas filosóficas, teológicas e jurídicas, sejam nomeados pelo bispo ou pelos bispos interessados somente os que, eminentes em virtudes, tenham conseguido doutorado ou licença numa universidade ou faculdade reconhecida pela Santa Sé.

Nas explicitações que a esse respeito desenvolve Gianfranco Ghirlanda (2007), afirma-se a necessidade de consulta ao reitor e ao colégio de professores já existente, para a nomeação dos professores de um seminário, bem como a possibilidade de proposta de candidatos por parte desses. E ainda acrescenta:

“O código não diz nada se esses professores devem ser só clérigos, ou se podem ser também leigos, mas a RFIS 33 determina que para o ensino das disciplinas sagradas estes sejam normalmente sacerdotes. Portanto, excepcionalmente para ensinar essas matérias, podem ser nomeados leigos”.

As normativas atuais se distinguem inteiramente do que definia o cânon 1360 § 1 do Código de 1917, que preceituava a obrigatoriedade da condição sacerdotal para os professores. Entretanto, os professores leigos não deixam de estar submetidos à autoridade eclesiástica.

Para delimitar o alcance do cânon [253] é preciso observar com caráter preliminar que, ao ser o seminário uma estrutura pública própria da organização eclesiástica, ainda que o cânon contemple diretamente os professores de disciplinas filosóficas, teológicas ou jurídicas, coloca também os professores de outras matérias em uma situação de particular dependência da autoridade eclesiástica e, portanto, a eles se aplica analogamente a normativa prevista para os docentes das disciplinas sagradas.

É preciso dizer, em segundo lugar, que o fato de os alunos do seminário realizarem em outro lugar os estudos filosófico-teológicos não míngua a responsabilidade de vigilância que tem o bispo e os superiores sobre a qualidade do ensino ministrada aos seus próprios seminaristas, e ainda que não possuam o poder de remoção indicado no § 3, têm o dever de informar as autoridades acadêmicas sobre as eventuais irregularidades que se verifiquem nos professores (CITO, 2002, p. 271).

Outro requisito que aparece no cânon 253 para a nomeação dos professores de um seminário, é que estes sejam eminentes em virtudes:

“Em particular, a especificidade e o êxito formativo dos professores de teologia mede-se pelo fato de eles serem, antes de mais, homens de fé e cheios de amor pela Igreja, convencidos de que o sujeito adequado do conhecimento do mistério cristão continua a ser a Igreja enquanto tal, persuadindo-se, portanto, de que a sua tarefa de ensinar é um autêntico ministério eclesial, serem ricos de sentido pastoral para discernir não só os conteúdos mas também as formas adequadas para o exercício deste ministério. Particularmente se requer dos professores a fidelidade plena ao Magistério. De fato, ensinam em nome da Igreja e por isso são testemunhas da fé” (PDV 67).

Por isso, os professores devem estar compenetrados da grande responsabilidade a eles distinguida, de serem formadores, nada mais, nada menos, de futuros ministros sagrados.

 Essa consciência deve ser mostrada em seu sensus Eclesiae e no obséquio para com o magistério. É verdade que os professores devem ter a peito o progresso doutrinal, gozando da devida liberdade de pesquisa. Mas, levando em conta os diversos graus de certeza teológica, devem claramente ensinar aquilo que deve ser aceito como doutrina de fé, e distinguir disso o que é opinião de outros autores ou até pessoais (GHIRLANDA, 2007, p.138).

Podemos encontrar sólidas sustentações para essas explicitações de Ghirlanda na Instrução publicada pela Congregação para a doutrina da fé, Donun Veritatis:

 “A vontade de apresentar fielmente os ensinamentos do Magistério sobre as questões de per si irreformáveis deve ser a regra. No entanto, um teólogo pode, conforme a situação, levantar questões sobre a atualidade, a forma, ou até mesmo o conteúdo das intervenções magisteriais. Neste caso, o teólogo vai precisar, em primeiro lugar, avaliar com precisão a autoridade dos ensinamentos expressos, de acordo com a natureza dos documentos, a insistência com que a doutrina é repetida, e a maneira como foi expressa” (Donun Veritatis, 24 de maio de 1990, n. 24, in AAS 82, 1990, 1550-1570 − tradução minha).

Concluindo, podemos sintetizar os requisitos de caráter pessoal que devem constar nos professores dos seminários basicamente em três: reta doutrina, testemunho de vida cristã e capacidade pedagógica (CITO, 2002). Desta maneira, torna-se mais clara a prescrição do cânon 833, 6º, de que os professores de filosofia e teologia estejam obrigados a emitir a profissão de fé e juramento de fidelidade na presença do Ordinário do lugar ou um representante seu. Também se pode compreender melhor o § 3 do cânon 253, que, em consonância com o cânon 810, § 1, prescreve a remoção do ofício de professor pela autoridade competente, para aqueles que faltem gravemente ao seu dever: “Can, 253 § 3. Magister qui a munere suo graviter deficiat, ab auctoritate, de qua in § 1, amoveatur.[1]

A respeito do quadro de professores que deve compor a formação dos seminaristas, o § 2 do mesmo cânon parece reforçar as determinações do Código anterior, cânon 1366, pois também prescrevia distintos professores para cada uma das disciplinas fundamentais.

Cân. 253 § 2. Cuide-se que sejam nomeados professores distintos para o ensino da Sagrada Escritura, teologia dogmática, teologia moral, liturgia, filosofia, direito canônico, história eclesiástica e de outras disciplinas que devem ser dadas segundo método próprio.

Por fim, convém ressaltar o quanto todos os componentes da equipe de formação dos seminários, incluindo os professores, são solidariamente responsáveis para que se observem fielmente as normativas prescritas para tal finalidade.

O professor de teologia, como qualquer outro educador, deve permanecer em comunhão e colaborar cordialmente com todas as outras pessoas empenhadas na formação dos futuros sacerdotes e apresentar com rigor científico, generosidade, humildade e paixão, o seu contributo original e qualificado, que não é apenas a simples comunicação de uma doutrina — mesmo sendo a sacra doctrina —, mas é sobretudo a oferta da perspectiva que unifica no desígnio de Deus, os diversos conhecimentos humanos e as várias expressões de vida (PDV 61).

É o que se depreende do cânon 261 § 1:

“O reitor do seminário e também, sob sua autoridade os moderadores e professores, na parte que lhes compete, cuidem que os alunos observem fielmente as normas prescritas pelas Diretrizes básicas da formação sacerdotal e pelo regulamento do seminário”.


[1] Tradução: Cân. 253 § 3. O professor que faltar gravemente em seu ofício, seja destituído pela autoridade mencionada no § 1.

O ensinamento da Suma Teológica nos Seminários

Corentin Le Grand[1] [2]

III. Teologia especulativa e teologia positiva[3]

Tomas AquinoTodo o ensinamento teológico deve recorrer à autoridade e à razão, cabendo-lhe um papel preponderante em nossos Seminários. É necessário oferecer aos alunos o entendimento das expressões e das fórmulas dogmáticas enquanto noções que os preenchem, mostrando-lhes que não há nas verdades propostas contradição evidente, mas que se harmonizam entre si, além de interrogar os princípios para chegar às conclusões que eles encerram, e deduzir as verdades umas a partir das outras: eis o objeto dos primeiros ensinamentos teológico. Ora, São Tomás tratou de tudo isso melhor que ninguém.

Encontramos o Doutor Angélico nos decretos dos Padres reunidos nos Concílios de Lyon, Viena, Florença, Trento, e do Vaticano, de tal forma que aos textos conciliares foram cedidos os mesmos termos da Suma Teológica. Quem, mais que São Tomás, tirou conclusões das verdades reveladas? Nós lhe devemos o maior número de corolários que constituem o ensinamento comum dos catecismos, quando tratam da Encarnação e da Eucaristia. Nenhum Doutor sistematizou como ele: a Teologia não visa, com efeito, atingir seu objeto, senão sub ratione Dei;[4] donde a melhor síntese será aquela que parte da noção verdadeira e suprema de Deus, e não a que considera todas as coisas relacionadas a qualquer problema específico, como por exemplo, a liberdade humana. Uma sistematização perfeita deverá remontar a Deus considerado em Si mesmo, ou a um mistério do Ser supremo, e não a Deus enquanto bem e fim último do homem, porque a noção de ser é anterior à de bem. E a ideia que origina a Suma é, precisamente, Deus enquanto tal.[5]

Porém a questão quid sit[6] supõe a questão an sit,[7] e esta se resolve, em Teologia, por via de autoridade. Isto quer dizer que o professor dará importância à Teologia positiva e, ao ensinar São Tomás, explorará o magnífico tesouro que ele oferece a esse ponto de vista. A Suma, conforme escreve Freppel, é como um reservatório onde o fluxo da tradição se despejou por um instante antes de retomar seu curso pelos tempos. Sagrada Escritura, pregação apostólica, apologistas cristãos, Padres da Igreja, concílios, teólogos; São Tomás resume tudo, e que resumo! [8]

Ele é, entre os autores da Idade Média, aquele que melhor aplicou os resultados da Teologia positiva à Teologia escolástica.[9]

Como não poderia deixar de ser, a Suma nasce da Bíblia. Desta forma, menciona todos os livros do Novo Testamento, mas somente dois da Antiga Lei, e mesmo assim curtos e pouco assinaláveis: Abdias e Sofonias. Em contrapartida, partes notáveis poderiam ser reconstruídas graças às citações, e algumas quase integralmente, como no caso de certos capítulos do Gênesis.

O mestre sabe bem que o sentido literal é o verdadeiro, e normalmente o único eficaz. Muitas vezes ele recorre à Tradição para a explicação de um texto, quando o sentido não aparece claro, e quem contestará a legitimidade do procedimento? Por vezes, é verdade, a passagem escriturística não comprova nem representa senão uma semelhança de palavras com a tese a ser demonstrada, ou é mesmo — e isto é mais grave, quando se trata de textos dogmáticos — mal interpretada. Mas grande número de textos que se adaptam de modo imperfeito à verdade teológica é extraído do Sed contra. Por outro lado, não exijamos dos teólogos da Idade Média a precisão da crítica moderna: a exemplo dos Padres, uma longa interpretação os satisfaz muitas vezes. E, ademais, poderemos reprovar o Santo Doutor por considerar [apenas] a Vulgata? Isso não o impede de notar, em um ou outro lugar e de vez em quando, certas particularidades hebraicas, de apelar para outras versões, de precisar ou discutir algumas expressões gregas. Nossos próprios manuais de teologia ainda têm alguns progressos a fazer quanto a esse ponto. Pertencerá, aliás, ao professor, suprir as lacunas, corrigir os erros, completar remetendo à Suma — cuja riqueza escriturística conhecemos —, de rejuvenescer a explicação de São Tomás pela crítica textual, por uma interpretação conforme as leis da hermenêutica e os dados da filologia.

Entretanto, a autoridade que fundamenta a doutrina sagrada é representada também pela Tradição. São Tomás recorre a ela, e com tanta frequência que as citações transformam a Suma num repertório sistemático de Patrologia. Conforme Leão XIII:

 Os ensinamentos dos Padres jaziam por todos os lados como membros esparsos de um grande corpo. São Tomás os reuniu, fortificou uns com outros, classificou numa ordem admirável, e, por fim, os desenvolveu tão bem que sua obra permanece para a Igreja católica, verdadeiramente única, tanto em sua força tutelaria como em beleza.[10]

Os dois primeiros séculos da literatura eclesiástica são raros na Suma, sem dúvida porque foram escritos em grego, e esta produção era menos conhecida na Idade Média. Numerosas obras da época, perdidas no tempo, viram a luz do dia apenas mais tarde. Dos Padres apostólicos, apenas Clemente de Roma é nomeado, e o mesmo se diga quanto aos apócrifos. Nada consta dos Apologistas. São relativamente poucas as citações de obras posteriores ao século VIII, talvez porque três ou quatro séculos parecessem a São Tomás uma antiguidade insuficiente: A seus olhos, os nomes mais consideráveis, são: Rabano Mauro, Anselmo, Bernardo e, mais que todos, Pedro Lombardo, o Mestre das Sentenças, que ele frequentemente utiliza sem o citar, sobretudo para a documentação patrística. Não o utilizaria da mesma maneira Alexandre de Hales?

Que abundância, em relação ao período intermediário! Ele interroga o Oriente e o Ocidente, os Padres e os Doutores; os símbolos e as definições dos concílios. Inicialmente Orígenes, Tertuliano e Cipriano; depois, após muito tempo, o pseudo-Dionísio e João Damasceno, Boécio, Gregório Magno e Isidoro de Sevilha. E, entre uns e outros, os ilustres representantes do mais brilhante período literário da História da Igreja: Atanásio, o primeiro dos polemistas, os quatro Doutores da Igreja grega e os quatro da latina, entre os quais Agostinho, que ensinou a toda a Idade Média. O bispo de Hipona é para o Doutor Angélico a grande autoridade teológica, tal como Aristóteles representa a da razão.

Ele chega ao ponto de usar apócrifos. Mas o inconveniente não é grave se a doutrina spuria e das supposititia[11] representa de alguma forma a doutrina tradicional da Igreja. Ele fundamenta o Dogma apenas na grande e larga Tradição, e que discernimento na escolha de suas autoridades! Os testemunhos invocados numa questão são os dos especialistas; assim, a propósito da Graça, Agostinho intervém cinquenta e quatro vezes, contra cinco de Gregório, quatro de Dionísio, três de João Damasceno, duas de Ambrósio e Jerônimo, uma de Rabano Mauro e de Anselmo. Para mais, não será a admirável habilidade e a consciência do Doutor Angélico na utilização dos textos? De uma leitura, ele retém a frase ou a fórmula que exprime de maneira concentrada a substância do livro.

Esta imensa erudição será durante longo tempo uma das grandes fontes da patrística, e nós veremos os grandes teólogos, como Durand,[12] adotar e transcrever as soluções e os textos propostos por São Tomás.

Trata-se, portanto, de saber aproveitar esse tesouro.

Foi bem observado que “a interpretação não deve estar à frente da informação, mas, ao contrário, ela deve segui-la da mesma forma como o trabalho crítico não pode prejulgar a obra dogmática”[13] e que “a Teologia positiva torna-se, assim, a base necessária da Teologia especulativa”.[14] Com efeito, dar a conhecer é um fato contingente e deve se fundamentar por meio de provas. Daí não se deduz que, apenas com os documentos, possamos reconstituir a Teologia na sua íntegra. Gardeil o demonstrou excelentemente em seus estudos sobre “A Reforma da Teologia Católica”,[15] ao propor o método dito regressivo. A tradição é o gênero de informação que esteve à frente das primeiras elaborações teológicas. Com o tempo, este método não se modificará essencialmente, e ninguém teve a ideia de estabelecer a Teologia sobre o terreno da informação documentária e crítica.

Por isso, não se trata de fundamentar a Teologia sobre a informação documentária e crítica, pois o documento não é mais que um vestígio inadequado, sempre posterior, da tradição viva; ele não é toda a tradição, nem consequentemente toda a Teologia: esta é mais abarcativa que aquela.

Ele[16] não se contentará mais com uma aquisição preguiçosa, nem em aprender São Tomás de cor ou querer resolver tudo através das fórmulas da Suma.

A verdade está no meio: nem reconstrução ao estilo de novidade, nem um domínio que dispense trabalhar, mas laboriosa revisão. Ora, a revisão supõe que se parta de algo já conhecido.

Colocar-se-á então de mãos dadas a Teologia positiva e a Teologia escolástica insistindo: o procedimento será aquele do fides quaerens intellectum.[17]

É praticamente certo que essas condições se realizarão no estudo da Suma, propondo no início do tratado, da questão, do artigo, a doutrina a ser estabelecida; determinando seu valor teológico, explicando filosoficamente, e então, somente nessa altura, lançando o olhar sobre os textos citados por São Tomás. Colocaremos estes testemunhos em seu contexto, faremos a crítica textual e literária, esclarecê-los-emos por todos os meios possíveis e aproximá-los-emos de outras fórmulas do mesmo autor ou de autores diferentes, completando-os.

Por vezes, será suficiente estudar desta forma um só Padre, seja porque ele fala em nome de todos, como Agostinho na querela dos Rebatizados, seja porque representa a primeira autoridade para a questão debatida, como o mesmo Agostinho no tratado da Graça. Outras vezes, os textos propostos por São Tomás servirão como pedras angulares, às quais se juntarão outros testemunhos mais antigos ou recentes. Sempre se evitará justapor, sem explicação ou conexão, os textos tomados ao acaso, as fastidiosas lidainhas que não oferecem outro interesse que o de sobrecarregar inutilmente a memória do aluno… a menos, e isso é mais simples, que ele não fique sem os ler.

Entretanto, São Tomás não é somente rico pelo passado; ele é também, de alguma forma, um “grande do porvir”. Por que não comparar sua doutrina à dos teólogos posteriores, aos Cânones conciliares e às Atas eclesiásticas, que nele se inspiraram frequentemente, ou tomaram emprestada sua letra? Escrevia Pio X:

 A Suma comentada torna mais fácil a compreensão e a ilustração dos decretos solenes, da Igreja enquanto docente e dos atos que daí decorrem. Pois, após a bem-aventurada partida do Santo Doutor, nenhum Concílio houve na Igreja no qual não ele não se fizesse presente com as riquezas de sua doutrina.[18]

O professor tomista deverá, então, ao ensinar a Suma, mostrar como essa obra é precisamente o “resumo” da doutrina tradicional da Igreja, tomada sobre o claro pensamento dos Padres e exposta com a razão teológica, e como as decisões doutrinárias posteriores vivem das conclusões teológicas formuladas pelo Doutor Angélico. Assim, nós teremos uma pequena síntese do pensamento da Igreja, na qual a Suma Teológica terá um papel fundamental. É o caminho que unirá as Teologias positiva e escolástica numa só ciência, como na realidade o são, pois não parece possível separá-las. A doutrina da Igreja é uma só, sempre viva e vivificante.

Tradução do Prof. José Manuel Victorino de Andrade (IFAT)

 


[1] Tradução a partir do original francês. LE GRAND, Corentin. l’Enseignement de la Somme Théologique dans les Séminaires. Paris : Pierre Téqui, 1922. p. 35-43. (Première question : III Théologie spéculative et théologie positive).

[2] Provincial de Saint-Denis (Convento de Kermabeuzen-Quimper), Doutor em Teologia e Filosofia pela Academia de São Tomás e professor de Teologia Dogmática no Seminário de Quimper.

[3] Cf. O artigo de Coconnier, Positive ou spéculative, na Revue Thomiste, Janeiro 1903, p. 629-653, assim como os artigos de Legendre, sobre a Suma Teológica, na Revue des Facultés catholiques.

[4] [Nota do tradutor] “Omnia autem pertractantur in sacra doctrina sub ratione Dei: vel quia sunt ipse Deus; vel quia habent ordinem ad Deum, ut ad principium et finem” (S. Th. I, q. 1, a.7.). Na doutrina sagrada, tudo é tratado com referência a Deus: ou porque se trata do próprio Deus, ou porque está ordenado para Deus, como princípio e fim (tradução minha).

[5] R. P. GARRIGOU-LAGRANGE, De revelatione, I, p. 31.

[6] Quid sit Deus? O que é Deus? (tradução minha).

[7] An sit Deus? Acaso existe Deus? (tradução minha).

[8] Oeuvres, tome III, 3éme. Édition, p. 350.

[9] Cf. Os artigos de T. R. P. GARDEIL, La documentation de saint Thomas. Resposta a M. Turmel, na Revue Thomiste, Mai-Décembre 1904.

[10] Cf. Aeterni Patris. Na Encíclica encontra-se o seguinte texto: “Tomás coligiu suas doutrinas, como membros dispersos de um mesmo corpo; reuniu-as, classificou-as com admirável ordem, e de tal modo as enriqueceu, que tem sido considerado, com muita razão, como o próprio defensor e honra da Igreja” (n. 21).

[11] Doutrina “bastarda” ou ilegítima e das suposições ou conjeturas (tradução nossa).

[12] [Nota do tradutor] Guillaume Durand de Saint-Pourçain, dominicano francês, filósofo escolástico e teólogo, consultor de Clemente V e João XXII no Palácio Papal durante o exílio de Avignon e mais tarde bispo das Dioceses de Puy e Meaux. Conhecido como Doctor modernus, inaugurou o terceiro período da escolástica. Adotou muitas vezes o pensamento de São Tomás, embora também seja conhecido pelas críticas que lhe teceu. Os comentários às Sentenças de Pedro Lombardo constituem sua principal obra.

[13] Mignot, Lettres sur les études ecclésiastiques, p. 304.

[14] Idem.

[15] Revue Thomiste, Mars-Avril 1903, Idée d’une méthode régressive.

[16] [Nota do tradutor] O aluno.

[17] A Fé procurando o intelecto / o entendimento (tradução minha).

[18] Motu proprio Doctoris Angelici.