Os benefícios das tentações

jesus-e-apostolos1Evangelho – 1º domingo da quaresma

No deserto, Jesus não foi tentado apenas ao fim dos quarenta dias de jejum, mas ao longo de todo esse período.

Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

Pervadidos de mistério e propícios à meditação, o batismo do Senhor e a tentação no deserto constituem o pórtico de sua vida pública. Sobre essa matéria muito tem sido escrito ao longo dos séculos, procurando esclarecer seus mais profundos significados. Fixemos hoje nossa atenção nas tentações sofridas por Jesus.

Depois da teofania no Rio Jordão, encontramos no deserto dois sumos generais, Cristo e Satanás, num enfrentamento face a face. A guerra ali travada tornou-se o paradigma da luta de todo homem, durante sua existência terrena, a qual, por sua vez, recebe a influência de um e outro general. A aceitação de uma dessas influências determina sua vitória ou derrota pessoal.

Ação de Satanás sobre as almas

Sobre o supremo chefe dos maus e seus sequazes, o próprio Jesus diria mais tarde: “Vós tendes por pai o demônio e quereis fazer os desejos do vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque a verdade não está nele. Quando ele diz a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8, 44). Características estas que tornam singular o modo de agir de Satanás. Seu governo não é exercido no interior das almas, e nem sequer infunde nos seus um influxo vital. Ele consegue, isto sim, obscurecer o entendimento do pecador e apresentar-lhe maus desejos, através de tentações que lhe sugere. O demônio não tem outra intenção a não ser afastar os homens de Deus, seu Criador, e levá-los à revolta. Deseja que todos pequem o quanto possível, para assim perderem o uso da verdadeira liberdade. Na sua ação mais direta, o demônio explora nos homens a tríplice concupiscência.

De outro lado, ele odeia a verdadeira união que deve reinar no relacionamento entre os homens, e, atuando em sentido oposto, visa obter a desagregação da sociedade.

Modo de atuar de Jesus Cristo

Por sua vez, Cristo também exerce sobre os seus súditos uma influência externa, própria a qualquer rei, mas o faz com toda a perfeição e de maneira mais eficaz. Sua doutrina é clara e lógica; não só Ele a ensina com palavras, mas apresenta-Se a Si mesmo como seu exemplo insuperável e atraente. Quem puser em prática seus preceitos chegará infalivelmente à vitória.

Sua ação sobre os fiéis é incomparavelmente mais profunda do que a de Satanás sobre os seus respectivos seguidores. Jesus é a cabeça do Corpo Místico, e d’Ele deflui para os seus membros a graça santificante. Devido à união hipostática com Deus, a humanidade de Cristo tem virtude para santificar (1). É em função dela que São Paulo afirma: “Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim. A minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé no Filho de Deus, que me amou e Se entregou por mim” (Gl 2, 20).

A vida divina do batizado

Essa vida, infundida por ocasião do Batismo, é tão necessária e superior que, sem sua seiva, nada pode realizar o cristão. “Sem Mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Por isso afirma São Paulo: “Tudo posso n’Aquele que me conforta” (Fl 4, 13).

Essa é a vida que nós, batizados, devemos buscar, na certeza da vitória, caso com ela estabeleçamos uma perfeita união. Assim como as portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja (cf. Mt 16, 18), assim também cada um de nós — desde que unido pela fé e pelas obras a Cristo Jesus, nosso sumo general, Rei, Sacerdote e Profeta — não conhecerá o fracasso, e com toda a segurança chegará ao triunfo final, pois foi Ele quem nos mereceu o amparo e auxílio contra as tentações.

Por que Cristo Se dispôs a ser tentado

Essa perspectiva nos tornará claro o Evangelho de hoje, pois “Cristo quis ser tentado” e até mesmo “voluntariamente Se apresentou ao tentador” (2). Dispôs-Se Ele a ser nosso exemplo “para nos ensinar o modo de vencer as tentações do diabo. Por isso diz Santo Agostinho que Cristo Se deixou tentar pelo diabo a fim de ser nosso mediador e nos ajudar a triunfar sobre as tentações daquele, prestando-nos não apenas seu socorro, mas dando-nos também seu exemplo” (3). Da mesma forma como Jesus, pelo fato de ter abraçado sua própria morte, pôde dizer a esta: “Onde está teu aguilhão? Onde está tua vitória?”, assim também, em relação às nossas tentações, Ele as venceu no deserto. Pois, como ensina São Gregório, é compreensível que “Nosso Salvador, o qual viera para ser morto”, quisesse também “ser tentado, de tal modo que, por suas tentações, Ele pudesse vencer as nossas, assim como, por sua morte, Ele venceu a nossa” (4).

Melhor do que ninguém, Jesus sabia os riscos pelos quais passamos em nossa existência e quis, com o exemplo de sua própria vida, advertir-nos a respeito deles — sobretudo aqueles de nós mais chamados a uma via de maior entrega e perfeição. “De tal modo que ninguém, por mais santo que seja, pense estar seguro e imune à tentação. Por isso Cristo quis ser tentado após seu batismo, como diz Santo Hilário, porque ‘as tentações do diabo assaltam principalmente quem está santificado, pois ele deseja sobretudo triunfar sobre os santos’. Daí também estar escrito: ‘Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação’ (Eclo 2, 1)” (5).

Quem poderia nos ensinar eficazmente a vencer as tentações com firmeza, senão o próprio Cristo?

Por fim — ainda segundo São Tomás de Aquino —, Jesus permitiu que o demônio O tentasse “para dar-nos confiança em sua misericórdia, pelo que se diz: ‘Porque não temos n’Ele um pontífice incapaz de compadecer-Se das nossas fraquezas. Ao contrário, passou pelas mesmas provações que nós, com exceção do pecado’ (Heb 4, 15)” (6).

ii – ensinamentos
a tirar das tentações de jesus cristo

1 Jesus, cheio do Espírito Santo, partiu do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, 2 onde esteve quarenta dias, e foi tentado pelo demônio. Não comeu nada nestes dias; passados eles, teve fome.

Este início do capítulo 4 vem envolto num insondável mistério: “Cheio do Espírito Santo…” Ademais, “foi levado pelo Espírito…”. Por que “levado”? Outro Evangelista dirá “conduzido”, e um terceiro, “impelido”. São verbos categóricos que exprimem bem o poder empregado pelo Espírito Santo para agir em nossas almas quando eleitas para uma grande missão.

O batismo deve ter-se realizado à altura de Jericó. Dali saindo, provavelmente subiu as encostas agrestes do Monte Quarentena (Djebel Qarantal), composto de rochas avermelhadas, com cinco cristas muito características, separadas por consideráveis ravinas. Ainda hoje encontram-se por aquelas pedras escavações feitas à mão, que o zelo fervoroso de contemplativos trabalhou para favorecer a solidão procurada por eles. No seu ponto mais alto, um observador pode percorrer o lindo panorama circular: ao norte, o Hermon; a oeste, a terra de Judá; ao sul, o Mar Morto; a leste, o Monte Nebo (de onde Moisés avistou a Terra Prometida pouco antes de morrer), e os planaltos da Perea. Naqueles tempos, por lá deviam vagar animais selvagens, tornando o lugar muito inóspito para qualquer homem, ainda mais na situação de solidão em que se encontrava Jesus, conforme nos relata Marcos: “Esteve em companhia dos animais selvagens” (Mc 1, 13). Hoje, no cimo do monte, ergue-se o convento de São João, ocupado por monges gregos que solicitamente acompanham os peregrinos até a gruta que teria sido freqüentada pelo Salvador e chegam a indicar, até mesmo, as marcas de seus divinos pés sobre as pedras do caminho.

Jesus foi tentado durante quarenta dias

São Lucas nos fala de tentações ao longo de quarenta dias, entretanto só menciona as três últimas delas. Como entender este fato? São Tomás assim no-lo responde: “Segundo a explicação de Beda, o Senhor foi tentado durante quarenta dias e quarenta noites. Mas não se trata daquelas tentações visíveis mencionadas por Mateus e Lucas, as quais ocorreram evidentemente após o jejum, mas de outros assaltos que Cristo pôde sofrer do diabo durante aquele tempo do jejum” (7). São Tomás de Aquino é harmônico, neste seu parecer, com muitos outros autores como, por exemplo, São Justino, Orígenes, Santo Agostinho, se bem que outros tantos — como Suárez, Lagrange, Plummer — discordem deste ponto de vista.

São Mateus é ainda mais categórico ao dizer: “Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio” (Mt 4, 1).

Na história da criação, os primeiros a padecerem a prova da tentação foram os Anjos, e nem todos permaneceram fiéis… A seguir foram os nossos primeiros pais, e de seu pecado sofrerão as conseqüências todos os homens, até o fim do mundo. Mas Jesus era impecável e, apesar disso, pôde efetivamente ser tentado. N’Ele não existia o fomes peccati nem sequer a mais leve inclinação ao pecado, quer fosse pela carne ou até mesmo pelas pompas e vaidades do mundo, por possuir, ademais, um juízo sereno e clarividente. Porém, quanto às sugestões diabólicas externas, não havia o menor inconveniente em que viesse submeter-Se a elas voluntariamente, pois, não sendo interiores e também por não haver a menor imperfeição em Quem as padeceu, deixam a exclusividade de toda a malícia ao tentador (8).

De acordo com os desígnios de Deus, “convinha [a Jesus] que Ele se tornasse em tudo semelhante aos seus irmãos” (Hb 2, 17), pois, para levar até os extremos limites seu amor por nós, ao “compadecer-Se de nossas fraquezas”, maior perfeição manifestaria quando passasse “pelas mesmas provações que nós, com exceção do pecado” (Hb 4, 15).

Sobre a razão da oração e do jejum, baste-nos lembrar que “esta espécie de demônio só se pode expulsar à força de oração e de jejum” (Mt 17, 20).

A dúvida do demônio

3 Então o demônio disse-Lhe: “Se és Filho de Deus, diz a esta pedra que se converta em pão”.

Os autores se conjugam no comentário deste versículo, e dentre eles se destaca Suárez (9), afirmando que, ao tentar Jesus, o demônio não visou principalmente fazê-Lo pecar, mas saber ao certo se Ele era ou não o Filho de Deus. Com uma habitual e sintética clareza, São Tomás assim nos explica esse particular: “Como diz Santo Agostinho, ‘Cristo Se fez conhecer dos demônios na medida que Lhe pareceu conveniente, não porque Ele é a vida eterna, mas por certos efeitos temporais de seu poder’, de onde podiam eles conjecturar que Jesus era o Filho de Deus. Mas como viam n’Ele sinais de debilidade humana, não sabiam com certeza que era Filho de Deus; por isso quiseram tentá-Lo. Esse é o sentido das palavras de Mateus (Mt 4, 2-3), quando se diz que, depois que teve fome, o tentador se aproximou d’Ele; pois, como diz Santo Hilário, ‘o demônio não teria ousado tentar Cristo se não tivesse observado n’Ele, pela debilidade da fome, a natureza humana’. Isso é evidente pelo próprio modo de tentar, quando ele fala: ‘Se és o Filho de Deus’. Santo Ambrósio explica tais palavras, dizendo: ‘O que denota essa maneira de se expressar, senão que ele sabia que o Filho de Deus haveria de vir, mas não acreditava que tivesse vindo na fraqueza da carne?’” (10).

Algo devia saber Satanás sobre aquele varão sui generis, o qual, apesar de nascido numa gruta, havia sido louvado por anjos, pastores e reis do Oriente. Pois, se assim não fosse, teria empregado menos sofisticação na elaboração das tentações, como adiante veremos. O fato de o demônio começar pela suposição “se és o Filho de Deus” demonstra sua suspeita, não ainda inteiramente comprovada, de se tratar do Messias prometido, se bem que humano e não divino. E por isso procura seduzi-Lo e fazê-Lo abandonar as vias do Pai.

Como fez o demônio para tentar Jesus

Sobre a maneira de o demônio apresentar a Jesus suas seduções, divergem as opiniões dos autores. Uns poucos chegam a conferir-lhes um caráter meramente simbólico, ou seja, não passaram de invenções dos Evangelistas para ajudar os homens em suas lutas espirituais. Outros, apesar de aceitarem sua existência real, julgam não terem ocorrido senão por pura sugestão interna. Ambas as suposições não nos parecem cabíveis, tanto debaixo do prisma meramente histórico, como do teológico. Entre os que escolhem a via mais segura está Suárez, categórico em admitir a hipótese de o demônio ter assumido forma física para poder tentar Jesus:

“Satanás deve ter aparecido usando a figura humana, como o diálogo entre um e outro parece exigir. Talvez com a aparência de um santo varão ou alguma outra que julgasse mais própria para convencer. Não pôde tentar o Senhor a não ser pela palavra, do mesmo modo como fez com Adão, pois ambos careciam de paixões insubordinadas, e não era decoroso que o tentador pudesse atuar na imaginação ou potências internas de Cristo” (11).

Através das pequenas coisas, tenta o demônio as grandes vocações

Ainda dentro dos ensinamentos de São Tomás de Aquino (12), sabemos que os homens entregues às vias da perfeição, o demônio não procura tentá-los diretamente para os pecados mais graves. Sua aproximação inicial é através das imperfeições e faltas leves, até o momento de propor as graves. Essa metodologia, ele a empregou no Paraíso terrestre ao seduzir nossos primeiros pais. Começou esforçando-se por despertar a gula de Eva: “Por que não comeis?…” Depois sua vã curiosidade: “Vossos olhos se abrirão…” Por fim, apresentou-lhe o último grau de orgulho: “Sereis como deuses…”

No caso do presente versículo, serve-se Satanás de uma situação concreta. Depois de quarenta dias em completo jejum, fizeram-se presentes em Jesus as características de Filho do Homem: teve necessidade de repor suas energias, sentiu o ímpeto da fome. De todas as virtudes, uma das mais importantes é a fé. Sem uma direta revelação, assimilada por essa virtude, nenhuma criatura, humana ou angélica, é capaz de admitir a hipótese da união das duas naturezas em Cristo. Por isso o espírito maligno — que não possui a fé — aproxima-se d’Ele a fim de chamar-Lhe a atenção para as pedras do caminho que mais se assemelhavam às formas dos pães da época. Quiçá chegasse a Lhe fazer a proposta tendo nas mãos algumas delas.

Inversão da ordem: um ato revolucionário

Depois de insidiosamente procurar estimular o amor-próprio de sua suposta vítima, quis o demônio fazer Jesus utilizar-Se, com desobediência e abuso, dos poderes divinos, para satisfazer a fome e, assim, ser levado também à gula. Ardilosa a proposta, pois a necessidade era real; e que é o pão senão um alimento dos pobres? Conseguiria o demônio, por essa via, não só levar aquele Homem ao uso indevido do poder de fazer milagres, como, ademais, comprovar a messianidade d’Ele. Se Jesus tivesse caído nessa artimanha, sua natureza divina seria, nessa ocasião, subjugada à humana. No fundo, praticaria um ato revolucionário, ao inverter a verdadeira ordem e grau de importância dos seres, embora, absolutamente considerado, não seja nenhuma falta saciar a fome nem mesmo fazer um milagre.

Sobre este particular, ensina-nos o Doutor Angélico:

“Usar do necessário para o sustento não constitui pecado de gula; mas pode pertencer a esse vício o fato de o homem agir de modo desordenado pelo desejo desse sustento. Ora, é desordenado querer obter o alimento por meio de um milagre, quando se pode recorrer a meios humanos para o sustento do corpo. Cristo podia satisfazer sua fome de outra maneira, sem necessidade de um milagre, fazendo como São João Batista (Mt 3, 4), ou mesmo indo a localidades vizinhas. Por isso o demônio pensava que Cristo pecaria se, sendo um homem como os outros, tentasse fazer milagres para aplacar a fome” (13).

Diabólica exploração das revoluções

4 Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus’”.

Jesus poderia ter transformado as pedras em pão, como depois multiplicaria por duas vezes os pães e os peixes. Mas não o fez. Nessa ocasião, não terá querido Ele, além de outros objetivos, ensinar-nos a ilegitimidade das revoltas por ter faltado alimento?

Quantas revoluções foram levadas a cabo, ao longo da História, por uma pura, malévola e — por que não dizer? — diabólica exploração da fome! Nas circunstâncias de penúria, por que não se voltam os homens para o mesmo Deus de Moisés, que não deixou sem alimento o seu povo durante quarenta anos no deserto?

Supremacia da vida espiritual sobre a corporal

Em sua resposta repassada de sabedoria divina, Jesus torna patente, ao demônio e à humanidade, a existência de uma vida muito mais nobre do que a corporal, ou seja, a espiritual. “A palavra de Deus” é constituída pelas ordens divinas, por tudo aquilo que reflete sua soberana vontade, como mais tarde Ele mesmo afirmaria: “Meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que Me enviou” (Jo 4, 34).

É notável a diferença da reação de Jesus diante dessa proposta feita por Satanás, e diante da feita por Maria nas Bodas de Caná: à sua venerável Mãe, Ele atendeu, por saber o quanto era vontade do Pai confirmar o poder impetratório das súplicas de sua Filha bem-amada.

Na frase de Jesus retrucando ao demônio, torna-se claro não ser imprescindível o pão. Deus dispõe incontáveis meios para resolver o problema da fome. Jesus se alimentará como for da vontade do Pai. Se o desígnio d’Este é que a palavra O sustente, qual a necessidade do pão? E se este for indispensável, não tem o Pai o poder de o conceder?

Dupla tentação: medo e ambição

5 O demônio conduziu-O então a um alto monte, mostrou-Lhe, num momento, todos os reinos da terra, 6 e disse-Lhe: “Dar-Te-ei o poder de tudo isto, e a glória destes reinos, porque eles foram-me dados, e eu dou-os a quem quiser. 7 Portanto, se Tu me adorares, todos eles serão teus”.

As mais variadas hipóteses foram levantadas por alguns autores sobre qual teria sido esse alto monte, com vista para todos os reinos da terra. Para uns teria sido o Tabor, para outros o Nebo ou o Hermon. De qualquer deles, porém, é impossível contemplar os reinos deste mundo. Mais acertadamente opinam os que optam por afirmar ter-se servido o demônio de suas artes de magia, espelhismo ou fantasmagoria, para fazer transcorrer diante dos olhos de Jesus “num momento” as maravilhas dos reinos com seus palácios e esplendores; em síntese, todas as belezas das glórias exteriores de nossa terra de exílio.

Na sua inferioridade de anjo decaído, com muita ignorância, julgou haver atraído irresistivelmente Jesus e, por essa razão, propõe-Lhe logo um pecado de idolatria para, assim, entregar-Lhe a posse de tudo. Comentando essa passagem, São Jerônimo bem atribui ao demônio uma linguagem soberba, e sobretudo falsa, pois o espírito maligno não pode prometer nem, menos ainda, conceder reinos a ninguém, sem a permissão de Deus (14). Não obstante, ele é senhor dos vícios e dos pecados. Acreditava poder lisonjeá-Lo para açular uma irrefreável ambição ou, então, amedrontá-Lo, revelando-Lhe a poderosa oposição que enfrentaria, se contra Ele se levantassem aqueles reinos, caso não os aceitasse ao preço da idolatria. Não sofreu, porém, o Divino Redentor a atração da ambição nem o temor do poderio adverso.

Desde o Paraíso terrestre, nós, homens e mulheres, quando sem a graça e a virtude, somos fascinados pelo sonho de ser deuses. Essa é a desastrosa história de boa parte da humanidade. Felizes aqueles e aquelas que respondem a Satanás como o fez Jesus.

A grande tentação da humanidade decaída

8 Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás’”.

Tornar-se o senhor do mundo, possuir todos os bens e todas as riquezas, ainda que deixando de adorar o verdadeiro Deus: eis a tentação diante da qual não poucos sucumbem, em nosso estado de prova; e, às vezes, até por preços muito menores.

Na resposta de Jesus, encontramos o divino exemplo a seguir. Reproduzindo o versículo 13 do capítulo 6 do Deuteronômio, faz um juramento de fidelidade ao Pai: a não ser Ele, ninguém, nem coisa alguma, merece homenagens e muito menos adoração.

Tentação de vanglória

9 Levou-O também a Jerusalém, colocou-O sobre o pináculo do Templo e disse-Lhe: “Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo; 10 porque está escrito que ‘Deus mandou aos seus anjos que Te guardem, 11 e que Te sustenham em suas mãos, para não magoares o teu pé em nenhuma pedra’”.

É um paradoxo imaginar o anjo caído dos Céus transportando seu Criador pelos ares. A isso se submeteu nosso Salvador, para benefício dos que foram expulsos do Paraíso.

É digna de nota a sutileza diabólica nesta tentação, pelo fato de se servir de citação da Escritura para conferir maior solidez à sua argumentação. Aprendeu a lição do próprio Jesus, ao receber d’Ele sua primeira resposta.

Grande espetáculo causaria sua descida sensacional, amparado por anjos, em meio ao pátio do Templo. E, se isso acontecesse, provado estaria para Satanás a filiação divina de Jesus, objetivo ansiosamente desejado por seus ardis. Já não é mais a gula, nem a ambição, mas a vanglória, que a tantos leva para o inferno, o instrumento usado pelo demônio para tentar o Messias.

12 Jesus respondeu-lhe: “Também foi dito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’”.

Uma nova confusão inflige Jesus ao revoltado Satanás, também com palavras do Deuteronômio (6, 16). Colocar-se em perigo grave, obrigando Deus a intervir, é um pecado cheio de malícia.

13 Terminada toda esta espécie de tentação, o demônio retirou-se d’Ele até outra ocasião.

A maioria dos autores é partidária de ter, de fato, o demônio continuado a investir contra Cristo, ao longo de sua vida pública, propondo-Lhe, através destes ou daqueles, a aceitar a coroa ou a praticar milagres imprudentes.

Foi só no Horto, no Pretório e no Calvário que ele imaginou ter conseguido realizar seu sonho, todo feito de gaudium phantasticum. Entretanto, ali, Cristo triunfou sobre os infernos, o pecado e a própria morte!

Revista Arautos número 62

1 ) Cf. São Tomás de Aquino, Suma Teológica III, q. 8, a. 6c.

2) Idem III, q. 41 a. 1.

3) Id. ibid.

4) Id. ibid.

5) Id. ibid.

6) Id. ibid.

7) Op.cit. III, q. 41, a. 3 ad. 2.

8) Cf. op. cit. III, q. 41 a. 1 ad. 3.

9) Cf. Francisco Suárez S.J.,Misterios de la Vida de Cristo, BAC, Madrid, t. 1, p. 825.

10) São Tomás de Aquino, Suma Teológica III, q. 41, a. 1, ad. 1.

11) Op. cit. BAC, Madrid, t. 1, p. 825.

12) Cf. op. cit. III, q. 41, a. 4.

13) Op. cit. III, q. 41, a. 4, ad. 1.

14) Cf. Comment. In Matth., h. 1.

À porta da Quaresma

Bento2Gaudium Press

Leia a seguir uma homilia de Bento XVI sobre a Quarta-feira de Cinzas editada pelos articulistas de Gaudium para a Festa deste ano.

“Ao receber daqui a pouco as cinzas sobre a cabeça, ouviremos mais uma vez um claro convite à conversão que pode expressar-se numa fórmula dupla: “Convertei-vos e acreditai no evangelho”, ou: “Recorda-te que és pó e em pó te hás-de tornar”.

Precisamente devido à riqueza dos símbolos e dos textos bíblicos, a Quarta-Feira de Cinzas é considerada a “porta” da Quaresma. De fato, a hodierna liturgia e os gestos que a distinguem formam um conjunto que antecipa de modo sintético a própria fisionomia de todo o período quaresmal. Na sua tradição, a Igreja não se limita a oferecer-nos a temática litúrgica e espiritual do itinerário quaresmal, mas indica-nos também os instrumentos ascéticos e práticos para o percorrer frutuosamente.

“Convertei-vos a mim de todo o vosso coração com jejuns, com lágrimas, com gemidos”. (Joel 2,12). Os sofrimentos, as calamidades que afligiam naquele tempo a terra de Judá estimulam o autor sagrado a encorajar o povo eleito à conversão, isto é, a voltar com confiança filial ao Senhor dilacerando o seu coração e não as vestes. De fato, recorda o profeta, ele “é clemente e compassivo, paciente e rico em misericórdia e se compadece da desgraça” (2, 13). O convite que Joel dirige aos seus ouvintes também é válido para nós.

Não hesitemos em reencontrar a amizade de Deus perdida com o pecado; encontrando o Senhor experimentamos a alegria do seu perdão. E assim, quase respondendo às palavras do profeta, fizemos nossa a invocação do refrão do Salmo 50: “Perdoai-nos Senhor, porque pecamos”. Proclamando, o grande Salmo penitencial, apelamo-nos à misericórdia divina; pedimos ao Senhor que o poder do seu amor nos volte a dar a alegria de sermos salvos. Com este espírito, iniciamos o tempo favorável da Quaresma, como nos recordou São Paulo: “Aquele que não havia conhecido o pecado, diz ele, Deus o fez pecado por nós, para que nos tornássemos, nele, justiça de Deus” (2 Cor 5, 21), para nos deixarmos reconciliar com Deus em Cristo Jesus. O Apóstolo apresenta-se como embaixador de Cristo e mostra claramente como precisamente através d’Ele, seja oferecida ao pecador, isto é a cada um de nós, a possibilidade de uma reconciliação autêntica.

Só Cristo pode transformar qualquer situação de pecado em novidade de graça. Eis por que assume um forte impacto espiritual a exortação que Paulo dirige aos cristãos de Corinto: “Em nome de Cristo suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus”; e ainda: “Este é o tempo favorável, é este o dia da salvação” (5, 20; 6, 2). Enquanto Joel falava do futuro dia do Senhor como de um dia de terrível juízo, São Paulo, referindo-se às palavras do profeta Isaías, fala de “momento favorável”, de “dia da salvação”. O futuro dia do Senhor tornou-se o “hoje”. O dia terrível transformou-se na Cruz e na Ressurreição de Cristo, no dia da salvação. E este dia é agora, como nos diz o Canto ao Evangelho: “Hoje não endureçais os vossos corações, mas ouvi a voz do Senhor”. O apelo à conversão, à penitência ressoa hoje com toda a sua força, para que o seu eco nos acompanhe em cada momento da vida.

A liturgia da Quarta-Feira de Cinzas indica assim na conversão do coração a Deus a dimensão fundamental do tempo quaresmal. Esta é a chamada muito sugestiva que nos vem do tradicional rito da imposição das cinzas, que daqui a pouco renovaremos. Rito que assume um dúplice significado: o primeiro relativo à mudança interior, à conversão e à penitência, enquanto o segundo recorda a precariedade da condição humana, como é fácil compreender das duas fórmulas diversas que acompanham o gesto.

Amados irmãos e irmãs, temos quarenta dias para aprofundar esta extraordinária experiência ascética e espiritual. No Evangelho (cf. Mt 6, 1-6.16-18), Jesus indica quais são os instrumentos úteis para realizar a autêntica renovação interior e comunitária: as obras de caridade (a esmola), a oração e a penitência (o jejum). São as três práticas fundamentais queridas também à tradição hebraica, porque contribuem para purificar o homem aos olhos de Deus.

Estes gestos exteriores, que devem ser realizados para agradar a Deus e não para obter a aprovação e o consenso dos homens, são por Ele aceites se expressam a determinação do coração a servi-l’O, com simplicidade e generosidade. Recorda-nos isto também um dos Prefácios quaresmais onde, em relação ao jejum, lemos esta singular expressão: “ieiunio… mentem elevas: com o jejum elevas o espírito” (Prefácio IV).

O jejum, ao qual a Igreja nos convida neste tempo forte, certamente não nasce de motivações de ordem física ou estética, mas brota da exigência que o homem tem de uma purificação interior que o desintoxique da poluição do pecado e do mal; que o eduque para aquelas renúncias saudáveis que libertam o crente da escravidão do próprio eu; que o torne mais atento e disponível à escuta de Deus e ao serviço dos irmãos. Por esta razão o jejum e as outras práticas quaresmais são consideradas pela tradição cristã “armas” espirituais para combater o mal, as paixões negativas e os vícios.

A este propósito, apraz-me ouvir de novo convosco um breve comentário de São João Crisóstomo. “Como no findar do Inverno escreve ele volta a estação do Verão e o navegante arrasta para o mar a nave, o soldado limpa as armas e treina o cavalo para a luta, o agricultor lima a foice, o viandante revigorado prepara-se para a longa viagem e o atleta depõe as vestes e prepara-se para as competições; assim também nós, no início deste jejum, quase no regresso de uma Primavera espiritual forjamos as armas como os soldados, limamos a foice como os agricultores, e como timoneiros reorganizamos a nave do nosso espírito para enfrentar as ondas das paixões. Como viandantes retomamos a viagem rumo ao céu e como atletas preparamo-nos para a luta com o despojamento de tudo” (Homilias ao povo antioqueno, 3).

Na mensagem para a Quaresma, convidei a viver estes quarenta dias de especial graça como um tempo “eucarístico”. Haurindo daquela fonte inexaurível de amor que é a Eucaristia, na qual Cristo renova o sacrifício redentor da Cruz, cada cristão pode perseverar no itinerário que hoje empreendemos solenemente. As obras de caridade (a esmola), a oração, o jejum juntamente com qualquer outro esforço sincero de conversão encontram o seu significado mais alto e valor na Eucaristia, centro e ápice da vida da Igreja e da história da salvação. “Este sacramento que recebemos, ó Pai assim rezamos no final da Santa Missa nos ampare no caminho quaresmal, santifique o nosso jejum e o torne eficaz para a cura do nosso espírito”.

Pedimos a Maria que nos acompanhe para que, no final da Quaresma, possamos contemplar o Senhor ressuscitado, interiormente renovados e reconciliados com Deus e com os irmãos. Amém!”

Adaptação da Homilia do Papa Bento XVI – Quarta-feira de Cinzas, 21 de Fevereiro de 2007 – Basílica de Santa Sabina no Aventino.