O homem deve voltar-se para uma realidade que o transcende

Mons. João S. Clá Dias, EP

Deixou Deus a lei natural vincada de forma indelével no coração do homem, para que ela sempre lhe lembrasse o bem a ser praticado e o mal a ser evitado. Esta lei, todavia, não possui a eficácia de outrora sobre o livre-arbítrio do homem que, quando o emprega mal, a pode desprezar. Consentindo em realizar atos diferentes dos indicados pela própria consciência inocente e reta, ele busca justificá-los com falsos argumentos, a fim de encontrar abertas diante de si as portas para realizar novas ações contrárias à Lei.

Ao abraçar essa via, a criatura racional paulatina e progressivamente obnubila seu senso moral até reduzir ao mínimo sua noção de bem e de mal, assim como a dos outros transcendentais do ser. Trata-se de um dos maiores infortúnios que pode suceder ao homem, pois como consequência, passará a ostentar um “coração de pedra” (Ez 11, 19), no qual quase não mais se notarão as amorosas marcas da Lei impressas pelo dedo de Deus.

Com efeito, é inegável ter havido no século XX um vertiginoso progresso em todos os campos do conhecimento humano, do qual não ficou excluído o da filosofia. Empenhado este ramo do saber na busca da verdade, acabou, em nossa época, por concentrar sua atenção sobre o homem, favorecendo de alguma forma o progresso da cultura.

No entanto, como assinalou o Papa João Paulo II na Encíclica Fides et Ratio, a razão, por se ter voltado demasiadamente para a investigação do homem, “parece ter-se esquecido de que este é sempre chamado a voltar-se também para uma realidade que o transcende” (n. 5).

Cabe à Igreja, depositária da Revelação de Jesus Cristo, recordar ao homem moderno a necessidade da reflexão sobre a verdade, tarefa que o Papa João Paulo II retomou na sua mencionada encíclica. Ao fazê-lo, o Pontífice apontou também alguns desvios do pensamento que caracterizam certas correntes contemporâneas:

“A razão, sob o peso de tanto saber, em vez de exprimir melhor a tensão para a verdade, curvou-se sobre si mesma, tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar e de ousar atingir a verdade […]. Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo. […] Ganharam relevo diversas doutrinas que tendem a desvalorizar até mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter alcançado. […] Neste horizonte, tudo fica reduzido a mera opinião” (Idem).

Já no meio-dia do século XX, o Concílio Vaticano II uma vez mais insistia na necessidade de que o mundo hodierno endireitasse suas vias se quisesse colher os frutos de um verdadeiro progresso cultural, pois este, furtando-se à solicitude retificadora da Igreja, acabaria por se desviar de sua própria finalidade que é a elevação do espírito humano:

“A boa nova de Cristo renova continuamente a vida e a cultura do homem decaído e combate e elimina os erros e males nascidos da permanente sedução e ameaça do pecado. Purifica sem cessar e eleva os costumes dos povos. Fecunda como que por dentro, com os tesouros do alto, as qualidades de espírito e os dotes de todos os povos e tempos; fortifica-os, aperfeiçoa-os e restaura-os em Cristo. Deste modo, a Igreja, realizando a própria missão, já com isso estimula e ajuda a cultura humana, e com a sua atividade, incluindo a liturgia, educa o homem à liberdade interior” (Gaudium et Spes, n. 58).