O primeiro olhar da inteligência

Mons. João S. Clá Dias, EP

O famoso neotomista francês, Pe. Réginald Garrigou-Lagrange, OP, deixou-nos ricas páginas a respeito do primeiro olhar da inteligência sobre as coisas e sobre a vida,[1] considerando-o primeiramente através de um prisma meramente natural e, em seguida, enquanto banhado pela graça.

Tomando como ponto de partida a afirmação de Nosso Senhor — si oculus tuus fuerit simplex, totum corpus tuum lucidum erit (Mt 6, 2) —, Garrigou-Lagrange comenta que esse é um estudo de universal interesse, chamando a atenção não apenas de estudiosos, mas também de pessoas mais simples, desde que tenham alma elevada e grandes aspirações.

Nunca será demais realçar a riqueza virtual desse primeiro olhar e a necessidade, para o jovem ou o adulto de qualquer idade, de retornar a ele. Esse é o meio adequado do ser humano voltar-se para aquele mundo de verdades sobrenaturais e metafísicas as quais talvez tenha deixado obscurecer em seu espírito, seja porque colocou seu coração demasiadamente nos bens terrenos, seja porque sucumbiu à pressão do ambiente. Em geral, por ambas as razões.

A complexidade da vida nos dias atuais constitui outra grave dificuldade para o primeiro olhar. Com efeito, hoje as mentes são bombardeadas sem cessar pelas cacofonias da civilização do efêmero, do relativo, do contraditório, do meramente palpável. Já em meados do século XX se tornava avassalador o domínio do tecnicismo, mas este, graças ao avanço da eletrônica, vai agora alcançando um paroxismo. Enquanto a instituição da família cristã atravessa uma crise desagregadora sem precedentes, os lares são inundados por todo tipo de aparelhos fascinantes. Desde a mais tenra idade, meninos e meninas são cativados por jogos, blogs, you tubes, i-pods, play stations, face books, celulares, e — além do risco moral e psicológico que correm — perdem aquilo que de melhor tem a infância: os momentos serenos de contemplação das coisas, os “sonhos” com mundos maravilhosos, os períodos concedidos à imaginação criativa ancorada no bem e no belo. Não se trata de um problema circunscrito à infância: a possibilidade de recuperação do primeiro olhar padece sob o poder imperialista da técnica, e uma quantidade esmagadora de informações impossível de ser digerida.

Lembro-me com simpatia de um vietnamita que, nos anos 70, definia seu maior prazer na vida como estar sentado sozinho à porta de sua casa de campo, admirando a paisagem tingida pelas sucessivas cores do pôr-do-sol. Trata-se de uma atitude que se vai tornando rara. Hoje será mais provável encontrarmos cada um dos moradores dessa residência diante de uma tela de computador.

Nas épocas anteriores à civilização da técnica e ao domínio do relativismo e da superficialidade, as pessoas chegavam a alcançar uma robustez e segurança de espírito da qual é difícil fazer ideia. E o ponto de partida se encontrava numa infância na qual o senso do ser e dos seus transcendentais era desenvolvido natural e paulatinamente, servindo de farol para toda uma vida alicerçada no senso comum.

Mas ainda agora é possível, com muito esforço e boa orientação, restaurar esse senso, do qual dependem uma inteligência, uma vontade e uma sensibilidade bem constituídas.

Voltar àquele primeiro olhar límpido e inocente da criança nos seus primeiros contatos com o mundo é, do ponto de vista natural, a única maneira de atingir tal fim, impedindo que nossa inteligência soçobre no meio do caos moderno, e, pelo contrário, subjugue-o, discirna-o e contribua para mudar o rumo das coisas.

De igual ou maior importância é o dever de todo adulto de proteger, favorecer e guiar o desenvolvimento psicológico da criança na fidelidade ao primeiro olhar.

Com São Tomás, Garrigou-Lagrange afirma a similitude entre “o primeiro olhar intelectual de uma criança e, no outro extremo da existência, a contemplação simples do ancião que descobriu o verdadeiro sentido e o preço da vida”.[2]

Em resumo, a fidelidade ao primeiro olhar conduz à contemplação. Nem o burburinho das atividades, o convívio às vezes conflituoso, a turbulência intelectual, nem os tropeços, impedirão alcançar esse píncaro. O olhar límpido e fortalecido não sucumbe às desilusões, aos dramas e aos obstáculos, mas vive na paz constante.


[1]              Garrigou-Lagrange, Réginald. El Sentido Común, la Filosofia del ser y las fórmulas dogmáticas. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1944. p. 329-350.

[2]              Ibidem, p. 329.

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