O imperativo da lei natural

Pe. Jorge Filipe Teixeira Lopes, EP

pensadoresA ordem moral do homem aplicada com liberdade, isenta de coações ou imposições, é o meio pelo qual o homem deve reger a sua vida pessoal. Para tal, essa liberdade deve ser orientada por uma consciência do dever. Por isso, pode-se afirmar que é pela lei moral, que provém do seu interior, que deve brotar a consciência moral de cada acto seu, a aplicação pessoal da regra objectiva na orientação dos seus actos individuais. Portanto, não há uma heteronomia entre o sujeito racional e os seus actos; uma vez que Deus imprimiu um ordo praeceptorum na mente humana, os actos humanos regulam-se admiravelmente, sem se lhe impor, pois brotam naturalmente do seu próprio interior. Há, assim, um perfeito acordo entre a lei natural e o sujeito moral, pois aquilo que obriga ao homem é por ele desejado no mais íntimo da sua natureza. A lei natural obriga àquilo que é desejado pelo homem, ela impele-o ao bem, aquilo que o fará feliz. Obedecendo ao imperativo da lei natural, o homem obedece a si mesmo e à sua razão; o dever, a obrigação constitui-se como tal, porque surge do bem humano, do seu fim último, havendo certos actos que têm uma relação necessária com ele e que lhe são indicados pela lei natural; desde a inclinação de conservar a vida, da qual decorre o preceito de a respeitar e a tudo o que permite o seu pleno desenvolvimento, à inclinação ao amor conjugal, à procriação, aos deveres referentes à geração e educação dos filhos, e assim sucessivamente[1]. Afirmava por isso João XXIII que para uma convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre, pelo que possui em si mesmo direitos e deveres universais, invioláveis, e inalienáveis que emanam directa e simultaneamente de sua própria natureza[2]. Tal é o imperativo da lei natural.

TEIXEIRA LOPES, Jorge Filipe. Fundamentação dos direitos humanos na Lei Natural. Universidad Pontificia Bolivariana – Escuela de Teologia, Filosofia y Humanidades. Licenciatura Canónica em Filosofia. Medellin, 2009. p. 66-67.
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[1] FORMENT, Op. Cit., p. 65-66.

[2] JOÂO XXIII. Carta encíclica Pacem in Terris. [Em linha]. <Disponível em: http://www. Vaticanva/holyfather/john_xxiii/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacempohtml [Consulta: 19 Jun., 2009]

O primeiro olhar da inteligência

Mons. João S. Clá Dias, EP

O famoso neotomista francês, Pe. Réginald Garrigou-Lagrange, OP, deixou-nos ricas páginas a respeito do primeiro olhar da inteligência sobre as coisas e sobre a vida,[1] considerando-o primeiramente através de um prisma meramente natural e, em seguida, enquanto banhado pela graça.

Tomando como ponto de partida a afirmação de Nosso Senhor — si oculus tuus fuerit simplex, totum corpus tuum lucidum erit (Mt 6, 2) —, Garrigou-Lagrange comenta que esse é um estudo de universal interesse, chamando a atenção não apenas de estudiosos, mas também de pessoas mais simples, desde que tenham alma elevada e grandes aspirações.

Nunca será demais realçar a riqueza virtual desse primeiro olhar e a necessidade, para o jovem ou o adulto de qualquer idade, de retornar a ele. Esse é o meio adequado do ser humano voltar-se para aquele mundo de verdades sobrenaturais e metafísicas as quais talvez tenha deixado obscurecer em seu espírito, seja porque colocou seu coração demasiadamente nos bens terrenos, seja porque sucumbiu à pressão do ambiente. Em geral, por ambas as razões.

A complexidade da vida nos dias atuais constitui outra grave dificuldade para o primeiro olhar. Com efeito, hoje as mentes são bombardeadas sem cessar pelas cacofonias da civilização do efêmero, do relativo, do contraditório, do meramente palpável. Já em meados do século XX se tornava avassalador o domínio do tecnicismo, mas este, graças ao avanço da eletrônica, vai agora alcançando um paroxismo. Enquanto a instituição da família cristã atravessa uma crise desagregadora sem precedentes, os lares são inundados por todo tipo de aparelhos fascinantes. Desde a mais tenra idade, meninos e meninas são cativados por jogos, blogs, you tubes, i-pods, play stations, face books, celulares, e — além do risco moral e psicológico que correm — perdem aquilo que de melhor tem a infância: os momentos serenos de contemplação das coisas, os “sonhos” com mundos maravilhosos, os períodos concedidos à imaginação criativa ancorada no bem e no belo. Não se trata de um problema circunscrito à infância: a possibilidade de recuperação do primeiro olhar padece sob o poder imperialista da técnica, e uma quantidade esmagadora de informações impossível de ser digerida.

Lembro-me com simpatia de um vietnamita que, nos anos 70, definia seu maior prazer na vida como estar sentado sozinho à porta de sua casa de campo, admirando a paisagem tingida pelas sucessivas cores do pôr-do-sol. Trata-se de uma atitude que se vai tornando rara. Hoje será mais provável encontrarmos cada um dos moradores dessa residência diante de uma tela de computador.

Nas épocas anteriores à civilização da técnica e ao domínio do relativismo e da superficialidade, as pessoas chegavam a alcançar uma robustez e segurança de espírito da qual é difícil fazer ideia. E o ponto de partida se encontrava numa infância na qual o senso do ser e dos seus transcendentais era desenvolvido natural e paulatinamente, servindo de farol para toda uma vida alicerçada no senso comum.

Mas ainda agora é possível, com muito esforço e boa orientação, restaurar esse senso, do qual dependem uma inteligência, uma vontade e uma sensibilidade bem constituídas.

Voltar àquele primeiro olhar límpido e inocente da criança nos seus primeiros contatos com o mundo é, do ponto de vista natural, a única maneira de atingir tal fim, impedindo que nossa inteligência soçobre no meio do caos moderno, e, pelo contrário, subjugue-o, discirna-o e contribua para mudar o rumo das coisas.

De igual ou maior importância é o dever de todo adulto de proteger, favorecer e guiar o desenvolvimento psicológico da criança na fidelidade ao primeiro olhar.

Com São Tomás, Garrigou-Lagrange afirma a similitude entre “o primeiro olhar intelectual de uma criança e, no outro extremo da existência, a contemplação simples do ancião que descobriu o verdadeiro sentido e o preço da vida”.[2]

Em resumo, a fidelidade ao primeiro olhar conduz à contemplação. Nem o burburinho das atividades, o convívio às vezes conflituoso, a turbulência intelectual, nem os tropeços, impedirão alcançar esse píncaro. O olhar límpido e fortalecido não sucumbe às desilusões, aos dramas e aos obstáculos, mas vive na paz constante.


[1]              Garrigou-Lagrange, Réginald. El Sentido Común, la Filosofia del ser y las fórmulas dogmáticas. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1944. p. 329-350.

[2]              Ibidem, p. 329.

A castidade da inteligência

Mons. João S. Clá Dias, EP

A virtude da Fé facilita penetrar além dos umbrais de nossa acanhada natureza, e tomar consciência das profundezas dos liames que unem o universo a Deus. O Criador o transcende infinitamente e, portanto, não há a menor confusão entre Ele e a criação. Porém, é Deus quem mantém as criaturas no ser, como também cada um de seus elementos constitutivos, e até mesmo, é a causa eficiente da santidade que possa existir em cada uma delas. Daí ser-nos necessário o apoio das Sagradas Letras para aprimorar em nós o senso de Deus. Nelas encontraremos as verdades claramente expostas com extremo fervor por Cristo Jesus, sobre a vida íntima de Deus, os atributos do Pai e do Espírito Santo etc.

Assim, a presença de Deus e a própria ação divina, tanto a permanente quanto a atual, sobre todas as criaturas, serão discernidas — ainda que muitas vezes em meio a uma certa penumbra — por uma Fé robusta e viva. E isto consistirá, de certo modo, em alguma participação no conhecimento que Deus possui sobre Si mesmo e sobre o universo. Será a mais elevada vida intelectual, na qual a intensidade dessa virtude teologal determinará maior ou menor penetração (e domínio) desta, naquela.

A Fé, portanto, não constitui um estorvo para a cultura como erroneamente poderia parecer a espíritos menos avisados. Muito pelo contrário, determinação, certeza e substância são conferidas à inteligência que nela se fundamenta. Ela diviniza as qualidades humanas, e jamais as prejudica. E nossa inteligência, assim divinizada, passa a compreender tudo sob o prisma de Deus. Aí estará alojada a castidade de nossa inteligência que consistirá numa íntegra lealdade em face das realidades objetivas e do próprio Deus, tudo analisado com uma esplendorosa clareza devido a uma maior ou menor participação no conhecimento incriado. Ela é um precioso fruto da plena doação de nossa inteligência a Deus, fruto, por sua vez, da iniciativa dEle em nos escolher e de nós tomar posse: “Não fostes vós que me escolhestes mas, fui eu que vos escolhi” (Jo 15, 16).

Caráter das inteligências elevadas: notável doutrina de São Tomás de Aquino

 Por que certas verdades simples não se apresentam a todas as inteligências? Como o gênero humano acaba admirando um homem tido por extraordinário, se soube ver certas coisas que o mundo inteiro (ao menos assim parece) poderia ter visto como ele? Isto é perguntar a razão de um segredo da Providência, é questionar por que o Criador concede a alguns espíritos de elite uma grande força de intuição, ou, por assim dizer, uma visão intelectual imediata, recusada ao maior número (de pessoas).

São Tomás expõe sobre esse fato particular uma admirável doutrina. Segundo o santo doutor, o raciocínio é uma marca da fraqueza de nosso espírito. A faculdade de desenvolver as ideias nos foi dada para superar essa debilidade. Os anjos compreendem, mas não raciocinam. Quanto mais uma inteligência é elevada, mais o número de suas ideias diminui, porque ela encerra, num pequeno número desse tipo de coisas, aquilo que as inteligências de um grau inferior repartem em número maior. Assim, os anjos do mais alto grau abraçam, com a ajuda de algumas ideias apenas, um círculo imenso de conhecimentos. O número de ideias vai-se reduzindo sempre nas inteligências criadas, à medida que elas se aproximam do Criador. E Ele, a Ideia por excelência, o Ser infinito, a Inteligência infinita, quer tudo numa mesma ideia, simples, única, imensa, ideia que não é outra que a sua essência. Que sublime teoria. Ela revela um conhecimento admirável dos segredos do espírito e nos sugere inumeráveis aplicações relativamente às faculdades do homem.

De fato, os espíritos de elite não se distinguem pela quantidade de suas ideias. Eles não possuem senão um pequeno número, no qual eles envolvem o mundo. A ave das planícies se fadiga de rasar a terra; ela passa e repassa pelos mesmos lugares, não passando jamais as sinuosidades e os limites do vale onde nasceu. A águia, em seu voo majestoso, sobe, sobe sempre, não se detém antes dos mais altos cumes, e de lá seu olhar acurado contempla as montanhas, os cursos dos rios, as vastas planícies cobertas de cidades populosas, as verdes pradarias e as ricas pastagens.

Há em todas essas questões um ponto de vista culminante, em que se posiciona o gênio. Desta feita, o seu olhar domina e envolve as coisas. Se ele não é dado ao comum dos homens de se elevar até lá numa primeira volta, ao menos ele deve tender para isso sem cessar. Os resultados pagam o esforço ao cêntuplo. Como se pode observar, toda a questão, ou mesmo toda a ciência, resume-se em um pequeno número de princípios essenciais, dos quais todos os outros decolam. Devem-se compreender esses princípios e o resto se tornará simples e fácil, e não nos deteremos mais em detalhes (escusados).

Apresente ao espírito o objeto simplificado o mais possível e desembaraçado por assim dizer, de toda a folhagem inútil. A sua singeleza exige. Para obter que ele multiplique sua atenção, evite exigir muito dele. Trate de circunscrevê-lo. Esse método lhe facilita a compreensão das coisas, dá às suas percepções a exatidão e a lucidez, e ajuda possantemente a memória.

Traduzido do Francês. BALMES, Jaime. Art d’arriver au vrai: Philosophie pratique. Paris: Auguste Vaton, 1850. p. 129-140 (Capítulo XVI), por Pe. José Victorino de Andrade, EP. In: Lumen Veritatis, n. 7, 2009.

A Castidade da inteligência: precioso fruto da plena doação de nossa inteligência a Deus

pensadoresMons. João S. Clá Dias, EP

A virtude da Fé nos facilita penetrar além dos umbrais de nossa acanhada natureza, e tomar consciência das profundezas dos liames que unem o universo a Deus. O Criador o transcende infinitamente e, portanto, não há a menor confusão entre Ele e a criação. Porém, é Deus quem mantém as criaturas no ser, como também cada um de seus elementos constitutivos, e até mesmo, é a causa eficiente da santidade que possa existir em cada uma delas. Daí ser-nos necessário o apoio das Sagradas Letras para aprimorar em nós o senso de Deus. Nelas encontraremos as verdades claramente expostas com extremo fervor por Cristo Jesus, sobre a vida íntima de Deus, os atributos do Pai e do Espírito Santo etc.

Assim, a presença de Deus e a própria ação divina, tanto a permanente quanto a atual, sobre todas as criaturas, serão discernidas — ainda que muitas vezes em meio a uma certa penumbra — por uma Fé robusta e viva. E isto consistirá, de certo modo, em alguma participação no conhecimento que Deus possui sobre Si mesmo e sobre o universo. Será a mais elevada vida intelectual, na qual a intensidade dessa virtude teologal determinará maior ou menor penetração (e domínio) desta, naquela.

A Fé, portanto, não constitui um estorvo para a cultura como erroneamente poderia parecer a espíritos menos avisados. Muito pelo contrário, determinação, certeza e substância são conferidas à inteligência que nela se fundamenta. Ela diviniza as qualidades humanas, e jamais as prejudica. E nossa inteligência, assim divinizada, passa a compreender tudo sob o prisma de Deus. Aí estará alojada a castidade de nossa inteligência que consistirá numa íntegra lealdade em face das realidades objetivas e do próprio Deus, tudo analisado com uma esplendorosa clareza devido a uma maior ou menor participação no conhecimento incriado. Ela é um precioso fruto da plena doação de nossa inteligência a Deus, fruto, por sua vez, da iniciativa dEle em nos escolher e de nós tomar posse: “Não fostes vós que me escolhestes mas, fui eu que vos escolhi” (Jo 15, 16).

Início de tudo o que virá depois

Mons. João Clá Dias, EP

Quando a criancinha, em seu berço, “pesquisa” com intensidade seu primeiro chocalho, ou observa longa e profundamente o rosto de sua mãe, ou tem a curiosidade despertada pelo acender e apagar da lâmpada, está realizando a descoberta do ser. Este é o objeto da intuição, o primeiro a ser apreendido pela inteligência através dos sentidos, e dele deflui todo pensamento metafísico.

viewEm várias passagens de sua obra, São Tomás se manifesta neste sentido. Tomemos, por exemplo, a seguinte sentença em De Veritate: “Aquilo que o intelecto apreende primeiramente como o mais conhecido e no qual resolve todas as suas concepções é o ser [ens]”.1 Na Suma Teológica, ele reafirma tal princípio: “Há uma certa ordem naquilo que está ao alcance da apreensão humana. O que o intelecto apreende em primeiro lugar é o ser [ens], cuja compreensão está inclusa em todas as suas apreensões”.2

A doutrina da apreensão do ser — o ente (ens) — em primeiro lugar pela inteligência constitui a pedra angular da filosofia tomista: “O que primeiro o intelecto concebe é o ente, pois algo é cognoscível na medida em que se encontra em ato”.3

O “ente” é algo cognoscível enquanto é em ato. São Tomás toca continuamente nessa tecla. O ser, objeto próprio do intelecto, é “o primeiro inteligível, assim como o som é o primeiro audível”.4

Chesterton observa que essa filosofia tem como ponto de referência a realidade, quer dizer, ela corresponde ao senso comum. O Doutor Angélico “está absolutamente certo de que a diferença entre giz e queijo, ou entre porco e pelicano, não é uma mera ilusão, ou ofuscamento de nossa confusa mente, cegada por uma única luz; mas é mais ou menos aquilo que nós sentimos que seja”.5

Contrapondo-se ao robusto pensamento de São Tomás, vêm se sucedendo nos últimos séculos as divagações de correntes filosóficas que tiraram os olhos do ser para se concentrarem em um subjetivismo radical, incapazes de entender a realidade das coisas e obscurecendo a própria noção da existência de Deus. O imanentismo cartesiano é o caminho reto para o ateísmo ou o agnosticismo, e a filosofia após Descartes seguiu festiva por ali. Os passos seguintes levam à negação da moralidade objetiva.

A única solução sensata é voltar os olhos de novo para o ser. Pois é precisamente ele, em toda a sua inabarcável variedade e rica unicidade, que é entendido primordialmente pela inteligência através da experiência sensível.

A criança que está deitando seus primeiros olhares em torno de si vai formar conceitos no contato com o ser. Quaisquer que sejam tais conceitos — mamãe, frio, gostoso —, eles serão uma especificação ou um exemplo daquilo que é.

Até mesmo para conhecer sua própria alma o homem tem necessidade de primeiramente conhecer o ser material. Com efeito, não se pode dizer que conhecemos em primeiro lugar nosso espírito. Até mesmo para definir a espiritualidade somos obrigados a recorrer à matéria, falando de imaterialidade. Pela mesma razão, usamos de analogia com o espaço material para atribuirmos profundidade e elevação à alma.

O conceito de ser é, assim, anterior a todo outro conceito. É a primeira proposição que a mente humana forma no início de sua vida de experiência: “Alguma coisa existe”. Apreendido o ser através da luz natural da inteligência, a noção de ser está subjacente a tudo o que se possa conceber.

O ser assim apreendido em primeiro lugar é algum ser particular, e qualquer que seja o nome que se lhe dê significará minimamente alguma coisa que é.

O inter-relacionamento entre os diversos sentidos, cada um captando a realidade do ser segundo seu modo próprio, é a base para que a inteligência a apreenda como real inteligível e verdadeiro, como mostra Garrigou-Lagrange: “Enquanto a vista alcança o real colorido, como colorido, a inteligência o alcança como real inteligível. Do mesmo modo, assim como o ouvido alcança o real como sonoro, e o paladar o percebe como mais ou menos saboroso”.6

Havendo afirmado que o ser (ente) é o primeiro que cai na apreensão do intelecto, São Tomás completa seu pensamento com esta definição: “O primeiro princípio indemonstrável é: não é possível afirmar e negar ao mesmo tempo, fundado na noção de ser e não ser. E neste princípio se fundam todos os outros, como diz [Aristóteles] no livro 4 da Metafísica”.7

Fica assim introduzido um primeiro aspecto do ser que o intelecto conhece: sua oposição ao não-ser, ou seja, o princípio de não-contradição.

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1 “Illud autem quod primo intellectus concipit quasi notissimum et in quo omnes conceptiones resolvit est ens” (De Veritate, q. 1, a. 1).

2 “In his autem quae in apprehensione omnium cadunt, quidam ordo invenitur. Nam illud quod primo cadit in apprehensione, est ens, cuius intellectus includitur in omnibus quaecumque quis apprehendit” (S. Th. I-II, q. 94, a. 2).

3 “Primo autem in conceptione intellectus cadit ens: quia secundum hoc unumquodque cognoscibile esta, inquantum est actu” (S. Th. I, q. 5, a. 2).

4 “Unde ens est proprium obietum intellectus, et sic est primus intelligibile, sicut sonus est primum audibile” (S. Th. I, q. 5, a. 2).

5 CHESTERTON, G. K. St. Thomas Aquinas, the “Dumb Ox”. New York: Image, 1956. p. 40.

6 Garrigou-Lagrange, Réginald. El Sentido Común, la Filosofia del ser y las fórmulas dogmáticas. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1944. p. 330.

7 “Primum principium indemonstrabile est quod non est simul affirmare et negare, quod fundatur supra rationem entis et non entis, et super hoc principio omnia alia fundantur, ut dicitur in IV Metaphys” (S. Th. I-II, q. 94, a. 2).

Como as almas separadas do corpo conhecem?

Guy de Ridderalmas

Após a morte, a inteligência subsiste e passa a ter um modo de se exercer bastante diferente daqui na terra, pois que ela é chamada a contemplar em sua essência as realidades imateriais como Deus. Convém-lhe assim conhecer vendo o que de si é inteligível, da mesma maneira que as substâncias separadas. Deus infunde espécies na alma da mesma maneira que o faz com os anjos. A alma tem parte nelas, embora de modo menos elevado. Por meio destas espécies a alma conhece o que lhe convém de maneira direta e intuitiva. Este conhecimento ultrapassa em qualidade e em segurança tudo que existe na terra, tanto por causa da superioridade da luz divina, quanto por causa da ausência de possibilidade de erro oriunda dos fantasmas da imaginação.

À guisa de ilustração, imaginemos alguém que, em virtude de acidente, perde os olhos. Deixará imediatamente de enxergar. No entanto, a capacidade virtual de poder ver, nele subsiste. E subsiste na alma, não no corpo, obviamente. Se por algum prodígio da medicina, puder ser-lhe restaurada a vista, passará novamente a enxergar, pois a potência virtual da vista reencontrará o elemento corporal que lhe permite exercer-se, que são os olhos.

4.1 Parece que a inteligência humana conhecerá sempre por imagens

Uma dificuldade surge, entretanto a este respeito.

É próprio da inteligência humana conhecer as realidades espirituais a partir de suas imagens sensíveis. Não é esta inteligência, entretanto da mesma natureza que a inteligência dos anjos, os quais não estando unidos naturalmente a um corpo, conhecem diretamente a essência das coisas por meio das formas inteligíveis infusas no momento em que são criados. Ora, Deus move cada natureza segundo seu próprio modo de ser. Assim sendo, parece que a inteligência humana conhecerá sempre com base em imagens.

Contudo, quando se fala da visão do Criador, ao menos no que concerne esta visão direta e face a face que chamamos de visão beatífica, é preciso render-se à evidência de que nenhuma imagem sensível pode permitir ao homem conhecer sua inteligibilidade. Deus se torna inteligível, sem o concurso de qualquer ser intermediário criado. Trata-se de um modo novo de conhecer onde parece que o intelecto não tem lugar.

4.2 Funções e influências da alma separada

Quais as funções que a alma neste estado de separação pode, portanto, exercer e que influências pode sofrer?

4.2.1 Funções que pode exercer.

A alma continua viva. A Igreja já condenou a hipótese da inconsciência da alma após a morte ([1]).

Na outra vida, antes da ressurreição a vida da alma é parecida com a do Anjo, embora com diferenças. O anjo, por exemplo, se move “instantaneamente”; o homem, não. O homem não pode seguir o vôo de seu pensamento, nem de sua vontade, como o faz o espírito angélico. Algo disso, no entanto pode fazer. Por concessão de Deus também.

4.2.2 Atividades sensitivas

Atividades que requeiram as potências sensitivas externas (corpo), não as pode ter a alma separada do corpo. Com a morte, a alma só conserva em raiz, virtualmente ([2]) as potências sensitivas, pois que operam a partir de seu corpo (sentidos). Por exemplo, não poderá mais conhecer uma árvore concreta já vista em sua peregrinação terrena ou ainda a conhecer depois. Só pode ter noção da idéia universal de árvore (aplicável, portanto, a todas as árvores do mundo). 

4.2.3 Atividades espirituais

Outro aspecto entretanto é no tocante à atividade espiritual, ou funcionamento psicológico, que veremos a seguir.

 

5. Funções intelectivas da alma separada

 5.1. Conhecimentos já havidos ou acrescidos

a) A alma separada do corpo conserva todos os conhecimentos intelectuais adquiridos anteriormente durante sua vida neste mundo ([3])

b) Vê-se e conhece-se a si mesma de modo perfeito ([4]). Conhecimento com alegria superabundante para as almas justas.

c) Conhece perfeitamente as demais almas separadas, o que lhe era vedado enquanto unida a seu corpo. Tudo por conhecimento natural ([5]).

Conhece também aos anjos, no entanto, não por conhecê-los por alguma espécie inteligível abstrata, pois que eles são superiores (mais “simples”). O conhecimento que a alma tem dos anjos lhe advém, sim, do conhecimento de semelhanças impressas na alma por Deus, acessíveis às almas separadas ([6]).

d) Em virtude das espécies inteligíveis infundidas naturalmente por Deus, têm as almas separadas um conhecimento natural, embora imperfeito e geral, de todas as coisas naturais. Isto traz um aumento enorme do que se poderia chamar das ciências naturais da alma separada ([7]).

e) Em virtude destas mesmas espécies naturais infundidas por Deus, pode a alma separada conhecer um enorme número de coisas. Não todas, mas aquelas com as quais tiver determinado relacionamento, por algum modo, seja por ter delas conhecimento anterior (ciência), por afeto (amigo, parente), seja por inclinação natural (semelhança de vocação) etc. Tudo, por determinação divina ([8]).

f) O conjunto todo destes conhecimentos proporciona à alma separada, além das idéias infundidas por Deus uma altíssima idéia de Deus enquanto Autor da ordem natural, pois grande número de perfeições divinas reflete-se na própria substância das almas separadas, além das demais coisas que conhece naturalmente por infusão divina.

─ Todos estes conhecimentos dizem respeito tanto às almas dos justos, quanto à dos precitos. Nenhum deles transcende a ordem puramente natural (naquele estado), sendo algo que pede e exige psicologicamente o estado próprio da separação. Para as almas boas será motivo de regozijo; para as outras, ocasiões suplementares de tormentos e decepções.

5.2. Ciência adquirida permanece na alma separada?

Baseando-se em São Jerônimo: “Aprendamos na terra aquilo cujo conhecimento persevere em nós até o céu” ([9]), S. Tomás declara que a ciência, na medida em que está no intelecto (e ele demonstra que está principalmente nele), permanece na alma separada.

5.3. Dificuldade levantada por S. Tomás: se assim for, um homem não tão bom poderá saber mais do que um mais virtuoso. Responde ([10]): Pode ser, assim como poderá haver maus de estatura maiores que bons; mas, diz ele, isso quase não tem importância, em comparação com as outras prerrogativas que os mais virtuosos terão.

5.4. Almas separadas conhecem o que se passa na terra?

Podem as almas separadas do corpo conhecer o que se passa na terra?

São Tomás começa, a priori, negando esta hipótese. Cita S. Gregório: “Os mortos não sabem como está organizada a vida daqueles que, depois deles, vivem na carne; a vida do espírito é bem diferente da vida da carne. Assim como as coisas corpóreas e as incorpóreas diferem em gênero, também se distinguem pelo conhecimento ([11])”.

No tocante aos bem-aventurados, no entanto, S. Gregório realça ([12]) que “Não se deve pensar a mesma coisa a respeito da alma dos santos. Para aquelas, com efeito, que vêem por dentro a claridade de Deus todo-poderoso, não se deve absolutamente acreditar que reste fora alguma coisa que ignorem”.

Opinião também contestada por Santo Agostinho [“Minha mãe que tanto fez por mim na terra, depois não me apareceu nunca mais”], reproduzida por São Tomás ([13]).

São Tomás, no entanto, acaba concluindo  que “parece mais provável que as almas dos santos, que vêem Deus, conheçam tudo o que aqui acontece”.

Ele enuncia três observações que enriquecem o tema ([14]):

5.4.1 Falecidos podem preocupar-se com coisas do mundo?

Os mortos podem preocupar-se das coisas do mundo, ainda que as ignorem concretamente. Da mesma maneira que quando rezamos pela alma de um falecido, sem saber se está efetivamente no purgatório ou não;

5.4.2. Conhecimento por informações recebidas

Podem tomar conhecimento das coisas deste mundo por informações que lhes cheguem seja pelos anjos, seja pelos demônios ou ainda por divina revelação, especialmente por algum fato que lhes diga mais especialmente respeito (conhecidos, familiares);

5.4.3. Conhecimento por aparições

Por especial permissão divina podem auferir conhecimento por outras almas, diretamente ou por meio de anjos.

RIDDER, Guy de. O conhecimento da alma separada do corpo. Centro Universitário Italo Brasileiro – Curso de Pós-Graduação em Teologia Tomista. São Paulo, 2007. p.9-11.


[1] Cf DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, São Paulo: Paulinas/Loyola, 2007, p. 1238.

[2] Cf  AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,77,7 – 89,5; e Suplemento 70,I-2 em ROYO MARIN, O.P., Antonio. Teologia de la Salvación. Madri: BAC,  1965, p. 178

[3] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89-5-6

[4] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,88,I c; e I,89,2; SCG III,42-46; De anima, a.16 em ROYO MARIN, O.P., Antonio. Teologia de la Salvación. Madri: BAC,  1965, p. 180

[5] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,2

[6] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,1,3; 2,2;3

[7] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,3,c e 4

[8] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,4; 57,2

[9] Cf Epístolas, 53, al.103, em AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89, 5, 2

[10] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89,6,2

[11] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,8

[12] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89,8,3

[13] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89,8,3

[14] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,8,3