Evangelho e cultura nos atuais desafios da evangelização

Pe. José Victorino de Andrade, EP

A Sagrada Escritura teve um papel fundamental para a cultura ocidental. Cultura, no seu sentido mais elevado, que na Grécia correspondia à paideia, no sentido de educação, aquilo que plasma aos homens um modo de pensar, sentir e agir.

É neste âmbito que se insere o Evangelho, modelando a sociedade, ou seja, o ser humano enquanto participe de uma comunidade. O mandamento novo trazido por Cristo levou os cristãos à edificação de uma sociedade mais justa e próspera. É inegável que encontramos estas frondosas raízes na sociedade ocidental e que deve o que é hoje a valores indeléveis oferecidos pelo catolicismo. Bento XVI, na Verbum Domini, é mais abrangente ao afirmar que “na Sagrada Escritura, estão contidos valores antropológicos e filosóficos que influíram positivamente sobre toda a humanidade” (n. 110).

Desassociando-se a cultura hodierna do fenômeno religioso, renova-se o apelo do Vaticano II a que os fiéis leigos assumam um papel preponderante e fundamental na presença e inspiração a partir do Evangelho nos mais variados campos, conforme a Christifidelis Laici:

 “A Igreja pede aos fiéis leigos que estejam presentes, em nome da coragem e da criatividade intelectual, nos lugares privilegiados da cultura, como são o mundo da escola e da universidade, os ambientes da investigação científica e técnica, os lugares da criação artística e da reflexão humanística. Tal presença tem como finalidade não só o reconhecimento e a eventual purificação dos elementos da cultura existente, criticamente avaliados, mas também a sua elevação, graças ao contributo das originais riquezas do Evangelho e da fé cristã” (n. 44).  

O Evangelho e a tradição cristã constituem, em si, uma cultura que pode e deve brindar a sociedade com um enriquecimento impar, que marque todos os campos e aspectos da vida cotidiana. Os fiéis leigos deverão, assim, levar aos homens um testemunho d’Aquele que é a Bondade, a Verdade, e a Beleza. E neste contributo, se empenharem para serem testemunhas da original riqueza do Evangelho.

Concedei-me 1

Oração composta e rezada diariamente por São Tomás 2
São Tomás de Aquino 3

 

Concedei-me, Deus misericordioso,
Aquilo que vos agrada:
Ardentemente desejar,
Prudentemente investigar,
Sinceramente apreciar,
Perfeitamente consumar.
Para louvor e glória de vosso nome,
Ordenai o meu estado;
O que me quereis conceder,
Fazei-me conhecer;
O que é necessário e útil à minha alma,
Ajudai-me a exercer.
Que minha via rumo a Vós, Senhor, seja segura e reta,
Sem esmorecer nas prosperidades ou adversidades,
Agradecendo-Vos nas prosperidades,
Conservando a paciência nas adversidades,
Não me deixando exaltar por aquelas,
Nem desanimando com estas.
Que nada me alegre senão o que me leva a Vós,
Nem me entristeça, senão o que me afasta de Vós,
Que a ninguém deseje comprazer, ou temer desagradar, senão a Vós.
Que as coisas passageiras a mim se aviltem por Vós,
Estimadas me sejam todas as vossas coisas, mas Vós,
Ó Deus, mais que tudo.
Que me causem desgosto todas as alegrias sem Vós,
Que nada mais deseje além de Vós.
Que me deleite o trabalho por Vós,
E que me seja tedioso o repouso sem Vós.
Dai-me constantemente um coração por Vós elevado,
Com dor e propósito de emenda por minhas faltas, ponderado.
Fazei-me, meu Deus:
Humilde sem simulação,
Alegre sem dissipação,
Sério sem depressão,
Oportuno sem opressão,
Ágil sem frivolidade,
Veraz sem duplicidade,
Temendo-Vos sem desesperação,
Confiante sem presunção,
Corrigindo o próximo sem pretensão,
Edificando-o pela palavra
E pelo exemplo, sem ostentação;
Obediente sem contradição,
Paciente sem murmuração.
Dai-me, ó dulcíssimo Deus, um coração:
Vigilante, que não se afaste de Vós por nenhuma curiosa cogitação,
Nobre, que não o rebaixe nenhuma indigna afeição,
Invencível, para que não fraqueje sob nenhuma tribulação,
Íntegro, que não seja seduzido por nenhuma violenta tentação,
Reto, que não se desvie por nenhuma perversa intenção.
Concedei-me, generosamente, Senhor meu Deus:
Uma inteligência para Vos conhecer,
Um amor para Vos buscar,
Uma sabedoria para Vos encontrar,
Uma vida para Vos agradar,
Uma perseverança fiel para Vos esperar,
E, por fim, uma confiança para Vos abraçar.
Que eu seja transpassado por vossas penas, pela penitência,
Que no caminho seja agraciado por vossos benefícios, pela graça,
E possa gozar de vossas alegrias na Pátria, pela glória.
Amém.

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1) Texto latino da oração Concede michi extraído de: Guilelmus de Tocco. Ystoria sancti Thome de Aquino, cap. 29. In: Ibid. Ed. Claire Le Brun-Gouanvic. Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 1996, p. 156, l. 56-86. Tradução pelo Diác. Felipe de Azevedo Ramos, EP, com ligeiras adaptações para a língua portuguesa. Embora não conste o formato versificado no texto original acima mencionado, optou-se por dividi-lo em versos, a fim de obter uma melhor compreensão e destacar o estilo rimado do original.

2) A introdução completa a respeito desta oração lê-se em Guilherme de Tocco (cf. op. cit., p. 156, l.53-56): “De quo deuoto et sancto doctore dicitur quod infra scriptam orationem composuit, continentia completam, affectione deuotam et stilo politam, quam omni die dicebat. Oratio quam fecit beatus Thomas, quam omni die dicebat”.

3) Embora alguns catálogos mencionem esta oração como sendo de dúbia autenticidade, assignamos a autoria a São Tomás de Aquino por estar inserida na quarta e última revisão do próprio Guilherme de Tocco (feita aproximadamente em julho de 1323) à sua História de São Tomás de Aquino, quando se dedica ao tema da contemplação e da oração. Para mais detalhes sobre este texto e sua autenticidade: Cf. Doyle, A. I. A Prayer Attributed to St. Thomas d’Aquinas. Dominican Studies, l, 1948, p. 229-238; Editorial [Nota Editoris]. Sancti Thomae de Aquino Concede michi. Disponível em: <http://www.corpusthomisticum.org/d04n.html>. Acesso em: 12 fev. 2012.

A alma assistida pelo dom de sabedoria

Mons. João S. Clá Dias, EP

A alma assistida pelo dom de sabedoria conhece e julga através de critérios divinos, porque age por um especial instinto do Espírito Santo. Por isso, não será difícil para um justo, penetrado por um alto grau do dom de sabedoria, solucionar questões do mundo do pensamento, da esfera da ação concreta, ou da contemplação divina.1

O raciocínio lhe será necessário para construir uma exposição didática com vistas a instruir a terceiros, mas, para si, esse instinto do divino lhe bastará em profusa generosidade. 2 Sua atenção, além disso, não se deterá nas causas segundas; seu espírito voará diretamente à causa primeira, ou seja, o próprio Deus. A ordem da criação se lhe apresentará com uma luz especial. E, enquanto para outros essa ordem poderá estar na sombra, ou, quiçá, constituirá um mistério, para quem é movido pelo instinto do divino, o Espírito Santo faz incidir sobre sua alma uma luz pela qual tudo se lhe torna claro e assimilável.

Assim, o universo será para ele objeto de contemplação e análise. E até a História e os acontecimentos humanos poderão ser contemplados e julgados a partir do mirante da eternidade. 3 Desse mais alto patamar, todo o resto lhe ficará claro e compreensível.

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1) Philipon pondera, acertadamente, que alguma intuição está presente em todos os procedimentos da inteligência humana, da qual Deus pode fazer uso conforme seu beneplácito, tal qual um artista faz uso de seus dotes e instrumentos. Diz ele: “Au lieu de raisonner lentement, péniblement, à partir des réalités sensibles, à travers le long dédale des jugements successifs et discursifs, l’esprit de l’homme, sous l’action directe et illuminatrice de l’Esprit-Saint, pénètre d’un seul coup au fond des choses. Il juge de la connexion des causes secondes à la manière d’un Dieu vivant sur la terre. Il apprécie tout à la manière de Dieu, contemplant l’univers, dans la lumière de Celui qui en est la Cause suprême, selon un mode supra-discursif, supra-humain, quasi intuitif, déiforme, participation éminente de la Sagesse incréée, parvenant ainsi à la plus haute vie intellectuelle ici-bas” (PHILIPON, Marie-Michel. Les dons du Saint-Esprit, p. 227).

2) Os raciocínios habituais para compreender as coisas não são necessários à alma possuidora do dom de sabedoria, pois, segundo afirma Díaz-Caneja, é “característica propia de este don el procedimento por el que llega el alma a este profundo saber de una manera rápida, sin comprobaciones, sin datos. El hombre bajo este don siente que las cosas son así y no de otra manera, y aunque no lo pueda comprobar ni demostrar, está seguro de ello más aún que si lo viera, no con su entendimiento, sino con sus ojos. Siente a Dios en sí y con más seguridad que el sabio que, a fuerza de raciocinios llegara a convencerse de esa misma verdad. La fe de muchas almas descansa en este don” (DÍAZ-CANEJA, Moisés, p. 415).

3) Royo Marín, a esse respeito, é categórico ao afirmar: “Su juicio [del don de sabiduría] se extiende también a las cosas creadas, descubriendo en ellas sus últimas causas y razones, que las entroncan y relacionan con Dios en el conjunto maravilloso de la creación. Es como una visión desde la eternidad que abarca todo lo creado con una mirada escrutadora, relacionándolo con Dios, en su más alta y profunda significación, por sus razones divinas” (ROYO MARÍN, Antonio. Teología de la perfección cristiana, p. 529).

Relativismo e consciência

Diác. Inácio Almeida, EP

Uma das manifestações mais evidentes do relativismo contemporâneo liga-se a uma nova compreensão do conceito de consciência, que tem acarretado profundas implicações tanto no campo gnosiológico quanto moral.

Segundo essa nova teoria, cada consciência é autônoma, infalível e independente. Ela funciona como uma espécie de tribunal de última instância, capaz de ditar por si mesma as regras de toda conduta moral e social. Ratzinger considera esta interpretação do conceito de consciência como uma espécie de deificação da subjetividade, pois o critério da verdade acaba sendo ditado pelo próprio ego interior: “Consciência, na modernidade, tornou-se a divinização da subjetividade, enquanto que na tradição cristã é exatamente contrário. A consciência é a convicção de que o homem é transparente e pode sentir em si mesmo a voz da própria razão, a razão que dá fundamento do mundo”.1

Com efeito, a tradição cristã compreende a consciência como a capacidade que o homem tem de abrir-se à verdade objetiva e universal e que constitui não somente um direito, mas também um dever de buscar aquilo que é verdadeiro. 2 Dessa forma, a consciência deve ser entendida como unidade de conhecimento e verdade, sem ser confundida com a autoconsciência, pois viver conforme a consciência não significa encerrar-se na própria convicção.

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1) Dialogo fra Ratzinger e Galli della Loggia su storia, politica e religione. In: Tosatti, Marco. Il dizionario di papa Ratzinger: Guida al pontificato. Milano, Baldini Castoldi Dalai, p. 34 (tradução nossa): “Coscienza, nella modernità, diventa la divinizzazione della soggettività, mentre nella tradizione cristiana è proprio il contrario, è la convinzione che l’uomo è trasparente e può sentire in se stesso la voce della ragione stessa, della ragione fondante del mondo”.

2) Cf. Idem. El elogio de la conciencia: la Verdad interroga al corazón. Madrid: Palabra, 2010, p. 45.