Cada homem tem também uma vocação única

Pe. José Victorino de Andrade, EP

A vocação de cada homem pode ser entendida num sentido genérico, aplicando-se a todos os batizados, como o pode ser num sentido estrito. Cada homem tem uma vocação única. No Documento Final do Congresso sobre Vocações para o Sacerdócio e a Vida Consagrada na Europa (1998, p.22), da Pontifícia Obra para as Vocações Eclesiásticas decorrente de 5-10 maio 1997, nos é dada a definição de vocação entendida nos seus vários sentidos:

“Como a santidade é para todos os batizados em Cristo, assim existe uma vocação específica para cada vivente; e, como a primeira tem suas raízes no Batismo, assim a segunda se liga ao simples fato de existir. A vocação é o pensamento providente do Criador sobre cada criatura, é a sua idéia-projeto, como um sonho muito querido por Deus, porque a criatura é muito querida por Ele. Deus-Pai o quer diferente e específico para cada vivente”.

De fato, o ser humano “chamado” à vida encontra em si a imagem daquele que o chamou. Vocação é, portanto, a proposta divina de realizar-se segundo essa imagem, e é única, singular, irrepetível, justamente porque tal imagem é inexaurível. Cada criatura está chamada a exprimir um aspecto particular do pensamento de Deus. Ali encontra seu nome e sua identidade; afirma e coloca em segurança a sua liberdade e originalidade.

Portanto, se todo ser humano, desde o nascimento, tem a própria vocação, existem na Igreja e no mundo várias vocações que, enquanto num plano teológico exprimem a semelhança divina impressa no homem, em nível pastoral-eclesial respondem às várias exigências da nova evangelização, enriquecendo a dinâmica e a comunhão eclesial: A Igreja particular é como um jardim florido, com grande variedade de dons e carismas, movimentos e ministérios (cf. ibidem).

Via Pulchritudinis: caminho privilegiado

Diác. Felipe Ramos, EP

São Tomás não compôs nenhum tratado específico sobre a beleza, e tampouco a tratou de modo esquemático.

Por outro lado, o Aquinate interpreta o conceito de graduação para remeter a um máximo sempre no conceito dos transcendentais,[1] “facetas” do ser, por assim dizer. Os exemplos que ele nos oferece na quarta via são bonum, verum e nobile. Bonum e verum ele sempre enumerou entre os transcendentais,[2] mas e o nobile? Seria também um transcendental?

Não é possível dizer com absoluta certeza o que o Angélico quis dizer exatamente com nobile, pois há inclusive diversas interpretações. Uma delas é o conceito filosófico de valor que também pode ser interpretado como propriedade transcendental.[3]

Entretanto, podemos bem crer que ele quis se referir à beleza quando fala de nobreza na quarta via. Em outras obras relaciona a nobreza com a beleza: “Quia est nobilis, sive pulcher[4] ou “nobilitas enim seu pulchritudo[5] ou “nam ipse invenit res omnes secundum diversos gradus pulchritudinis et nobilitatis esse dispositas”.[6] Portanto, ele os toma nessas partes praticamente como sinônimos.

Independentemente do significado implícito da palavra nobile, podemos relacionar a beleza como uma das perfeições absolutas aplicáveis à quarta via. Mas faz-nos crer que de modo mais arquitetônico tratasse ele da beleza.

A apreensão do belo é mais misterioso e matizado do que parece. A beleza ― este “transcendental esquecido” segundo expressão de E. Gilson ― não é apenas uma qualidade sensorial (quae visa placent)[7], mas uma verdadeira “epifania do ser” em que Deus manifesta a Sua ação embelezadora[8] nas criaturas segundo um mais e um menos.

Quando entendemos o belo segundo os axiomas: “splendor veritatis”,[9] splendor bonitatis ou “splendor ordinis”,[10] contemplamos o esplendor da criação em seus diversos graus nos transcendentais.[11] Assim, o belo enquanto transcendental na linha do bonum,[12] possui propriedades fundamentais de integritas (perfeição), proportio (equilíbrio entre as partes) e claritas (clareza) do objeto conhecido. Desta forma, aquilo que é apetecível (bonum), inteligível (verum) e aprazível se torne como numa síntese, admirável.

Diante disso, a alma humana ao admirar o belo se eleva de tal maneira sobre si mesma que poderíamos glosar a São Paulo: não sou em quem vivo, mas é a própria Beleza que vive em mim. Tornamo-nos verdadeiramente reflexos d’Aquele que admiramos. Por isso, sob influxo de atração ao sublime, chegamos a ter um conhecimento de Deus superior ainda que as vias da verdade, a ponto que o conhecido esteja no conhecedor e o desejado esteja em quem o deseja[13]. Neste âmbito afirma o documento Via Pulchritudinis:

“Esse apelo aos filósofos pode surpreender, mas a Via Pulchritudinis não é, talvez, uma Via Veritatis na qual o homem se empenha por descobrir a bonitas do Deus de Amor, fonte de toda beleza, de toda verdade e de toda bondade? O belo, como também a verdade ou o bem, nos conduz a Deus, Verdade primeira, Bem supremo e Beleza. Mas o belo fala mais do que a verdade ou o bem. Dizer de um ser que é belo não significa apenas reconhecer nele uma inteligibilidade que o torna amável. E dizer, ao mesmo tempo, que especificando o nosso conhecimento ele nos atrai, também nos cativa através de um influxo capaz de despertar um maravilhar-se. Se ele expressa certo poder de atração, ainda mais, talvez, o belo expressa a própria realidade na perfeição de sua forma. Isso é a epifania. Ele a manifesta expressando sua íntima clareza. Se o bem expressa o desejável, o belo expressa ainda mais o esplendor e a luz de uma perfeição que se manifesta” (ASSEMBLEIA PLENÁRIA DOS BISPOS, 2007, p. 17).

Com muito propósito foi a Via Pulchritudinis qualificada como “caminho régio para conduzir a Deus” (Ass. Plen. dos BISPOS, 2007, p. 17). Quase que se poderia dizer que esta seria a única via para chegar a Deus pelo homem hodierno.

Ora, se utilizarmo-nos desta grande força de atração que é a beleza, ela poderá verdadeiramente salvar o mundo.[14] Caso contrário, esta terra só poderá tender a uma autêntica antinomia do desígnio divino nas criaturas.

In: Lumen Veritatis, n. 10.


[1] Ver o belo como transcendental: LOBATO, Abelardo apud PICKAVÉ, Martin, & AERTSEN Jan A.. Die Logik des Transzendentalen. Berlin: de Gruyter, 2003.

[2] No De Veritate I, 1 enumera ele seis: ens, res, unum, aliquid, verum, bonum. Já no I Sent., dist. 8, q. 1, a. 3. enumera apenas três: unum, verum, bonum.

[3] Ver MONDIN, Battista. Dizionario enciclopedico del pensiero di San Tommaso d’Aquino. Bologna: Ed. Studio Domenicano, 2000, p. 709-714.

[4] Super Epistolam B. Pauli ad Galatas lectura, cap. 2, lect. 2.

[5] Idem.

[6] In Symbolum Apostolorum, a. 1.

[7] S. Theol. Ia., q. 5 a. 4, ad 1.

[8] (Pulchrifica) Cf. In Div. Nom., IV, lect. 5, n. 340.

[9] Segundo Platão.

[10] Segundo Santo Agostinho.

[11] O belo é chamado por Maritain: «Splendeur de l’être et de tous les transcendantaux réunis». MARITAIN, Jacques ; MARITAIN, Raïssa. Oeuvres complètes 1, [1906 – 1920]. Fribourg, Suisse: Ed. Univ, 1986, p. 663.

[12] (Sola ratione differens). S. Theol. q. 27, a. 1, ad tertium.

[13] Cf. S. Theol. Ia., q. 8, a. 3, co.

[14] Cf. DOSTOIEVSKI, Fiodor Mikhailovitch, O idiota. (trad. José Geraldo Vieira) São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 422-423

A vida contemplativa

Diac. Inácio Almeida, EP

Ao analisarmos as imensas obras levadas a cabo por São Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Alberto Magno e outros grandes santos, concluímos que esses homens, apesar de suas atividades quase incessantes, mantiveram-se na mais constante união com Deus, pois foi pela contemplação das coisas divinas que eles hauriram sua amplíssima capacidade de ação.

Para São Tomás[1], aqueles que são chamados às obras da vida ativa, erram se julgam que este dever os dispensa da vida contemplativa. Tal dever é um acréscimo desta vida e não lhe diminui a intensidade. Desta forma, “as duas vidas, longe de se excluírem, reclamam-se, supõem-se, misturam-se, completam-se mutuamente; e, se por alguma circunstância, tivermos que preferir uma à outra, é sem dúvida a vida contemplativa que se deve escolher, pois é a mais perfeita e a mais necessária” (CHAUTARD, 1962, p. 54).

Em geral, o homem moderno tem uma errônea concepção do que seja propriamente a vida contemplativa, e desconhece a importância da contemplação como elemento propulsor da ação, pois os verdadeiros místicos ou contemplativos

“são homens de senso prático e de ação, não (só) de raciocínio e teoria. Têm o espírito da organização, o dom do comando, e revelam-se muito bem dotados para os negócios. As obras que fundam, oferecem condições de vida e duração; em conceber e dirigir as suas empresas dão prova de prudência e arrojo, e dessa justa apreciação das possibilidades que caracteriza o bom senso. E, de feito, o bom senso parece ser a sua qualidade principal: um bom senso que não é perturbado por exaltação alguma doentia ou imaginação desordenada, e a que anda junto o mais raro poder de penetração” (MONTMORAND citado por TANQUEREY (1955, p. 62).

Chautard (1962) nos adverte que: “a ação, para ser fecunda, carece da contemplação; quando esta atinge certo grau de intensidade, difunde sobre a primeira algum tanto do seu excedente e, por meio dela, a alma vai haurir diretamente no coração de Deus as graças que a ação se encarrega de distribuir”.

O mesmo autor também afirma que na alma dos santos, a ação e a contemplação se unem formando uma perfeita harmonia. Por esta razão se pode afirmar que São Tomás foi ao mesmo tempo um contemplativo, bem como um dos homens mais ativos de seu século. A vida contemplativa vivifica as ocupações exteriores; só ela é capaz de comunicar simultaneamente o caráter sobrenatural e a real utilidade das coisas. A união das duas vidas, contemplativa e ativa, constitui o verdadeiro apostolado.

“O apostolado supõe almas capazes de estuar de entusiasmo por uma idéia, de se consagrar ao triunfo de um princípio. Sobrenaturalize-se a realização desse ideal pelo espírito interior […], e logo teremos a vida mais perfeita em si mesma, a vida por excelência, visto como os teólogos a preferem à simples contemplação: Praefertur simplici contemplationi” (CHAUTARD, p. 56).

É desta ação brotada na contemplação que fez com que São Tomás de Aquino e outros grandes santos fossem ao mesmo tempo ardentes contemplativos e apóstolos valorosos. Podemos até dar tréguas a nossos trabalhos exteriores; mas, pelo contrário, nunca devemos diminuir nossa aplicação às coisas espirituais.

Pois de acordo com Chautard(1962, p. 57):

“Bom é contemplar a verdade; porém, melhor ainda é comunicá-la aos outros. Refletir a luz é algo mais que recebê-la. Iluminar vale mais que luzir debaixo do alqueire. Pela contemplação, a alma alimenta-se; pelo apostolado, dá-se (Sicut majus est illuminare quam lucere solum, ita majus est contemplata aliis tradere, quam solum contemplare).[2]


[1] Recorda-se aqui a afirmação de São Tomás: “Quem é chamado da vida contemplativa para a ativa, não sofre uma subtração, mas deve fazer antes uma adição” (Cum aliquis a contemplativa vita ad activam vocatur, non fit per modum substractionis, sed per modum additionis, Suma Teológica, 2, 2.ae, q. 182, a. 1).

[2] “Pois, assim como é mais o iluminar do que somente luzir, assim, é mais transmitir aos outros o fruto da contemplação do que somente contemplar”. (Suma Teológica, IIa IIae, q. 188, a. 6)

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