Como pode o homem suprir as necessidades espirituais

600x800-sameiroDiác. José Victorino de Andrade, EP

 

É patente a necessidade que a alma humana tem de entrar em contato com múltiplos objetos externos, sem descurar aspectos como a beleza, a sublimidade e o sagrado. A sua hipotética carência levaria a alma a um operar tão defeituoso e resultaria num tal desequilíbrio que o homem correria o risco de deixar na atrofia suas potências, e reduziria sua vida ao simples fato de existir.[1]

 

 

Uma ainda que pálida imagem desta necessidade encontra-se no mundo animal: os cavalos que trabalhavam outrora nas minas, por vezes vários dias seguidos nos túneis iluminados artificialmente, quando eram trazidos à luz do sol, revelavam a sua alegria relinchando e pulando, manifestações próprias à sua natureza.

           

Da mesma forma, também o homem sente esta necessidade, de sair da rotina e da monotonia de sensações que lhe possam ser causadas, inclusive, por um trabalho cotidiano e repetitivo, compreendendo-se as múltiplas formas licitas de lazer e entretenimento que lhe possam ser oferecidas. Aqui entra um notório e importante papel do Estado e do poder público, portanto, temporal, no oferecimento de alternativas saudáveis e formativas que permitam ao homem desfrutar de lícitos prazeres e atrações. Embora estes jamais poderiam suprir a necessidade espiritual, inerente ao homem por força da atração exercida por Deus[2] e dificilmente substituída por qualquer outra atividade que não compreenda este aspecto, como a participação na eucaristia dominical. É em Cristo, fonte de água viva, que o homem sacia definitivamente a sua sede, enquanto as outras apenas temporariamente satisfazem e não conduzem à vida eterna.[3]

 

 


[1] Cf. Correa de Oliveira. Notas para a Conceituação da Cristandade, Década de 50. p. 8.(Extraído do Original).

[2] Ver Catecismo Igreja Católica, 27.

[3] Ver Jo. 4, 10-15

Os Fundadores e a Fundação: desígnio divino, na Igreja e para a Igreja

joao-boscoMons. João Clá Dias, EP

Os movimentos são instrumentos do Espírito Santo para revitalizar Sua Igreja, e, por serem realidades comunitárias essencialmente carismáticas, têm sua gênese num carisma determinado, dotado de originalidade própria, concedido por Ele à pessoa do fundador ou fundadores. Esse dom, por sua própria natureza, ao mesmo tempo é pessoal e comunicativo[1], por ser dado para benefício da Igreja e o bem espiritual dos fiéis, “suscitados pelo Espírito de Cristo para um novo impulso apostólico da inteira estrutura eclesial” (informação verbal).[2]

Com efeito, como explica o Cardeal Ratzinger (2007, p. 40) na sua conferência sobre os movimentos eclesiais, “Deus suscita incessantemente homens proféticos — sejam eles leigos, religiosos, ou, também, bispos e padres — os quais Lhe lançam um apelo que, no curso normal da instituição[3], não atingiria a força necessária”.

Portanto, quer o fundador, quer a fundação, são suscitados por um desígnio divino, na Igreja e para a Igreja. Nenhuma razão há para qualquer vã complacência a respeito dos méritos pessoais daquele que funda, ou mesmo de seus seguidores, pois não o realizam por si, mas pelo dom e pela força de Deus que, olhando o seu nada, faz neles maravilhas (cf. Lc, 48-49).

Com efeito, pelo fato de serem alguns dos fundadores suscitados fora das estruturas hierárquicas da Igreja, portanto no laicato, poderia haver uma tendência a achar que esses dons seriam meramente pessoais, fruto da própria inteligência. Por isso, é de capital importância haver esse senso eclesial, que nos fundadores é uma nota dominante e os leva a se inserirem plenamente na comunhão da Igreja.

DIAS, João Scognamiglio Clá. Considerações sobre a gênese e o desenvolvimento do movimento dos Arautos do Evangelho e seu enquadramento jurídico, 2008. Tese de Mestrado em Direito Canônico — Pontifício Instituto de Direito Canônico do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. p. 22-23.

[1] “Pela sua natureza, os carismas são comunicativos e fazem nascer aquela ‘afinidade espiritual entre pessoas’ (cf. Christifideles laici, 24) e aquela amizade em Cristo que dá origem aos movimentos. A passagem do carisma originário ao movimento acontece pela misteriosa atração exercida pelo fundador sobre quantos se deixam envolver na sua experiência espiritual.” (João Paulo II, Discurso em 30 de maio de 1998).

[2] João Paulo II. Mensagem em 27 de maio 1998.

[3] Refere-se à Igreja enquanto sociedade visível.


Sto. Agostinho e a questão do mal em resposta aos Maniqueus

santo-agostinho1Pe. Mário Sérgio Sperche, EP

 

 

Aquilo que, segundo Sto. Agostinho, desmente irrefutavelmente o próprio princípio do maniqueísmo é o carácter fundamental de Deus: a incorruptibilidade que é própria de Deus na medida em que é o próprio Ser. Os Maniqueus admitiam que Deus devia combater eternamente com o princípio do mal. Mas se o princípio do mal pode prejudicar Deus, Deus não é incorruptível porque pode receber uma ofensa. E se não pode ser ofendido, falta algum motivo por que Deus tenha de combater (ver também em Conf, VII, 2). Assim o reconhecimento da incorruptibilidade de Deus retira todo o fundamento à afirmação maniqueia de um princípio do mal; mas ao mesmo tempo volta a propor em toda a sua urgência e grandiosidade o problema do mal no mundo. Se Deus é o autor de tudo e também do homem, donde deriva o mal? Se do mal é autor o diabo, donde deriva o próprio diabo? Se o mal depende da matéria de que o mundo é formado, porque é que Deus ao ordená-la deixou nela um resíduo de mal? Qualquer que seja a solução a que se recorra, a realidade do mal contradiz a bondade perfeita de Deus: não resta, pois, mais que negar a realidade do mal. E tal é a solução por que se decidiu Sto. Agostinho.

            Tudo aquilo que é, enquanto é, é bom. Também as coisas corruptíveis são boas, dado que se tais não fossem não poderiam, corrompendo-se, perder a sua bondade. Mas à medida que se corrompem, elas não perdem apenas a bondade, mas também a realidade; dado que se perdessem a bondade continuando a ser, chegariam a um ponto em que seriam privadas de toda a bondade e, contudo, seriam reais, portanto incorruptíveis. Mas incorruptível é Deus e é absurdo supor que, as coisas, corrompendo-se, se aproximam de Deus. É necessário, pois, admitir que, à medida que se corrompem, as coisas perdem a sua realidade, que o mal absoluto é o nada absoluto e que o ser e o bem coincidem (Conf, VII, 12 ss).

 

SPERCHE, Mario Sérgio. A problemática do mal na vida, formação e conversão de Sto Agostinho. Paper Estudios antiguos y medievales – Dr. Gonzalo Soto. Maestria en Teología Moral. UPB.

Carismi di ringiovanimento

                      José Manuel Jiménez Aleixandrejanela, EP

 

L’Annuario Pontificio nelle sue Note Storiche rappresenta “le diverse forme che la vita religiosa ha avuto nel corso della storia”[1], accennando alle novità che ogni nuova conformazione giuridica (non prevista negli ordina­menti anteriori – notiamo bene) ha portato. In alcuni casi, la novità non è rimasta circoscritta al nuovo istituto, ma si è “trasmesso alle forme religiose posteriori”[2].

In altri casi, è la traditio degli antenati che è accomodata ai “diversi bisogni dei tempi, pur non rendendola meno severa”; e qui arriviamo al punto che ci interessa.

La figura di Santa Teresa d’Avila – la grande riformatrice e ringiovanitrice – appare, nel XVI secolo, come una novità che, in realtà, è solo una vita in profondità della concretezza già esistente. La non accettazione per tutti i religiosi carmelitani, del suo modo di capire la Regola, fa nascere un nuovo Istituto (maschile e femminile) sviluppatosi per tutta la Chiesa. Notiamo inoltre che questa non accettazione degli  osservanti è soltanto una fedeltà al carisma fondazionale, nel modo fino allora conosciuto e vissuto, e che come forma vitae aveva dato grande copia di santi.

San Bernardo sarebbe un altro esempio, avendo preso la stessa regola di Benedetto (la quale fino ad oggi ha fatto sorgere tante forme diverse).

Possiamo dire che un carisma nuovo può essere in rapporto con un altro carisma; il quale, o è stato dimenticato, o può essere vissuto in diversa profondità. Da questo incontro, può sorgere sia un riadattamento delle forme giuridiche antiche, senza cambiamento sostanziale; sia delle nuove forme giuridiche.

In un certo senso la varietà di forme giuridiche nate dal carisma di Francesco di Assisi sembra indicare questa seconda strada: il carisma vissuto in una fedeltà compresa in modi diversi[3]; senza dover (ne poter) dire che una forma sia superiore all’altra. Una delle ragioni è che un carisma fondazionale non è compreso al di fuori dei seguaci[4], dunque lo studio fatto dall’esterno, in modo più o meno teorico, potrebbe facilmente portare a delle conclusione sbagliate.

Possiamo, dunque, parlare di carismi fondazionali e carismi di ringiovani­men­to. I quali, ovviamente, possono dare origine a delle forme giuridiche variegate fino al… infinito? Si, in quanto infinito è lo Spirito che ispira e dirige. Almeno teoricamente; perché tutto quello che è umano è sempre limitato, e la Storia umana ha inizio e termine.

 

JIMÉNEZ ALEIXANDRE, José Manuel. Le recenti proposte di configurazione canonica dei nuovi movimenti ecclesiali. Studium Generale Marcianum. Istituto Superiore di Scienze Religiose San Lorenzo Giustiniani. Tesina di Licenza. p. 67-69. Venezia, venerdì 23 ottobre 2009


[1] Annuario Pontificio 2007, 1943.

[2] Annuario Pontificio 2007, 1944.

[3] Un grande storico francescano, Lazaro Iriarte OFM Cap., nella Historia Francis­cana fa uno sviluppo delle difficoltà degli uomini, e delle azioni dello Spirito  lungo i secoli, nei seguaci di Francesco. Già in vita dal fondatore, sorge il “partito de los letrados” – che possiamo chiamare “degli intellettuali” – i quali approfittando un viaggio a Gerusalemme dal poverello, “dicto varios estatutos adicionales, dirigidos a comunicar a la orden un prestigio ascético” (62) diverso dal carisma fondazionale. Ritornando a Assisi “el disgusto de Francisco fue acerbo … se sintió impotente para enfrentarse con el sagaz partido … era inevitable la escisión de la orden en dos tendencias  opuestas” (63). Queste difficoltà continueranno lungo i secoli, dando origine a nuovi istituti, alcuni con incipit così rattristanti come i cappuccini, con Bernardino Ochino, prima Vicario Generale, e poi diventato pastore luterano; Matteo da Bascio e Ludovico di Fossombrone, ambedue superiori dell’ordine, e dopo espulsi a causa della loro indocilità. Questo non ha impedito che fino ad oggi ci sono stati dei grandi santi cappuccini, come S. Leopoldo Mandic o S. Pio da Pietralcina.

[4] Il cosiddetto “carisma di discepolo” è poco approfondito, ma tanto reale. Perché di tre sorelle, in una piccola cittadina senza molta comunicazione con l’esteriore, una si sposa, l’altra diventa clarissa, e l’altra ancora missionaria in Giappone? Evidente­mente hanno delle vocazioni diverse. Una ha compreso che, per lei, Chiara di Assisi sarà il suo modello, la fondatrice alla quale conformerà la sua vita, per conformarla a Cristo. É preciso ter sido chamado a viver o mesmo carisma para compreendê-lo. O discípulo, por obra do Espírito Santo, alcança um grau de afinidade com o espírito do Fundador por onde vibra em contato com qualquer manifestação dele. É o «carisma dos discípulos»”, dice Canals, e cita, tra altri, a Romano (162-163): “O dom que o Espírito confere aos que são chamados por ele a formar parte de uma comunidade religiosa. Desta maneira os discípulos alcançam uma particular afinidade com o espírito do fundador, que os faz vibrar de entusiasmo ao entrar em contato com a manifestação autêntica de seu espírito, e os leva a viver em sintonia com a forma evangélica encarnada pelo fundador.

A Via Pulchritudinis

                                       Mons. João Clá Diasbento-xvi-missa

Como meio de evangelização, a beleza na liturgia tem sido ao longo dos séculos a causa de incontáveis conversões. Não são raros os homens de letras que deixaram consignada em alguma de suas obras a influência exercida pelo pulchrum litúrgico no processo de seu retorno à Igreja. Um desses é Joris Karl Huysmans, autor das célebres obras “En route” e “La Cathédrale”.

Eles mencionam a atração irresistível que exerce a vista dos celebrantes vestindo belos paramentos, movendo-se por entre a névoa do incenso e o tilintar das campainhas, do resplandecer dos vitrais colorindo as paredes e o chão, dos acordes do órgão fazendo solo ou acompanhando o canto gregoriano e o polifônico, enchendo de sonoras harmonias os espaços entre os arcos góticos das catedrais.

Na Liturgia, o pulchrum não é um elemento secundário, com o qual se deve ou não contar, segundo circunstâncias e conveniências, mas ele tem um papel essencial. É o que Bento XVI afirma de modo claro, e por suas palavras vemos como é preciso proporcionar à beleza um lugar de honra nas celebrações:

A verdadeira beleza é o amor de Deus que nos foi definitivamente revelado no mistério pascal. A beleza da Liturgia pertence a este mistério; é expressão excelsa da glória de Deus e, de certa forma, constitui o céu que desce à terra. O memorial do sacrifício redentor traz em si mesmo os traços daquela beleza de Jesus testemunhada por Pedro, Tiago e João, quando o Mestre, a caminho de Jerusalém, quis transfigurar-Se diante deles (Mc 9, 2). Concluindo, a beleza não é um fator decorativo da ação litúrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto atributo do próprio Deus e da sua revelação. Tudo isto nos há de tornar conscientes da atenção que se deve prestar à ação litúrgica para que brilhe segundo a sua própria natureza.[1]

Por fim, cumpre lembrar a Assembléia Plenária do Pontifício Conselho para a Cultura, realizada nos dias 27 e 28 de março de 2006. Nela, colocou-se em evidência precisamente o papel da beleza na evangelização. Como acentuou o Cardeal Paul Poupard, presidente desse dicastério, “mais que o estudo dos aspectos filosóficos, bíblicos e teológicos da temática”, aquela Assembléia teria “uma finalidade eminentemente pastoral”, propondo-se a “oferecer aos bispos e às comunidades cristãs estratégias, projetos e propostas concretas para fazer que a via pulchritudinis seja percebida e vivida como uma via privilegiada e eficaz de evangelização, de transmissão da fé cristã e de diálogo com todos os homens e mulheres de boa vontade, mesmo que não-crentes”.

CLÁ DIAS, João. Oportunidades para a Igreja no século XXI. Elaboração do projeto de pesquisa: elementos constitutivos – 1ª. Parte. Centro Universitário Ítalo Brasileiro. São Paulo, 2007. p. 85-86.


[1] Exortação Apostólica pós-Sinodal “Sacramentum Caritatis”, n. 35.

O Livre Arbítrio em Santo Agostinho

            Pe. David Edward Ritchie, EP      agostinho

            De acordo com Sto. Agostinho, o primeiro livre arbítrio, aquele que foi dado a Adão, consistia no poder não pecar. Perdida esta liberdade pelo pecado original, surgem as más ações que cometemos por ignorância e as boas que não conseguimos praticar, pois esse, como antecedente, mereceu os outros pecados, como conseqüentes. (Cf. De Libero Arbitrio II, cap. 20, 54). “Denominamos “pecado” não apenas o que em sentido próprio é pecado, por ter sido cometido conscientemente e por livre vontade, mas também o que é a conseqüência necessária do mesmo pecado, como castigo do mesmo”. (Idem) A liberdade final, será aquela que Deus dará como prémio e consistirá no não poder pecar. Esta última liberdade será dada ao homem como um dom divino, dado que não pertence à natureza humana, e tornará esta última participe da impecabilidade própria de Deus. Mas pois que a primeira liberdade foi dada ao homem a fim de que ele procure a última e completa liberdade, é evidente que só esta última exprime aquilo que o homem verdadeiramente deve ser e pode ser. O não poder pecar, a libertação total do mal é uma possibilidade do homem fundada numa dádiva divina.

            Deus é o Ser que permite ao homem a existência, a Verdade que dá lei à sua razão, o Amor que o chama a amar. Sem Deus o homem só pode afastar-se do ser, da verdade e do amor, isto é, só pode pecar e condenar-se. Por isso ele não possui méritos próprios que faça valer perante Deus. Os méritos do homem não são mais que dons divinos; e o homem deve atribui-los a Deus, não a si (Cf. De libero arbitrio, cap. 6).

            É possível que Sto. Agostinho tivesse concebido de outro modo o processo da justificação, se quando jovem não tivesse ele próprio feito a experiência do pecado e sentido a mão de Deus arrancá-lo dele, imperiosamente. Acerca da questão do pecado original, Agostinho baseia-se na Epístola aos Romanos (5, 12), em que se diz que “assim como por um só homem entrou o pecado no mundo e pelo pecado a morte, assim a morte penetrou em todos os homens, porque todos pecaram”. Paulo não quis dizer que Adão fosse o primeiro pecador, pois e primeiro pecador foi o diabo; se escreveu que o pecado entrou no mundo por Adão, é porque se trata exactamente de transmissão, não de imitação.

            Agostinho servia-se de uma observação que sempre o tinha impressionado, como já o provam as Confissões, a do sofrimento das crianças: este não pode ser uma pena merecida pelos pecados pessoais nem um remédio para exercitar a virtude daqueles que o suportam; se não se quiser acusar a Deus de crueldade e de injustiça, só pode ser o justo castigo de uma falta original.

            Assim, apesar da humanidade ter sido amaldiçoada depois do pecado original, alguns alcançam a verdade divina, a salvação. Isso depende do uso que fazemos do livre arbítrio, a faculdade que o indivíduo tem de determinar de acordo com a sua própria consciência a sua conduta, livre da Divina Providência enquanto está vivo. Seria o acto livre de decisão, de opção. Durante um diálogo, agostinho chega a conclusão que o mal não provém de Deus, mas sim do mau uso do livre arbítrio. “O mal consiste na aversão da vontade ao Bem imutável para se converter aos bens transitórios. Por sua vez, essa aversão e essa conversão não sendo forçadas, mas voluntárias, o infortúnio que se segue será um castigo justo e merecido. (De Libero Arbitrio II, Cap. 19, 53) Por isso, os sofrimentos pelos quais o homem passa nesta terra “são a justa punição por sua perversão, pois nada do que é conforme a justiça pode ser mal”. (De Libero Arbitrio, I, Cap. 16, 43)

RITCHIE, David. A formação da doutrina Agostiniana acerca do mal e sua importância no contexto da polémica contra os maniqueus e no âmbito do Livre Arbítrio. Paper Estudios antiguos y medievales – Dr. Gonzalo Soto. Maestria en Teología Moral. UPB.

 

A Arte Sacra: desafio para os nossos tempos

artista

O artista verdadeiramente livre

       sabe como olhar o passado        

 

Tradução minha do artigo de Paolo Portoghesi – Lo sforzo di rendere visibile la fede: L’artista veramente libero sa guardare il passato. in: L’Osservatore Romano – 19-20 ottobre 2009.

 

 

             Nós, hoje, não experimentamos apenas uma crise da arte sacra, mas uma crise da arte enquanto tal, e com uma intensidade até agora desconhecida. A crise da arte é um outro sintoma da crise da humanidade, que na extrema exasperação do domínio material do mundo é precipitada nas trevas opostas às grandes questões do homem, como a questão sobre o destino último do homem, que vai além da dimensão material. Esta, pode ser certamente definida como uma cegueira do espírito. À demanda sobre como devemos viver, como devemos enfrentar a morte, se a nossa existência tem um fim e qual, a todas estas perguntas não existem mais respostas correntes. O positivismo, formulado em nome da seriedade científica, restringe o horizonte àquilo que é demonstrável, àquilo que pode ser verificado pela experiência; isso torna o mundo opaco. Contém agora a matemática, mas o Lògos, que é o pressuposto desta matemática e da sua aplicabilidade, não aparece mais. Agora, o nosso mundo das imagens não supera mais a aparência sensível e o discorrer das imagens que se circundam significa, ao mesmo tempo, o fim da imagem: como se além daquilo que pode ser fotografado, não houvesse mais para ver. Neste ponto, porém, não é impossível somente a arte do ícone, a arte sacra, que se constrói sobre uma observação que se abre em profundidade; a própria arte, que num primeiro momento experimentou no impressionismo e no expressionismo a possibilidade extrema da visão sensível, mantém-se privada de um objecto, no sentido literal. A arte torna-se experimentação com mundos que se criam para si, uma vã criatividade, que não percebe mais o Espírito Criador. Essa tenta tomar o seu posto e não pode produzir senão o arbitrário e o vazio, que torna o homem consciente do absurdo da sua pretensa criação”. (Introduzione allo spirito della liturgia, pp. 126-127).

              Com esta palavra, dura e precisa, se pede aos artistas que crêem, empenho num desafio contra aquela “criatividade vazia” que não mais percebe o “Espírito Criador”. “A Igreja – lê-se na Costituzione conciliare sulla sacra liturgia – não teve como seu um particular estilo artístico, mas segundo a índole e as condições dos povos e as exigências dos vários ritos, tem admitido as formas artísticas de todas as épocas”. É justo, sobre a base desta consideração irrepreensível, contentar-se com o espírito do tempo? Num tempo que celebra a “morte de Deus” anunciada por Nietzsche, como um destino que não se pode soterrar? No alvor do cristianismo, qual era o espírito do tempo? Aquele dos mártires e dos apóstolos ou aquele do hedonismo da Roma imperial?

            O empenho por uma arte sacra do nosso tempo tem precedentes de extraordinária qualidade e rigor […]. Para quem aceita o desafio, há uma via principal na qual avançar. “Também hoje – lê-se na Introduzione allo spirito della liturgia – a alegria em Deus e o encontro com a sua presença na liturgia são uma força inexaurível de inspiração. Os artistas que se colocam sob esta tarefa não devem sentir-se como a retrógrados à cultura, pois a liberdade vazia da qual sairão tornar-se-á motivo de desgosto. A humilde submissão àquilo que os precede é origem da verdadeira liberdade e os conduz às verdadeiras alturas da nossa vocação de homens”.

Evangelizar com a Verdade

Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EPsantelmo

O desejo desordenado de ciência dos nossos primeiros pais, provocado pela soberba, os fez cair, causando-lhes a perda do dom da integridade. Como consequência, a natureza humana tornou-se presa não só da concupiscência como até mesmo da ignorância.[1]

Desde então, o homem passou a necessitar de esforço para adquirir o conhecimento de si próprio, do mundo que o rodeia e de seu inter-relacionamento. Embora conservando seu caráter natural de conhecimento, que consiste em alcançar o inteligível por meio do sensível, seu intelecto foi de algum modo ferido pelo pecado original. A partir desse momento, atingir a verdade do ser, demanda esforço.[2]

Entretanto, ainda que permanecesse no estado paradisíaco, não bastaria ao homem um mero empenho natural para chegar às verdades sobrenaturais de ordem superior. São Tomás esclarece que, para isso, é necessária a luz da graça acrescentada à natureza.[3]

Conforme recorda o dominicano Marín-Sola, decorrem daí duas vias para a elaboração do pensamento teológico-dogmático: a do raciocínio e experiência, ou seja, a via especulativa, da ciência dos sábios; e a via mística, da ciência dos santos, ambas só percorríveis à luz da autoridade infalível da Igreja e assistidas pelo Espírito Santo,[4] fontes de toda a verdade.

Apesar de ambas as vias se revestirem de importância, mesmo se dissociadas, não é raro ter maior força e luminosidade a doutrina explicitada pelos que vivem em função, não apenas da ortodoxia, mas também da ortopráxis cristã. Foi assim que os Doutores da Igreja se tornaram receptáculos de um conhecimento proveniente da ascética (estudo) e mística (contemplação) que os tornou instrumentos do Paráclito, passíveis de explicitar a riqueza dos mistérios da Fé cristã de forma mais arrebatadora e clara.

São numerosas as doutas e elevadas dissertações redigidas por contemplativos, muitas vezes sem grandes estudos. Os escritos de uma Santa Teresinha do Menino Jesus, por exemplo, com seu alto valor teológico e filosófico, enriquecem o acervo da Igreja, de forma análoga à obra de um São Gregório Magno. Nos dois casos encontramos elevações de espírito cuja origem não pode ser procurada em um simples estudo e esforço intelectual, desprovido de muita oração, meditação e prática da virtude. Quando se procura viver configurado com Deus, a consideração de algo passa a proceder não somente da visão do teólogo ou filósofo, mas d’Aquele no qual se crê; o lumen natural do intelecto é então reforçado pela infusão da luz da graça.[5]

Porém, aquele que busca o puro conhecimento, desdenhando a prática da virtude e a observância da Lei de Deus, terá uma verdade sujeita às limitações naturais da razão e maiores possibilidades de engano, bem como a inconstância do coração. A tal propósito, São Paulino escreveu certo dia a Jovio, amigo do estudo, mas avesso à vida espiritual com o pretexto de falta de tempo, repreendendo-o: “Tens tempo para ser filósofo e não o tens para ser cristão!”.[6]

Assim como o esforço racional sem o auxílio de uma autêntica vida cristã, cria condições menos favoráveis para a aquisição de um aprofundado e acertado conhecimento (e, note-se, mesmo no referente às ciências naturais), também a transmissão teológica se verá privada em algo da verdadeira eficácia, caso o mestre não se torne ele próprio o exemplo daquilo que ensina. Como dizia São Bernardo:

Terão força as vossas palavras, desde que os ouvintes estejam persuadidos de que muito primeiro começastes a praticar o que pregais aos outros. Mais força tem o pregão das obras que a voz da boca.[7]

Para melhor servirmos à Igreja e ao Povo de Deus, como instrumentos úteis na Evangelização e no ensino, necessitamos ser, ademais de filósofos e teólogos, sobretudo, pessoas que saibam conciliar a ciência e o conhecimento com a Fé e a vida de piedade. Conforme observou de maneira penetrante o então cardeal Ratzinger, é necessário um especial empenho em “lidar de maneira dialógica com a fé e a filosofia, pois ambas precisam uma da outra. A razão sem a fé não é saudável, a fé sem a razão não se torna humana”.[8]

CLÁ DIAS, João. Editorial. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 5, out-dez 2008. p. 3-5.


[1] Cf. S. Th. II-II q. 163-164 e I-II; q.82 a.3 sol. 3

[2] Cf. S. Th. I q. 101 a.1.

[3] Cf. S. Th I-II q.109 a.1: “quod dicitur lumen gratiae, inquantum est naturae superadditum”.

[4] Cf. MARÍN-SOLA, F. O.P. La evolución homogénea del Dogma Católico. BAC, Madrid, 1952 p.395-409

[5] Cf. S. Th. I-I Q. 12 a. 13.

[6] Vacat tibi ut philosophus sis; non vacat ut christianus sis? (Ep. ad Jovium).

[7] Apud LIGÓRIO, Santo Afonso Maria de. A Selva. Tipografia Fonseca. Porto: 1928, p.70.

[8] RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância. UCEDITORA: Lisboa, 2007, p.124.

O descontrole das paixões na desconsideração da alma

povoDiác. José Victorino de Andrade, EP

A valorização da estética humana, de maneira sensual e desregrada, fruto muitas vezes de modelos impostos pela mídia e por um egocentrismo excessivo, resulta em toda a espécie de sacrifícios físicos e de abstenções, que repugnam ao homem enquanto penitência e mortificação, próprias a uma necessidade espiritual ou a um determinado período litúrgico, mas valorizadas e muitas vezes levadas a extremos para se chegar a um determinado padrão de exigência em nossa sociedade. Tome-se como exemplo os abundantes casos de anorexia e fenômenos discriminatórios, cuja reivindicação de uma determinada aparência conotada como “bela” leva a regimes e a atitudes perigosas para o normal funcionamento do organismo humano.

Por outro lado, surge também o campo dos excessos. A desregrada satisfação dos sentidos leva a cometerem-se abusos que levam a um mero sentimento, desenfreado e vicioso, jamais satisfatório, porque o corpo parece nunca saciar-se, reflexo da insaciabilidade da alma enquanto não repousa em Deus. João Paulo II alertou os jovens a este respeito:

[…]vos encontrais no período maravilhoso e delicado, em que a vossa realidade biopsíquica cresce até à maturação perfeita para serdes capazes, física e espiritualmente, de enfrentar as alternativas da vida nas suas mais desvairadas exigências. Temperante é aquele que não abusa dos alimentos, das bebidas e dos prazeres; que não toma desmedidamente bebidas alcoólicas; que não se priva da consciência mediante uso de estupefacientes ou drogas. Em nós podemos imaginar um “eu inferior” e um “eu superior”. No nosso “eu inferior” exprime-se o nosso “corpo” com as suas carências, os seus desejos, as suas paixões de natureza sensível. A virtude da temperança garante a cada homem o domínio do “eu superior” sobre o do “inferior”. Trata-se, talvez, neste caso, de humilhação, de diminuição para o nosso corpo? Pelo contrário! Esse domínio valoriza-o, exalta-o. […]

Refleti bem nisto, vós jovens, que estais precisamente na idade em que tanto se estima ser belo ou bela para agradar aos outros! Um jovem e uma jovem devem ser belos primeiramente e sobretudo interiormente. Sem tal beleza interior, todos os outros esforços que só tenham o corpo por objeto não farão — nem dum jovem nem duma jovem — uma pessoa verdadeiramente bela.[1]

Parece que o papel de uma alma virtuosa, como fator até de beleza e atração, ficou relegada a um segundo plano, talvez reflexo de uma superficialidade que não olha para o conteúdo e para a profundidade das coisas, mas que se deixa levar por considerações e sentimentos primários, onde a inteligência é dominada pelas outras potências e a sensibilidade se torna rainha e senhora do nosso ser. Desconsidera-se que uma alma temperante e que procura a santidade tem uma beleza que lhe vem do mais profundo do seu ser, refletindo-se na própria fisionomia e temperamento, enquanto que aquela que é escrava das paixões e vive no pecado, influencia o próprio organismo, bastando observar um pouco a degradação e a fragilidade humana daqueles e daquelas que vivem na luxuria, na dependência e no vicio, inclusive com notório envelhecimento precoce e enrudecimento comportamental…

[1] João Paulo II. Encontro com os Jovens na Basílica Vaticana. 22 de Novembro de 1978


A importância do Pulchrum na Evangelização

600x800-marMons. João Scognamiglio Clá Dias

No primeiro capítulo do Gênesis, contemplamos a Deus criando as maravilhas do universo ao longo de seis dias, e a cada entardecer, antes da noite, exclama o narrador: “E viu Deus que isso era bom” (Gn 1, 25). Ao concluir todas as maravilhas, “viu Deus tudo o que tinha feito, e tudo era muito bom” (Gn 1, 31). E o Livro dos Salmos canta: “Como são magníficas tuas obras, Senhor!” (Sl 91, 6). “Fizeste-as todas com sabedoria!” (Sl 103, 24).

Esta formosura de todo o universo criado é particularmente atraente para o homem. A beleza — o pulchrum, segundo a expressão latina, definido pela filosofia escolástica como o “esplendor da verdade” ou o “esplendor do bem” — atrai o homem. “Em virtude do próprio fato da criação, todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e leis próprias”.[1] O homem é chamado a degustar, apreciar e admirar essa maravilha que a ordem da criação lhe apresenta.

Nossa época, mais do que qualquer outra, tem necessidade desse conhecimento e dessa sabedoria:

Finalmente, a natureza espiritual da pessoa humana encontra e deve encontrar a sua perfeição na sabedoria, que suavemente atrai o espírito do homem à busca e ao amor da verdade e do bem, e graças à qual ele é levado por meio das coisas visíveis até as invisíveis […] Está ameaçado, com efeito, o destino do mundo, se não surgirem homens cheios de sabedoria […] Pelo dom do Espírito Santo, o homem chega a contemplar e saborear, na fé, o mistério do plano divino.[2]

A contemplação amorosa de Deus e das criaturas desabrocha no desejo de comunicá-la aos outros, de evangelizar, como ressaltava o Concilio:

O amor para com Deus e para com os homens é a alma de todo apostolado.[3]

Assim, a consideração do universo sobrenatural e natural serve como instrumento para que as pessoas saiam de seu egoísmo, dominem suas paixões desordenadas e contemplem os sinais de Deus em tudo quanto existe — incluindo as belas obras feitas pelos homens — e assim cheguem até Ele, O conheçam e amem tanto quanto é possível nesta terra.

Em vista disso, é preciso utilizar na evangelização os meios adequados.

A literatura e as artes são também, segundo a maneira que lhes é própria, de grande importância para a vida da Igreja […] Conseguem assim elevar a vida humana, que exprimem sob formas muito diferentes, segundo os tempos e lugares […] Desse modo, o conhecimento de Deus é mais perfeitamente manifestado; a pregação evangélica torna-se mais compreensível ao espírito dos homens e aparece como integrada nas suas condições normais de vida.[4]

Ao nosso alcance estão instrumentos de valores diversos, mas todos muito úteis, como as cerimônias litúrgicas, procissões, peças de teatro, cinema, concertos, e o próprio sermão… Este, sobretudo, deve ser pulcro, atraente, tendente a dar glória a Deus da melhor forma possível.

Também os estudos têm de ser feitos em função do pulchrum, e não apenas para adquirir conhecimentos. E o próprio conhecimento deve ser amoroso, esforçando-se por ver em cada aspecto o intuito de Deus, de modo a “contemplar e saborear o mistério do plano divino”.[5]

 

CLÁ DIAS, João. Oportunidades para a Igreja no século XXI. Elaboração do projeto de pesquisa: elementos constitutivos – 1ª. Parte. Centro Universitário Ítalo Brasileiro. São Paulo, 2007. p. 89-90.



[1] Gaudium et Spes, 36.

[2] Gaudium et Spes, 15.

[3] Lumen Gentium, 33.

[4] Gaudium et Spes, 62.

[5] Gaudium et Spes, 15.