A sacralidade do sacerdote

sacerMons. João Clá Dias, EP

Um elemento conexo ao bom exemplo é a proporcionada respeitabilidade da qual deve cercar-se o ministro de Deus — não só pelo comportamento inatacável, mas também pela postura, pelo modo de ser e pelo traje — para que sua atuação exerça mais influência na alma dos fiéis.

Com efeito, mesmo em nossos dias, a experiência cotidiana nos revela como é impressionante a admiração devotada ao religioso ou sacerdote que se apresenta como tal. Essa respeitabilidade, que a uns pode parecer artificialidade, acaba sendo um valioso auxílio para o próprio ministro, pois contribui para ele ter sempre presente em seu espírito a alta dignidade de que foi investido, a qual imprimiu caráter em sua alma, por toda a eternidade. Além de ser, ao mesmo tempo, uma salutar proteção contra incontáveis seduções do mundo.

Não obstante serem necessárias essas atitudes externas, assim como os cuidados razoáveis para preservar a imagem venerável do sacerdote aos olhos dos fiéis, nada contribui tanto para tal como a autêntica santidade de vida. Santidade cuja fonte o sacerdote encontra principalmente na Celebração Eucarística.

CLÁ DIAS, João. A Santidade do sacerdote à luz de São Tomás de Aquino. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 8, jul-set 2009. p. 15-16.

Verdade e felicidade na existência humana

procissaoO Cristão sabe que há limites para os “princípios e as causas” que os filósofos procuram. A “filosofia primordial” de Aristóteles, na realidade, convida-nos a contemplar a existência da mais alta verdade, embora os poços que alcançaram esta meta obtiveram apenas um oblíquo, inferencial conhecimento deste último princípio; isto é, um conhecimento da dependência dos seres criados de uma única, fonte que todas as pessoas chamam Deus.[1] Devido a ter explorado extensivamente a diferença entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, São Tomás de Aquino oferece uma nota incaracteristicamente acabrunhada acerca daquelas pessoas que se apóiam apenas na razão para descobrir a verdade acerca da existência humana.

 

Porque Aristóteles viu que não há nenhum outro conhecimento humano nesta vida exceto através das ciências especulativas, ele sustentou que o homem não pode atingir uma completa, mas apenas uma relativa felicidade. Com isto fica claro o que o nobre gênio entre os filósofos experienciou no curso do seu tempo.[2]

 

Mas enquanto o Cristão escapa a esse triste estado, ele ou ela precisam experimentar alguma frustração dos filósofos. Como um teólogo aponta, “se o homem não estabelece um contato definitivo com Deus a um ponto que não é graça (no sentido teológico da palavra), então o Deus que se revela não se pode endereçar ao homem de modo significante. Daí, a solene declaração da Igreja que a existência de Deus pode ser naturalmente conhecida (Dz 3004, 3026) e que a alma humana é imortal (Dz 1440)”.[3]

Quando a Igreja defende a dignidade do chamado humano e restaura a esperança para aqueles desconsolados de qualquer destino mais alto, ela reconhece que a sua mensagem atingiu o mais profundo do coração humano. Ao mesmo tempo, por causa do sobrenatural senso de fé, o Povo de Deus recebe uma verdade que excede a capacidade do conhecimento humano, a verdade que os liberta (Cf. Jo 8, 32).

Este texto foi publicado na revista Lumen Veritatis nº 5 Out. – Dez. com a gentil permissão do corpo editorial da AMATECA series of Handbooks of Catholic Theology e foi traduzido pelo Pe. Colombo Pires E.P. da edição inglesa do Father Cessario’s Le Virtù (Milan 1994).

[Romanus Cessario, O.P. The Virtues, Or the Examined Life (London/New York: Continuum, 2002)].


[1] Cf. In De Trinitate Bk 5, chap. 4.

[2] Contra gentiles Bk III, c. 48.

[3] Edward Schillebeeckx, Revelation and Theology, vol. 1 (New York, 1967), pp. 154, 155.

Os Carismas

Mons. João Clá Dias, EP

espirito

Os carismas, “quer extraordinários quer simples, são graças do Espírito Santo que, direta ou indiretamente, têm uma utilidade eclesial, pois são ordenados à edificação da Igreja, ao bem dos homens e às necessidades do mundo” (CIC, n. 799; 800).[1]

Por meio deles, o Povo de Deus participa do múnus profético de Cristo, através do Espírito Santo que santifica e conduz a Igreja. Ele não apenas se beneficia com as riquezas doadas pela magnificência de Deus, mas assume as responsabilidades inerentes a essa participação em proveito da Igreja, como ensina o Concílio Vaticano II:

A todos os fiéis incumbe, portanto, o glorioso encargo de trabalhar para que a mensagem divina da salvação seja conhecida e recebida por todos os homens em toda a terra. […] A recepção destes carismas, mesmo dos mais simples, confere a cada um dos fiéis o direito e o dever de atuar na Igreja e no mundo, para bem dos homens e a edificação da Igreja, na liberdade do Espírito Santo, que ‘sopra onde quer’ (Jo 3, 8) e, simultaneamente, em comunhão com os outros irmãos em Cristo, sobretudo com os próprios pastores (Apostolicam Actuositatem, n. 3).

 

Caberá, evidentemente, a critério superior das autoridades eclesiásticas fazer o julgamento sobre a autenticidade desses dons e ordenar seu exercício, provando-os e ficando com aqueles que sejam bons (cf. LG 12; 1 Tes 5, 12), pois o próprio Espírito submeteu à autoridade dos Apóstolos até os carismáticos (LG 7; 1 Cor 14). A esse propósito, assim se exprimiu João Paulo II:

Como conservar e garantir a autenticidade do carisma? É fundamental, a respeito disso, que cada movimento se submeta ao discernimento da autoridade eclesiástica competente. Por essa razão, nenhum carisma dispensa da reverência e da submissão aos Pastores da Igreja.[2]

 

Cumpridas essas condições, os carismas devem ser acolhidos com reconhecimento e generosidade, não só por quem os recebe, mas também por todos os membros do Corpo Místico de Cristo. E se, por um lado, cabe aos pastores discernir a autenticidade divina desses dons e carismas, compete-lhes, por outro lado, zelar especialmente para não se extinguir a ação do Espírito, buscando a cooperação de todos em sua diversidade e complementaridade (cf. LG 12).[3]

Tais carismas, que manifestam a presença atuante do Espírito Santo, não são atributos de funções eclesiásticas particulares — segundo George e Grelot (1966, p. 120) — mas podem encontrar-se em qualquer batizado, seja qual for seu ministério ou função na Igreja. São concedidos com o objetivo de dar o poder e a graça para corresponder à própria vocação e ser útil à comunidade, a fim de que seja edificado o Corpo de Cristo.

 

CLÁ DIAS, João. Os novos movimentos: Quando espírito e jurisprudência se encontram…

 in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 6, jan-mar 2009. p. 11-13.


[1] A esse respeito também interessa a afirmação de João Paulo II no discurso aos participantes do Congresso Mundial dos Movimentos, em 30 de maio de 1998: “Não esqueçais que cada carisma é dado para o bem comum, isto é, em benefício de toda a Igreja!”

[2] Discurso aos participantes do Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais, de João Paulo II, em 30 de maio de 1998. Disponível em: <www.vatican.va>. Acesso em: <15 maio 2008>.

[3] “Esses carismas, quer eminentes, quer mais simples e mais amplamente difundidos, devem ser recebidos com gratidão e consolação, pois que são perfeitamente acomodados e úteis à necessidades da Igreja. […] O juízo sobre a autenticidade e seu ordenado exercício compete aos que governam a Igreja. A eles, em especial, cabe não extinguir o Espírito, mas provar as coisas e ficar com o que é bom (cf. 1Tes 5, 12 e 19, 21)” (LG 12).

O sacerdote enquanto modelo para os fiéis

sao-joao-eudesMons. João Clá Dias, EP

Sendo visto pelos fiéis como alguém escolhido por Deus para guiá-los, o ministro ordenado deve ser sempre exemplo preclaro de virtude, como recomenda o Apóstolo a seu discípulo Tito: “Mostra-te em tudo modelo de bom comportamento: pela integridade na doutrina, gravidade, linguagem sã e irrepreensível, para que o adversário seja confundido, não tendo a dizer de nós mal algum” (Tt 2, 7-8).

Com efeito, uma conduta irrepreensível, inflamada de caridade, dando testemunho da beleza da Igreja e da veracidade da mensagem evangélica, falará muito mais profunda e eficazmente às almas do que o mais lógico e eloquente dos discursos: “O ornato do mestre é a vida virtuosa do discípulo, como a saúde do enfermo redunda em louvor do médico. […] Se apresentarmos nossas boas obras, será louvada a doutrina de Cristo”.[1]

Por vezes, se interpreta a obrigação de dar exemplo, de ser modelo, num sentido minimalista: o de apenas cumprir mais ou menos os próprios deveres, no mesmo nível de todos os outros. E assim, pelo critério da mediania, procura-se contentar a própria consciência. Ora, quem é chamado a servir de exemplo para os outros não deve se comparar com os que lhe são iguais, mas com aqueles que alcançaram o mais alto grau de perfeição. Cristo, sim, é o verdadeiro modelo do ministro consagrado. É com Ele que o sacerdote deve configurar-se, não só pelo caráter sacramental, mas também pela imitação de Suas perfeições, de forma que nele os fiéis possam ver outro Cristo. Só assim estes se sentirão atraídos pelo bom exemplo de seu pastor e guia.

Dada a natureza social do homem, a boa reputação decorrente da prática da virtude leva os outros à imitação. Assim, quanto mais semelhança com Cristo encontrarem os fiéis nos ministros de Deus, tanto mais facilmente se deixarão guiar por eles. E, portanto, mais eficaz será o seu ministério, conforme comenta São Tomás:

 Ora, essa estima aos prelados da Igreja é necessária para a salvação dos fiéis; se estes não os reconhecerem como ministros de Cristo, não lhes obedecerão como a Cristo, segundo lê-se na epístola aos Gálatas (4, 14): “Recebestes-me como um Anjo de Deus, como o próprio Cristo Jesus”. Ainda mais, se não os reconhecerem como dispensadores, se recusarão a receber deles os dons, contrariamente ao que diz o mesmo Apóstolo: “O que eu dei, se alguma coisa dei, foi por amor a vós, na pessoa de Cristo” (2 Cor 2, 10).[2]

 

Essa estima pelos sacerdotes, tão importante para a plena eficácia de seu múnus, depende também da veneração que os fiéis tenham pelo sacerdócio enquanto tal. São Francisco de Assis, por exemplo, que nunca quis receber a ordenação presbiteral, por considerá-la uma dignidade excessiva para si, tinha pelo sacerdócio tal respeito que chegava a oscular o lugar por onde passava um sacerdote.

 

CLÁ DIAS, João. A Santidade do sacerdote à luz de São Tomás de Aquino. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 8, jul-set 2009. p. 14-15 

 

[1] Super Tit. cap. 2, lec. 2.

[2] Super II Cor. cap. IV. lec. 1.


O chamado à perfeição

vaticanoDiác. José Victorino de Andrade, EP

“Sede perfeitos como vosso Pai do Céu é perfeito” (Mt 5, 48). Para São Tomás de Aquino, esta proposta que Nosso Senhor nos faz na sequência do Sermão das Bem-Aventuranças não pode ser inatingível pelo homem, pois neste caso jamais lhe poderia ser prescrito pela lei divina.[1] Portanto, tem de ser possível chegar à perfeição nesta vida, e esta consiste, de acordo com Santo Agostinho, na ausência dos desejos desordenados que se opõem à caridade. O Aquinate acrescenta a esta doutrina tudo quanto possa impedir que o afeto da mente se dirija totalmente a Deus, sem o que não poderá haver caridade, que é a perfeição da vida cristã.[2] O Catecismo da Igreja Católica aclara esta questão:

O exercício de todas as virtudes é animado e inspirado pela caridade, que é o “vínculo da perfeição” (Cl 3,14); é a forma das virtudes, articulando-as e ordenando-as entre si; é fonte e termo de sua prática cristã. A caridade assegura e purifica nossa capacidade humana de amar, elevando-a à perfeição sobrenatural do amor divino.[3]

 

Embora alguns autores prefiram distinguir o convite à perfeição da vocação à santidade, os termos se interpenetram na medida em que a perfeição pode e deve ser um notável caminho para a santificação.[4] De acordo com São Paulo (cf. Cl 1, 28), é a perfeição em Cristo que os homens devem almejar para se apresentar diante de Deus. O próprio Concílio recordou que “todos os fiéis, seja qual for o seu estado ou classe, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade”,[5] ou seja, à santidade.

A aliança estabelecida por Deus com os homens trouxe-lhes, já no Antigo Testamento, um forte apelo à santidade, na medida em que cumprissem os preceitos por Ele estabelecidos. Mais do que os ritos prescritos,[6] este convite abrangia as variadas dimensões morais do Povo Eleito, manifestando-se, por exemplo, quando o Senhor fala pela boca de Isaías e se revela adverso em relação ao culto prestado por aqueles cuja malícia está em seu coração, e exorta a uma purificação, a fim de os homens se voltarem para a caridade e a justiça (cf. Is 1, 15-17). Assim, através de uma vida coerente com a Lei e o culto, Deus, só Ele Santo, deseja comunicar a sua santidade ao povo que cumpre Suas exigências e formar uma nação santa (cf. Ex 19,6).

Pedro, em sua Primeira Epístola, recordará este chamado à santidade (cf. I Pd 1, 15-16) retomando-o e dotando-o de uma nova perspectiva, iluminada pela Redenção, exortando assim a uma peregrinação terrena configurada com Cristo e conformada ao caráter soteriológico de sua encarnação.

VICTORINO DE ANDRADE, José. Editorial. in: Revista Lumen Veritatis. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n.8, jul-set 2009, p. 3-5.

[1] Cf. Sum. Theol. II-II Q. 184, a. 2.

[2] Idem.

[3] Catecismo da Igreja Católica n. 1827.

[4] Ver a este respeito NETTO DE OLIVEIRA, José. Perfeição ou Santidade e outros textos espirituais. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2002.

[5] Lumen Gentium, 40

[6] Ver Ex 22, 30; Lv 11, 44; 19, 2.

 

 

Unidade e variedade no seio da Igreja

catedraMons. João Clá Dias

Na Santa Igreja Católica, o mistério do Verbo Encarnado reflete-se à maneira de um espelho. Com efeito, é em Cristo Jesus, Deus e Homem verdadeiro, que as duas naturezas — divina e humana — unem-se hipostaticamente numa só Pessoa Divina; analogamente, a Igreja é formada por dois elementos: o carismático e o humano, o social e o visível.

Algo semelhante se verifica ao considerarmos a Esposa de Cristo em sua unidade e diversidade, bem como em sua insuperável catolicidade. Ela é una por sua fonte divina, por seu Fundador e por sua “alma”, que é o Espírito Santo. Faz parte de sua própria essência ser una (CIC, n. 813; 814). Não obstante, no decorrer de sua longa história, ela se apresenta com uma “grande diversidade”, notória tanto na “variedade dos dons de Deus” quanto na “multiplicidade das pessoas que os recebem” (CIC, n. 814).

São Paulo se refere a essa característica — a unidade na variedade — ressaltando que nela há “diversidade de dons, mas um só Espírito” (1 Cor 12, 4). Ante a abundância das manifestações carismáticas entre os fiéis, o Apóstolo orienta os discípulos a não perder de vista a unidade da Igreja, o “Corpo de Cristo” (1 Cor 12, 27). Todos os carismas — sabedoria, palavra de ciência, discernimento dos espíritos, e tantos outros (cf. 1 Cor 12, 8-10) — procedem de uma só fonte: é Deus mesmo quem “opera tudo em todos” (1 Cor 12, 6). E a Lumen Gentium, sintetizando três passagens das cartas paulinas, menciona a ação do Espírito Santo para unificar a Igreja “na comunhão e no ministério” e acrescenta que Ele a “enriquece, guia com diversos dons hierárquicos e carismáticos, e embeleza com os seus frutos” (n. 4).

CLÁ DIAS, João. Os novos movimentos: Quando espírito e jurisprudência se encontram. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 6, jan-mar 2008. p. 10.

Evangelizar com a Verdade

Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EPsantelmo

O desejo desordenado de ciência dos nossos primeiros pais, provocado pela soberba, os fez cair, causando-lhes a perda do dom da integridade. Como consequência, a natureza humana tornou-se presa não só da concupiscência como até mesmo da ignorância.[1]

Desde então, o homem passou a necessitar de esforço para adquirir o conhecimento de si próprio, do mundo que o rodeia e de seu inter-relacionamento. Embora conservando seu caráter natural de conhecimento, que consiste em alcançar o inteligível por meio do sensível, seu intelecto foi de algum modo ferido pelo pecado original. A partir desse momento, atingir a verdade do ser, demanda esforço.[2]

Entretanto, ainda que permanecesse no estado paradisíaco, não bastaria ao homem um mero empenho natural para chegar às verdades sobrenaturais de ordem superior. São Tomás esclarece que, para isso, é necessária a luz da graça acrescentada à natureza.[3]

Conforme recorda o dominicano Marín-Sola, decorrem daí duas vias para a elaboração do pensamento teológico-dogmático: a do raciocínio e experiência, ou seja, a via especulativa, da ciência dos sábios; e a via mística, da ciência dos santos, ambas só percorríveis à luz da autoridade infalível da Igreja e assistidas pelo Espírito Santo,[4] fontes de toda a verdade.

Apesar de ambas as vias se revestirem de importância, mesmo se dissociadas, não é raro ter maior força e luminosidade a doutrina explicitada pelos que vivem em função, não apenas da ortodoxia, mas também da ortopráxis cristã. Foi assim que os Doutores da Igreja se tornaram receptáculos de um conhecimento proveniente da ascética (estudo) e mística (contemplação) que os tornou instrumentos do Paráclito, passíveis de explicitar a riqueza dos mistérios da Fé cristã de forma mais arrebatadora e clara.

São numerosas as doutas e elevadas dissertações redigidas por contemplativos, muitas vezes sem grandes estudos. Os escritos de uma Santa Teresinha do Menino Jesus, por exemplo, com seu alto valor teológico e filosófico, enriquecem o acervo da Igreja, de forma análoga à obra de um São Gregório Magno. Nos dois casos encontramos elevações de espírito cuja origem não pode ser procurada em um simples estudo e esforço intelectual, desprovido de muita oração, meditação e prática da virtude. Quando se procura viver configurado com Deus, a consideração de algo passa a proceder não somente da visão do teólogo ou filósofo, mas d’Aquele no qual se crê; o lumen natural do intelecto é então reforçado pela infusão da luz da graça.[5]

Porém, aquele que busca o puro conhecimento, desdenhando a prática da virtude e a observância da Lei de Deus, terá uma verdade sujeita às limitações naturais da razão e maiores possibilidades de engano, bem como a inconstância do coração. A tal propósito, São Paulino escreveu certo dia a Jovio, amigo do estudo, mas avesso à vida espiritual com o pretexto de falta de tempo, repreendendo-o: “Tens tempo para ser filósofo e não o tens para ser cristão!”.[6]

Assim como o esforço racional sem o auxílio de uma autêntica vida cristã, cria condições menos favoráveis para a aquisição de um aprofundado e acertado conhecimento (e, note-se, mesmo no referente às ciências naturais), também a transmissão teológica se verá privada em algo da verdadeira eficácia, caso o mestre não se torne ele próprio o exemplo daquilo que ensina. Como dizia São Bernardo:

Terão força as vossas palavras, desde que os ouvintes estejam persuadidos de que muito primeiro começastes a praticar o que pregais aos outros. Mais força tem o pregão das obras que a voz da boca.[7]

Para melhor servirmos à Igreja e ao Povo de Deus, como instrumentos úteis na Evangelização e no ensino, necessitamos ser, ademais de filósofos e teólogos, sobretudo, pessoas que saibam conciliar a ciência e o conhecimento com a Fé e a vida de piedade. Conforme observou de maneira penetrante o então cardeal Ratzinger, é necessário um especial empenho em “lidar de maneira dialógica com a fé e a filosofia, pois ambas precisam uma da outra. A razão sem a fé não é saudável, a fé sem a razão não se torna humana”.[8]

CLÁ DIAS, João. Editorial. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 5, out-dez 2008. p. 3-5.


[1] Cf. S. Th. II-II q. 163-164 e I-II; q.82 a.3 sol. 3

[2] Cf. S. Th. I q. 101 a.1.

[3] Cf. S. Th I-II q.109 a.1: “quod dicitur lumen gratiae, inquantum est naturae superadditum”.

[4] Cf. MARÍN-SOLA, F. O.P. La evolución homogénea del Dogma Católico. BAC, Madrid, 1952 p.395-409

[5] Cf. S. Th. I-I Q. 12 a. 13.

[6] Vacat tibi ut philosophus sis; non vacat ut christianus sis? (Ep. ad Jovium).

[7] Apud LIGÓRIO, Santo Afonso Maria de. A Selva. Tipografia Fonseca. Porto: 1928, p.70.

[8] RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância. UCEDITORA: Lisboa, 2007, p.124.

Intellige ut credas, crede ut intelligas

lumen-veritatis-ant“O Espírito abre à inteligência humana novos horizontes que a ultrapassam, e lhe faz compreender que a única sabedoria verdadeira reside na grandeza de Cristo”. 1

A inteligência é a faculdade pela qual o homem percebe a essência das coisas. Ela é espiritual ao atingir o imaterial, embora dependente das faculdades sensitivas que lhe fornecem os elementos a percepcionar. Consequentemente, aos homens foi dada a possibilidade de chegar ao conhecimento do Criador pelas criaturas (cf. Sb 13, 5) e, graças à inteligência, todos têm a possibilidade de “se saciar nas águas profundas” do conhecimento (cf. Pr 20, 5). Assim, ao deduzir as consequências dos princípios, entra-se num novo campo, que é o da Razão.

É sobejamente conhecida a expressão de Santo Agostinho: “intellige ut credas, crede ut intelligas”.2 Perscruta-se a verdade para poder encontrar Deus e crer, ao mesmo tempo que o crer abre o caminho para passar pela porta da verdade. A inteligência não deve eliminar, mas, esclarecer a fé, para que em restituição a inteligência seja também a recompensa do que crê. As duas fórmulas expressam a síntese coerente entre fides et ratio, cuja harmonia “significa sobretudo que Deus não está longe”.3

São Felipe Neri fez várias considerações acerca da inteligência como um dom de Deus que deve ser reconhecida como limitada. A nós cabe procurá-Lo parando, porém, diante do mistério. Deus, sendo infinito, supera toda perspectiva humana. Deve haver por isso um abandono confiante no Seu projeto.4 De fato, depreende-se que o amor de Deus faça “multiplicar os recursos da inteligência e da vontade do homem, de sorte que eles se tornam aptos a compreender as coisas com uma clareza e com uma energia por vezes superiores a seus recursos naturais, desde que entrem em jogo os sagrados direitos da Santa Igreja”.5

Embora possamos conhecer a Deus pela razão, deve-se à Sua Revelação o conhecimento sem erro. São as Sagradas Escrituras que contêm a palavra de Deus e por isso, o estudo destes sagrados livros deve ser como que a alma da sagrada teologia.6 “Porém, o encargo de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou contida na Tradição foi confiado só ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo”.7 Ou seja, cabe ao Santo Padre e aos bispos em comunhão com ele, “o religioso obséquio de inteligência e de vontade de todos os fiéis”.8 Os outros clérigos, de acordo com o Codex Iuris Canonici, “sigam a sólida doutrina fundada nas Sagradas Escrituras, transmitida pelos antepassados e comumente aceita pela Igreja, conforme está fixada principalmente nos documentos dos Concílios e dos Romanos Pontífices, evitando profanas novidades de palavras e falsa ciência”.9

VICTORINO DE ANDRADE, José. Editorial. in: LUMEN VERITATIS, n. 4, jul-set, 2008, p. 3-4.

1) BENTO XVI. Vigília de oração com os jovens. Basílica de Notre-Dame, Paris. 12 set. 2008.

2) Sermones, 43, 9.

3) BENTO XVI. Audiência Geral. 30 jan. 2008.

4) Cf. JOÃO PAULO II. Homilia. Roma, 26 mai. 1979.

5) CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Legionário, n.º 434, 5 jan. 1941.

6) Cf. Epist. ad Diognetum, c. VII, 4: Funk, Patres Apostolici, I, p. 403.

7) Dei Verbum 10.

8) Codex Iuris Canonici, cân. 752.

9) Idem, cân. 279, § 1.