Predomínio do frenesi e da instantaneidade

Mons. João S. Clá Dias, EPtibidabo

Em um de seus últimos documentos — “O rápido desenvolvimento”, sobre os meios de comunicação —, João Paulo II ressaltou um aspecto da pós-modernidade:

“As modernas tecnologias aumentam de maneira impressionante a velocidade, a quantidade e o alcance da comunicação, mas não favorecem de igual modo aquele intercâmbio frágil entre uma mente e outra, entre um coração e outro, que deve caracterizar qualquer forma de comunicação ao serviço da solidariedade e do amor” (n. 13).

Sem deixar de apontar a necessidade de os católicos aprimorarem sua participação nos chamados “grandes areópagos” dos meios de comunicação, é importante salientar que seria suicida uma posição ingênua e acrítica desses meios, como se só trouxessem vantagens, e não acarretassem, concomitantemente, perigos colaterais…

Em um mundo no qual predomina uma “cultura do instantâneo”, da permanente mudança, do descartável, do relativo, as transmissões ao vivo pela televisão e a rapidez de interação oferecida pela internet só podem agravar o quadro geral. Tal ambiente facilita a queda do edifício de certezas próprio da mente humana.

Não parecem atuais as respostas perenes, nem as regras que não caducam, nem normas éticas objetivas. Em nosso tempo todos os valores são arrastados na enxurrada da instantaneidade, no torvelinho de um devir que não deixa nada de pé.

Desaparecem as normas morais objetivas, ruem os princípios imutáveis da filosofia, e, mais ainda, os da teologia.

Tout passe, tout casse, tout lasse et tout se remplace… parece o único dogma a permanecer de pé.

Mais do que nunca é necessário voltar ao essencial, ao diretamente relacionado com o ser, ao robustecimento desse senso do ser do qual fizemos aqui objeto de análise.

Os ventos de 1968 (o ano dos movimentos contestatários, especialmente o da Sorbonne) deixaram, a esta altura, seus grandes desiludidos. Uma grande multidão se interroga sobre a validade do “tout passe…” e se volta à procura do perene, do estável, daquilo que tem o selo da credibilidade.

Os funerais de João Paulo II reuniram milhões de pesarosos fiéis em Roma (além de pessoas que, independentemente de suas convicções religiosas, foram à Cidade Eterna prestar uma homenagem ao finado Papa). Do mesmo modo, a escolha do Cardeal Ratzinger para ocupar o trono papal atraiu as atenções do mundo inteiro. As exéquias de um e a eleição do outro foram acompanhados à distância por milhões de pessoas que se utilizaram dos modernos meios de comunicação. Esse fenômeno não só evidenciou sinais de respeito e admiração pelo Papado, mas também foi uma exuberante e incontestável prova da atração por símbolos, ritos, cores e cerimonial, que alguns teóricos consideravam como “varridos” pelos ventos da História.

A ruptura da lei perante Deus

Diác. José de Andrade, EPluz

A inobservância da lei Divina e natural acarreta em si uma forma de penalidade munida de contornos próprios. Desta forma, a perturbação e o não cumprimento das prescrições definidas poderão conduzir ao pecado,1 que consiste precisamente numa transgressão à Lei de Deus, embora coincida com a violação da lei natural. Uma vez que Deus ordena desde toda a eternidade o que é conveniente e proporcionado à natureza racional,2 consistiria numa ruptura com esta ordem e, portanto, com Deus, se o homem viesse a recusar e menosprezar a lei natural enquanto participação da criatura racional na lei eterna. Consequentemente, romper com a Lei pode trazer uma sanção na vida futura, que consiste na perda eterna da felicidade.

De acordo com São Tomás de Aquino, Deus ama os homens chamando-os à visão de Deus, que supera o comum estado da natureza, outorgando-lhes não só a graça nesta terra, como a glória no Céu. Porém, aqueles que pecam fazendo mau uso de sua liberdade, e de seu livre arbítrio, perdem nesse mesmo instante a graça, e o Supremo Juiz reprova-os imputando-lhes a devida culpa que é causa de uma pena eterna, aplicada na vida futura.3 Verifica-se então uma dupla decorrência relativa à transgressão: em sua peregrinação terrena o pecador perde a posse de Deus – antecipação da felicidade eterna – consequência que se assemelha, de certo modo, a um prelúdio daquela mesma reprovação eterna que se dá após o juízo.

Entretanto, também o não cumprimento das leis humanas, quando providas das condições que as legitimam e validam, obrigam em consciência diante de Deus e a sua transgressão poderá constituir um verdadeiro pecado,4 cuja gravidade dependeria, sobretudo, do grau de rompimento com a lei divina a ela adjacente.

______________

1 Ver, por exemplo, um estudo relativamente recente de FUCEK, Ivan. Il Peccato Oggi. Roma: Università Gregoriana, 1996. Em geral no capítulo VI, La natura del peccato e dei peccati; em particular nas páginas 169 e 175.

2 Cf. ROYO MARÍN, Antonio. Teologia moral para seglares. 2. ed. Madrid: BAC, 2007. Vol. I. p. 129.

3 Cf. S. Th. q. 23, a. 3; 7.

4 ROYO MARÍN, Antonio. Op. Cit. p. 140.

Princípios da lei natural

Pe. Leopoldo Werner, EPtomas-de-aquino

1 Primeiro princípio da lei natural: “Fazer o bem e evitar o mal”

Como vimos, este princípio governa, enquanto primeiro princípio, toda a vida moral; e pode ser formulado de maneira simples, de fácil compreensão: é necessário fazer o bem e evitar o mal. Assim argumenta São Tomás:

Assim como o ente é o primeiro que decai na apreensão de modo absoluto, assim o bem é o primeiro que cai na apreensão da razão prática, que se ordena à obra: todo agente, com efeito, age por causa de um fim, que tem a razão de bem. E assim o primeiro princípio na razão prática é o que se funda sobre a razão de bem que é “Bem é aquilo que todas as coisas desejam”. Este é, pois, o primeiro princípio da lei, que o bem deve ser feito e procurado, e o mal, evitado. E sobre isso se fundam todos os outros preceitos da lei da natureza, como, por exemplo, todas aquelas coisas que devem ser feitas ou evitadas pertencem aos preceitos da lei de natureza, que a razão prática naturalmente aprende serem bens humanos (AQUINO, 2005, Vol. IV: 562).

E continua o Doutor Angélico:

Donde, ao dizer Graciano que ‘o direito natural é o que se contém na Lei e no Evangelho’, imediatamente acrescentou: ‘pelo qual cada um é ordenado a fazer aos outros o que quer que seja feito a ele’ (AQUINO, 2005, Vol. IV: 568).

2 Outros princípios da lei natural

São basicamente quatro os princípios que informam a lei natural, a saber: conservação da existência; a reprodução; o conhecimento da verdade e necessidade da vida em sociedade. A partir desses princípios, um conjunto de normas deles deflui, deve ser codificado pelas leis positivas, sem contrariar a lei natural.

Assim, vemos que a lei Moral Natural contempla os seguintes princípios: a existência da família como sociedade natural, o direito à constituição de família pelo indivíduo, o respeito aos pais e aos mais velhos, o respeito ao próximo e a seus direitos; a existência do Estado, que é a mais perfeita das instituições naturais. O Estado tem a obrigação de zelar pela paz, promover a justiça, a moral e o bem comum; o direito à vida de pessoa humana; o direito à propriedade; o direito de professar fé religiosa. Tem também a função de defender e proteger seus cidadãos das agressões e violações de direitos individuais e coletivos; deve zelar para que as autoridades civis sejam respeitadas, haja ordem na sociedade e reine a paz.

O sacerdócio comum dos fiéis

Mons. João S. Clá Dias, EP

Fim ano sacerdotalAo se tratar da Eucaristia como Sacramento de unidade da Igreja, não se pode deixar de falar do sacerdócio comum dos fiéis, o qual, embora essencialmente distinto, é inteiramente real, participando também do sacerdócio de Cristo. Os fiéis exercem-no “na recepção dos Sacramentos, na oração e ação de graças, no testemunho da santidade de vida, na abnegação e na caridade operosa” (LG 10). A constituição dogmática Lumen Gentium especifica ainda o modo pelo qual os fiéis leigos exercem o sacerdócio comum na Eucaristia: pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, oferecem a vítima divina e a si mesmos a Deus; assim, quer pela oblação quer pela sagrada comunhão, não indiscriminadamente, mas cada um a seu modo, todos tomam parte na ação litúrgica (cf. LG 11).

São Tomás define com precisão os limites do sacerdócio comum dos fiéis, antecipando de algum modo o conceito explicitado e definido no já mencionado documento conciliar:

O leigo justo une-se a Cristo pela fé e caridade em uma união espiritual e não pelo poder sacramental. Por isso, tem o sacerdócio espiritual para oferecer hóstias espirituais de que se fala no Salmo: ‘O sacrifício que Deus quer é um espírito contrito’. E também na Carta aos Romanos: ‘Oferecei-vos a vós mesmos em sacrifício vivo’. Daí, a palavra de Pedro sobre ‘a santa comunidade sacerdotal para oferecer sacrifícios espirituais’ (S. Th. III, q. 82, a. 1, ad 2).

Embora os leigos exerçam um sacerdócio real, é preciso não confundi-lo com o ministerial nem diminuir a este último seu verdadeiro alcance, pois o sacerdote do Novo Testamento exerce o insubstituível papel de mediador, em Cristo, entre Deus e os homens, ao mesmo tempo em que coopera na construção da unidade da Igreja, pela celebração da Eucaristia.

As outras funções sacerdotais, inclusive a de absolver os pecados, são compreendidas por São Tomás como ordenadas a guiar os fiéis para a Mesa da Salvação, onde também oferecerão o sacrifício eucarístico, em união com o sacerdote ministerial, e participarão do banquete celestial do Corpo e Sangue do Senhor.

Ao se tratar da Eucaristia como Sacramento de unidade da Igreja, não se pode deixar de falar do sacerdócio comum dos fiéis, o qual, embora essencialmente distinto, é inteiramente real, participando também do sacerdócio de Cristo. Os fiéis exercem-no “na recepção dos Sacramentos, na oração e ação de graças, no testemunho da santidade de vida, na abnegação e na caridade operosa”.

São Tomás define com precisão os limites do sacerdócio comum dos fiéis, antecipando de algum modo o conceito explicitado e definido no já mencionado documento conciliar:

O leigo justo une-se a Cristo pela fé e caridade em uma união espiritual e não pelo poder sacramental. Por isso, tem o sacerdócio espiritual para oferecer hóstias espirituais de que se fala no Salmo: ‘O sacrifício que Deus quer é um espírito contrito’. E também na Carta aos Romanos: ‘Oferecei-vos a vós mesmos em sacrifício vivo’. Daí, a palavra de Pedro sobre ‘a santa comunidade sacerdotal para oferecer sacrifícios espirituais’.

Embora os leigos exerçam um sacerdócio real, é preciso não confundi-lo com o ministerial nem diminuir a este último seu verdadeiro alcance, pois o sacerdote do Novo Testamento exerce o insubstituível papel de mediador, em Cristo, entre Deus e os homens, ao mesmo tempo em que coopera na construção da unidade da Igreja, pela celebração da Eucaristia.

As outras funções sacerdotais, inclusive a de absolver os pecados, são compreendidas por São Tomás como ordenadas a guiar os fiéis para a Mesa da Salvação, onde também oferecerão o sacrifício eucarístico, em união com o sacerdote ministerial, e participarão do banquete celestial do Corpo e Sangue do Senhor.

O sublime reflexo de Deus nas criaturas

aurora

Felipe de Azevedo Ramos

Vemos que no mundo sensível é fato evidente a graduação das perfeições transcendentais numa maravilhosa hierarquia. É fácil compreender que todas as coisas são ontologicamente boas secundum magis et minus. A apreensão dos graus se torna ainda mais evidente quando se considera o pulchrum, escada segura de contemplação hierárquica das coisas, com a qual atinge, em seu vértice, a sua Suma Perfeição.

Tal Perfeição, absolutamente desproporcional ao homem, nos é revelada por meio desse sublime reflexo de Deus nas criaturas: a beleza.

Ao analisar a Criação e sua multifacetada variedade podemos nos perguntar por que Deus quis criar tal imensidade de seres. Pois sendo Ele infinitamente perfeito, bastaria-se a Si mesmo, sem a absoluta necessidade de criá-los. Porém, na Sua infinita bondade e misericórdia, assim o desejou.

Ora, Seu intuito, ao criar quantidade insondável de seres, foi para que estes não somente refletissem Sua perfeição infinita, mas também a reproduzisse em seus mais variados graus. Deste modo se explica o caráter hierárquico que Deus imprimiu ao Universo.

Contudo, não poderia Deus originar uma única criatura que por si só refletisse todas as suas perfeições tão bem como o conjunto dos seres criados? Parece que isso seria metafisicamente impossível. Pois Deus criou um Universo composto de muitas criaturas para que elas, de um lado pela sua pluralidade, de outro pela sua hierarquização, espelhassem convenientemente a Sua beleza e perfeição divina. Pois assim como um acorde sonoro é belo pela formação de uma unidade harmoniosa numa “terça”, mais belo ainda quando acrescentamos apenas uma nota num acorde de “quinta”, constituindo o que se chama “consonância perfeita”. Analogamente, a ordem da criação é ainda mais bela por sua rica pluralidade, quando coesa na unidade. Portanto, o homem, ao contemplar o mundo ao seu redor pode — aliando-se com a quarta via, ou seja, a partir da observação da gradualidade dos seres criados — inferir nestes, os esplêndidos reflexos da divina Pulchritudo.

Deste modo, o espírito hierárquico dos diversos graus aliados à ordem, às desigualdades harmônicas, ao pulchrum, em suma, leva-nos de proche en proche até a demonstração da existência de Deus, à Sua consideração e, por fim, à contemplação de Sua Suma Perfeição, causa de todas as perfeições.

Os aspectos espirituais da sociedade temporal favorecem a contemplação

Mons. João S. Clá Dias, EPbruxelas

Encontra-se generalizada a ideia de que a sociedade temporal existe apenas para satisfazer as necessidades materiais do homem. Ora, este é composto de alma e corpo, no qual o espírito ocupa a primazia.

O homem poderá desenvolver a capacidade contemplativa, com maior grau de perfeição, no convívio humano e na consideração dos bens mais elevados que são o resultado da vida social, quer sejam os ambientes, a arte, a cultura e a civilização. Estes são elementos caracteristicamente espirituais produzidos pela sociedade temporal, e que grande influência têm sobre a alma humana. Animando com o espírito cristão as realidades temporais, objeto da contemplação mais imediata do homem, a alma humana terá muito mais facilidade de se elevar até as verdades da Fé. Dessa forma, a intimidade com Deus não se restringe apenas a determinados momentos reservados às obrigações religiosas, mas se estende a todo o operar humano, tal como a respiração não se interrompe em nenhum momento da existência. Ela é natural, sem esforço, contínua e aprazível.

A doutrina do Concílio Vaticano II, expressa no Decreto Apostolicam Actuositatem, é igualmente clara ao ressaltar a importância da esfera temporal no plano salvífico de Deus:

A obra redentora de Cristo, que por natureza visa salvar os homens, compreende também a restauração de toda a ordem temporal. Daí que a missão da Igreja consiste não só em levar aos homens a mensagem e a graça de Cristo, mas também em penetrar e atuar com o espírito do Evangelho as realidades temporais. Por este motivo, os leigos, realizando esta missão da Igreja, exercem o seu apostolado tanto na Igreja como no mundo, tanto na ordem espiritual como na temporal. Estas ordens, embora distintas, estão de tal modo unidas no único desígnio divino que o próprio Deus pretende reintegrar, em Cristo, o universo inteiro, numa nova criatura, dum modo incoativo na terra, plenamente no último dia. O leigo, que é simultaneamente fiel e cidadão, deve sempre guiar-se, em ambas as ordens, por uma única consciência, a cristã. (AA, n. 5)

É importante salientar aqui como o Concílio Vaticano II, ainda nos dias em que o assunto não havia adquirido o devido destaque nos meios eclesiais, deu novo impulso ao papel dos leigos na Igreja. Nele se anteciparam os imensos desafios que o terceiro milênio reservava. Com efeito, um deles é a “Consecratio Mundi”. Se no século XXI a Igreja não conseguisse influenciar as realidades temporais com o espírito cristão, os erros e a mentalidade secularista desta época poderiam, em certa medida, dessacralizá-la.

Diante dessa perspectiva, compete aos leigos zelar para que os ambientes, a arte, os costumes, as leis e as instituições, de alto a baixo na escala social, estejam todos impregnados do espírito cristão de forma que a obra redentora de Cristo produza também seus efeitos na esfera temporal. Deverá ela refletir, a seu modo, a luz e o esplendor daquele que subiu aos céus para “levar tudo à plenitude” (Ef 4, 10).

Corrimãos da escada da vida

Mons. João S. Clá Dias, EP

A teologia moral de Santo Agostinho, tanto como a ética de Aristóteles, foram as fontes das doutrinasalianca escolásticas sobre a razão moral. Em De Libero Arbitrio, o bispo de Hipona afirmara que a moralidade exige da vontade humana sua conformidade com as prescrições da lei imutável e eterna, impressa na nossa mente. Tal lei, chamada de summa ratio (“razão suprema”), deve ser sempre obedecida. Por seus padrões é que são julgados os bons e os maus.[1]

Concorde com a tese agostiniana,[2] São Tomás procura definir meticulosamente a lei eterna acentuando de início que ela “não é senão a razão da sabedoria divina, na medida em que ela dirige todos os atos e movimentos”.[3] Essa lei — que se identifica com a Providência Divina — é, portanto, o princípio ordenador de todo o universo criado: “Toda a comunidade do universo é governada pela razão divina. E assim a própria razão do governo das coisas em Deus, como príncipe do universo, tem razão de lei”.[4] Assim, a suprema lei é o próprio Deus, sendo eterna como Ele é eterno; é a Sabedoria de Deus “que move todas as coisas para seu devido fim”.[5] E todas as coisas são avaliadas segundo a lei eterna, seguindo-se daí que dela todas participam de algum modo, e suas propensões para seus atos e fins próprios vêm da impressão em si dessa lei.

Nas questões 90 a 108 da Suma Teológica, parte I-II, São Tomás se estende genialmente sobre o significado e o alcance da lei eterna e sobre as outras leis que dela derivam: a lei natural, a lei divina e a lei humana.

Começando pela lei natural, ele a define como “a participação da lei eterna na criatura racional”, sendo proporcionada pela “luz do intelecto posta em nós por Deus, através da qual conhecemos o que devemos fazer e o que devemos evitar”,[6] por ser uma norma imperativa para dirigir os atos livres do homem.

Noutro lugar, São Tomás descreve a lei natural como os primeiros princípios da atividade moral humana, evidentes de si, não demonstráveis.[7]

Ninguém pode, com sinceridade e no uso normal de suas faculdades mentais,[8] negar a existência dessa lei natural, segundo a qual há obras boas e outras más por sua própria natureza. São Tomás afirma que todos os homens conhecem pelo menos os princípios comuns da lei natural.[9] Diz ele ainda que, “quanto aos princípios comuns da razão quer especulativa, quer prática, a verdade ou retidão é a mesma em todos, e igualmente conhecida”.[10] Quer dizer, não há quem não conheça a distinção entre bem e mal, e nossa obrigação de optar pelo primeiro e rejeitar o segundo se apresenta à inteligência com força de lei.

Também a lei humana positiva tem a obrigação de se conformar com a Sabedoria de Deus. É a ela que o Aquinate se refere quando afirma que, como “o fim último da vida humana é a felicidade ou bem-aventurança […] é necessário que a lei vise maximamente à ordem que é para a bem-aventurança”.[11] A lei temporal não pode colidir com a lei eterna, mas deve secundá-la.

A lei divina — consolidada nos Dez Mandamentos — mostra ao homem o caminho a seguir para praticar o bem e atingir seu fim. São Tomás se pergunta se, havendo já a lei natural e as leis humanas, é preciso também haver uma lei divina positiva. Ele inicia sua resposta lembrando que a bem-aventurança eterna, para a qual o homem foi criado, “excede a proporção da potência natural humana”. Assim faz-se necessário que, “acima da lei natural e humana, fosse dirigido também a seu fim pela lei divinamente dada”.[12]

Todas essas leis são como que corrimãos numa longa e difícil trajetória, numa escada colocada sobre um abismo. Pode ser que esses corrimãos pareçam limitações absurdas à liberdade. Na realidade, são anteparos que Deus nos concedeu para proteger a verdadeira liberdade e para nos auxiliar na ascensão até Ele.

Como estão equivocadas certas correntes de educação que procuram instilar na criança e no jovem a ideia de que os princípios morais são frios e cruéis! O certo, afirmam elas, seria optar por uma moral “amiga”, relativa, dependente apenas das circunstâncias, dos casos particulares, e esquecer tais princípios.

É supérfluo realçar a nocividade de tal doutrina para o tesouro acumulado a partir do primeiro olhar sobre o ser. E que resultados funestos trazem para a sociedade como um todo. Basta olharmos para o que vai se passando à nossa volta…


[1] De Libero Arbitrio, I, 1.6.15.48-49; 51: “Illa lex quae summa ratio nominatur cui semper obtemperandum est et per quam mali miseram, boni beatam vitam merentur […], potestne cuipiam intellegenti non incommutabilis aeternaque videri? An potest aliquando iniustum esse, ut mali miseri, boni autem beati sint? […] Ut igitur breviter aeternae legis notionem, quae impressa nobis est, quantum valeo, verbis explicem, ea est, qua iustum est, ut omnia sint ordinatissima”.

[2] Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 1: “Sed contra est quod Augustinus dicit quod lex aeterna est summa ratio, cui semper obtemperandum est”.

[3] S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Nihil aliud est quam ratio divinae sapientiae, secundum quod est directiva omnium actuum et motionum”.

[4] S. Th. I-II, q. 91, a. 1: “Tota communitas universi gubernatur ratione divina. Et ideo ipsa gubernationis rerum in Deo sicut in principe universitatis existens, legis habet rationem”.

[5] S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Moventis omnia ad debitum finem”.

[6] Collationes in decem praeceptis, Proœmium: “Lex naturae […] nihil aliud est nisi lumen intellectus insitum nobis a Deo, per quod cognoscimus quid agendum et quid vitandum”.

[7] Cf. S. Th. I-II, q. 94, a. 2. “Sunt quaedam principia per se nota”.

[8] “Alguma pessoa dotada de inteligência”, dizia Santo Agostinho (op. cit. 1.6.15.48).

[9] Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 2.

[10] S. Th. I-II, q. 94, a. 4. “Quantum ad communia principia rationis sive speculativae sive practicae, est eadem veritas seu rectitudo apud omnes, et aequaliter nota”.

[11] S. Th. I-II, q. 90, a. 2. “Oportet quod lex maxime respiciat ordinem qui est in beatitudinem”.

[12] S. Th. I-II, q. 91, a. 4. “Excedit proportionem naturalis facultatis humanae. Ut supra legem naturalem et humanam, dirigeretur etiam ad suum finem lege divinitus data”.

Uma ética original e originária

Diác. José de Andrade, EPluz

A questão ética, hoje, assume contornos de uma importância que não deve ser descurada, pois jamais pode consistir em um negócio, um jogo de interesses ou algo passageiro, mas num compromisso fundamentado na ética original e originária, conforme explica de modo muito acurado o Pe. Carlos Arboleda Mora: “Original porque própria ao cristianismo e originária pois é raiz de toda a ação social no mundo”.[1]

O Papa Bento XVI, na Caritas in Veritate, chamou a atenção para os perigos de uma ética vagamente interpretada, sobretudo quando ela se presta a “designar conteúdos muito diversos, chegando-se a fazer passar à sua sombra decisões e opções contrárias à justiça e ao verdadeiro bem do homem”, imperando, deste modo, a necessidade de uma ética “amiga da pessoa” (n. 45).

Na verdade, certa corrente da ética contemporânea levanta uma questão há muito predicada pelo Cristianismo: No relacionamento humano, o homem nunca poderá consistir um meio para outro homem, algo que se usa, mas deve ser considerado como um fim.[2] Não se refere ao fim último, que é o próprio Deus, que deve animar e continuamente purificar esse relacionamento, enquanto raiz e princípio, mas um fim enquanto uma atitude verdadeiramente altruísta, de procura do bem comum, proporcionando felicidade, sendo que ela “está mais em dar do que em receber” (At 20, 35).

Ora, a Igreja teve desde sempre algo forte e credível a apresentar ao mundo e que se funda no mandamento novo trazido por Nosso Senhor Jesus Cristo (Cf. Jo 13, 34-35) iluminando e firmando as regras de ouro éticas de todos os tempos. Os autores mais insuspeitos reconhecem-no. Por exemplo, J. B. Bury, entre as várias críticas acirradas ao Catolicismo, atribui entretanto aos cristãos a extensão da caridade a todos, uma vez que Sócrates, ao formular “a regra de vida ‘fazei ao outros’, provavelmente não queria incluir entre os ‘outros’ escravos ou selvagens”.[3] Ou mesmo Voltaire, ao reconhecer que os “Povos que não professavam esta religião romana imitaram, mas apenas de forma imperfeita, caridade tão generosa”.[4]

Uma vez que as raízes cristãs do Ocidente são um fato histórico inegável e incontornável, a moralização dos povos está na base de uma construção civilizacional que veio a sofrer uma forte ruptura quando quis dissociar a moral da religião e fundamentá-la na mera razão. Kant não é um nome estranho nesse sentido. Os fundamentos da sociedade Ocidental são sólidos, entretanto, sofreram abalos, na medida em que enfraqueceu a moralidade e a influência que a Igreja tinha nesse campo. Apesar disso, vão suportando o peso de uma mentalidade que se preocupa mais com o crescimento do edifício, do que com os fundamentos morais que o suportam. Ao pensarmos em certas sociedades, apelidadas simplesmente de primeiro mundo, devido à “qualidade de vida” mensurada por vários valores de referência de carácter universal, com máquinas, técnica, esperança média de vida… tudo isto é bom, mas está longe do excelente se não for acompanhado por uma forte estrutura moral. Corrêa de Oliveira chega mesmo a ponderar o perigo da ruína de um povo que viva com muita técnica e pouca moral. Conforme ele:

O alicerce de toda civilização é a moralidade. E quando uma civilização se edifica sobre os alicerces de uma moralidade frágil, quanto mais ela cresce, tanto mais se aproxima da ruína. É como uma torre que, assentando-se sobre alicerces insuficientes, ruirá desde que chegue a certa altura.[5]

Na verdade, o homem não se pode esquecer que por detrás de toda uma cultura atual, está um patrimônio, também ele moral, que progrediu à medida que acrescentou novas coisas às já existentes. O problema está em que muitas vezes certas premissas válidas, imutáveis e perenes são esquecidas ou deliberadamente postas de lado, em nome de uma cultura, dita moderna, sobrepondo-se o novo e despojando-se o existente. Porém, aquilo que tem o seu fundamento em Cristo goza da perenidade que apenas deve ter em vista as diferentes maneiras e riquezas de serem apresentadas às várias culturas.[6] A lei moral da Igreja possui as suas raízes em Nosso Senhor, e portanto, na lei eterna, além de estar também fundamentada na lei inscrita no coração dos homens, a natural. Uma ética sem qualquer fundamentação teológica ou metafísica está sujeita às frágeis bases do compromisso social.[7]

Os Papas, e o colégio episcopal em união com eles, sobretudo nestes últimos dois séculos, têm proposto e aplicado os ensinamentos da moral nos seus múltiplos âmbitos, sempre em nome e com a autoridade a eles confiada por Jesus Cristo. Estes ensinamentos, inspirados pelo Espírito Santo, envolvem também questões relativas à vida social, ou mesmo à economia e à política, nunca deixando de exortar à verdade. O Magistério intervém assim para exortar as consciências e propor valores.[8]

Ora, entre tantos problemas que afligem a sociedade humana de nossos dias, ensina-nos o Papa Bento XVI na Caritas in Veritate que “o problema decisivo é a solidez moral da sociedade em geral” (n. 51). Esta é a chave de ouro para abrir a porta à solução de múltiplas questões, e está desde sempre nas mãos da Igreja. Entretanto, como em tantas fechaduras duplas, a porta abre-se mais facilmente com o concurso de uma outra chave. E o Estado a tem nas suas mãos, cabendo-lhe também uma palavra. As duas chaves, cada uma na sua fechadura, serão capazes de abrir as portas à construção do bem comum e da civilização do amor.


[1] ARBOLEDA MORA, Carlos. Experiencia y testimonio. Medellín: UPB, 2010, p. 22. (Tradução nossa).

[2] Ver estudos de ética não utilitarista ou consequencialista que defendem esta tese, como os apresentados por: CHALMETA, Gabriel. Ética Social: Familia, profesión y ciudadanía. 2. ed. Pamplona:o utilitaristas ou consequencialistasabrielocura do bem comum, proporcionar felicidade para ser feliz,  EUNSA, 2003. Sobretudo as páginas 30-31; 42 e o capítulo V em geral que aborda a questão da amizade. Também em RHONHEIMER, Martin. La Perspectiva de la Moral: Fundamentos de la Ética Filosófica. Madrid: Rialp, 2000, p. 109-115.

[3] Ver BURY, J. B. The Idea of Progress. Fairford: Echo Library, 2010, p. 5.

[4] Apud WOODS JR, Thomas. O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica. Lisboa: Atheleia, 2009, p. 185.

[5] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Século de Progresso ou de ruínas. In: Dr. Plinio. São Paulo: Retornarei, n. 34, jan. 2001, p. 9.

[6] O próprio Papa João XXII dizia no início do Concílio Vaticano II, a 11 de out. 1962: “Occorre che questa dottrina (= la dottrina cristiana nella sua integralità) certa e immutabile, che dev’essere fedelmente rispettata, sia approfondita e presentata in modo che risponda alle esigenze del nostro tempo. Altra cosa è infatti il deposito stesso della fede, vale a dire le verità contenute nella nostra venerabile dottrina, e altra cosa è la forma con cui quelle vengono enunciate, conservando ad esse tuttavia lo stesso senso e la stessa portata”: AAS 54 (1962), 792; cf L’Osservatore Romano, 12 ottobre 1962, p. 2.

[7] Este é o pensamento do Arcebispo Jean-Louis Bruguès, exposto em conferência de 1/11/2010 no Seminário São Tomás de Aquino (SP), abordando a Encíclica Veritatis Splendor, de João Paulo II. Também o nº 53 do documento é elucidativo a esse respeito.

[8] Podem-se encontrar estas ideias sobretudo no nº 4 da Veritatis Splendor do Papa João Paulo II (1993). Conforme o Arcebispo Jean-Louis Bruguès na conferência supracitada, “a própria Encíclica visa mostrar o direito do Magistério em intervir em certas questões particulares”.

Algumas variações filosóficas da lei natural na modernidade

tibidabo Pe. Jorge Filipe Teixeira Lopes, EP

Nos séculos XVII e XVIII desenvolvem-se os dois veios centrais do pensamento jusnaturalista moderno: racionalismo e empirismo. Se eles são aparentemente opostos, há contudo um ponto que une as duas tendências: é a individualidade originária do ser humano, quer dizer, o homem no seu estado de natureza é solitário e livre.*

Thomas Hobbes
Para Hobbes, o homem tem uma natureza má e a vida humana é “solitária, miserável, repugnante, brutal e breve”.1 Torna-se então necessário a existência de um soberano que disponha impreterivelmente dos seus súbditos, sem limite de autoridade à excepção da sua vida. Desse modo, lei natural e lei civil não diferem e a primeira reduzir-se-á somente ao célebre axioma hobbesiano de que os contractos devem ser guardados. Cumpre obedecer cegamente à autoridade em vista do bem comum. Em Hobbes a sociedade é um grande homem artificial, uma estrutura humana erigida para proteger e fortalecer o homem natural. Considerado o “Pai” dos estados totalitários modernos, o seu Leviatã, de 1668, é um dos apogeus emblemáticos da modernidade no que tange à centralização antropológica.2

David Hume
David Hume glorificava-se de haver destruído a ideia de lei natural, o que, para Maritain, é perfeitamente natural; tendo reduzido a natureza à pura constatação dos factos, a lei natural perde a sua razão de ser. Não há natureza humana para ele, mas simplesmente paixões, inclinações e percepções.3

John Locke
Locke considera a sociedade como o produto utilitarista dos interesses individuais, sendo a lei natural simplesmente qualquer coisa como um mandamento do senso comum, com a única função de estabelecer os direitos inalienáveis de cada indivíduo.4 Puritano, Locke pretende que os homens livres são virtuosos — e não selvagens como em Hobbes — e obedecem à razão, quer dizer, a uma lei natural instituída por Deus. Segundo Bertrand Russell, a doutrina dos direitos do homem é uma derivação do puritanismo, e Locke um dos seus mais proeminentes idealizadores.5

Jean-Jacques Rousseau
Para Rousseau a lei natural existe, mas é de si, inacessível; de qualquer forma, o homem tem um direito natural que a razão acaba por destruir. Como? A natureza humana emerge de um estado humano pré-civilizacional, situação plena de liberdades e direitos. Sendo o homem naturalmente bom, este estado seria susceptível de se produzir eternamente, pelo que ele se priva de inúmeras vantagens ao decidir viver em sociedade; isto porque no convívio com os outros indivíduos, cada um vê-se forçado a seguir princípios novos — a voz do dever, da responsabilidade — deixando de poder olhar somente para si. A partir daí, ele necessitará de consultar a razão antes das suas inclinações naturais.6 Por isso, ao sair do estado natural para viver comunitariamente, o homem delimita, pelas leis, os seus direitos e liberdade naturais. Enfim, Rousseau explora a ideia do estado de natureza como nenhum outro filósofo.

Emmanuel Kant
Com Kant surge uma nova concepção de lei natural que não supõe mais a natureza ontológica mas que é deduzida da pura razão prática. A lei natural do homem vai confundir-se com a sua liberdade, e a moral com a vontade individual. “A autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres que lhe são conformes”,7 afirma. Isso significa que toda a obediência a um poder distinto do homem é indigna do homem. Só é moral a obediência à sua própria lei e serão os preceitos morais do imperativo categórico, o único ponto de conformação da ordem jurídica.
Fundada no conceito de que o homem é um ser livre e que por si mesmo se submete a leis incondicionais, a moral não precisa da ideia de um ser superior ao homem para que ele conheça o seu dever, nem precisa de um incentivo para o cumprir, a não ser a própria lei.8
A influência kantiana é inaudita para a história da filosofia do direito ocidental. Foi sob o seu impulso que nasceu toda a escola positivista, para a qual o conhecimento científico limita-se aos factos e às suas leis constantes. Delimitando dessa forma o conhecimento do homem na sua essência, Kant abriu terreno para as mais variadas especulações no campo do imperativo categórico, pelo que não é abusivo concluir que a DUDH representa um momento kantiano por excelência.9
Em Kant o problema moral deixa de existir como valor objectivo uma vez que passa a pertencer exclusivamente ao âmbito da vontade. Conclui-se então que a ideologia dos direitos humanos, baseando-se no pensamento kantiano, exclui qualquer noção de uma moral universal enraizada na natureza do homem, uma vez que esta simplesmente não existe. Então, o bem e o mal são determinados pela opinião pública, a qual deve procurar agir de tal forma que os seus actos possam ser tidos como princípios universais, segundo a expressão do imperativo categórico kantiano. É o reavivar do velho adágio vox populi vox Dei, mas com um novo e dramático componente: é que a vox Dei pode derivar do dia para a noite conforme a subtileza e maleabilidade do jogo de opiniões.

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* O homem no estado de natureza é, no fundo, uma macaqueação da situação humana no Paraíso antes do pecado original.
1 HOBBES, Thomas. Leviathan. [Em linha]. <Disponível em: http://books.google.pt/books?id=-Q4nPYeps6MC&printsec=frontcover&dq=hobbes+ leviathan &lr=&as_brr=1#PPA86,M1 [Consulta: 16 Jun., 2009]. Tradução nossa.
2 Cf. LOPES ALVES, Op. Cit., p. 125-126.
3 Cf. MARITAIN, La loi naturelle ou la loi non écrite, Op. Cit., p. 93.
4 Cf. Ibid. p. 92-94.
5 Cf. RUSSELL, Op. Cit., p. 164-165. Locke é o apóstolo da Revolução Inglesa de 1688 e os direitos do homem e a teoria do laissez-faire originadas no puritanismo tiveram, como é sabido, o seu impulso na Revolução Americana. A influência de Locke na Declaração Americana e nos factores revolucionários que davam coesão aos novos estados é confirmada por André Kaspi, para quem a filosofia lockeana inspirou os insurrectos da Revolução Americana. (Cfr. KASPI, André. La Constitution des États-Unis. Em: Revista Historia. Paris. No. 456 (Dic., 1984); p. 4-12).
6 Cf. ROUSSEAU, Jean Jacques. Du contrat social. Aubier: Montaigne, 1943. p. 114-115. Tradução nossa.
7 KANT, Emmanuel. Critique of the Practical Reason. [Em linha]. <Disponível em: http://books. google.pt/books?id=N549zroUaaUC&pg=PP1&dq=Critique+of+Practical+Reason&lr=&asbrr=1# PPA27,M1> [Consulta: 15 Jun., 2009] Tradução nossa.
8 Cf. KANT. Religion within the boundary of pure religion. Edinburg: Thomas Clark, 1838. p. 1. Tradução nossa.
9 Cf. LOPES ALVES, Op. Cit., p. 28.

Uma longa e persistente indagação

Mons. João Scognamigliopescador Clá Dias, EP

Perguntar por que alguma coisa é, ou existe, é uma questão instigante para o pensamento humano desde o tempo em que os gregos, caminhando pelas sendas nevadas das montanhas da Hélade, sentados diante de colunas dóricas tendo ao fundo um belo bosque, ou navegando em frágeis barquinhos por entre as ilhas do Egeu sob o luminoso sol de outono, ruminavam sobre a essência das coisas.

Por sua própria natureza, o homem é um animal metafísico.[1] Nos últimos 25 ou 26 séculos, uma longa plêiade de pensadores tentou penetrar o mais recôndito fundamento do ser.

Platão, Aristóteles e São Tomás foram aqueles que mais perto chegaram da pura experiência filosófica, conforme mostra Gilson ao longo de sua famosa obra sobre a “unidade da experiência filosófica”. Eles entenderam que só em torno da metafísica do ser se pode fazer filosofia.

Se os pensadores se desviam desses trilhos, e tentam descrever o todo da humanidade por outras vias, o ceticismo cresce, a dúvida triunfa, o subjetivismo se estabelece. Negligenciando-se o ser, perde-se o princípio unificador da filosofia. É a situação na qual nos encontramos hoje.

Por isso, do lado da cultura moderna, o primeiro olhar não encontra ambiente favorável. A ele se vê negada qualquer objetividade e capacidade de captar a realidade das coisas.

O processo que nos trouxe até essa situação tem profundas raízes históricas e ideológicas. Sua gênese remonta às teses de Guilherme de Ockham, no século XIV, e mais ainda à doutrina do cogito, de Descartes. O turvo rio do pensamento ocidental, brotado dessas fontes, redundou em um oceano de incertezas e subjetividade, todo hostil ao ser e, consequentemente, contra o primeiro olhar.

O passo radical e decisivo para o obscurecimento do ser foi dado por Kant, com sua revolução copernicana do pensamento. Ele mesmo qualificou assim sua gnoseologia, no prefácio para a segunda edição da Crítica da razão pura. Semelhantemente ao sucedido na astronomia com a teoria de Nicolau Copérnico, a mente humana (o sol) não mais gravita em torno do objeto (a terra), mas, ao contrário, são “os objetos” que “devem se regular segundo nosso conhecimento … no que diz respeito à intuição dos objetos”, afirma Kant. Era preciso revirar os conceitos adquiridos pela filosofia perene.

Como observa Abelardo Lobato, “o homem toma o lugar que antes era ocupado pelo ser e havia sido reservado na história para Deus ou a physis”.[2] Com o homem colocado assim no centro do processo cognoscitivo, a experiência subjetiva toma o poder e praticamente empurra de lado o conhecimento metafísico, fazendo cessar o longo primado da ontologia. A metafísica, a moral e a religião são transformadas por Kant em meras servidoras da antropologia. É destronado o ser, e até Deus, e em seu lugar é elevado o “eu pensante”.

A partir de então, a percepção do mundo palpável que nos rodeia vai depender não mais da realidade, mas do desejo humano.[3] Daí poder-se falar apropriadamente do esquecimento do ser como um dos maiores desastres da história do pensamento ocidental — para usar expressão de Heidegger, embora aplicando-a a uma quadra histórica diferente e rejeitando o sentido obscuro e hostil à metafísica que ele lhe dava.

Às filosofias alheias à realidade do mundo cabe bem a crítica do italiano vivaz e observador: “La filosofia è quella cosa con la quale e senza la quale il mondo va tale e quale”.

Fato é que, apesar de todos os equívocos e erros falaciosos ao longo da história, os homens nunca abandonaram a indagação sobre o âmago do ser. De fato, conforme observou Gilson, em todas as doutrinas metafísicas, verifica-se esta nota constante: “Por mais divergentes que possam ser, elas concordam na necessidade de descobrir a primeira causa de tudo o que é” .[4]

Aquele que foi descrito como o mais sábio dos santos, e o mais santo dos sábios — São Tomás de Aquino —, foi quem levou mais longe e mais alto essa inquirição metafísica, partindo do menor e mais humilde ser material, concreto, até deparar com o próprio Ser.

A partir das coisas — que são imediatamente dadas à intuição sensitiva —, passa-se, por meio da atuação da inteligência, ao conhecimento do ser ou sua essência imaterial, para em seguida alcançar, a partir desse ser material, a essência e existência dos seres espirituais, da alma humana, em primeiro lugar, e finalmente a Existência em si, o Esse per se subsistens, fundamento último — Causa primeira eficiente e Causa final suprema — de todo ser.[5]

A filosofia de São Tomás está toda fundada e articulada sobre o ser. Todo o pensamento “razoável” do Ocidente, a partir do fim do século XIII, é devedor à grande obra realizada por quem merecidamente recebeu o título de Doutor Comum — da filosofia e da teologia também. Obra comparável, em grandeza, ousadia, harmonia e pulcritude, à arquitetura gótica que lhe foi contemporânea.

In: Lumen Veritatis, nº12, jun./set. 2010.


[1] GILSON, Étienne. The Unity of Philosophical Experience. New York: Charles Scribner’s Sons, 1937. p. 307.

[2] LOBATO, Abelardo. El hombre en cuerpo y alma. Tratado I: El cuerpo humano. In: El Pensamiento de Tomás de Aquino para el hombre de Hoy. vol. 1. Valencia: Edicep, 1994. p. 78.

[3] A filosofia de Max Scheler, que ambicionava aprofundar a antropologia kantiana, “não só deixava de lado o ser”, mas “não tinha uma adequada concepção da função da inteligência na compreensão do real”, e “diluía o espírito do homem em uma nebulosa com o espírito absoluto, cuja característica era a impotência e a debilidade” (LOBATO, Abelardo. Ibidem, p. 79).

[4] GILSON, Étienne. Op. Cit. p. 306.

[5] DERISI, Octavio Nicolás. Tratado de Teología Natural. Buenos Aires: Educa, [s.d.]. p. 134.