Os transcendentais e a beleza

Paulo Martosdefault.jpg

In: Lumen Veritatis, nº 10 (p. 33-49)

Um dos importantes benefícios para a sociedade consiste em preservar e aperfeiçoar os valores, ou seja, as qualidades que tornam alguma coisa mais estimada ou menos.

Há uma hierarquia entre os valores, os quais podem ser religiosos, metafísicos, morais, culturais, econômicos, etc. Conforme afirma Garcia (1989, p. 60 e 64), um valor não depende da mera preferência, mas geralmente é o fruto de um arrazoado mais ou menos profundo e a consequência de um juízo estético. E acrescenta: “Os valores que mais motivam a conduta […] são a verdade, a beleza, o transcendente”.

Em filosofia se emprega o termo ‘axiologia’ — do grego ‘axia’, valor, e ‘logos’, tratado — para indicar o “estudo ou teoria de alguma espécie de valor, particularmente dos valores morais” (FERREIRA, 1986, p. 209).

Estudaremos neste trabalho um desses valores, o belo, baseando-nos especialmente em autores medievais. Como se sabe, na Idade Média houve grande desenvolvimento das doutrinas sobre o pulchrum, as quais se concretizaram em diversos campos, sobretudo no artístico.

1. Que é a beleza?

Para conceituar a beleza, é necessário dar alguns passos no campo da metafísica, a qual, segundo H. D. Gardeil (1967), designa a parte superior da filosofia, que pretende dar as razões e os princípios últimos das coisas.

1.1 Os transcendentais do ser

Em todas as coisas há qualidades que constituem seu próprio ser e estão além da matéria; por essa razão são chamadas transcendentais. A palavra ‘transcendental’ provém do verbo latino ‘transcendo’ (trans: passar; scando: subir), e significa literalmente “passar subindo” (cf. SARAIVA, 1983, p. 1216).

Jan Aertsen (2003, p. 120) afirma: “A metafísica […] é a ciência do que é transcendente”. E o Dicionário Aurélio esclarece: os transcendentais são “qualidades que pertencem ao ser enquanto tal, convindo, em graus diversos, a todos os seres” (FERREIRA, 1986, p. 1699).

Em cada ser existem quatro propriedades: “Unum, bonum, verum, pulchrum” — ente indiviso, bom, verdadeiro e belo. São Tomás de Aquino acrescenta uma quinta propriedade: ‘aliquid’, aquilo que torna um ser diferente de outro (cf. MARTINS FILHO, 2003, p. 33).

Jacques Maritain (1882-1973), filósofo que foi embaixador da França junto à Santa Sé, considera o pulchrum como “o esplendor de todos os transcendentais reunidos”. E Francis J. Kovach afirma: A beleza é o “mais rico, mais nobre e mais compreensivo de todos os transcendentais, […] o único transcendental que inclui todos os demais” (apud AERTSEN, 2003, p. 325 e 326).

1.2 Método etimológico

Filósofos da Antiguidade pagã, em especial Platão, Aristóteles e também Cícero, escreveram sobre a beleza. Com o advento da era cristã, esse tema foi desenvolvido particularmente por Santo Agostinho. E na Idade Média, sobretudo nos séculos XI a XIII, alcançou um auge. As palavras beleza, decoro e formosura têm sentidos semelhantes, mas não idênticos. Para se compreender o significado de um vocábulo, um ótimo método consiste em recorrer a sua etimologia, segundo o costume medieval.

Edgar de Bruyne (1947), que foi professor na Universidade de Gand (Bélgica), transcreve diversas opiniões a respeito desses termos, as quais podem ser assim sintetizadas.

Beleza tem um sinônimo, pulcritude, proveniente do latim ‘pulcher’, síncope de ‘pulvere carens’, ou seja, “sem poeira, sujeira ou defeito”.

O termo ‘decoro’, de ‘decorus’, segundo um autor é composto de ‘decus oris’ (beleza do rosto). Outro prefere focalizar a beleza na alma ou no coração, e não na forma do rosto: ‘decorus’ se decompõe em ‘decus cordis’ (ornato do coração).

E ‘formosura’ se origina de ‘formosus’. Segundo Dom Bruno Forte (2006), arcebispo de Chieti (Itália), nessas questões tal é a importância da forma que o latim emprega também a palavra ‘formosus’ para designar aquilo que é belo.

Conforme o artista plástico Cláudio Pastro (Revista Passos, janeiro-fevereiro 2008, p. 41), “a palavra beleza tem origem no sânscrito: bet-El-za. Za: brilho; El: Deus, o que está acima; bet: casa. Beleza: a casa onde Deus brilha”.

1.3 Características da beleza

Santo Agostinho, em uma de suas epístolas (PL 33, 65), escreveu: “‘Omnis pulchritudo est partium congruentia cum quadam suavitato coloris’ — Toda beleza é a congruência das partes com certa suavidade de cor” (apud BRUYNE, 1947, p. 16).

A congruência das partes é a proporção ou harmonia e a suavidade de cor, a luminosidade. Conforme Guillaume d’Auvergne (1190-1245), que foi Arcebispo de Paris, a beleza visível se caracteriza, ora pela posição das partes no interior do todo, ora pela cor; ou mais ainda por esses dois elementos reunidos (cf. BRUYNE, 1947, p. 61).

Santo Alberto Magno (1206-1280) e seu discípulo Ulric de Strasbourg ensinam que a beleza é “o resplendor da forma substancial ou atual nas partes da matéria perfeitamente proporcionadas e determinadas” (apud BRUYNE, 1947, p. 84). A proporção caracteriza a “matéria” de uma substância estética; a luz é sua forma. Os dois princípios subsistem, porém fundidos, constituindo uma unidade harmoniosa.

Entre as características da beleza, o Doutor da Graça inclui a grandeza (cf. BRUYNE, 1947, p. 107), a qual evidentemente não se refere ao tamanho de um corpo. Assim se pode, por exemplo, afirmar: “Tal pessoa tem grandeza de alma”, ou seja, não é mesquinha, mas está voltada para horizontes grandiosos.

Complementando a ideia de Santo Agostinho e de Guillaume d’Auvergne, São Tomás de Aquino (Suma Teológica I, q. 39, a. 8, ad. a) afirma que a beleza possui três características: luminosidade, proporção ou harmonia entre as partes e integridade.

1.4 Beleza visível imagem da invisível

Ensina a Igreja (Catecismo da Igreja Católica, n. 190 a 301) que Deus criou todas as coisas a partir do nada; e as sustenta, pois do contrário desapareceriam. A finalidade da criação é glorificar o Onipotente, e todos os seres são vestígios, imagens ou semelhanças de Deus.

O Criador é a Perfeição, a própria Beleza, com B maiúsculo. E as criaturas são belas enquanto reflexos da Beleza divina.

Esse tema foi amplamente desenvolvido pelos vitorinos, escola de pensamento assim chamada em razão do nome da abadia São Vítor, situada em Paris e fundada no ano 1100. Seus principais representantes foram Hugo e Ricardo de São Vítor.

Hugo de São Vítor (1096-1141) — mestre de Ricardo — escreveu, entre outras obras, Eruditio didascalica (Instrução didática), composta de seis livros que tratam de pedagogia.

Por sua vez, Ricardo de São Vítor (1110-1173) redigiu uma obra sobre a Santíssima Trindade, que influenciou profundamente a espiritualidade medieval e moderna (cf. Le Petit Robert, 1995, p. 1762).

Segundo os vitorinos, “omnis visibilis pulchritudo invisibilis pulchritudinis imago est — toda beleza visível é imagem da beleza invisível” (BRUYNE, 1947, p. 90).

Explica Hugo que existem duas espécies de beleza: a simples (invisível) e a composta (sensível), regida pela proporção. A alma, cuja beleza é impalpável, se rejubila, se honra, se emociona com as belas formas sensíveis porque as ama na medida em que sua estrutura lhe é aparentada, familiar e querida. A beleza das coisas corporais e a dos espíritos derivam do mesmo Artista, isto é, Deus, que as pré-adapta uma à outra.

1.5 Teofania

A beleza da criatura é uma revelação da Beleza infinita e indivisível; ou seja, é em sentido próprio uma teofania, palavra proveniente do grego ‘theophania’, a qual significa “manifestação de Deus em algum lugar, acontecimento ou pessoa” (FERREIRA, 1986, p. 1664).

Explica Bruyne (1947): As coisas são belas na medida em que manifestam — de maneira sem dúvida perecedora, mutável e imperfeita — a perfeição divina. Assim como a palavra da Sagrada Escritura, a beleza da natureza nos revela Deus. Pelas imagens sensíveis de Sua invisível Beleza, o Criador nos recorda que devemos amá-Lo.

O conjunto da criação é uma autêntica teofania, como afirma Santo Agostinho em um de seus sermões:

Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar, interroga a beleza do ar que se dilata e se difunde, interroga a beleza do céu… interroga todas estas realidades. Todas elas te respondem: Olha-nos, somos belas. Sua beleza é um hino de louvor (confessio). Essas belezas sujeitas à mudança, quem as fez senão o Belo (Pulcher), não sujeito à mudança? (apud Catecismo da Igreja Católica, n. 32).

1.6 Beleza, Bem e Verdade

Os transcendentais belo, verdadeiro e bom não devem ser vistos como compartimentos separados, pois estão intimamente relacionados entre si. A beleza é considerada “splendor boni et veri” — o esplendor do bom e do verdadeiro (RETEGUI, 1999, p. 42).

Podemos fazer uma comparação com o arco gótico, o qual se compõe de duas linhas verticais paralelas que se erguem, se curvam elegantemente e se unem. Uma das linhas do arco se refere ao “verdadeiro”, a outra, ao “bom”, e o ponto de junção, ao “belo”.

Segundo Santo Alberto Magno, “o belo é uma síntese do verdadeiro e do bom” (apud BRUYNE, 1959, p. 154).

Tomás Gallus, também chamado Tomás de Verceil, o último dos vitorinos, escreveu uma obra sob o título A estética mística, na qual mostra, entre outras coisas, o profundo relacionamento entre a beleza e o bem: a vista e o ouvido colaboram especialmente para captar o belo; o olfato, o paladar e o tato para perceber o bem. Comentando esse livro, explica Bruyne que o Altíssimo é o Bem e a Beleza. Amando a Deus nós nos transformamos n’Ele: contemplando a Beleza, nos tornamos bons e nos tornamos belos amando o Bem (cf. BRUYNE, 1947, p. 124).

Carlos Magno, citado por Weiss (1969, p. 779), costumava dizer que a Religião é em geral mãe das artes, e a beleza naturalmente irmã do verdadeiro e do bom. Quem compreende e ama a beleza não cai facilmente em vícios vulgares.

O teólogo suíço Hans Urs von Balthasar, em sua obra Glória, escreveu que, num mundo sem beleza ou incapaz de percebê-la, o bem perde igualmente sua força de atração. Quando se perde a capacidade de afirmar a beleza, os argumentos em favor da verdade esgotam sua força de conclusão lógica (cf. FORTE, 2006, p. 77).

Segundo a filosofia perene, o aspecto do Absoluto percebido por meio da sensibilidade é o belo; o compreendido pela inteligência, o verdadeiro; e o desejado pela vontade, o bom.

Se o bom, o verdadeiro e o belo estão intimamente relacionados entre si, o mesmo sucede com o mau, o falso e o feio. Como observa Ulric de Strasbourg, “a fealdade e o mal — também o erro, acrescentamos — resultam da privação” (apud BRUYNE, 1959, p. 287), ou seja, não têm essência.

1.7 Não depende do gosto de cada pessoa

Muito se fala hoje em dia que a beleza é subjetiva. Tal assertiva não é nova, pois já David Hume (1711-1776), em sua História de seis ideias, escreveu: “A beleza não é nenhuma qualidade das coisas em si mesmas. Existe na mente de quem as contempla, e cada mente percebe uma beleza diferente” (apud VÁZQUEZ, 1999, p. 173).

Essas afirmações entram em choque com o ensinamento de Hugo de São Vítor: “A beleza é uma propriedade estritamente objetiva da maneira de ser das coisas. Ela se impõe por si mesma, antes da consideração de qualquer relação utilitária para o homem” (apud BRUYNE, 1947, p. 104).

Devido à limitação deste artigo, não apresentaremos os diversos argumentos para refutar a ideia da subjetividade da beleza, a qual, aliás, se aplica também aos outros dois transcendentais. Pois, se a beleza é subjetiva, por que não serão subjetivos a verdade e o bem? Vemos assim que subjetivismo e relativismo são doutrinas afins.

Recordemos apenas a consideração formulada pelos autores de uma obra publicada pela Universidade de Navarra (Espanha): Se a pulcritude de algo dependesse do gosto de cada um, não teria nenhum sentido falar de beleza e feiura (cf. ALVIRA et al., 2001, p. 193).

1.8 Definições de beleza

Tendo em vista os textos acima, podemos agora apresentar algumas definições de beleza.

Conforme Cícero, “a beleza é o brilho objetivo da forma indivisível, a superabundância da luz formal, a liberalidade sem limites da ideia, impregnando todas as harmonias e dando-lhes um sentido” (apud BRUYNE, 1947, p. 85).

Em sua obra Convite à estética, Adolfo Sánchez Vázquez (1999, p.186) apresenta várias definições de beleza, entre as quais destacamos as seguintes:

Ideia eterna, perfeita, imutável, da qual participam, temporal, imperfeita e diversamente, as coisas empíricas belas (Platão); resplendor de uma luz inteligível nas coisas sensíveis (Plotino); esplendor do Supremo Bem nas coisas sensíveis (Marsilio Ficino); esplendor da forma no sensível (Maritain); modo de estar presente a verdade como desvelamento do ser (Heidegger).

Alguns autores conceituam a beleza como sendo “o esplendor da forma nas partes proporcionadas da matéria” (COLLIN, 1950, p. 556).

Segundo os escolásticos, a beleza é a unidade na variedade (cf. LECLERCQ, 1947, p. 17).

O que os anjos vêem: natureza e graça

Pe. Colombo Pires, EPanjos Tradução do Original Pe. Romanus Cessario, O.P.

Apesar da inteligência humana e angélica possuírem uma performance diferente, a distinção clássica entre a visão matutina e vespertina dos anjos sugere uma verdade importante acerca do conhecimento disponível a todos que vivem na Fé de Jesus Cristo. A noção que os anjos possuem dois tipos de visão aparece inicialmente nos comentários de Santo Agostinho acerca da criação na Bíblia, o De Genesi ad litteram, Book IV, chapters 22-31 onde o Doutor da Graça fala de um amanhecer e de um anoitecer no conhecimento dos Anjos. A tradição teológica subsequente alargou essa distinção, pois, como Hugo de São Vítor observa, “ há muitas questões acerca da natureza angélica, as quais a curiosidade da mente humana não foi capaz de descobrir”.1 Então, na sua Summa theologiae, não surpreende descobrir que São Tomás de Aquino estende a intuição do conhecimento angélico de Agostinho.

O Santo de Hipona inventou as expressões conhecimento “matutino” e “vespertino” como parte da sua interpretação dos seis dias da criação presentes no Gênesis… (Ele) chamou “matutino” ao conhecimento angélico das coisas no seu primordial começo, precisamente como existem no Mundo; e “vespertino” ao seu conhecimento da realidade criada enquanto existindo na sua própria natureza.2

Porque a “escuridão da noite” caracteriza, mais propriamente, o conhecimento dos anjos decaídos que se fixaram na realidade criada, o Aquinate rejeita esse ponto de vista. Ele defende que como o amanhecer e o anoitecer estão conotadas com a luz do dia, “ambos os tipos de conhecimento expressados por estes termos pertencem aos anjos que estão na luz”.3

Nenhum teólogo contestaria que o que os anjos vêem na manhã, nomeadamente, tudo como existe no divino mundo da criação, forma a única base para a genuína reflexão teológica. O próprio São Paulo testemunha a centralidade desse tipo de conhecimento quando ele lembra aos Colossenses que Cristo “é a imagem de Deus invisível, o primogênito de toda a criação; Por Ele todas as coisas foram criadas, no céu e na terra, visíveis e invisíveis” (Col 1, 15-16).

Enquanto nós frequentemente associamos a teologia com a realidade de Deus e os Seus feitos, com mistérios como a Trindade, a Ressurreição de Cristo, e a Imaculada Conceição da Virgem Maria, a reflexão teológica estende-a apropriadamente ao que os homens e as mulheres fazem. Por outras palavras, a fé do cristão determina a questão ética. Também as virtudes da vida cristã estão entre aquelas realidades visíveis que encontram a sua realização em Cristo. De fato, Orígenes, autor do II século, afirma esta verdade quando escreve: “Não se surpreendam ao falarmos das virtudes do amado Cristo, porque em outros casos nós estamos afeitos a olhar o próprio Cristo como a substância daquelas muitas virtudes”.4

Pelo fato de Cristo permanecer a fonte de todo o bem moral para a pessoa que aceita a mensagem do Evangelho, a Igreja afirma que o ensino da moral cristã possui uma distinta especificidade. Numa variedade de maneiras, os teólogos contemporâneos enfatizam a importante ligação entre a reta conduta Cristã e a autêntica crença cristã.

Hans Urs von Balthasar, por exemplo, identifica Cristo como a “norma pessoal e concreta”5 da vida moral. Isto quer dizer, entre outros, que sem uma efetiva união com Cristo, nenhuma pessoa humana pode, na prática, atingir a perfeição da vida moral que conduz à beatífica companhia com a Trindade, os anjos e os santos. Para mais, “é Cristo, o novo Adão, que plenamente desvenda a própria humanidade e desdobra o Seu nobre chamado revelando o mistério do Pai e do amor do Pai”.6

Por outras palavras, apenas a pessoa que abraça uma vida cristã de virtudes vive inteiramente de acordo com a norma da verdade moral que Cristo, a “imagem do Deus invisível,” comunica ao mundo, e em Cristo realiza a perfeição da natureza humana.

Por um lado, devido à sua inteligência superior, os anjos conhecem os divinos mistérios do mundo com grande clareza. Nós, por outro lado, conhecemos as verdades da fé sombriamente, isto é, apenas pela crença na Palavra de Deus, Primeira Verdade.7 E por causa da escuridão moral que caracteriza o pecado no mundo, as verdades da fé acerca da conduta humana parecem por vezes obscuras para a pessoa que ainda deve aprender a apreciar a medida espiritual que Cristo estabelece para vida humana. Certamente, uma ponderação contemplativa mais profunda da verdade revelada — um esforço na fé para ver mais claramente o que os anjos bons vêem na “manhã” quando tudo aparece na “imagem perfeita” — forma a característica básica do dinamismo da vida Cristã. Significa isto, então, que o conhecimento da fé apenas pode fornecer instrução moral para o crente Cristão? Tradicionalmente, a Igreja dá uma resposta negativa a essa questão. A razão humana — a que está inerente a capacidade e o objeto próprio — não está abrogada pelo dom da fé. O ser humano, alumiado pela fé em Cristo continua a englobar o mundo com a sua capacidade racional de inteligência. E para que se possa compreender plenamente o esplendor da vida Cristã, é importante conhecer as razões porque o conhecimento humano autêntico ajuda a crença Cristã, especialmente em matérias que concernem a própria conduta da vida humana.

O fato de a razão preservar todo o seu vigor no contexto da vida cristã indica um papel genuíno para a filosofia dentro de uma compreensão cristã do mundo e da pessoa humana. Nas suas Gifford Lectures (1931-32), Étienne Gilson levantou a questão da filosofia Cristã: “Eu chamo Cristã a toda a filosofia que, apesar de manter as duas ordens formalmente distintas, considera a revelação Cristã um auxiliar indispensável para a razão”.8 Quer nós aceitemos ou não esta proposta especifica, Gilson deixa ao menos uma noção de como a crença Cristã pode considerar o esse rerum, o ser das coisas, de um ponto de vista formalmente distinto daquele da fé divina. E se essa procura pessoal por sabedoria se desenvolve num inquérito intelectual, nós podemos justamente chamar à pessoa que o pratica um filósofo Cristão. O conhecimento filosófico demanda esse rerum quod in propria natura habent, isto é, busca desvendar as naturezas próprias que as coisas têm nelas mesmas. Apesar da filosofia poder apenas conseguir um conhecimento limitado da natureza das coisas, o ensinamento filosófico ainda representa um esforço discursivo da parte da pessoa humana a fim de obter o que os anjos vêm ao escurecer, um “conhecimento da realidade criada enquanto existente na sua própria natureza.” A Igreja, cada vez mais, incentiva este esforço, e ela fá-lo baseada em São Paulo: “Com efeito, o que é invisível nele — o seu eterno poder e divindade — tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras” (Rm 1, 20).

O Cristão sabe que há limites para os “princípios e as causas” que os filósofos procuram. A “filosofia primordial” de Aristóteles, na realidade, convida-nos a contemplar a existência da mais alta verdade, embora os poços que alcançaram esta meta obtiveram apenas um oblíquo, inferencial conhecimento deste último princípio; isto é, um conhecimento da dependência dos seres criados de uma única, fonte que todas as pessoas chamam Deus.9 Devido a ter explorado extensivamente a diferença entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, São Tomás de Aquino oferece uma nota incaracteristicamente acabrunhada acerca daquelas pessoas que se apóiam apenas na razão para descobrir a verdade acerca da existência humana.

Porque Aristóteles viu que não há nenhum outro conhecimento humano nesta vida exceto através das ciências especulativas, ele sustentou que o homem não pode atingir uma completa, mas apenas uma relativa felicidade. Com isto fica claro o que o nobre gênio entre os filósofos experienciou no curso do seu tempo.10

Mas enquanto o Cristão escapa a esse triste estado, ele ou ela precisam experimentar alguma frustração dos filósofos. Como um teólogo aponta, “se o homem não estabelece um contato definitivo com Deus a um ponto que não é graça (no sentido teológico da palavra), então o Deus que se revela não se pode endereçar ao homem de modo significante. Daí, a solene declaração da Igreja que a existência de Deus pode ser naturalmente conhecida (Dz 3004, 3026) e que a alma humana é imortal (Dz 1440)”.11

Quando a Igreja defende a dignidade do chamado humano e restaura a esperança para aqueles desconsolados de qualquer destino mais alto, ela reconhece que a sua mensagem atingiu o mais profundo do coração humano. Ao mesmo tempo, por causa do sobrenatural senso de fé, o Povo de Deus recebe uma verdade que excede a capacidade do conhecimento humano, a verdade que os liberta (Cf. Jo 8, 32).

Retornemos à distinção que Santo Agostinho e São Tomás de Aquino fizeram entre o conhecimento matutino e vespertino dos anjos — o seu cognitio matutina e vespertina — a fim de ver que aplicação pode ter na ética teológica. O Aquinate explica a base para distinguir os dois tipos de conhecimento angélico da seguinte maneira: Para o ser das coisas deflui do Mundo como de um primeiro (ou primordial) princípio, e esta efusão termina no ser das coisas o que elas possuem em sua própria natureza.

São Tomás fala de um “defluir” que se espalha da fonte criativa de todas as coisas em Deus e termina na variedade de naturezas criadas que existem no mundo.12 A expressão da verdade divina assemelha-se a este fluir do ser. No ponto de vista do Aquinate, encontra-se a inesperada compleição da metafísica na revelação Cristã. Através da revelação divina, Deus comunica um conhecimento da realidade como ela existe no Seu Filho, mesmo apesar de os crentes ainda gozarem da capacidade de adquirir um conhecimento das coisas reais como elas existem nelas próprias.

O filósofo americano vai ainda tão longe de afirmar que “a teologia revelada promete uma visão dos princípios que o metafísico busca, e até mesmo deseja”.13

In: Lumen Veritatis, nº5.

Este texto foi publicado com a gentil permissão do corpo editorial da AMATECA series of Handbooks of Catholic Theology e foi traduzido pelo Pe. Colombo Pires E.P. da edição inglesa do Father Cessario’s Le Virtù (Milan 1994).

[Romanus Cessario, O.P. The Virtues, Or the Examined Life (London/New York: Continuum, 2002)].

1 De Sacramentis Bk 1, chap. 5, no. 19 (PL 176: 254).
2 Summa theologiae Ia q. 58, a. 6.
3 Ibidem.
4 Origen, Commentary on the Song of Songs, Bk 1, in Origen, The Song of Songs: Commentary, trans. R. P. Lawson (Ancient Christian Writers, vol. 26; Westminster, MD and London, 1957), p. 89.
5 Hans Urs von Balthasar, “Nine Theses in Christian Ethics”, in International Theological Commission: Texts and Documents 1969-1985, ed, Michael Sharkey (San Francisco, 1989), p. 108.
6 Gaudium et spes, nº. 22.
7 O Aquinate chega a especular se os anjos possuem essa claridade acerca das verdades da fé mesmo antes da sua confirmação na glória (ver Summa theologiae IIa-IIae q. 5, a. 1). Em qualquer caso, a distinção de Santo Agostinho refere-se ao que os anjos conhecem após a sua irreversível escolha de amor a Deus.
8 The Spirit of Medieval Philosophy (New York, 1940), p. 37.
9 Cf. In De Trinitate Bk 5, chap. 4.
10 Contra gentiles Bk III, c. 48.
11 Edward Schillebeeckx, Revelation and Theology, vol. 1 (New York, 1967), pp. 154, 155.
12 Porque ele afirma firmemente a total implicação da doutrina Cristã da criação ex nihilo, São Tomás reconhece que toda a natureza criada possui mas nunca extingue o seu próprio ato de ser. A grande contingência dos seres criados deriva da tênue afirmação que têm na existência, onde quer que a divina omnipotência e infinitude repousem na identidade da essência e existência que pertence unicamente a Deus. Por outras palavras, a explicação do Aquinate acerca do “defluir” permanece livre de emanacionismo ou outra conotação panteísta.

13 Mark D. Jordan, Ordering Wisdom:The Hierarchy of Philosophical Discourses in Aquinas (Notre Dame, IN, 1986), p. 178. Jordan explica mais tarde esta conexão: “Se há uma diferença metodológica entre metafísica e teologia, não haveria então uma segregação material delas nos textos (de São Tomás). O discurso da metafísica não está encerrado em algum ponto abaixo da teologia na hierarquia das ciências. O leitor passa imperceptivelmente de um discurso para outro. De fato, não é como se estivéssemos a passar ao lado da metafísica, mesmo se alguém sabe que a metafísica, enquanto ela mesma, não pode prover a necessidade de um estágio mais alto. Pelo contrário, encontra-se a inesperada compleição da metafísica na revelação” (p. 177).

O Direito de Associação no Vaticano II e no CIC: As Associações Privadas de Fiéis

EncontroMons. João S. Clá Dias, EP

1. Explicitação do Direito de Associação no Concílio Vaticano II

A noção do papel de todos os fiéis na vida da Igreja foi notavelmente ressaltada no Concílio Vaticano II. E, com ela, a concepção ainda mais clara e precisa de que os fiéis possuem um direito de se associar, inclusive para finalidades espirituais, de caridade, de apostolado e, enfim, religiosas de um modo geral.1 Nesse sentido, diz o Decreto Apostolicam Actuositatem:

18. Os cristãos são chamados, como indivíduos, a exercerem o apostolado nas diversas circunstâncias de sua vida. Lembrem-se, no entanto, que o homem é por natureza social e aprouve a Deus reunir os fiéis em Cristo num povo de Deus (cf. 1 Pd 2, 5-10) e num só corpo (cf. 1 Cor 12, 12). […] Exerçam, pois, os fiéis, o apostolado em espírito de unidade. Façam-se apóstolos tanto em suas comunidades familiares quanto nas paroquiais e diocesanas — comunidades que por sua vez exprimem a índole comunitária do apostolado — como também em agrupamentos livres aos quais decidiram agregar-se.

O apostolado de grupo é de grande importância também porque, nas comunidades da Igreja ou em diversos ambientes, muitas vezes exige que seja realizado por uma ação comum. Os grupos constituídos para a ação apostólica comunitária sustentam seus membros e os formam para o apostolado, organizam e dirigem seu trabalho apostólico, de forma a se poder esperar daí frutos bem mais abundantes do que no caso de agirem todos em separado.

Nas atuais circunstâncias, pois, é de extrema necessidade que no ambiente da atividade dos leigos se fortaleça a forma de apostolado em grupo organizado. É só a união estreita de forças que pode atingir plenamente os fins todos do apostolado moderno e ainda defender vigorosamente seus benefícios. […]

19. Grande é a variedade que existe entre as associações de apostolado. […]

Salva a devida relação com a autoridade eclesiástica, é direito dos leigos fundarem grupos e dirigirem-nos, bem como inscreverem-se nos existentes (AA 18-19).

2. O direito de reunião e de associação no atual CIC

Uma das grandes inovações introduzidas no ordenamento jurídico canônico pelo atual CIC consiste no reconhecimento, aos fiéis católicos em geral, ou seja, clérigos e leigos2, das liberdades de associação e de reunião, nos termos do cân. 215:

Os fiéis têm o direito de fundar e dirigir livremente associações para fins de caridade e piedade, ou para favorecer a vocação cristã no mundo, e de se reunir para a consecução comum dessas finalidades.

Manzanares (2005, p. 127), em nota a esse cânon, destaca o reconhecimento não só do direito de associação, mas também do de simples reunião, e manifesta a origem conciliar desses conceitos: “Refere-se o cânon tanto ao direito de associação como ao de simples reunião. Veja-se sua motivação e sua clara afirmação doutrinal em AA 18-19”.

Em dicção semelhante, embora sem mencionar explicitamente a liberdade de reunião, o Código repete o conceito no que se refere aos clérigos seculares, ou seja, afirma claramente o direito de associar-se que lhes assiste, no cân. 278, § 1 e 2 3:

§ 1. É direito dos clérigos seculares associarem-se para finalidades conformes ao estado clerical.

§ 2. Os clérigos seculares dêem importância principalmente às associações que, tendo os estatutos aprovados pela autoridade competente, por uma organização de vida adequada e convenientemente aprovada e pela ajuda fraterna, são de estímulo à santidade no exercício no ministério e favorecem a união dos clérigos entre si e com o Bispo.

Segundo Hortal, o Código explicita, no cân. 278, o direito dos clérigos seculares à associação “não porque eles não sejam ‘fiéis cristãos’, mas porque historicamente esse direito lhes foi negado com freqüência” (HORTAL, 2008, p. 153). Quanto aos membros dos estados de vida consagrada, como também aponta Hortal4, estão eles sujeitos ao que estabelece o § 3 do cân. 307: “Os membros de institutos religiosos podem inscrever-se em associações, de acordo com o direito próprio e com o consentimento Superior.” Como o próprio Papa João Paulo II declarou, na Constituição Apostólica de promulgação do novo Código (2008, p. 15), as inovações nele contidas refletem o “grande esforço de transferir para a linguagem canonística, a própria eclesiologia conciliar”. E acrescenta: “A conseqüência é que a razão fundamental da novidade que, sem jamais afastar-se da tradição legislativa da Igreja, se encontra no Concílio Vaticano II, principalmente sua eclesiologia, constitui também a razão da novidade no novo Código” (p. 15).

Se o Concílio Vaticano II hauriu elementos antigos e novos do tesouro da Tradição e se sua novidade se constitui por estes e outros elementos, é manifesto que o Código deve possuir a mesma característica de fidelidade, conformando-se a ela em seu próprio campo e sua maneira especial de expressar-se (JOÃO PAULO II, 2008, p. 15 e 17).

E, como refere Gruszynski (1999, p. 20), no discurso de apresentação do novo CIC, João Paulo II afirma que:

[…] ele não pode ser adequadamente valorizado e corretamente interpretado se for considerado, de acordo com a ideologia das codificações civis, como um texto normativo autônomo, completo e exaustivo. Ele deve, pelo contrário, ser colocado ao lado do “Livro que contém os atos do Concílio”, em um acoplamento bem válido e significativo, que vê estes dois livros elaborados pela Igreja do século XX se integrarem numa unidade harmônica e complementar.

Conclui-se, pois, que as normas canônicas vigentes sobre os fenômenos associativos decorrem dos ensinamentos emanados do Concílio Vaticano II, são por eles complementados e a essa luz devem ser interpretados. Deve-se ter em vista, porém, que, em matéria de explicitação e precisão de definição, o CIC foi além do próprio Concílio, conforme a observação de Feliciani (2002, p. 120-121):

O Vaticano II, embora afirmando de modo claro o direito de associação dos fiéis, não se preocupou de propor uma definição formal e exaustiva. Pelo contrário, o novo Código chega, no cân. 215, a um reconhecimento totalmente explícito: “Os fiéis têm o direito de livremente fundar e dirigir associações para fins de caridade e de piedade e para favorecer a vocação cristã no mundo e a reunir-se para atingir juntos esses fins”.

3. As Associações Privadas de Fiéis no atual CIC

Uma definição do que são as associações de fiéis nos é dada pelo cân. 298 § 1 5. Ele o faz em parte por exclusão, ao referir que se trata de associações “distintas dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica”; em parte designando os que delas podem ser membros, quais sejam clérigos ou leigos, quer sendo facultadas as associações compostas exclusivamente por clérigos ou exclusivamente por leigos, quer podendo haver clérigos e leigos conjuntamente em seus quadros; e, também, complementa a conceituação enumerando fins a que podem visar, enumeração essa que “é exemplificativa, não exclusiva” (HORTAL, 2008, p. 162).

Sobre a gama muito ampla de fins a que podem visar as associações privadas de fiéis, Fuentes (2002, p. 513) esclarece: “Qualquer fim próprio da condição de batizado pode ser pretendido pelos fiéis unidos em associação” (p. 513). Observa apenas que, em se tratando de associações privadas, “os fins que pretendem não os persigam em nome da Igreja”, o que, porém, não lhes diminui o caráter eclesial, ou restringe sua atuação ao âmbito temporal:

Isto não quer dizer que a missão destas associações seja menos eclesial, ou que estas associações sejam aquelas nas quais os fiéis se unem com fins civis, sociais, políticos ou culturais. As associações privadas de fiéis são associações na Igreja e para cumprir fins eclesiais, para cumprir aqueles fins que se assinalam no cân. 298, § 1 (cf. CD, 17 e AA, 19).6

Examinando o cân. 298, § 1, Ghirlanda (2007) destaca os elementos que considera fundamentais para se aferir a conveniência de aprovar-se e, enfim, discernir as características de uma associação de fiéis leigos. Embora o autor pretenda delimitar critérios para o reconhecimento de tais associações, eles também se prestam para uma melhor compreensão do que sejam as associações de fiéis em si mesmas. Ghirlanda (2007, p. 268-269) os vai recolher na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Christifideles Laici, resumindo-os como segue:

1) As associações devem ser instrumentos de santidade para seus membros. Isto verifica-se pela sua fidelidade para com o Senhor e pela docilidade ao Espírito; portanto, pelo uso de meios de santificação concordes com a doutrina, a disciplina e a tradição da Igreja.

2) Pelo respeito para com o magistério verifica-se a sua realidade de lugar de anúncio da fé e de formação integral.

3) Pelo testemunho de uma comunhão sólida e convicta com o Romano Pontífice e os bispos comprovam-se o amor sincero para com a Igreja e a vontade de inserção ativa na sua vida de oração e de ação apostólica para o seu incremento.

4) De acordo com a finalidade apostólica da Igreja deve ser manifesta a dinamicidade apostólica, e também missionária, ou então discreta na sociedade humana, na humildade e na capacidade de colaboração com todos os outros organismos ativos na Igreja tanto universal como particular.

5) Empenho no agir na sociedade humana a serviço da dignidade integral do homem, à luz da doutrina social da Igreja.

Além dos pontos destacados por Ghirlanda (2007), chama a atenção o último parágrafo da Christifideles Laici (n. 30), o qual ressalta a necessidade de se ter em vista os “frutos concretos que acompanharam a vida e as obras” da instituição.

Este critério nos faz lembrar o ensinamento evangélico de que “pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7, 20), e certamente está também nos fundamentos do que Feliciani (2003, p. 158) propõe como parâmetro para o reconhecimento eclesiástico:

[…] em toda esta matéria parece oportuno evitar o mais possível preocupações formalísticas e privilegiar o aspecto substancial. Em conseqüência, a autoridade deverá ter presente não só e não tanto os dados resultantes da documentação submetida ao seu exame, mas também e, sobretudo, a efetiva realidade da associação assim como a pode conhecer por experiência direta ou por testemunhas dignas de crédito.

CLÁ DIAS, João. Os carismas e as instituições jurídicas: A Graça e a Lei enquanto realidades harmônicas. Lumen Veritatis. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 11, abr-jun 2010. p. 23-28.

_____________

1 Essa dificuldade de se compreender o papel e a liberdade dos leigos na Igreja e o correspondente direito de atuarem de forma associada chega a ser enunciada por Corral y Urteaga como algo que a autoridade eclesiástica por vezes repeliu e, segundo esse autor, teria ela chegado a ver nisso um perigo de subversão ou um obstáculo ao exercício de seu próprio poder: “O fenômeno associativo sempre foi muito importante na Igreja. Mas assim como na base, tanto clerical como secular, tinha uma vitalidade muito forte, contudo a autoridade eclesiástica nem sempre apreciou no seu valor este aspecto da vida eclesial. Assim como a Igreja é uma comunidade, dentro desta comunidade, por afinidades espirituais ou finalidades similares, os fiéis e os clérigos procuravam a comunidade de vida e atuações. Mas a autoridade via nisso antes um perigo de subversão ou de impedimento da ação da autoridade na Igreja. Daí que houvesse tantas limitações para a constituição destas associações, que no Direito antigo não se podiam constituir sem aprovação do legítimo superior eclesiástico (cf. cân. 708 do Código de 17). Essa força associativa na Igreja foi aumentada. O Concílio Vaticano II, acolhendo o fenômeno eclesial e avaliando positivamente a sua ação na Igreja, deu lugar a uma orientação mais favorável a essas associações, que já antes na Igreja, sobretudo da parte dos leigos, tinham conseguido um reconhecimento, principalmente na Ação Católica e organizações equiparadas”. (CORRAL Salvador, Carlos; URTEAGA Embil, José Maria. Dicionário de Direito Canônico. São Paulo: Loyola, 1997. Trad. Jesús Hortal et al. p. 698).

2 Como já foi referido e se depreende dos câns. 204 e 207, por fiéis o CIC entende “os que incorporados pelo batismo foram constituídos como povo de Deus e, assim, feitos participantes, a seu modo, do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, são chamados a exercer, segundo a condição própria de cada um, a missão que Deus confiou para a Igreja cumprir no mundo” (cân. 204). Ou seja, todos os batizados. Ainda conforme o cân. 207, §1, leigos são todos os fiéis que não são clérigos. E segundo o §2 do mesmo cânon, tanto clérigos quanto leigos podem, “pela profissão dos conselhos evangélicos, mediante votos ou outros vínculos sagrados, reconhecidos e sancionados pela Igreja”, consagrar-se “a Deus e contribuir para a missão salvífica da Igreja”. São aqueles que o CIC regula ao tratar “Dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica”.

3 Que essas liberdades não são ilimitadas, deixam-no claro o § 3 do cân. 278 e o § 2 do 287, quanto aos clérigos seculares; e o cân. 223, §§ 1 e 2, entre outros, no que se refere a todos os fiéis. Extrapolaria os objetivos deste trabalho entrar em minúcias a respeito de tais limitações.

4 “Advirta-se, porém, que se trata [no cân. 278] dos clérigos seculares, pois os membros dos estados de vida consagrada, pela própria natureza das coisas, estão muito mais limitados no seu direito de associação” (Hortal, 2008, p. 153).

5 Cân. 298, §1. Na Igreja existem associações distintas dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica, nas quais os fiéis, clérigos ou leigos, ou conjuntamente clérigos e leigos, se empenham, mediante esforço comum, para fomentar uma vida mais perfeita, ou para promover o culto público ou a doutrina cristã, ou para outras obras de apostolado, isto é, iniciativas de evangelização, exercício de obras de piedade ou caridade, e animação da ordem temporal com espírito cristão.

6 Fuentes (2002, p. 514) prossegue tratando de uma delicada distinção entre as associações civis, que tendam a fins “que afetam mais ou menos diretamente à Igreja” (p. 514), e as associações eclesiais. Para não alongar demasiadamente o presente estudo e desviar o foco, que são propriamente as associações privadas de fiéis, deixamos de tratar desse interessante assunto aqui e recomendamos a quem nele deseje se aprofundar que consulte o próprio texto de Fuentes.

A promoção da cultura católica e a Consecratio Mundi

Mons. João Clá Dias, EPprocissao

O novo tipo de humanismo que nega a Deus e a religião,1 engendrado pelo secularismo atual, afeta uma boa parcela do mundo contemporâneo, bem como suas mais diversas atividades. Torna-se indispensável, por essa razão, que a influência da Igreja volte a permear o âmago da sociedade e da cultura. Eis a tarefa designada pelos Papas como a “Consecratio Mundi”, ou seja, influenciar as realidades temporais com o espírito cristão, uma verdadeira sacralização do mundo. São muito expressivas as palavras de Pio XII a esse respeito: “As relações entre a Igreja e o mundo exigem a intervenção dos apóstolos leigos”. Essa “é, no essencial, obra dos próprios leigos, de homens que estão intimamente entremeados à vida econômica e social, que participam do governo e das assembleias legislativas”. 2
Em numerosas ocasiões, o Servo de Deus João Paulo II destacou a importância da evangelização nos meios culturais. Através da Exortação Apostólica Christifidelis laici aquele saudoso Papa abordou de modo particular a sua urgência pastoral:

Perante o progresso de uma cultura que aparece divorciada não só da fé cristã mas até dos próprios valores humanos, bem como perante uma certa cultura científica e tecnológica incapaz de dar resposta à premente procura de verdade e de bem que arde no coração dos homens, a Igreja tem plena consciência da urgência pastoral de se dar à cultura uma atenção toda especial.

Por isso, a Igreja pede aos fiéis leigos que estejam presentes, em nome da coragem e da criatividade intelectual, nos lugares privilegiados da cultura, como são o mundo da escola e da universidade, os ambientes da investigação científica e técnica, os lugares da criação artística e da reflexão humanística. Tal presença tem como finalidade não só o reconhecimento e a eventual purificação dos elementos da cultura existente, criticamente avaliados, mas também a sua elevação, graças ao contributo das originais riquezas do Evangelho e da fé cristã (n. 44).

Com efeito, a “Consecratio Mundi” possui importância capital em ordem à salvação das almas e ao combate aos erros do secularismo. Uma evangelização eficaz não se pode limitar à sua mínima expressão, fazendo com que as pessoas peçam os Sacramentos e se arrependam de seus pecados à hora da morte, o que de si já seria uma conquista de inestimável valor.

Urge que os fiéis conformem suas existências às promessas do batismo. Mais que isso, é necessário que a vida, inclusive na sociedade temporal, seja uma preparação, um “noviciado” para a vida eterna.3 Para tanto, faz-se indispensável que a sociedade esteja impregnada do espírito cristão, de forma a facilitar a prática da virtude, pois, é esse o fim da vida em sociedade. 

A vontade de Deus com respeito ao mundo é que os homens, em boa harmonia, edifiquem a ordem temporal e a aperfeiçoem constantemente. Todas as realidades que constituem a ordem temporal — os bens da vida e da família, a cultura, os bens econômicos, as artes e profissões, as instituições políticas, as relações internacionais e outras semelhantes, bem como a sua evolução e progresso — não só são meios para o fim último do homem, mas possuem valor próprio, que lhes vem de Deus, quer consideradas em si mesmas, quer como partes da ordem temporal total: «E viu Deus todas as coisas que fizera, e eram todas muito boas» (Gn 1, 31). Esta bondade natural das coisas adquire uma dignidade especial pela sua relação com a pessoa humana, para cujo serviço foram criadas. Finalmente, aprouve a Deus reunir todas as coisas em Cristo, quer as naturais quer as sobrenaturais, «de modo que em todas Ele tenha o primado» (Col 1, 18) (AA, n.7).

in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 10, Jan-Mar 2010. p. 13-14.

_____________________________

1 “A Igreja ensina que a vida terrena deve ser comparada a um noviciado. O noviço deve adquirir os conhecimentos e as virtudes que o tornem apto para a vida religiosa. O homem deve adquirir na vida terrena os conhecimentos e as virtudes que o tornem apto para o Céu” (CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Ministerialidade da ordem temporal em relação à Igreja. Artigo não publicado, 1950 (Arquivo pessoal do Autor).

2 A este respeito, ver tanto a Gaudium et Spes n. 7, quanto a Fides et Ratio n. 46.

3 Discurso aos participantes do II Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos, Documentos pontifícios, 2 ed. no. 127. Petrópolis: Vozes, 1960. p. 18.

Os aspectos espirituais da sociedade temporal favorecem a contemplação

tibidaboMons. João S. Clá Dias, EP

Encontra-se generalizada a ideia de que a sociedade temporal existe apenas para satisfazer as necessidades materiais do homem. Ora, este é composto de alma e corpo, no qual o espírito ocupa a primazia.[1] Por isso, a sociedade temporal deve também atender aos anseios espirituais da alma humana, embora o aspecto sobrenatural pertença ao âmbito exclusivo da Igreja. O homem é, por natureza, um ser contemplativo, pois está destinado a ver a Deus face a face na eternidade. Portanto, já nesta vida ele deve exercitar essa capacidade, reconhecendo os reflexos de Deus na obra da Criação e, mais ainda, nos outros homens, que são a imagem mais perfeita do Criador no universo visível.

O homem poderá desenvolver a capacidade contemplativa, com maior grau de perfeição, no convívio humano e na consideração dos bens mais elevados que são o resultado da vida social, quer sejam os ambientes, a arte, a cultura e a civilização. Estes são elementos caracteristicamente espirituais produzidos pela sociedade temporal, e que grande influência têm sobre a alma humana. Animando com o espírito cristão as realidades temporais, objeto da contemplação mais imediata do homem, a alma humana terá muito mais facilidade de se elevar até as verdades da Fé. Dessa forma, a intimidade com Deus não se restringe apenas a determinados momentos reservados às obrigações religiosas, mas se estende a todo o operar humano, tal como a respiração não se interrompe em nenhum momento da existência. Ela é natural, sem esforço, contínua e aprazível.

A doutrina do Concílio Vaticano II, expressa no Decreto Apostolicam Actuositatem, é igualmente clara ao ressaltar a importância da esfera temporal no plano salvífico de Deus:

 

A obra redentora de Cristo, que por natureza visa salvar os homens, compreende também a restauração de toda a ordem temporal. Daí que a missão da Igreja consiste não só em levar aos homens a mensagem e a graça de Cristo, mas também em penetrar e atuar com o espírito do Evangelho as realidades temporais. Por este motivo, os leigos, realizando esta missão da Igreja, exercem o seu apostolado tanto na Igreja como no mundo, tanto na ordem espiritual como na temporal. Estas ordens, embora distintas, estão de tal modo unidas no único desígnio divino que o próprio Deus pretende reintegrar, em Cristo, o universo inteiro, numa nova criatura, dum modo incoativo na terra, plenamente no último dia. O leigo, que é simultaneamente fiel e cidadão, deve sempre guiar-se, em ambas as ordens, por uma única consciência, a cristã. (AA, n. 5)

É importante salientar aqui como o Concílio Vaticano II, ainda nos dias em que o assunto não havia adquirido o devido destaque nos meios eclesiais, deu novo impulso ao papel dos leigos na Igreja. Nele se anteciparam os imensos desafios que o terceiro milênio reservava. Com efeito, um deles é a “Consecratio Mundi”. Quase se poderia dizer, caso a Igreja não fosse imortal, ser essa uma questão de vida ou morte. Se no século XXI a Igreja não conseguisse influenciar as realidades temporais com o espírito cristão, os erros e a mentalidade secularista desta época poderiam, em certa medida, dessacralizá-la.

Diante dessa perspectiva, compete aos leigos zelar para que os ambientes, a arte, os costumes, as leis e as instituições, de alto a baixo na escala social, estejam todos impregnados do espírito cristão de forma que a obra redentora de Cristo produza também seus efeitos na esfera temporal. Deverá ela refletir, a seu modo, a luz e o esplendor daquele que subiu aos céus para “levar tudo à plenitude” (Ef 4, 10).

 


[1] Cf. ARISTÓTELES. De Anima. L. II, lição IV. In: SÃO TOMÁS DE AQUINO. Comentario al libro del alma de Aristóteles. Buenos Aires: Fundación Arché, 1979, p. 170.

O ensinamento da Suma Teológica nos Seminários

Corentin Le Grand[1] [2]

III. Teologia especulativa e teologia positiva[3]

Tomas AquinoTodo o ensinamento teológico deve recorrer à autoridade e à razão, cabendo-lhe um papel preponderante em nossos Seminários. É necessário oferecer aos alunos o entendimento das expressões e das fórmulas dogmáticas enquanto noções que os preenchem, mostrando-lhes que não há nas verdades propostas contradição evidente, mas que se harmonizam entre si, além de interrogar os princípios para chegar às conclusões que eles encerram, e deduzir as verdades umas a partir das outras: eis o objeto dos primeiros ensinamentos teológico. Ora, São Tomás tratou de tudo isso melhor que ninguém.

Encontramos o Doutor Angélico nos decretos dos Padres reunidos nos Concílios de Lyon, Viena, Florença, Trento, e do Vaticano, de tal forma que aos textos conciliares foram cedidos os mesmos termos da Suma Teológica. Quem, mais que São Tomás, tirou conclusões das verdades reveladas? Nós lhe devemos o maior número de corolários que constituem o ensinamento comum dos catecismos, quando tratam da Encarnação e da Eucaristia. Nenhum Doutor sistematizou como ele: a Teologia não visa, com efeito, atingir seu objeto, senão sub ratione Dei;[4] donde a melhor síntese será aquela que parte da noção verdadeira e suprema de Deus, e não a que considera todas as coisas relacionadas a qualquer problema específico, como por exemplo, a liberdade humana. Uma sistematização perfeita deverá remontar a Deus considerado em Si mesmo, ou a um mistério do Ser supremo, e não a Deus enquanto bem e fim último do homem, porque a noção de ser é anterior à de bem. E a ideia que origina a Suma é, precisamente, Deus enquanto tal.[5]

Porém a questão quid sit[6] supõe a questão an sit,[7] e esta se resolve, em Teologia, por via de autoridade. Isto quer dizer que o professor dará importância à Teologia positiva e, ao ensinar São Tomás, explorará o magnífico tesouro que ele oferece a esse ponto de vista. A Suma, conforme escreve Freppel, é como um reservatório onde o fluxo da tradição se despejou por um instante antes de retomar seu curso pelos tempos. Sagrada Escritura, pregação apostólica, apologistas cristãos, Padres da Igreja, concílios, teólogos; São Tomás resume tudo, e que resumo! [8]

Ele é, entre os autores da Idade Média, aquele que melhor aplicou os resultados da Teologia positiva à Teologia escolástica.[9]

Como não poderia deixar de ser, a Suma nasce da Bíblia. Desta forma, menciona todos os livros do Novo Testamento, mas somente dois da Antiga Lei, e mesmo assim curtos e pouco assinaláveis: Abdias e Sofonias. Em contrapartida, partes notáveis poderiam ser reconstruídas graças às citações, e algumas quase integralmente, como no caso de certos capítulos do Gênesis.

O mestre sabe bem que o sentido literal é o verdadeiro, e normalmente o único eficaz. Muitas vezes ele recorre à Tradição para a explicação de um texto, quando o sentido não aparece claro, e quem contestará a legitimidade do procedimento? Por vezes, é verdade, a passagem escriturística não comprova nem representa senão uma semelhança de palavras com a tese a ser demonstrada, ou é mesmo — e isto é mais grave, quando se trata de textos dogmáticos — mal interpretada. Mas grande número de textos que se adaptam de modo imperfeito à verdade teológica é extraído do Sed contra. Por outro lado, não exijamos dos teólogos da Idade Média a precisão da crítica moderna: a exemplo dos Padres, uma longa interpretação os satisfaz muitas vezes. E, ademais, poderemos reprovar o Santo Doutor por considerar [apenas] a Vulgata? Isso não o impede de notar, em um ou outro lugar e de vez em quando, certas particularidades hebraicas, de apelar para outras versões, de precisar ou discutir algumas expressões gregas. Nossos próprios manuais de teologia ainda têm alguns progressos a fazer quanto a esse ponto. Pertencerá, aliás, ao professor, suprir as lacunas, corrigir os erros, completar remetendo à Suma — cuja riqueza escriturística conhecemos —, de rejuvenescer a explicação de São Tomás pela crítica textual, por uma interpretação conforme as leis da hermenêutica e os dados da filologia.

Entretanto, a autoridade que fundamenta a doutrina sagrada é representada também pela Tradição. São Tomás recorre a ela, e com tanta frequência que as citações transformam a Suma num repertório sistemático de Patrologia. Conforme Leão XIII:

 Os ensinamentos dos Padres jaziam por todos os lados como membros esparsos de um grande corpo. São Tomás os reuniu, fortificou uns com outros, classificou numa ordem admirável, e, por fim, os desenvolveu tão bem que sua obra permanece para a Igreja católica, verdadeiramente única, tanto em sua força tutelaria como em beleza.[10]

Os dois primeiros séculos da literatura eclesiástica são raros na Suma, sem dúvida porque foram escritos em grego, e esta produção era menos conhecida na Idade Média. Numerosas obras da época, perdidas no tempo, viram a luz do dia apenas mais tarde. Dos Padres apostólicos, apenas Clemente de Roma é nomeado, e o mesmo se diga quanto aos apócrifos. Nada consta dos Apologistas. São relativamente poucas as citações de obras posteriores ao século VIII, talvez porque três ou quatro séculos parecessem a São Tomás uma antiguidade insuficiente: A seus olhos, os nomes mais consideráveis, são: Rabano Mauro, Anselmo, Bernardo e, mais que todos, Pedro Lombardo, o Mestre das Sentenças, que ele frequentemente utiliza sem o citar, sobretudo para a documentação patrística. Não o utilizaria da mesma maneira Alexandre de Hales?

Que abundância, em relação ao período intermediário! Ele interroga o Oriente e o Ocidente, os Padres e os Doutores; os símbolos e as definições dos concílios. Inicialmente Orígenes, Tertuliano e Cipriano; depois, após muito tempo, o pseudo-Dionísio e João Damasceno, Boécio, Gregório Magno e Isidoro de Sevilha. E, entre uns e outros, os ilustres representantes do mais brilhante período literário da História da Igreja: Atanásio, o primeiro dos polemistas, os quatro Doutores da Igreja grega e os quatro da latina, entre os quais Agostinho, que ensinou a toda a Idade Média. O bispo de Hipona é para o Doutor Angélico a grande autoridade teológica, tal como Aristóteles representa a da razão.

Ele chega ao ponto de usar apócrifos. Mas o inconveniente não é grave se a doutrina spuria e das supposititia[11] representa de alguma forma a doutrina tradicional da Igreja. Ele fundamenta o Dogma apenas na grande e larga Tradição, e que discernimento na escolha de suas autoridades! Os testemunhos invocados numa questão são os dos especialistas; assim, a propósito da Graça, Agostinho intervém cinquenta e quatro vezes, contra cinco de Gregório, quatro de Dionísio, três de João Damasceno, duas de Ambrósio e Jerônimo, uma de Rabano Mauro e de Anselmo. Para mais, não será a admirável habilidade e a consciência do Doutor Angélico na utilização dos textos? De uma leitura, ele retém a frase ou a fórmula que exprime de maneira concentrada a substância do livro.

Esta imensa erudição será durante longo tempo uma das grandes fontes da patrística, e nós veremos os grandes teólogos, como Durand,[12] adotar e transcrever as soluções e os textos propostos por São Tomás.

Trata-se, portanto, de saber aproveitar esse tesouro.

Foi bem observado que “a interpretação não deve estar à frente da informação, mas, ao contrário, ela deve segui-la da mesma forma como o trabalho crítico não pode prejulgar a obra dogmática”[13] e que “a Teologia positiva torna-se, assim, a base necessária da Teologia especulativa”.[14] Com efeito, dar a conhecer é um fato contingente e deve se fundamentar por meio de provas. Daí não se deduz que, apenas com os documentos, possamos reconstituir a Teologia na sua íntegra. Gardeil o demonstrou excelentemente em seus estudos sobre “A Reforma da Teologia Católica”,[15] ao propor o método dito regressivo. A tradição é o gênero de informação que esteve à frente das primeiras elaborações teológicas. Com o tempo, este método não se modificará essencialmente, e ninguém teve a ideia de estabelecer a Teologia sobre o terreno da informação documentária e crítica.

Por isso, não se trata de fundamentar a Teologia sobre a informação documentária e crítica, pois o documento não é mais que um vestígio inadequado, sempre posterior, da tradição viva; ele não é toda a tradição, nem consequentemente toda a Teologia: esta é mais abarcativa que aquela.

Ele[16] não se contentará mais com uma aquisição preguiçosa, nem em aprender São Tomás de cor ou querer resolver tudo através das fórmulas da Suma.

A verdade está no meio: nem reconstrução ao estilo de novidade, nem um domínio que dispense trabalhar, mas laboriosa revisão. Ora, a revisão supõe que se parta de algo já conhecido.

Colocar-se-á então de mãos dadas a Teologia positiva e a Teologia escolástica insistindo: o procedimento será aquele do fides quaerens intellectum.[17]

É praticamente certo que essas condições se realizarão no estudo da Suma, propondo no início do tratado, da questão, do artigo, a doutrina a ser estabelecida; determinando seu valor teológico, explicando filosoficamente, e então, somente nessa altura, lançando o olhar sobre os textos citados por São Tomás. Colocaremos estes testemunhos em seu contexto, faremos a crítica textual e literária, esclarecê-los-emos por todos os meios possíveis e aproximá-los-emos de outras fórmulas do mesmo autor ou de autores diferentes, completando-os.

Por vezes, será suficiente estudar desta forma um só Padre, seja porque ele fala em nome de todos, como Agostinho na querela dos Rebatizados, seja porque representa a primeira autoridade para a questão debatida, como o mesmo Agostinho no tratado da Graça. Outras vezes, os textos propostos por São Tomás servirão como pedras angulares, às quais se juntarão outros testemunhos mais antigos ou recentes. Sempre se evitará justapor, sem explicação ou conexão, os textos tomados ao acaso, as fastidiosas lidainhas que não oferecem outro interesse que o de sobrecarregar inutilmente a memória do aluno… a menos, e isso é mais simples, que ele não fique sem os ler.

Entretanto, São Tomás não é somente rico pelo passado; ele é também, de alguma forma, um “grande do porvir”. Por que não comparar sua doutrina à dos teólogos posteriores, aos Cânones conciliares e às Atas eclesiásticas, que nele se inspiraram frequentemente, ou tomaram emprestada sua letra? Escrevia Pio X:

 A Suma comentada torna mais fácil a compreensão e a ilustração dos decretos solenes, da Igreja enquanto docente e dos atos que daí decorrem. Pois, após a bem-aventurada partida do Santo Doutor, nenhum Concílio houve na Igreja no qual não ele não se fizesse presente com as riquezas de sua doutrina.[18]

O professor tomista deverá, então, ao ensinar a Suma, mostrar como essa obra é precisamente o “resumo” da doutrina tradicional da Igreja, tomada sobre o claro pensamento dos Padres e exposta com a razão teológica, e como as decisões doutrinárias posteriores vivem das conclusões teológicas formuladas pelo Doutor Angélico. Assim, nós teremos uma pequena síntese do pensamento da Igreja, na qual a Suma Teológica terá um papel fundamental. É o caminho que unirá as Teologias positiva e escolástica numa só ciência, como na realidade o são, pois não parece possível separá-las. A doutrina da Igreja é uma só, sempre viva e vivificante.

Tradução do Prof. José Manuel Victorino de Andrade (IFAT)

 


[1] Tradução a partir do original francês. LE GRAND, Corentin. l’Enseignement de la Somme Théologique dans les Séminaires. Paris : Pierre Téqui, 1922. p. 35-43. (Première question : III Théologie spéculative et théologie positive).

[2] Provincial de Saint-Denis (Convento de Kermabeuzen-Quimper), Doutor em Teologia e Filosofia pela Academia de São Tomás e professor de Teologia Dogmática no Seminário de Quimper.

[3] Cf. O artigo de Coconnier, Positive ou spéculative, na Revue Thomiste, Janeiro 1903, p. 629-653, assim como os artigos de Legendre, sobre a Suma Teológica, na Revue des Facultés catholiques.

[4] [Nota do tradutor] “Omnia autem pertractantur in sacra doctrina sub ratione Dei: vel quia sunt ipse Deus; vel quia habent ordinem ad Deum, ut ad principium et finem” (S. Th. I, q. 1, a.7.). Na doutrina sagrada, tudo é tratado com referência a Deus: ou porque se trata do próprio Deus, ou porque está ordenado para Deus, como princípio e fim (tradução minha).

[5] R. P. GARRIGOU-LAGRANGE, De revelatione, I, p. 31.

[6] Quid sit Deus? O que é Deus? (tradução minha).

[7] An sit Deus? Acaso existe Deus? (tradução minha).

[8] Oeuvres, tome III, 3éme. Édition, p. 350.

[9] Cf. Os artigos de T. R. P. GARDEIL, La documentation de saint Thomas. Resposta a M. Turmel, na Revue Thomiste, Mai-Décembre 1904.

[10] Cf. Aeterni Patris. Na Encíclica encontra-se o seguinte texto: “Tomás coligiu suas doutrinas, como membros dispersos de um mesmo corpo; reuniu-as, classificou-as com admirável ordem, e de tal modo as enriqueceu, que tem sido considerado, com muita razão, como o próprio defensor e honra da Igreja” (n. 21).

[11] Doutrina “bastarda” ou ilegítima e das suposições ou conjeturas (tradução nossa).

[12] [Nota do tradutor] Guillaume Durand de Saint-Pourçain, dominicano francês, filósofo escolástico e teólogo, consultor de Clemente V e João XXII no Palácio Papal durante o exílio de Avignon e mais tarde bispo das Dioceses de Puy e Meaux. Conhecido como Doctor modernus, inaugurou o terceiro período da escolástica. Adotou muitas vezes o pensamento de São Tomás, embora também seja conhecido pelas críticas que lhe teceu. Os comentários às Sentenças de Pedro Lombardo constituem sua principal obra.

[13] Mignot, Lettres sur les études ecclésiastiques, p. 304.

[14] Idem.

[15] Revue Thomiste, Mars-Avril 1903, Idée d’une méthode régressive.

[16] [Nota do tradutor] O aluno.

[17] A Fé procurando o intelecto / o entendimento (tradução minha).

[18] Motu proprio Doctoris Angelici.

Um estudo jurídico sobre os atuais responsáveis pela formação doutrinal dos candidatos ao sacerdócio

Diác. Carlos Adriano Santos dos Reis, EPord-diaconal

1. Pressupostos doutrinários

Considerando que este trabalho tem por fim principal desenvolver uma exposição canônica a respeito dos principais responsáveis pela formação doutrinal dos candidatos ao sacerdócio, devemos iniciá-lo com alguns conceitos sobre o sacerdócio em si, para então entendermos os motivos pelos quais se deve deitar uma especial atenção nos que recebem a incumbência de formar doutrinariamente os seminaristas.

Por isso, estudaremos nesta breve introdução o conceito do Sacramento da Ordem, buscando demonstrar que a própria noção do que é o sacerdócio católico justifica a exigência de uma sólida formação doutrinária para os ministros sagrados, e que, portanto, a necessidade desta formação decorre do próprio ministério em si.

Um Sacramento a serviço da comunhão e da missão

A Igreja Católica Apostólica Romana tem por missão nesta terra, anunciar e instaurar o Reino de Deus entre todos os povos. Essa missão se estende a cada um dos fiéis cristãos, que possuem, segundo a condição própria de cada um, a grave responsabilidade de exercer este mandato que Deus confiou para a Igreja cumprir no mundo. Na definição que o atual Código de Direito Canônico dá a respeito dos fiéis, encontramos esta prescrição:

Cân. 204 § 1. Fiéis são os que, incorporados a Cristo pelo batismo, foram constituídos como povo de Deus e assim, feitos participantes, a seu modo, do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, são chamados a exercer, segundo a condição própria de cada um, a missão que Deus confiou para a Igreja cumprir no mundo. 

O cânon fala da condição própria em que cada um deve cumprir a missão da Igreja. Arrieta aprofunda essa questão (2001, p. 121):

Ainda que todos os fiéis possuam o mesmo estatuto jurídico proveniente do batismo, “nem todos vão pelo mesmo caminho” (LG, 32). Existem entre eles modalidades diversas de vida, que evidenciam uma variedade enriquecedora da Igreja.

Essa condição, por meio da qual o fiel batizado irá cumprir com seu chamado na Igreja, pode ser modificada e definida de maneira especial por meio de dois Sacramentos — Ordem e Matrimônio — apresentados pelo Catecismo da Igreja Católica como Sacramentos a serviço da comunhão e da missão. Eles estão ordenados à salvação de outrem; se também contribuem para a salvação pessoal, isso acontece por meio do serviço ao próximo.

Esses dois Sacramentos conferem uma graça especial para um encargo particular na Igreja, que se cumpre por meio de um serviço para a edificação do povo de Deus, além de contribuírem em particular para a comunhão eclesial e para a salvação das almas (cf. CEC, 1534 ). E continua:

Nestes Sacramentos, aqueles que já foram consagrados pelo Batismo e pela Confirmação para o sacerdócio comum de todos os fiéis, podem receber consagrações particulares. Os que recebem o Sacramento da Ordem são consagrados para ser, em nome de Cristo, “com a palavra e a graça de Deus, os pastores da Igreja” (CEC, 1535).

Ocorre, entretanto, que o Sacramento da Ordem, mais diretamente relacionado com o tema deste artigo, possui algumas particularidades que lhe são muito próprias, conforme se verifica na sintética definição oferecida pelo recente publicado Compêndio do Catecismo:

O que é o Sacramento da Ordem?

É o sacramento graças ao qual a missão confiada por Cristo aos seus Apóstolos continua a ser exercida na Igreja, até o final dos tempos. (CEC, COMPÊNDIO, 322)

O atual Código de Direito Canônico também conceitua o Sacramento da Ordem em seu cânon 1008, sublinhando de maneira especial a missão que cabe ao ministro sagrado:

Cân. 1008. Por divina instituição, graças ao Sacramento da Ordem, alguns entre os fiéis, pelo caráter indelével com que são assinalados, são constituídos ministros sagrados, isto é, são consagrados e delegados, a fim de que, personificando a Cristo Cabeça, cada qual no seu respectivo grau, apascentem o Povo de Deus, desempenhando o múnus de ensinar, santificar e governar.

A Constituição Dogmática Lumen Gentium está entre as principais fontes dessas definições que acabamos de estudar. Como era de se imaginar, esse documento também ressalta a missão do sacerdote: “Com efeito, o sacerdote ministerial, pelo seu poder sagrado, forma e conduz o povo sacerdotal, realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo e o oferece a Deus em nome de todo o povo” (LG 10).

Tornar-se pastor da Igreja, exercer a missão confiada por Cristo aos Seus Apóstolos, fazer as vezes do próprio Cristo oferecendo o sacrifício eucarístico em nome do Povo de Deus; todos esses são encargos conferidos ao sacerdote a partir de sua ordenação. Sendo assim tão sério o ministério sacerdotal, concluímos imediatamente como deve ser também a preparação daqueles que se destinam ao Sacramento da Ordem.

Segundo as exposições do Concílio Vaticano II, o ministério da Palavra é um elemento essencial no ministério do presbítero:

O Povo de Deus é reunido antes de mais pela palavra de Deus vivo, que é justíssimo esperar receber da boca dos sacerdotes. Com efeito, como ninguém se pode salvar se antes não tiver acreditado, os presbíteros, como cooperadores dos Bispos, têm, como primeiro dever, anunciar a todos o Evangelho de Deus, para que, realizando o mandato do Senhor: “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a todas as criaturas” (Mc 16, 15), constituam e aumentem o Povo de Deus. Com efeito, é pela palavra da salvação que a fé é suscitada no coração dos infiéis e alimentada no coração dos fiéis; e é mercê da fé que tem início e se desenvolve a assembleia dos crentes, segundo aquele dito do Apóstolo: “A fé vem pelo ouvido, o ouvido, porém, pela palavra de Cristo” (Rm 10, 17). Por isso, os presbíteros são devedores de todos, para comunicarem a todos a verdade do Evangelho, de que gozam no Senhor (PO, 4).

Como, entretanto, falar daquilo que não se conhece? O sacerdote deve ser um conhecedor exímio das verdades da Fé, a fim de que, pela palavra e pelo exemplo, comunique a doutrina aos fiéis e aos infiéis. Deduz-se então o quanto o sacerdote deve ser bem formado doutrinariamente em função do ministério que ele exerce, e o quanto se deve dar importância àqueles a quem cabe a responsabilidade de lhes transmitir a doutrina. Conforme ressalta o prefácio do atual Código de Direito Canônico (2008, p. 23), “a ignorância, mãe de todos os erros, deve ser evitada, principalmente nos sacerdotes de Deus”.

2. Formação intelectual – Integligência da fé

O estudo dos cânones que delimitam a formação doutrinal dos candidatos ao sacerdócio não tem sentido se não for guiado pela clave de leitura que encontramos na Exortação Apostólica Pós-sinodal Pastores dabo vobis. Como veremos adiante, o documento incita a que os formadores dos seminaristas não apresentem os estudos que os preparam para o sacerdócio com caráter meramente científico. Por isso, não podemos fazer uma análise jurídica sobre os responsáveis pela formação seminarística, sem antes compreender o que a Igreja entende por essa formação doutrinal.

Conforme o Concílio Vaticano II,

A razão mais sublime da dignidade do homem consiste na sua vocação à união com Deus. É desde o começo da sua existência que o homem é convidado a dialogar com Deus: pois, se existe, é só porque, criado por Deus por amor, é por Ele constantemente conservado; nem pode viver plenamente segundo a verdade, se não reconhecer livremente esse amor e se entregar ao seu Criador (GS 19, I).

Com base nesta explicitação, o Catecismo da Igreja Católica nos ensina que o homem tem em si um desejo de Deus estando, por isso, sempre em busca dAquele para o qual foi criado (cf. CEC 27).

A resposta adequada a esse constante chamado de Deus, por meio do desejo de Absoluto posto por Ele em cada homem, é a Fé — uma submissão completa da inteligência e da vontade do homem à vontade divina (cf. CEC 142 e 143).

A formação intelectual dos candidatos ao sacerdócio deve prepará-los, antes de tudo, para esta submissão, conduzindo-os, conforme nos ensina a já referida Exortação Apostólica Pós-sinodal, a adquirir uma sabedoria que se abre e se orienta para o conhecimento e a adesão a Deus, motivo pelo qual essa formação deve estar fortemente atrelada à formação humana e espiritual:

A formação intelectual, embora possua a sua especificidade, liga-se profundamente com a formação humana e espiritual, a ponto de constituir uma sua expressão necessária: configura-se efetivamente como uma exigência irreprimível da inteligência pela qual o homem “participa da luz da inteligência de Deus” e procura adquirir uma sabedoria que, por sua vez, se abre e orienta para o conhecimento e a adesão a Deus (n. 51).

Gianfranco Ghirlanda (2007, p. 149), ao iniciar sua exposição sobre a formação doutrinal dos ministros sagrados, afirma, com base no mesmo trecho do documento supracitado, que “essa formação deve ser colocada em estreita relação com a vida de fé e a vida espiritual dos alunos, enquanto a própria fé, sustentada por uma sã doutrina, é alimentada por esta”.

Ademais, existem dois sérios motivos apontados pelo mesmo documento, que justificam o profundo conhecimento que devem possuir os seminaristas a respeito dos mistérios divinos: a própria natureza do ministério ordenado, já apontada anteriormente, e o desafio da “nova evangelização”:

Se já cada cristão — escrevem os Padres sinodais — deve estar pronto a defender a fé e a dar a razão da esperança que vive em nós (cf. 1 Pd 3, 15), com muito maior razão os candidatos ao sacerdócio e os presbíteros devem manifestar um diligente cuidado pelo valor da formação intelectual na educação e na atividade pastoral, dado que, para a salvação dos irmãos e irmãs, devem procurar um conhecimento cada vez mais profundo dos mistérios divinos. Além disso, a situação atual, profundamente marcada pela indiferença religiosa e ao mesmo tempo por uma difusa desconfiança relativamente às reais capacidades da razão para atingir a verdade objetiva e universal, e pelos problemas e questões inéditos provocados pelas descobertas científicas e tecnológicas, exige prementemente um nível excelente de formação intelectual, que torne os sacerdotes capazes de anunciar, exatamente num tal contexto, o imutável Evangelho de Cristo, e torná-lo digno de credibilidade diante das legítimas exigências da razão humana (PDV 51).

Não é sem razão que os estudos teológicos preenchem uma grande parte da vida de quem se prepara para o sacerdócio. A Exortação Apostólica Pós-sinodal conclui demonstrando que a formação intelectual não constitui de modo nenhum um componente exterior e secundário do crescimento humano, cristão, espiritual e vocacional dos seminaristas: “[…] na realidade, por meio do estudo, particularmente da teologia, o futuro sacerdote adere à Palavra de Deus, cresce na sua vida espiritual e dispõe-se a desempenhar o seu ministério pastoral” (PDV 51).

Por isso, como já advertimos anteriormente, nos estudos que precedem a ordenação sacerdotal deve-se ter o cuidado de não proporcionar para candidatos ao sacerdócio uma consciência equivocada a respeito de sua formação doutrinal. Eles não podem estudar acreditando que estão se formando em meros cientistas da fé:[1]

Para que possa ser pastoralmente eficaz, a formação intelectual deve ser integrada num caminho espiritual marcado pela experiência pessoal de Deus, de modo a poder superar uma pura ciência conceptual e chegar àquela inteligência do coração que sabe “ver” primeiro o mistério de Deus e depois é capaz de comunicá-lo aos irmãos (PDV 51). 

3. Documentos basilares para o estudo da formação dos seminaristas

Para se estabelecer um estudo a respeito da formação seminarística nos dias de hoje e sobre os diversos elementos que a compõem, é preciso delimitar onde se encontram as principais diretrizes que tenham servido de fonte para a elaboração da atual legislação do Código, ou para a interpretação da mesma.

Primeiramente, deve-se atentar para o decreto Optatam Totius sobre a formação sacerdotal, do Concílio Vaticano II:

[…] o Concílio Vaticano II, que teve como objetivo último a renovação de toda a Igreja, advertiu também a estreita relação entre essa desejada renovação e o ministério dos sacerdotes. Fruto deste convencimento dos Padres conciliares é o decreto Optatam Totius, em que se proclama a transcendental importância da formação sacerdotal e se expõem os princípios fundamentais que devem inspirá-la, conservando e confirmando o já provado pelos séculos de experiência, e inovando ao mesmo tempo com o que as novas circunstâncias podem exigir (RINCÓN-PEREZ, 1991, p. 178 — tradução minha).

Como se poderá observar, o documento não descarta a experiência da Igreja na formação dos sacerdotes, muito pelo contrário, valoriza-a, mas exorta a que, nas leis eclesiásticas dirigidas para a formação sacerdotal, sejam introduzidas inovações que correspondam à evolução dos tempos.

O sagrado Concílio reconhece que a desejada renovação de toda a Igreja depende, em grande parte, do ministério sacerdotal, animado do espírito de Cristo; proclama, por isso, a gravíssima importância da formação dos sacerdotes e declara alguns dos seus princípios fundamentais, pelos quais sejam confirmadas as leis já aprovadas pela experiência dos séculos e se introduzam nelas as inovações que correspondam às suas constituições e decretos e à evolução dos tempos. Esta formação sacerdotal, por causa da unidade do mesmo sacerdócio, é necessária aos dois cleros e de qualquer rito. Portanto, estas prescrições, que se referem diretamente ao clero diocesano, devem ser acomodadas na devida proporção a todos os sacerdotes (OT, proêmio).

O decreto conciliar trata sobre diversos temas atinentes à formação sacerdotal: desde a promoção das vocações, organização dos seminários maiores, formação espiritual e ainda outros assuntos de exclusiva relevância.

Além desse documento, o presente estudo deve ter como base a Ratio Fundamentalis Institutiones Sacerdotalis, e a Exortação Apostólica Pastores dabo vobis:

O Concílio Vaticano II dedicou um decreto (Optatam Totius) à formação para o sacerdócio. A disciplina do CIC responde às suas orientações, que recolhem uma tradição multissecular, com as adaptações necessárias às circunstâncias atuais. Ademais, existe para a Igreja universal, um plano de formação (Ratio Fundamentalis Institutiones Sacerdotalis), cujas linhas básicas devem ser seguidas pelas Conferências Episcopais e pelos regulamentos dos seminários (cf. cc. 242-243). Em 25.III.1992, João Paulo II publicou a Exortação Apostólica Pastores dabo vobis, que trata da formação dos sacerdotes na situação atual (CENALMOR E MIRAS, 2004, p. 178).

A Ratio Fundamentalis Institutiones Sacerdotalis, que consiste em normas fundamentais para a formação sacerdotal, foi elaborada pela Congregação para a Educação Católica, e publicada primeiramente em 6 de janeiro de 1970, deixando de vigorar com a promulgação do Código de Direito Canônico de 1983.

Adaptando-se à necessidade de se criar uma nova Ratio, a Congregação para a Educação Católica publicou novas diretrizes em 10 de março de 1985, acrescentando, na verdade, muito poucas mudanças em relação ao documento anterior (cf. Enchiridium, p. 326).

Todos esses documentos têm uma particular influência na legislação atual em relação aos responsáveis pela formação dos seminaristas. Entretanto, caberá estudar as diversas orientações presentes em cada um deles na medida em que forem sendo vistos os diversos cânones relacionados com o tema deste artigo e suas fontes.

4. A liberdade religiosa e o dever/direito da Igreja quanto à formação dos que se destinam aos ministérios sagrados

“Os homens de hoje tornam-se cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana e, cada vez em maior número, reivindicam a capacidade de agir segundo a própria convicção e com liberdade responsável, não forçados por coação, mas levados pela consciência do dever” (DIGNITATIS HUMANAE, 1).

Considerando a consciência do homem hodierno a respeito de sua dignidade, o Concílio Vaticano II promulgou um documento a propósito da liberdade religiosa. A defesa deste princípio confere à Igreja, conforme observaremos mais adiante, alguns direitos e mesmo deveres:

Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites. (DH 2).

Esse princípio, segundo explicita o mesmo documento, tem consequências no próprio campo civil: “Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa na ordem jurídica da sociedade deve ser de tal modo reconhecido que se torne um direito civil (DH 2).”

Entre as implicações que a observação do princípio da liberdade religiosa gera no campo civil, está o direito de formação dos ministros religiosos, como ressalta a Dignitates Humanae, 4:

Também compete às comunidades religiosas o direito de não serem impedidas por meios legais ou pela ação administrativa do poder civil, de escolher, formar, nomear e transferir os próprios ministros, de comunicar com as autoridades e comunidades religiosas de outras partes da terra, de construir edifícios religiosos e de adquirir e usar os bens convenientes.

A competência afirmada no trecho dessa declaração se desdobra em um dever/direito afirmado pela própria Igreja, presente no cânon 232 do atual Código, de formar de maneira exclusiva os seus próprios ministros: “É dever e direito próprio e exclusivo da Igreja, formar os que se destinam aos ministérios sagrados”.

Segundo Ghirlanda (2007, p. 135), a “Igreja como tal é o sujeito comunitário responsável pela formação de seus ministros”.

Conforme explica Davide Cito (2002, p. 214, tradução minha), este cânon é semelhante ao cânon 1352 do Código de 1917. Entretanto, o Código anterior:

[…] se limitava a proclamar o direito da Igreja para proteger sua independência e sua liberdade frente às eventuais ingerências ilegítimas do poder secular.

[…] o cânon [232 do Código de 1983] salienta em primeiro lugar o dever que tem a comunidade eclesial de prover a formação de seus ministros, enquanto que o direito se desprende como lógica consequência para poder cumprir com esta obrigação.

Ademais, ressalta Hortal (2008, p. 232):

As normas relativas à formação dos candidatos ao ministério sagrado (e consequentemente ao estado clerical) encontravam-se, no antigo Código, sob a rubrica do Magistério Eclesiástico. Isso lhes dava um saber quase exclusivamente acadêmico. Agora, foram colocadas aqui [Capítulo I – Da Formação dos Clérigos], precisamente para sublinhar os múltiplos aspectos da formação: psicológica, afetiva, acadêmica, espiritual, etc.

Tal normativa implica alguns efeitos práticos para cada autoridade eclesiástica, que estudaremos com detalhes, mas que já podem ser vistas de modo sintético na exposição de Ghirlanda (2007, p. 131):

O c. 232 afirma que a Igreja tem o dever/direito próprio e exclusivo de formar aqueles que são destinados ao ministério sagrado. O cânon quer excluir todo tipo de ingerência por parte da autoridade civil. A autoridade competente é antes de tudo a Santa Sé para a disciplina comum em toda a Igreja universal; depois, as Conferências dos bispos (c. 242) depois, cada bispo diocesano para os clérigos diocesanos; ordinário militar para os clérigos que são incardinados no ordinariato, para os membros dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica, os moderadores competem segundo as constituições de cada instituto ou sociedade; por fim, para os membros de uma prelazia pessoal, o prelado. Quanto é dito para aqueles que se preparam para o ministério sagrado a ser exercido entre o clero secular, vale também para os membros dos institutos religiosos, tendo em conta o plano dos estudos de cada instituto (c. 659, § 3).

5. A responsabilidade das conferências episcopais: Estabelecimento de um Plano de Formação em cada nação

Uma questão que merece destaque quando se trata da formação dos candidatos ao sacerdócio é a dificuldade para a elaboração de leis muito específicas. A Igreja e os candidatos a esse ministério se encontram em todas as partes do mundo, e em cada local se encontram realidades muito diversas e dificuldades muito peculiares a ser enfrentadas pelos sacerdotes.

Por isso, o documento do Concílio dedicado à formação dos seminaristas — Optatam Totius — considerando a variedade dos povos, culturas, regiões etc., se presta unicamente a instituir regras gerais, exigindo assim, de cada nação, um esforço para o estabelecimento de um plano de formação a ser promulgado pelas diversas conferências, que deve ser aprovado pela Santa Sé, e reexaminado de tempos em tempos.

Um dos principais pontos salientados pelo decreto é a obrigação de que a formação sempre corresponda às necessidades daquelas regiões onde o sacerdote irá atuar:

Uma vez que não podem dar-se senão leis gerais para tão grande variedade de povos e regiões, estabeleça-se em cada nação ou rito um peculiar Plano de Formação sacerdotal que há de ser promulgado pela Conferência Episcopal, revisto periodicamente e aprovado pela Santa Sé. Por ele se acomodem as leis universais às condições particulares dos tempos e dos lugares, de maneira que a formação corresponda sempre às necessidades daquelas regiões em que há de exercer-se o ministério sacerdotal (OT 1).

Essas diretrizes estão entre as principais fontes do cânon 242 do atual Código, que prescreve exatamente a necessidade da criação, por parte das Conferências dos Bispos, de um plano de formação, tendo por base as normas dadas pela Santa Sé.

Cân. 242 § 1. Deve haver em cada nação as Diretrizes básicas para a formação sacerdotal, que devem ser estabelecidas pela Conferência dos Bispos, levando em conta as normas dadas pela suprema autoridade da Igreja, e aprovadas pela Santa Sé. Devem ser adaptadas às novas circunstâncias, com nova aprovação da Santa Sé. Nelas sejam definidos os princípios básicos e as normas gerais da formação a ser dados no seminário, adaptados às necessidades de cada região ou província.

§ 2. As normas das Diretrizes, mencionadas no § 1, sejam observadas em todos os seminários, diocesanos ou interdiocesanos.

É verdade que, conforme ressalta a Exortação Apostólica Pastores dabo vobis, o sacerdote deve possuir em todos os tempos e lugares uma mesma fisionomia essencial que jamais pode mudar: a de Cristo.

Quando vivia sobre a terra, Jesus ofereceu em Si mesmo o rosto definitivo do presbítero, realizando um sacerdócio ministerial do qual os Apóstolos foram os primeiros a ser investidos; aquele é destinado a perdurar, a reproduzir-se incessantemente em todos os períodos da História. O presbítero do terceiro milênio será, neste sentido, o continuador dos padres que, nos precedentes milênios, animaram a vida da Igreja. Também no ano 2000 a vocação sacerdotal continuará a ser o chamamento a viver o único e permanente sacerdócio de Cristo (PDV 5).

A Igreja, entretanto, não se exime de se adaptar às diversas épocas e ambientes, a fim de alcançar seus objetivos apostólicos:

Mas é igualmente certo que a vida e o ministério do sacerdote se deve ‘adaptar a cada época e a cada ambiente de vida’. Da nossa parte, devemos, por isso, procurar abrir-nos o mais possível à superior iluminação do Espírito Santo, para descobrir as orientações da sociedade contemporânea, reconhecer as necessidades espirituais mais profundas, determinar as tarefas concretas mais importantes, os métodos pastorais a adotar e, assim, responder de modo adequado às expectativas humanas (PDV 5).

E é por isso que se justifica uma legislação de caráter universal, e outra de nível particular, que fica ao encargo das Conferências Episcopais, conforme nos explica Davide Cito (2002, p. 241 – tradução minha):

A grande diversidade de situações eclesiais e a necessidade de que a formação sacerdotal, ainda que orientada por uma identidade comum do presbítero, saiba adequar-se às diferentes condições de vida e de cultura, justifica o fato de que junto com uma legislação de caráter universal, exista uma normativa particular acomodada às exigências concretas de cada situação.

Segundo o mesmo autor, as disposições sobre as Rationes nacionais têm caráter obrigatório, e têm sido observadas por boa parte das Conferências Episcopais. A Ratio de cada nação, como apontamos anteriormente, deve ser revista e aprovada pela Santa Sé, mesmo em caso de meras modificações. Se faltarem tais orientações em nível nacional, devem-se aplicar as normas emanadas pela Sé Apostólica e as próprias de cada seminário (cf. CITO, 2002).

E continua Cito (2002, p. 242 – tradução minha):

[…] As disposições contidas nas Rationes aprovadas pela Santa Sé antes da entrada em vigor do CIC mantêm seu vigor nas partes que não contradizem as disposições codiciais.

A Ratio nacional deve conter os princípios essenciais e normas gerais da formação seminarística. Como se colocou com exatidão, o fato de que se deva basear-se nas normas emanadas da Santa Sé exige que os princípios essenciais devam sempre inspirar-se nos documentos da Sé Apostólica, deixando, portanto, às normas gerais a possibilidade de se adaptar às necessidades pastorais. Deste modo, sobre uma fisionomia essencial que garanta a identidade sacerdotal comum na Igreja, existe a flexibilidade oportuna para responder às diferentes situações eclesiais.

Ghirlanda destaca que também a formação doutrinal dos candidatos ao presbiterado deve ser amoldada às diversas circunstâncias nas quais eles irão exercer seu ministério: “Toda a formação doutrinal deve ser adaptada às diversas culturas, de tal modo que os alunos possam anunciar o Evangelho de modo aceitável aos homens aos quais se dirigem” (2007, p. 150).

O autor fundamenta a relação que deve haver entre a formação doutrinal dos presbíteros, e o ambiente no qual eles operarão, nas normas fundamentais para a formação sacerdotal emanadas pela Congregação para a Educação Católica:

Em toda formação doutrinal deve-se procurar cuidadosamente a acomodação às diversas culturas, para que os alunos possam entender e explicar a mensagem de Cristo segundo a forma própria de cada cultura, e para que, com isso, possam acomodar a vida cristã à índole e ao caráter de cada uma delas.

Por isso, os professores de filosofia e de teologia não omitam comparar, em suas explicações, a doutrina cristã com as ideias íntimas com as quais se formaram os homens, segundo suas tradições, de Deus, do mundo, e, o quanto seja possível, enriquecer com elas o saber científico e a inteligência da fé (RFIS, 64 – tradução minha).

Convém advertir que as Ratios nacionais devem ser elaboradas pelas Conferências Episcopais, observando a Ratio Fundamentalis Institutiones Sacerdotalis, à qual nos referimos anteriormente.

6. Um dos papéis do Bispo: velar sobre a formação doutrinal dos seminaristas

Nas diversas legítimas comunidades de fiéis que compõem esta sociedade visível que é a Igreja, deve haver um primeiro representante de Cristo na formação sacerdotal:

O primeiro representante de Cristo na formação dos sacerdotes é o bispo. Poder-se-ia dizer do bispo, de cada bispo, quanto nos diz o evangelista Marcos no texto, já várias vezes citado: “Chamou a Si aqueles que quis e eles foram ter com Ele. Constituiu Doze de entre eles que estivessem com Ele, e também para os enviar” (Mc 3, 13-14). Na realidade, a chamada interior do Espírito precisa de ser reconhecida como autêntico chamamento pelo bispo. Se todos podem “ir ter” com o Bispo enquanto Pastor e Pai de todos, podem fazê-lo de forma particular os seus presbíteros pela comum participação do mesmo sacerdócio e ministério: o Bispo, diz o Concílio, deve considerá-los e tratá-los como “irmãos e amigos”. O mesmo se pode dizer analogamente de quantos se preparam para o sacerdócio. A propósito do “estar com ele”, com o bispo, revelar-se-á muito significativo para as suas responsabilidades formativas com os candidatos ao sacerdócio, que o Bispo os visite frequentemente e de certa maneira “esteja” com eles (PDV 65).

Ortiz e Perez (1991, p. 182 – tradução minha), ao comentarem os órgãos de direção e formação dos seminários, sintetizam a respeito da responsabilidade dos bispos:

É claro que o primeiro responsável pela formação de seus sacerdotes é o bispo. A ele compete decidir tudo quanto concerne à alta direção do seminário, em conformidade com o Direito Universal e com o Plano de formação emanado pela Conferência Episcopal. Assim, ao bispo corresponde o direito e o dever de visitar pessoalmente e com frequência o seminário, de supervisionar a formação e o ensinamento que se ministram nele, e de se informar acerca da vocação, caráter e aproveitamento dos alunos (c. 259).

Segundo Cito (2002), o cânon 259 define a responsabilidade do bispo sobre os seminários de maneira análoga ao modo como fazia o Código de 1917, dando-lhe, além do estabelecido em outros cânones (235, § 1, 241, 243, 253 § 1, 257 § 2, 263, 264 § 1) todas as atribuições que concernem ao governo espiritual e material do seminário.

Por ser o primeiro responsável pela formação dos seminaristas, cabe então ao bispo, conforme institui o cânon 259 § 2, velar sobre os estudos filosóficos e teológicos:

O bispo diocesano ou, se se tratar de seminário interdiocesano, os bispos interessados, visitem eles mesmos os seminários com frequência, velem sobre a formação dos seus alunos, como também sobre o ensino filosófico e teológico aí ministrado; informem-se sobre a vocação, a índole, a piedade e o aproveitamento dos alunos, sobretudo em função do conferimento das ordens sagradas.

Este parágrafo manifesta a responsabilidade pessoal que o bispo tem sobre a formação doutrinal dos candidatos ao sacerdócio. O fato de ele se valer da colaboração dos superiores do seminário para desempenhar esta função que a ele cabe, não o exonera do dever de intervir pessoalmente nesta formação.

7. Moderatum Studiorum

Apesar de o bispo ser um dos grandes responsáveis pela formação doutrinal dos candidatos ao sacerdócio, ele pode e deve fazê-lo por meio da criação de algumas funções e ofícios. O atual Código e a Ratio Fundamentalis Institutiones Sacerdotalis, a qual nos referimos anteriormente, elenca alguns moderadores que devem ser nomeados para os seminários, entre os quais o prefeito ou moderador dos estudos (cânon 254), a quem caberia o dever de velar para que haja verdadeira unidade na doutrina ensinada pelos professores:

Todos eles [os professores] exercem um verdadeiro ofício na Igreja por mandato, e devem ser solícitos para manter a unidade e harmonia de toda a doutrina, de tal modo que os alunos não sejam simples receptores, mas que os ensine a pensar (c. 254 § 2). Por esta razão deveria haver um prefeito ou moderador de estudos (cc 254 § 1, 261, § 2) com uma dupla função: prestar atenção na unidade e harmonia da doutrina da fé e ajudar o reitor na coordenação dos professores. Nada obsta para que este cargo possa ser desempenhado por um sacerdote professor já jubilado nas classes (RUIZ et al, 2006, p. 202).

Esta figura, segundo os comentários de Hortal (2008, p. 141), “é nova na legislação canônica comum, embora de longa tradição em muitas instituições”. Sua missão, considera Cito (2002), consiste em dispor o plano de estudos dos seminaristas, por meio de uma ação de estímulo, coordenação e vigilância junto aos professores, a fim de proporcionar aos candidatos uma formação teológica mais orgânica, sintética e íntegra.

A Pastores dabo vobis, 54, insiste para que os alunos sejam ajudados a realizar uma síntese que lhes favoreça possuir uma visão completa e unitária das verdades reveladas por Deus, em Jesus Cristo, e da experiência de fé da Igreja. Por isso, o prefeito de estudos deve empenhar-se para que os seminaristas conheçam todas as verdades cristãs de modo orgânico, sem fazer opções arbitrárias.

Devido à importância da formação intelectual e doutrinal dos seminaristas, o § 2 do cânon 261 confia uma competência específica ao moderador dos estudos e ao reitor, no que tange ao devido cumprimento do cargo dos professores:

Cân. 261 § 2. O reitor do seminário e o diretor dos estudos cuidem com diligência que os professores cumpram devidamente o seu ofício, de acordo com as Diretrizes básicas para a formação sacerdotal e com o regulamento do seminário.

8. Os professores do seminário

Entre os que devem compor o seminário, encontram-se os que se destinam a ministrar a formação doutrinal aos seminaristas, de acordo com a prescrição do cânon 239 § 1:

Cân. 239 § 1. Em cada seminário haja o reitor que o presida, e, se for o caso o vice-reitor, o ecônomo e, se os alunos fazem os estudos no próprio seminário, também professores que ensinem as diversas disciplinas coordenando-as entre si.

Segundo o que nos explica Davide Cito (2002, p. 232 – tradução minha) a respeito dessa prescrição, “o cânon descreve os principais ofícios destinados a dirigir a vida do seminário. Os titulares destes ofícios se apresentam como os colaboradores mais diretos do bispo na tarefa de formar o clero de sua diocese”. É verdade que o cânon menciona os professores que desenvolvem seu ofício dentro dos próprios seminários. O que não quer dizer que os demais não atuem também como longa manus do bispo no que tange à formação doutrinal. Ao menos, é o que se pode concluir de um dos trechos da Pastores dabo vobis, 67:

Todos quantos introduzem e acompanham os futuros sacerdotes na sacra doutrina, por meio do ensino da teologia, assumem uma particular responsabilidade educativa, que a experiência demonstra ser muitas vezes mais decisiva, no desenvolvimento da personalidade presbiteral, que a dos outros educadores.

É tal a importância que se deve dar ao cargo de professores das disciplinas filosóficas, teológicas e jurídicas em um seminário, que cabe aos bispos interessados a nomeação deles. Ademais, todos eles devem ser doutores, ou ao menos licenciados em alguma universidade, ou faculdade, aprovada pela Santa Sé:

Cân. 253 § 1. Para o encargo de professor nas disciplinas filosóficas, teológicas e jurídicas, sejam nomeados pelo bispo ou pelos bispos interessados somente os que, eminentes em virtudes, tenham conseguido doutorado ou licença numa universidade ou faculdade reconhecida pela Santa Sé.

Nas explicitações que a esse respeito desenvolve Gianfranco Ghirlanda (2007), afirma-se a necessidade de consulta ao reitor e ao colégio de professores já existente, para a nomeação dos professores de um seminário, bem como a possibilidade de proposta de candidatos por parte desses. E ainda acrescenta:

O código não diz nada se esses professores devem ser só clérigos, ou se podem ser também leigos, mas a RFIS 33 determina que para o ensino das disciplinas sagradas estes sejam normalmente sacerdotes. Portanto, excepcionalmente para ensinar essas matérias, podem ser nomeados leigos.

As normativas atuais se distinguem inteiramente do que definia o cânon 1360 § 1 do Código de 1917, que preceituava a obrigatoriedade da condição sacerdotal para os professores. Entretanto, os professores leigos não deixam de estar submetidos à autoridade eclesiástica.

Para delimitar o alcance do cânon [253] é preciso observar com caráter preliminar que, ao ser o seminário uma estrutura pública própria da organização eclesiástica, ainda que o cânon contemple diretamente os professores de disciplinas filosóficas, teológicas ou jurídicas, coloca também os professores de outras matérias em uma situação de particular dependência da autoridade eclesiástica e, portanto, a eles se aplica analogamente a normativa prevista para os docentes das disciplinas sagradas.

É preciso dizer, em segundo lugar, que o fato de os alunos do seminário realizarem em outro lugar os estudos filosófico-teológicos não míngua a responsabilidade de vigilância que tem o bispo e os superiores sobre a qualidade do ensino ministrada aos seus próprios seminaristas, e ainda que não possuam o poder de remoção indicado no § 3, têm o dever de informar as autoridades acadêmicas sobre as eventuais irregularidades que se verifiquem nos professores (CITO, 2002, p. 271).

Outro requisito que aparece no cânon 253 para a nomeação dos professores de um seminário, é que estes sejam eminentes em virtudes:

Em particular, a especificidade e o êxito formativo dos professores de teologia mede-se pelo fato de eles serem, antes de mais, homens de fé e cheios de amor pela Igreja, convencidos de que o sujeito adequado do conhecimento do mistério cristão continua a ser a Igreja enquanto tal, persuadindo-se, portanto, de que a sua tarefa de ensinar é um autêntico ministério eclesial, serem ricos de sentido pastoral para discernir não só os conteúdos mas também as formas adequadas para o exercício deste ministério. Particularmente se requer dos professores a fidelidade plena ao Magistério. De fato, ensinam em nome da Igreja e por isso são testemunhas da fé (PDV 67).

Por isso, os professores devem estar compenetrados da grande responsabilidade a eles distinguida, de serem formadores, nada mais, nada menos, de futuros ministros sagrados.

Essa consciência deve ser mostrada em seu sensus Eclesiae e no obséquio para com o magistério. É verdade que os professores devem ter a peito o progresso doutrinal, gozando da devida liberdade de pesquisa. Mas, levando em conta os diversos graus de certeza teológica, devem claramente ensinar aquilo que deve ser aceito como doutrina de fé, e distinguir disso o que é opinião de outros autores ou até pessoais (GHIRLANDA, 2007, p.138).

Podemos encontrar sólidas sustentações para essas explicitações de Ghirlanda na Instrução publicada pela Congregação para a doutrina da fé, Donun Veritatis:

A vontade de apresentar fielmente os ensinamentos do Magistério sobre as questões de per si irreformáveis deve ser a regra. No entanto, um teólogo pode, conforme a situação, levantar questões sobre a atualidade, a forma, ou até mesmo o conteúdo das intervenções magisteriais. Neste caso, o teólogo vai precisar, em primeiro lugar, avaliar com precisão a autoridade dos ensinamentos expressos, de acordo com a natureza dos documentos, a insistência com que a doutrina é repetida, e a maneira como foi expressa (Donun Veritatis, 24 de maio de 1990, n. 24, in AAS 82, 1990, 1550-1570 − tradução minha).

Concluindo, podemos sintetizar os requisitos de caráter pessoal que devem constar nos professores dos seminários basicamente em três: reta doutrina, testemunho de vida cristã e capacidade pedagógica (CITO, 2002). Desta maneira, torna-se mais clara a prescrição do cânon 833, 6º, de que os professores de filosofia e teologia estejam obrigados a emitir a profissão de fé e juramento de fidelidade na presença do Ordinário do lugar ou um representante seu. Também se pode compreender melhor o § 3 do cânon 253, que, em consonância com o cânon 810, § 1, prescreve a remoção do ofício de professor pela autoridade competente, para aqueles que faltem gravemente ao seu dever: “Can, 253 § 3. Magister qui a munere suo graviter deficiat, ab auctoritate, de qua in § 1, amoveatur.[2]

A respeito do quadro de professores que deve compor a formação dos seminaristas, o § 2 do mesmo cânon parece reforçar as determinações do Código anterior, cânon 1366, pois também prescrevia distintos professores para cada uma das disciplinas fundamentais.

Cân. 253 § 2. Cuide-se que sejam nomeados professores distintos para o ensino da Sagrada Escritura, teologia dogmática, teologia moral, liturgia, filosofia, direito canônico, história eclesiástica e de outras disciplinas que devem ser dadas segundo método próprio.

Por fim, convém ressaltar o quanto todos os componentes da equipe de formação dos seminários, incluindo os professores, são solidariamente responsáveis para que se observem fielmente as normativas prescritas para tal finalidade.

O professor de teologia, como qualquer outro educador, deve permanecer em comunhão e colaborar cordialmente com todas as outras pessoas empenhadas na formação dos futuros sacerdotes e apresentar com rigor científico, generosidade, humildade e paixão, o seu contributo original e qualificado, que não é apenas a simples comunicação de uma doutrina — mesmo sendo a sacra doctrina —, mas é sobretudo a oferta da perspectiva que unifica no desígnio de Deus, os diversos conhecimentos humanos e as várias expressões de vida (PDV 61).

É o que se depreende do cânon 261 § 1:

O reitor do seminário e também, sob sua autoridade os moderadores e professores, na parte que lhes compete, cuidem que os alunos observem fielmente as normas prescritas pelas Diretrizes básicas da formação sacerdotal e pelo regulamento do seminário.

ADRIANO, Carlos. in: in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 9, Out-Dez 2009. p. 83-102.

Referências Bibliográficas

ARRIETA, Juan. in: Manual de derecho canónico. 2. ed. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra – EUNSA, 1991.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA: Edição revisada de acordo com o texto oficial em latim. 9. ed. São Paulo: Loyola, 2006.

CENALMOR, Daniel; MIRAS, Jorge. El Derecho de la Iglesia: Curso Básico de Derecho Canónico. Quito: Corporación de Estudios y Publicaciones, 2004.

CITO, Davide. in: Comentario exegético al Código de Derecho Canónico. 3. ed. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra – EUNSA, 2002.

CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO: Codex Iuris Canonici. Bilingue. 17. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

COMPÊNDIO do Catecismo da Igreja Católica. Tradução de Orlando MOREIRA, Marcelo PERINE. São Paulo: Loyola; Paulus, 2005.

ENCHIRIDION: La Formación Sacerdotal: Documentos de la Iglesia sobre la Formación Sacerdotal. Madrid: Editorial EDICE, 1999.

GHIRLANDA, Gianfranco. Introdução ao Direito Eclesial. Tradução de Roberto Leal FERREIRA. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

HORTAL, Jesús. Código de Direito Canônico. 8. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

RINCÓN-PEREZ, Tomás. in: Manual de derecho canónico. 2. ed. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra – EUNSA, 1991.

RUIZ, Teodoro et al. Derecho Canónico: El Derecho del Pueblo de Dios. V. 1. Madrid: BAC, 2006.


[1] “Outro problema, sentido sobretudo onde os estudos seminarísticos são confiados a instituições acadêmicas, diz respeito à relação entre o rigor científico da teologia e o seu objetivo pastoral, e, por conseguinte, à natureza pastoral da teologia. Trata-se, na realidade, de duas características da teologia e do seu ensino, não se opõem entre si, antes concorrem ambas, ainda que em perspectivas diversas, para uma “inteligência da fé” mais completa. Efetivamente a pastoralidade da teologia não significa uma teologia menos doutrinal, ou inclusivamente destituída da sua cientificidade; significa antes que essa teologia habilita os futuros sacerdotes a anunciar a mensagem evangélica através dos modos culturais do seu tempo e a considerar a ação pastoral segundo uma autêntica visão teológica. E assim, por um lado, um estudo respeitador da cientificidade rigorosa de cada uma das disciplinas teológicas contribuirá para uma mais completa e profunda formação do pastor de almas como mestre da fé; por outro, a adequada sensibilidade ao objetivo pastoral tornará verdadeiramente formativo para os futuros sacerdotes o estudo sério e científico da teologia”. (PDV 55)

[2] Tradução: Cân. 253 § 3. O professor que faltar gravemente em seu ofício, seja destituído pela autoridade mencionada no § 1.

Considerações sobre o ministério presbiteral no contexto do Ano Sacerdotal

Diác. José Victorino de Andrade, EPCura d'Ars

O Ano Sacerdotal que estamos celebrando tem trazido fecundos aportes ao ministério presbiteral, fruto das reflexões realizadas em todo o orbe católico e da renovada esperança que esta conclamação produziu no seio da Igreja. A esperança, nota distintiva da Instituição nascida do costado do Senhor e edificada sobre a rocha inabalável de Pedro, tende a se afirmar cada vez mais como a luz orientadora de nossa época, tal como o Magistério Pontifício a apresenta em duas de suas recentes encíclicas: a Novo Millenio Ineunte, de João Paulo II e a Spe Salvi, de Bento XVI. [1]

Nesta perspectiva, os numerosos problemas enfrentados pelos sacerdotes em nossos dias nos encorajam a pedir ao Senhor que, além de conduzi-los à plenitude da santidade por meio da qual serão vitoriosos em seus desafios, mande mais operários para a Sua messe (cf. Mt 9, 38; Lc 10, 2).

Nota o Cardeal Franc Rodé, CM, que o florescimento de novos chamados constitui, antes de tudo, o fruto de uma moção divina, mas não exclui a colaboração humana:

As vocações são um dom de Deus, e a iniciativa é completamente d’Ele. Entretanto, como é Seu costume, Ele normalmente Se serve de causas secundárias e depende de nossa colaboração para realizar Seus planos.[2]

No caso específico das vocações sacerdotais, a “causa secundária” muitas vezes se traduz na exemplaridade do sacerdote junto aos vocacionados. E para oferecerem um testemunho plenamente persuasivo, deverão eles próprios estar convencidos em seu íntimo da força sobrenatural que acompanha seu ministério e da presença constante de Cristo e da Igreja em tudo quanto realizam. O ensinamento do Concílio Vaticano II no Decreto Presbyterorum Ordinis salienta esta verdade alentadora:

 Lembrem-se, pois, os presbíteros que no exercício da sua missão nunca estão sós, mas apoiados na força onipotente de Deus e assim, com fé em Cristo que os chamou a participar do Seu sacerdócio, deem-se com toda a confiança ao seu ministério, sabendo que Deus é poderoso para aumentar neles a caridade. Lembrem-se ainda que têm os seus irmãos no sacerdócio, e até os fiéis de todo o mundo, associados a si. (n. 22)

Diante das exigências e dificuldades inerentes ao ministério sacerdotal, cumpre repetir com São Paulo: “Omnia possum in eo qui me confortat” (Fl 4, 13). O Apóstolo nos adverte a não confiarmos na carne, esperando das forças humanas a eficácia que uma ilusória auto-suficiência nunca poderá conceder. Os que confiam na graça, por sua vez, revestem-se da eficácia divina e este parece ser o segredo pelo qual os presbíteros se tornam instrumentos verdadeiramente úteis nas mãos da Providência. Só assim serão capazes de “cultivarem em si mesmos e difundirem na sociedade as virtudes morais e sociais, de maneira a tornarem-se realmente, com o necessário auxílio da graça divina, homens novos e construtores duma humanidade nova”.[3] Nesse sentido, cabe aos sacerdotes uma responsabilidade não pequena.

Hoje, mais do que nunca, exige-se ao presbítero que seja verdadeiramente pastor, à semelhança do Bom Pastor que é Cristo, a fim de conduzir e orientar o Povo de Deus, ciente, entretanto, dos perigos que o circundam: lobos que procuram reduzir ou dispersar o redil, ovelhas desgarradas que precisam ser libertas do triste carrascal em que se encontram, reconduzidas, amparadas e, se necessário, carregadas. Deste modo, atingirá sua própria perfeição:

 Fazendo todo o sacerdote, a seu modo, as vezes da própria pessoa de Cristo, de igual forma é enriquecido de graça especial para que, servindo todo o Povo de Deus e a porção que lhe foi confiada, possa alcançar de maneira conveniente a perfeição d’Aquele de quem faz as vezes, e cure a fraqueza humana da carne a santidade d’Aquele que por nós se fez pontífice ‘santo, inocente, impoluto, separado dos pecadores’ (Heb. 7, 26).[4]

Entretanto, será que tantas exigências e tarefas correspondentes ao presbítero em nossos dias não o sobrecarregarão? Será razoável exigir-lhe mais responsabilidade? Para mais agora, que se desdobra numa ocupação contínua, extenuante, diante de uma comunidade desproporcionada ou de um elevado número de pastorais a seu encargo… A realidade cotidiana de tantos ministros ordenados aparece-nos muitas vezes preocupante, podendo ser, de imediato, talvez superada por uma equilibrada simbiose entre contemplação e ação e, quando esse equilíbrio não for possível, a estratégia será fazer com que todos os atos sejam impregnados de espírito sobrenatural e tornem-se oração, oblação, serviço. Conforme João Paulo II:

 se a consciência do sacerdote é penetrada pelo imenso mistério de Cristo, se ela está totalmente dominada por ele, então todas as suas atividades, mesmo as mais absorventes (vida ativa) encontrarão raiz e alimento na contemplação dos mistérios de Deus (vida contemplativa), de que ele é administrador.[5]

Embora o ministério sacerdotal exija uma contínua doação de si mesmo, este zelo não deve descurar a “própria casa”, como recomendava Santo Afonso Maria de Ligório: “Visto que sois padre, é muito louvável que trabalheis na salvação das almas, mas não posso aprovar que, para serdes útil aos outros, vos esqueçais de vós mesmo”.[6] A santificação torna-se assim, não uma possibilidade, mas uma necessidade para o próprio desempenho do presbítero, na Igreja e no mundo, conforme afirmou o Vaticano II:

 […] este sagrado Concílio, para atingir os seus fins pastorais de renovação interna da Igreja, difusão do Evangelho em todo o mundo e diálogo com os homens do nosso tempo, exorta veementemente todos os sacerdotes a que, empregando todos os meios recomendados pela Igreja, se esforcem por atingir cada vez maior santidade, pela qual se tornem instrumentos mais aptos para o serviço de todo o Povo de Deus.[7]

Ao proclamar o Ano Sacerdotal, o Papa Bento XVI abriu as portas, tanto para numerosas e criativas iniciativas das Igrejas particulares – de caráter vocacional, pastoral, formativo, entre outras – como, sobretudo, para uma enriquecedora reflexão e encorajamento de todos os presbíteros, a fim de que seu ministério se torne mais fecundo e “constitua para cada sacerdote uma oportunidade de renovação interior e, consequentemente, de sólido fortalecimento no compromisso pela própria missão”.[8]

VICTORINO DE ANDRADE, José. Editorialin: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 9, Out-Dez 2009. p. 3-6.


[1] Encontram-se mais de 100 referências à esperança na recente encíclica de Bento XVI,  Spe Salvi, além de numerosos e significativos incentivos para os tempos vindouros na Novo Millenio Ineunte,  como a marcante exortação: “DUC IN ALTUM! Sigamos em frente, com esperança! Diante da Igreja abre-se um novo milênio como um vasto oceano onde aventurar-se com a ajuda de Cristo”. (n. 58) 

[2] RODÉ, Frank. Simpósio sobre vida apostólica religiosa desde o Vaticano II no Stonehill College. Tradução do Corpo Editorial da Revista Arautos Evangelho. Boston: [s.e.], 2008.

[3] Gaudium et Spes, n. 30.

[4] Presbyterorum Ordinis, n. 22.

[5] JOÃO PAULO II. Discurso aos párocos e ao clero de Roma. 2 mar. 1979. Disponível em <www.vatican.va>. Acesso: 13 dez. 2009.

[6] MARIA DE LIGÓRIO, Afonso. A Selva. Tradução de MARINHO. Porto: Fonseca, 1928. p. 88.

[7] Presbyterorum Ordinis, n. 12.

[8] BENTO XVI. Audiência Geral Praça de São Pedro, quarta-feira – 1 jul. 2009. Disponível em: <http://www.annussacerdotalis.org>. Acesso 13 dez. 2009.

A história do sacerdócio no contexto bíblico

Thiago de Oliveira Geraldo, EPlivro

Antes mesmo da instituição do sacerdócio na Bíblia, outros povos exerciam esta função, formando uma hierarquia organizada e hereditária; assim descreve George (1972, p. 924) esse aspecto:

Entre os povos civilizados que cercam Israel, a função sacerdotal é muitas vezes exercida pelo rei, notadamente na Mesopotâmia e no Egito; o rei é então assistido por um clero hierarquizado, no mais das vezes hereditário, que constitui uma verdadeira casta. Não há nada disso entre os patriarcas. Não existe então nem templo, nem sacerdotes especializados do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó.[1]

No Antigo Testamento as fontes sacerdotais são de dois tipos: de forma narrativa e de leis.[2] Numa primeira visualização acerca do sacerdócio no contexto bíblico, não se encontra o aspecto sacrifical ― que depois veio a ser exercido ―, mas o serviço da adivinhação[3] e a instrução sobre a Torá.[4] Segundo Monloubou (2003, p. 704): “Tanto quanto os profetas, os sacerdotes são moralistas que ensinam o povo a se dispor ao culto e a prolongar os efeitos por uma conduta digna”.[5]Ademais, os chefes de cada família tinham o poder de sacrificar;[6] aliás, como foi o caso do próprio Jetro ― sogro de Moisés ― que ofereceu holocausto e sacrifício no Sinai, depois comeu com Aarão e os anciãos de Israel.[7]

A origem levítica provavelmente remonta a um ramo sacerdotal oriundo de Cades, com os quais Moisés mantinha relações firmes.[8] Eles alegavam possuir a origem sacerdotal exclusiva.[9] Juridicamente não possuíam terras,[10] por serem da tribo escolhida, mas zelavam pela tradição das leis sagradas dentro do povo.[11] A pessoa de Moisés era considerada levita.[12]

Sobre a origem levítica de Aarão ocorrem controvérsias. Em Ex 4, 13-16 ele é considerado levita e irmão de Moisés; no entanto, ora se torna intercessor junto a Moisés (Nm 12, 11-12), ora assume a condição de sacerdote de um bezerro de ouro idolátrico (Ex 32, 1-5). Este fato ligado à contenda entre Roboão e Jeroboão faz com que Aarão seja uma espécie de precursor do sacerdócio em Betel, pois Jeroboão também construiu um bezerro de ouro em Betel e outro em Dã e estabeleceu sacerdotes do meio do povo que não eram levitas.[13]

Num período pré-monárquico em que ainda não havia rei, cada qual fazia o que lhe parecia melhor; foi assim que Mica, da montanha de Efraim, convidou um levita para tornar-se seu sacerdote, após a fundição de um ídolo com 200 moedas de prata encomendado por sua mãe.[14] A imagem fundida com as 200 moedas e o sacerdote levita foram mais tarde sequestrados pela tribo de Dã, que queria estabelecer-se na cidade de Laís. O levita alegrou-se por se tornar como que pai e sacerdote de uma tribo em vez de uma família. Jônatas, filho de Gerson, filho de Manassés, constituiu-se, juntamente com seus filhos, sacerdote da tribo de Dã até o dia do cativeiro. O que tem como intento a legitimidade do sacerdócio, remontando-o até Moisés. Isto se passou enquanto a casa de Deus estava em Silo,[15] onde Eli desempenhava o ofício sacerdotal por meio de sacrifícios e holocaustos.[16] Após o declínio da família de Eli, tem-se notícia de uma cidade sacerdotal em Nobe. O chefe desta família, o sacerdote Aquimelec, dá alimento a Davi e seus companheiros. Por esse motivo, Saul determina que toda sua família seja exterminada, exceto Abiatar que se refugia com Davi.[17]

Entrando no período monárquico, o sacerdócio ganha estruturação e a partir daí o culto no Templo torna-se vigoroso.[18] Salomão organiza a estrutura de seu reino e com isso o culto fica centralizado no Templo em Jerusalém.[19] No entanto, com o cisma samaritano os cultos locais ganham novamente realce.[20] Nessa época o sacerdócio e a monarquia tinham uma firme aliança, como mostra o massacre dos filhos de Acab, no qual Jeú extermina a todos, inclusive os sacerdotes que serviam o rei.[21] Isto não se passava somente em Israel, mas também em Judá, como o caso do refugiado Joás, que ficou seis anos escondido no Templo e depois, com a conspiração do sacerdote Jojada, torna-se rei.[22]

As classes sacerdotais formadas em comunhão com a monarquia foram respectivamente deportadas pelos conquistadores de seus reinos. Israel caiu com a invasão assíria e colonos se estabeleceram na Samaria.[23] Algum tempo depois, sacerdotes são trazidos da deportação para ensinar a religião aos colonos,[24] Judá é conquistada por Nabucodonosor e Sedecias, deportado para a Babilônia.[25] Inclusive o sumo sacerdote Saraías e Sofonias, segundo sacerdote, são levados para o cativeiro.[26]

Um passo importante para o sacerdócio de Judá, ocorrido antes da deportação para a Babilônia, deu-se com a descoberta do livro da aliança no Templo, pelo sumo sacerdote Helcias. Após as palavras da profetisa Holda, o rei Josias promoveu uma reforma geral no culto: renovando a aliança com Deus, ele ordenou a Helcias, aos sacerdotes de segunda ordem e aos porteiros que limpassem o Templo de todos os objetos idolátricos que lá havia; despediu os sacerdotes idólatras e os que adoravam os astros do céu e mandou profanar os lugares que tinham sido objeto de culto idolátrico, unificando, dessa forma, o culto ao Deus verdadeiro no templo de Jerusalém.[27]

Na época exílica, com a condensação da lei sacerdotal levítica, ficou assegurado que a tribo sacerdotal por excelência seria a de Levi,[28] e mesmo assim nem todos os levitas seriam sacerdotes.[29] A Aarão e seus filhos ficou reservada a função de sumo sacerdote.[30] No entanto, Ezequiel, ao divisar o “novo Israel” (capítulos 40-48) recorda que os levitas abandonaram o culto verdadeiro para seguir a ídolos, por isso, apenas teriam funções menores dentro do Templo.[31] Os cargos mais importantes, inclusive o de sumo sacerdote, estão reservados aos levitas descendentes de Sadoc, que permaneceram fiéis ao santuário enquanto os israelitas se afastavam.[32] Sadoc foi sacerdote pré-davídico da linhagem de Eleazar, filho de Aarão.[33] Segundo Born (2004, p. 1352):

Sob Davi aparece uma nova família, a de Sadoc, de origem obscura, mas na tradição sacerdotal ligada com Eleazar, filho mais velho de Aarão. Essa família suplantou a de Eli (1 Sm 2, 27-36) e outras que eram consideradas como descendentes do terceiro e do quarto filhos de Aarão, Nadab e Abiu, e obteve afinal a hegemonia em Jerusalém.

A reconstrução pós-exílica levou em conta esta declaração de Ezequiel, o que tornou os sadoquitas sacerdotes principais, enquanto à descendência de Arão coube a parte do sacerdócio comum e os genitores levitas ficaram sendo os servos do Templo.[34] Além da restauração e centralização do culto no Templo, a leitura e explicação da lei passou a ter um realce cada vez maior. Agora não só o aspecto sacrifical era preponderante, mas a especialização legalista das Escrituras Sagradas se torna cada vez mais relevante.[35] Essa concepção legalista mais tarde ultrapassa a própria dignidade sacerdotal.

À época do Messias, os sacerdotes já estavam categorizados segundo normas anteriores. Para os sacerdotes comuns havia 24 divisões de serviços,[36] os quais poderiam exercer outras funções no tempo vago.[37] Geralmente faziam as leituras e explicações da Torá nas sinagogas e eram encarregados das questões de pureza ritual.[38] A hierarquia estabelecida funcionava de forma hereditária. Portanto, a separação entre os sacerdotes principais e os sacerdotes comuns era bem acentuada. Os levitas dessa época que deveriam viver em cidades levíticas,[39] tinham como funções a de cantores[40] e demais serviços do Templo.[41]

4. O sacerdócio no Novo Testamento

No Novo Testamento o substantivo hiereus (sacerdote) é empregado 31 vezes, das quais 14 na carta aos Hebreus. Marcos a emprega duas vezes, Mateus três e Lucas oito vezes (cinco no Evangelho e três em Atos). No Evangelho de João encontra-se apenas uma vez (1, 19) e três no Apocalipse. Note-se que nas cartas do Novo Testamento a única que leva esse termo é em Hebreus, as demais não o utilizam. Quando se fala em sacerdote no Novo Testamento, pode-se estar referindo aos pagãos (At 14, 13) ou aos sacerdotes judeus.[42]

Os contatos de Jesus com sacerdotes não eram frequentes; ocorriam quando mandava aqueles a quem havia curado mostrarem-se a eles,[43] devido aos conceitos de purificação ritual, os quais declaravam a pessoa isenta de impurezas e apta a frequentar novamente a sociedade. Ao mesmo tempo isto servia para a afirmação da autoridade de Jesus.[44]

A parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37) apresenta uma crítica aos sacerdotes (v. 31) que promoviam simplesmente um culto externo. O evangelho de Mateus (12, 4), com seu paralelo em Marcos 2, 26 e Lucas 6, 4, mostra como o rei David comeu os pães da proposição ― que lhes era proibido ― e Mateus aproveita para afirmar o senhorio de Jesus sobre o sábado e o Templo, alegando que os sacerdotes também rompem o sábado para exercer suas funções. Para essa afirmação de Jesus é dado como argumento a própria Sagrada Escritura.[45] A relação positiva de Jesus com os sacerdotes e levitas em relação ao acontecimento da salvação somente se verifica em Lucas (1, 5.8) e Atos (6, 7).[46]

Nos Evangelhos sinóticos Jesus nunca atribui a Si mesmo o título de sacerdote, preferindo utilizar a expressão “Filho” ou “Filho do Homem”; desta forma, faz uma distinção clara entre Sua missão e a dos sacerdotes aarônico e levítico. No entanto, Sua missão está envolta de conceitos sacerdotais.[47]

O fato mais esclarecedor da ação sacerdotal implícita e figurada de Jesus encontra-se na Sua morte. Segundo George (1972, p. 928-929):

 Para seus inimigos, esta é o castigo dum blasfemo; para seus discípulos, um fracasso escandaloso. Para ele, ela é um sacrifício que ele descreve com as figuras do Antigo Testamento: compara-a ora com o sacrifício expiatório do Servo de Deus (Mc 10, 45; 14, 24; cf. Is 53), ora com o sacrifício de Aliança de Moisés ao pé do Sinai (Mc 14, 24; cf. Ex 24, 8); e o sangue que ele dá no tempo da Páscoa evoca o do cordeiro pascal (Mc 14, 24; cf. Ex 12, 7.13.22s). Essa morte que lhe infligem é por ele aceita; ele próprio a oferece como o sacerdote oferece a vítima; e é por isso que ele dela espera a expiação dos pecados, a instauração da nova Aliança, a salvação de seu povo. Numa palavra, ele é o sacerdote de seu próprio sacrifício.

Acerca da segunda função sacerdotal do Antigo Testamento, o serviço da Torá; Jesus não veio bani-la, mas aperfeiçoá-la (Mt 5, 17s). Ele supera a letra, mostrando no primeiro e segundo mandamentos seu valor mais profundo (Mt 22, 34-40). Com isso, manifesta o prolongamento do sacerdócio do Antigo Testamento ao mesmo tempo em que torna evidente sua superação pela definitiva revelação do Evangelho da salvação e realização da Lei.[48]

Em João, no capítulo 17, destaca-se a chamada “oração sacerdotal”, em que Jesus pede por Si (v. 1-5), pelos discípulos (v. 6-19) e pela unidade dos futuros cristãos (v. 20-26). Esse capítulo não traz o termo “sacerdote”, mas pode ser comparado ao dia da Expiação (Lv 16, 17), pelo fato de Jesus estar se preparando para a morte.

Ao falar sobre a morte de Jesus, São Paulo evoca as figuras do cordeiro pascal (1 Cor 5, 7), da humilhação do Servo (Fl 2, 6-11), do dia da Expiação (Rm 3, 24ss). A morte de Cristo significa para o Apóstolo o sacrifício supremo, que Ele mesmo ofereceu; assim se encontram termos como a comunhão do sangue de Cristo (1 Cor 10, 16-22) e da redenção por meio dele (Rm 5, 9; Cl 1, 20; Ef 1, 7). Também em Romanos 3, 25, outra expressão do culto sacrifical é utilizada por São Paulo: “Deus o destinou para ser, pelo seu sangue, vítima de propiciação mediante a fé”. Acerca da oblação sacrifical de Cristo, o Apóstolo a descreve em Ef 5, 2 e Gl 2, 20. Da mesma forma como o próprio Jesus não Se intitulou sacerdote, São Paulo também não o faz.[49] Somente na carta aos Hebreus é que isto ocorre.

Em Hebreus 4, 14, Cristo recebe o título de Sumo Sacerdote. O pontífice é escolhido não para si mesmo, mas em favor dos homens (5, 1). Sendo mediador, ele não o é por escolha própria, senão por meio de um chamado, como no caso de Aarão (5, 4). “Assim também Cristo não se atribuiu a si mesmo a glória de ser pontífice. Esta lhe foi dada por aquele que lhe disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei (Sl 2, 7)” (Hb 5, 5). No entanto, Cristo não está na condição pontifical da linhagem aarônica, pois sendo o autor da salvação, “Deus o proclamou sacerdote segundo a ordem de Melquisedec” (Hb 5, 10). Melquisedec aparece na História sem uma origem definida, “sem pai, sem mãe, sem genealogia, a sua vida não tem começo nem fim; comparável sob todos os pontos ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre” (Hb 7, 3).

Abraão é posto como inferior a Melquisedec, pois “é o inferior que recebe a bênção do que é superior” (Hb 7, 7). Nessa perspectiva a mudança trazida pelo novo sacerdócio ― da ordem de Aarão para Melquisedec ― obriga o aperfeiçoamento da Lei (Hb 7, 11-12). De outra forma, a Lei já teria atingido sua plenitude na linhagem levítica.

Para São Tomás, o motivo pelo qual Cristo é da ordem de Melquisedec e não da linhagem levítica se dá por dois motivos, como explana (S. Th. III, q. 22, a. 6, resp.):

 Já foi dito que o sacerdócio da lei era a prefiguração do sacerdócio de Cristo, não de maneira adequada à verdade, mas de maneira muito deficiente. Por duas razões: quer porque o sacerdócio da lei não purificava os pecados, quer porque não era eterno, como o sacerdócio de Cristo. Ora, a superioridade do sacerdócio de Cristo, com relação ao sacerdócio levítico, estava prefigurada no sacerdócio de Melquisedec que recebeu o dízimo de Abraão, de quem, de alguma forma, o sacerdócio levítico dependia. Por causa desta superioridade do verdadeiro sacerdócio com relação ao sacerdócio prefigurativo da lei, se diz que o sacerdócio de Cristo é segundo a ordem de Melquisedec.

A aliança feita por Cristo é mais excelente e perfeita que a antiga (Hb 8, 6). Ela tem como base o próprio sangue de Cristo (Hb 9, 14); “por isso ele é mediador do novo testamento” (Hb 9, 15). A Lei antiga era apenas sombra dos bens que viriam, pois os sacrifícios eram renovados indefinidamente (Hb 10, 1), mas agora uma só oblação ― por meio de Cristo ― realizou a perfeição definitiva (Hb 10, 14).

Cristo é ao mesmo tempo a pedra viva ― rejeitada pelos homens, mas escolhida por Deus ― desse edifício espiritual (1 Pd 2, 4-5). Assim, se encontrará na carta de São Pedro a relação do sacerdócio de Cristo como um novo povo adquirido por Deus e ao qual santificou, tirando das trevas para a luz, denominado “sacerdócio régio” (1 Pd 2, 9). Esta é a expressão do pensamento contido em Êxodo 19, 6. O sacerdócio é visto aqui como acesso ao conhecimento de Deus, e o seu papel profético consiste em proclamar essa visão íntima. Agora, o sacerdócio cristão toma o lugar do judaico; no entanto, expressões fundamentais do ritual levítico, passam para a igreja primitiva e são utilizados pelos cristãos, tais como: aspergido, lavado, primogênito, altar etc.[50]

Em Apocalipse (1, 6; 5, 10; 20, 6) também está expressada a ideia do reino sacerdotal de Êxodo 19, 6. A comunidade se beneficia da dignidade sacerdotal como parte da dignidade real concedida por Deus, por meio de Seu Cristo. Esse sentido sacerdotal não se deve à relação com o Templo, pois este não existirá na Jerusalém Celeste (Ap 21,22), mas o próprio Deus e o Cordeiro irão assumir a função de Templo.[51]

No Novo Testamento Jesus nunca denomina qualquer de seus seguidores com o título de sacerdote, mas da mesma forma que no Antigo Testamento, somente são Seus ministros aqueles a quem Deus chama. O chamamento dos doze, a transmissão de poderes (Mt 10, 8.40; 18, 18) e a entrega da Eucaristia (Lc 22, 19) já se torna uma participação específica do sacerdócio.[52]

As explicações ulteriores da tradição tomam como base a compreensão dos apóstolos acerca do ministério sagrado, que ao mesmo tempo não prejudica o sacerdócio de Cristo nem o dos fiéis.[53] Assim descreve este pensamento George (1972, p. 931):

Os Apóstolos o compreendem. Eles estabelecem por sua vez responsáveis para prolongar sua própria ação. Alguns destes últimos trazem o título de Anciãos, que é a origem do nome atual dos sacerdotes (presbíteros: At 14, 23; 20, 17; Tt 1, 5). A reflexão de Paulo sobre o apostolado e os carismas já se orienta para o sacerdócio dos ministros da Igreja. Aos responsáveis pelas comunidades ele dá títulos sacerdotais: “administradores dos mistérios de Deus” (1 Cor 4, 1s), “ministros da nova Aliança” (2 Cor 3, 6); ele define a pregação apostólica como um serviço litúrgico (Rm 1, 9; 15, 15s). Aí está o ponto de partida das ulteriores explicações da tradição sobre o sacerdócio ministerial. Este não constitui, portanto, uma casta de privilegiados. Não significa prejuízo nem para o sacerdócio único de Cristo nem para o sacerdócio dos fiéis. Mas, a serviço dum e de outro, ele é uma das mediações que garantem o serviço do povo de Deus.

No Novo Testamento tem-se, portanto, uma inter-relação do sacerdócio instituído com o sacerdócio de Cristo (expressão da plenitude sacerdotal) e com o sacerdócio régio da comunidade. Essa relação constante e efetiva entre o divino e o humano é o resultado da mediação sacerdotal levada à perfeição.

GERALDO, Thiago de Oliveira. O sacerdócio levítico no contexto histórico-bíblico. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 9, Out-Dez 2009. p. 71-80.


[1] DUFOUR, Xavier Leon S. J. Vocabulário de teologia bíblica. Tradução de Frei Simão Voigt O.F.M. Petrópolis: Vozes, 1972.

[2] Cf. BORN, op. cit., p. 1351.

[3] Cf. Jz 17,5; 18,5-6; 1 Sm 14,36-42.

[4] Cf. Dt 27,9-10; 31,10-13.

[5] MONLOUBOU, L.; DU BUIT, F. M. Dicionário Bíblico Universal.. Tradução de Gentil TITTON et al. 2. ed. Petrópolis: Santuário, 2003.

[6] Cf. Gn 8, 20; 31,54.

[7] Cf. Ex 18,12.

[8] Cf. BROWN, op. cit., p. 287-288.

[9] Cf. Ex 32, 25-28; Dt 33, 8-11.

[10] Cf. Dt 10, 9.

[11] Cf. Dt 27, 14-26; 31, 24-28.

[12] Cf. Ex 2, 1-2.

[13] Cf. 1 Rs 12, 28-33.

[14] Cf. Jz 17.

[15] Cf. Jz 18.

[16] Cf. 1 Sm 1, 3.

[17] Cf. 1 Sm 22, 6-23.

[18] Cf. BROWN, op. cit., p. 288.

[19] Cf. 1 Rs 4, 1-6.

[20] Cf. 1 Rs 12, 25-33.

[21] Cf. 2 Rs 10, 11.

[22] Cf. 2 Rs 11.

[23] Cf. 2 Rs 17, 23.

[24] Cf. 2 Rs 17, 27-28.

[25] Cf. 2 Rs 25, 7.

[26] Cf. 2 Rs 25, 18.

[27] Cf. 2 Rs 22;23, 1-28.

[28] Cf. Nm 18, 1-7.

[29] Cf. 1Cr 23 ,2.

[30] Cf. Ex 29, 29-30.

[31] Cf. Ez 44, 10-14.

[32] Cf. Ez 44, 15-16.

[33] Cf. 1 Cr 24, 1-3.

[34] Cf. BROWN, op. cit. p. 288.

[35] Cf. Ne 8.

[36] Cf. 1 Cr 24.

[37] Segundo SÁNCHEZ (1997, p. 185): “Todos eles viviam do templo e constituíam o partido saduceu”.

[38] Cf. Lv 11-15.

[39] Cf. Lv 21.

[40] Cf. 1 Cr 6, 16-17.

[41] Cf. 1 Cr 6, 33-34.

[42] Cf. BALZ, Horst e SCHNEIDER, Gerhard. Diccionario Exegético del nuevo testamento. 3 ed. Vol. I. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2002. p. 1953.

[43] Cf. Mt 8,4 paralelo com Mc 1, 14; Lc 5, 14; 17, 14.

[44] Cf. BROWN, op. cit. p. 291.

[45] Cf. Os 6,6.

[46] Cf. BALZ e SCHNEIDER, op. cit. p. 1954.

[47] Cf. TERRA, op. cit. p. 64.

[48] Cf. DUFOUR, op. cit. p. 929.

[49] Cf. TERRA, op. cit. p. 65.

[50] Cf. BROWN, op. cit. p. 292.

[51] Cf. BALZ e SCHNEIDER, op. cit. p. 1955.

[52] Cf. DUFOUR, op. cit. p. 931.

[53] No sentido explicado acima (sacerdócio régio).

O sacerdote é modelo para os fiéis

missaMons. João Clá Dias, EP

Sendo visto pelos fiéis como alguém escolhido por Deus para guiá-los, o ministro ordenado deve ser sempre exemplo preclaro de virtude, como recomenda o Apóstolo a seu discípulo Tito: “Mostra-te em tudo modelo de bom comportamento: pela integridade na doutrina, gravidade, linguagem sã e irrepreensível, para que o adversário seja confundido, não tendo a dizer de nós mal algum” (Tt 2, 7-8).

Com efeito, uma conduta irrepreensível, inflamada de caridade, dando testemunho da beleza da Igreja e da veracidade da mensagem evangélica, falará muito mais profunda e eficazmente às almas do que o mais lógico e eloquente dos discursos: “O ornato do mestre é a vida virtuosa do discípulo, como a saúde do enfermo redunda em louvor do médico. […] Se apresentarmos nossas boas obras, será louvada a doutrina de Cristo”.[1]

Por vezes, se interpreta a obrigação de dar exemplo, de ser modelo, num sentido minimalista: o de apenas cumprir mais ou menos os próprios deveres, no mesmo nível de todos os outros. E assim, pelo critério da mediania, procura-se contentar a própria consciência. Ora, quem é chamado a servir de exemplo para os outros não deve se comparar com os que lhe são iguais, mas com aqueles que alcançaram o mais alto grau de perfeição. Cristo, sim, é o verdadeiro modelo do ministro consagrado. É com Ele que o sacerdote deve configurar-se, não só pelo caráter sacramental, mas também pela imitação de Suas perfeições, de forma que nele os fiéis possam ver outro Cristo. Só assim estes se sentirão atraídos pelo bom exemplo de seu pastor e guia.

Dada a natureza social do homem, a boa reputação decorrente da prática da virtude leva os outros à imitação. Assim, quanto mais semelhança com Cristo encontrarem os fiéis nos ministros de Deus, tanto mais facilmente se deixarão guiar por eles. E, portanto, mais eficaz será o seu ministério, conforme comenta São Tomás:

 Ora, essa estima aos prelados da Igreja é necessária para a salvação dos fiéis; se estes não os reconhecerem como ministros de Cristo, não lhes obedecerão como a Cristo, segundo lê-se na epístola aos Gálatas (4, 14): “Recebestes-me como um Anjo de Deus, como o próprio Cristo Jesus”. Ainda mais, se não os reconhecerem como dispensadores, se recusarão a receber deles os dons, contrariamente ao que diz o mesmo Apóstolo: “O que eu dei, se alguma coisa dei, foi por amor a vós, na pessoa de Cristo” (2 Cor 2, 10).[2]

 Essa estima pelos sacerdotes, tão importante para a plena eficácia de seu múnus, depende também da veneração que os fiéis tenham pelo sacerdócio enquanto tal. São Francisco de Assis, por exemplo, que nunca quis receber a ordenação presbiteral, por considerá-la uma dignidade excessiva para si, tinha pelo sacerdócio tal respeito que chegava a oscular o lugar por onde passava um sacerdote.

CLÁ DIAS, João. A Santidade do sacerdote à luz de São Tomás de Aquino. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 8, jul-set 2009. p. 14-15.


[1] Super Tit. cap. 2, lec. 2.

[2] Super II Cor. cap. IV. lec. 1.