A vocação de Santa Teresinha nos seus manuscritos

Pe. Alex Barbosa Brito, EPsta-teresinha

Ao analisarmos os Manuscritos foram encontrados diversos trechos em que aparece o termo Santidade e o seu correlato: a Perfeição. Através de tais excertos, pudemos depreender qual o conceito que a autora possui a tal respeito, bem como as diversas idéias que se entrelaçam com esta temática.

No primeiro trecho, vemos como Santa Teresinha, pergunta-se a si mesma porque todas as almas não recebiam igual medida de graças. Admira-se ela de vê-lo prodigalizar favores extraordinários a santos que o tinham ofendido, como São Paulo, Santo Agostinho, e aos quais forçava, por assim dizer, a receberem suas graças. Por outro lado, nossa santa contempla outros que eram acariciados por Nosso Senhor deste o berço até o túmulo, sem lhes deixar no caminho o menor tropeço que os tolhesse de se levantarem até Ele, predispondo essas almas com tantos favores, a ponto de não empanarem o brilho imaculado de sua veste batismal. Diante disto, questiona-se a respeito do fato de os pobres selvagens, por exemplo, morrerem em grande número, antes mesmo de ouvir pronunciar o nome de Deus.

Levando em consideração esta questão, tal Doutora da Igreja assevera que foi o próprio Jesus que lhe desvendou este mistério, pondo-lhe diante dos olhos o livro da natureza, através do qual ela compreendeu que todas as flores por Ele criadas são formosas, que o esplendor da rosa e a brancura do lírio não eliminam a fragrância da violetinha, nem a encantadora simplicidade da bonina, entendendo, desta maneira, que se todas as pequenas flores quisessem ser rosas, perderia a natureza sua gala primaveril (MENINO JESUS, 2003). De tal figura tira o seguinte ensinamento para a vida espiritual:

Outro tanto acontece no mundo das almas, que é o jardim de Jesus. Quis Ele criar os grandes Santos que podem comparar-se aos lírios, e às rosas; mas criou também os mais pequenos (sic), e estes devem contentar-se em serem boninas ou violetas, cujo destino é deleitar os olhos do Bom Deus, quando as humilha debaixo de seus pés. Consiste a perfeição em fazer sua vontade, em ser o que Ele quer que sejamos… (MENINO JESUS, 2003: 26-27, grifo nosso).

Como observamos no trecho acima, o que há de relevante para aquele que busca a perfeição, é a total conformidade com a vontade de Deus e, conseqüentemente a total fidelidade aos desígnios a seu respeito. É a essa realidade que alude Santa Teresinha no trecho supracitado, no qual percebemos na autora uma consciência muito clara da diversidade de vias para as quais os homens são chamados.

No segundo excerto selecionado, Santa Teresinha conta um fato de sua infância, no qual Leônia, sua irmã, procurou-a e sua outra irmã, Celina, com uma cesta cheia de vestidos e lindos retalhos, oferecendo-lhes tudo. Esta tomou um pacotinho de cordões. Nossa Santa, após uma curta reflexão, declarou: – Escolho tudo! Apoderando-se da cesta sem nenhuma formalidade (MENINO JESUS, 2003).

A respeito deste fato, tece a seguinte consideração:

“E compreendi que para se tornar santa era preciso sofrer muito, ir sempre atrás do mais perfeito e esquecer-se a si mesmo [sic]. Compreendi que na perfeição havia muitos graus e que cada alma era livre no responder às solicitações de Nosso Senhor, no fazer muito ou pouco por Ele, numa palavra, no escolher entre os sacrifícios que exige. Então, como nos dias de minha primeira infância, exclamei: “Meu Deus, escolho tudo”. Não quero ser santa pela metade. Não me faz medo sofrer por vós, a única coisa que me dá receio é a de ficar com minha vontade. Tomai-a vós, pois “escolho tudo” o que vós quiserdes!…” (MENINO JESUS, 2003: 42)

No terceiro trecho a ser considerado, Santa Teresinha comenta como era a formação que, nos tempos de infância, recebia de sua irmã Maria, a qual lhe explicava a importância de não deixar passar nenhuma oportunidade sem procurar juntar as riquezas celestes, dando a entender a grande infelicidade daqueles que nem querem se dar ao trabalho de estender a mão para as agarrar, deixando-as passar ao largo. Desse modo, consoante deixa explícito, sua irmã lhe ensinava a fidelidade nas mínimas coisas (MENINO JESUS, 2003).

Nossa Santa elogia a eloqüência de Maria, imaginando em sua pueril inocência que, se os pecadores mais empedernidos a ouvissem, converter-se-iam (MENINO JESUS, 2003).

Conta, também, neste excerto, um fato que se deu em sua minoridade, no qual uma de suas mestras da Abadia lhe perguntou o que fazia nos dias de folga quando estava sozinha. Teresinha respondeu-lhe que se punha atrás de sua cama, num vão que ali havia, fácil de se fechar com o cortinado, ficando a “pensar”. Sua professora, então, lhe perguntou no que pensava, ao que ela respondeu que cogitava em Deus, na vida, na eternidade… Afinal, que pensava… Muito se divertindo tal religiosa à sua custa (MENINO JESUS, 2003). Sobre este episódio, acrescenta nossa Santa: “Compreendo agora que, sem o saber fazia oração, e que o bom Deus já me instruía em segredo”. (MENINO JESUS, 2003: 89)

No quarto trecho, Santa Teresinha manifesta que foi sempre seu grande desejo ser santa, entristecendo-se pelo fato de a distância que havia entre os Santos e ela poder se comparar à que existe entre uma montanha e um grão de areia, espezinhado pelos transeuntes (MENINO JESUS, 2003).

Ao invés de desanimar, argumenta que o Bom Deus não seria capaz de inspirar-lhe desejos irrealizáveis, não sendo sua pequenez um obstáculo (MENINO JESUS, 2003).

Deste modo, nossa Santa procura um meio de ir para o céu por uma trilha bem reta, bem curta e inteiramente nova. Assim, introduz a figura do elevador, que, naquele tempo, acabara de ser inventado, afirmando que gostaria de encontrar um elevador para se reerguer até Jesus, buscando nos Sagrados Livros uma indicação do objeto de seus desejos. Com efeito, encontra neles as seguintes palavras: “Se alguém é pequenino, venha a mim” contidas no capítulo 94 do livro dos Provérbios, indo com o pressentimento de haver achado o que procurava, com a vontade de saber o que Deus faria a um pequenino que respondesse ao Seu chamado (MENINO JESUS, 2003). Continuando suas reflexões, encontra o seguinte trecho no mesmo capítulo aludido acima: “Como uma mãe acaricia o filhinho, assim vos consolarei, e vos acalentarei em meu regaço” (MENINO JESUS, 2003), a respeito do que faz a seguinte exclamação: “Oh! nunca vieram alegrar minha alma palavras mais ternas e mais melodiosas! O elevador que me conduzirá até ao céu, são vossos braços, ó Jesus! Por isso, não preciso ficar grande. Devo, pelo contrário, conservar-me pequenina, que venha a ser sempre mais”. (MENINO JESUS, 2003: 226-227)

O quinto e último excerto é o mais sublime de todos, pois é nele que Teresinha explicita a sua vocação à Santidade.

Ela inicia tal pensamento da seguinte maneira: “Ser tua esposa, ó Jesus, ser carmelita, ser mãe das almas pela união contigo, deveria ser bastante para mim… Mas assim não acontece… Sem dúvida, as três prerrogativas constituem exatamente minha vocação: Carmelita, Esposa, e Mãe” (MENINO JESUS, 2003: 211).

Depois do que afirma sentir em si outras vocações:

“Sinto em mim a vocação de GUERREIRO, de SACERDOTE, de APÓSTOLO, de DOUTOR, e de MÁRTIR. Sinto, afinal, a necessidade, o desejo de realizar por ti, Jesus, todas as obras, as mais heróicas… Sinto na alma a coragem de um Cruzado, de Zuavo Pontifício. Desejaria morrer no campo de batalha pela defesa da Igreja…[…]” (MENINO JESUS, 2003: 211).

Como seus desejos a martirizavam, abriu as epístolas de São Paulo, dando com os olhos nos capítulos 12 e 13 da primeira aos Coríntios. Comenta que leu no primeiro deles que nem todos podem ser apóstolos, profetas, doutores, etc e que a Igreja se compõe de membros diversos, de modo que o olho não pode ser mão ao mesmo tempo.

Dando continuação esta leitura, deparou-se com uma passagem na qual o Apóstolo convida seus destinatários a buscar os dons maiores, mostrando que os mais perfeitos não são nada sem o Amor, o qual é o caminho por excelência, que leva a Deus com segurança. (MENINO JESUS, 2003). Ao que acrescenta que

“a resposta era clara, mas não satisfazia os meus anseios, não me dava paz… Como Madalena insistia em debruçar-se sobre o túmulo vazio e acabou encontrando o que procurava, assim também, debruçando-me até as profundezas do meu nada, ergui-me a tal altura, que pude alcançar o meu objetivo… A resposta era clara, mas não satisfazia os meus anseios, não me dava paz… Encontrara, enfim, tranqüilidade… Tomando em consideração o corpo místico da Igreja, não me identificava em nenhum dos membros descritos por São Paulo, por outra, queria identificar-me em todos eles. A caridade deu a chave de minha vocação. […] Compreendi que o AMOR ABRANGE TODAS AS VOCAÇÕES, ALCANÇANDO TODOS OS TEMPOS E TODOS OS LUGARES… NUMA PALAVRA, É ETERNO…” (MENINO JESUS, 2003: 213).

E, para concluir tal raciocínio, faz de uma maneira vibrante e entusiasmada, a seguinte assertiva: “Então, no transporte de minha delirante alegria, pus-me a exclamar: Ó Jesus, meu amor, minha vocação, encontrei-a afinal: MINHA VOCAÇÀO É O AMOR!….” (MENINO JESUS, 2003: 214)

Considerando o que acima foi explicitado nós podemos concluir, de acordo com o pensamento da Doutora da Igreja aqui focalizado:

1) Que a santidade consiste antes de tudo em estar disposto por completo a fazer a vontade de Deus.

2) Que para tanto se faz necessário o sofrimento.

3) Que os meios para obter a santidade são a oração e a fidelidade nas pequenas coisas.

4) Que se faz necessário deixar-se levar, sem impor obstáculos, por esse Divino Elevador, que é Jesus Cristo, através da compenetração da própria fragilidade, da confiança, e da completa fidelidade às suas luzes e graças.

5) Que a vocação específica de Santa Teresinha é o Amor.

O Filho de Deus com a Sua encarnação uniu-se, de certo modo, a todo o homem

Diác. Francisco Berrizbeitia, EP

Trata-se aqui de um antigo ensinamento enraizado no Novo Testamento[1] e que o Concílio Vaticano II propõe: “O Filho de Deus com a encarnação uniu-se, de certo modo, a todo o Homem.” Isto nos esclarece que, por um lado, a união hipostática só a fez Cristo uma vez com a Encarnação na Sua humanidade em concreto e, portanto, essa hipóstase está completa nEle e não com a humanidade.

Podemos dizer também que graças a esse “certo modo” que se deu com a Encarnação, a união com toda a humanidade se fez no plano salvífico, pois constitui a base pela qual Cristo elevou o homem de sua miséria fazendo-o partícipe de Sua vida divina. Por isso, a Igreja ao proclamar na sua liturgia “O félix culpa[2], canta a alegria do Povo de Deus por, ao pecarem nossos primeiros pais, o Verbo fazer-se carne e resgatar o gênero humano com sua morte e ressurreição e nos conceder o dom do Espírito. Uma coisa está clara e é o mistério, a grandeza e a beleza a qual Cristo elevou o homem de sua prostração a participar de um convívio com a Trindade, a uma comunio com ela. Sem falar da promessa da Sua presença diária na Eucaristia. Jesus não se deixa vencer em graça e generosidade para com o homem.

A tradição dos primeiros padres da Igreja quis explicar-nos o contexto na figura do Bom Pastor e da ovelha perdida como símbolo de toda a humanidade pecadora. Assim o descreve Gregório de Nisa (contra Apoliarem XVI):[3]

Esta oveja somos nosotros, los hombres. Que nos hemos separado con el pecado de las cien ovejas razonables. El Salvador carga sobre las espaldas la oveja toda entera.  Porque no se ha perdido solo una parte, sino porque se había perdido toda entera, por eso toda entera ha sido acompañada. El pastor la lleva en sus espaldas, o sea en su divinidad. Por esta asunción llega a ser una sola cosa con Él.

É interessante constatar como esta idéia de Cristo estava enraizada profundamente na Igreja, de tal forma que as interpretações mais antigas na arte paleocristã, que se conhece de Cristo, pintam-no ou esculpem-no como o Bom Pastor, levando sobre os seus ombros a ovelha. Também na Liturgia está assinalado o quarto domingo depois da Páscoa, justamente como a festividade do Bom Pastor.

Santo Agostinho comenta o fato, também resgatado da tradição de que:

Cuando ora el cuerpo del Hijo no se separe de sí a su Cabeza, de tal manera que ésta sea un solo salvador de su cuerpo, nuestro Señor Jesucristo Hijo de Dios, que ora por nosotros, ora en nosotros y es invocado por nosotros.[4]

Esta constitui a misteriosa conexão que se estabeleceu na Encarnação de Cristo, como cabeça que salva o corpo e que, sendo cabeça, ficou indissoluvelmente unida ao corpo, de tal maneira que a plenitude deste último, causada pela cabeça, constitui a salvação do mesmo Cristo, já não pensável sem o corpo da sua Igreja. Portanto, temos dois movimentos: um da cabeça ao corpo e outro do corpo à cabeça. Nada do que ocorre na cabeça é alheio ao corpo e vice-versa.

Conclui-se com um pensamento do teólogo, hoje Papa Bento XVI, em 1968, sobre a GS 22:

Pela primeira vez num documento da Igreja temos uma versão completamente nova da teologia cristocêntrica. Sobre a base de Cristo, esta ousa apresentar a teologia como antropologia e se mostra radicalmente teológica pelo fato de ter incluído o homem no discurso de Deus por meio de Cristo, manifestando deste modo a profunda unidade da teologia.[5]


[1] Ver Jo 1, 12-14; Fl 2, 5-7; 4, 4-7; Ef 4, 20-23; Hb 2, 17; 1Jo 15, 19.

[2] O félix culpa, quae talem et tantum meruit habere redemptorem (Precónio da Vigília Pascal).

[3] LADARIA L.,  “Jesucristo, salvación de todos”, San Pablo-U.Comillas, Madrid 2007, p. 105.

[4] Idem, p. 106.

[5] GALLAGHER M., “Ludici per il corso TFC004”7, PUG, Roma 200, p. 10. (tradução nossa)

A proposta de santidade impele à perfeição na caridade

Pe. José Victorino de Andrade, EP

“Sede perfeitos como vosso Pai do Céu é perfeito” (Mt 5, 48). Para São Tomás de Aquino, esta proposta que Nosso Senhor nos faz na sequência do Sermão das Bem-Aventuranças não pode ser inatingível pelo homem, pois neste caso jamais lhe poderia ser prescrito.[1] Portanto, tem de ser possível chegar à perfeição nesta vida, e esta consiste, de acordo com Santo Agostinho, na ausência dos desejos desordenados que se opõem à caridade. O Aquinense acrescenta a esta doutrina tudo quanto possa impedir que o afecto da mente se dirija totalmente a Deus, sem o que não poderá haver caridade, que é a perfeição da vida cristã.[2]

O Catecismo da Igreja Católica aclara esta questão:

O exercício de todas as virtudes é animado e inspirado pela caridade, que é o ‘vínculo da perfeição’ (Cl 3,14); é a forma das virtudes, articulando-as e ordenando-as entre si; é fonte e termo de sua prática cristã. A caridade assegura e purifica nossa capacidade humana de amar, elevando-a à perfeição sobrenatural do amor divino (n. 1827).

Embora alguns autores prefiram distinguir o convite à perfeição da vocação relativamente à santidade, os termos se interpenetram na medida em que a perfeição pode e deve ser um notável caminho para a santificação.[3] De acordo com São Paulo (Cl 1, 28), é a perfeição em Cristo que os homens devem almejar para se apresentar diante de Deus e dos demais. A Lumen Gentium recorda que “todos os fiéis, seja qual for o seu estado ou classe, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade” (n. 40), ou seja, à santidade.

Esta comum vocação de todos os homens à santidade, seja qual for o seu estado, é atestada pelo Catecismo da Igreja Católica[4] e por numerosos documentos do Concílio Vaticano II.[5] Conforme Bento XVI: “No contexto da vocação universal à santidade (I Ts 4, 3) encontra-se a vocação especial para a qual Deus exorta todos os indivíduos”.[6]

A Constituição Dogmática Lumen Gentium dedica-lhe um capítulo inteiro,[7] exortando o cristão a ser exemplo para todo o próximo na medida em que, praticando os conselhos evangélicos, edifica toda a sociedade:

A prática destes conselhos, abraçada sob a moção do Espírito Santo por muitos cristãos, quer privadamente quer nas condições ou estados aprovados pela Igreja, leva e deve levar ao mundo um admirável testemunho e exemplo desta santidade (n. 39).

E que maior caridade poderá haver do que aquela que se manifesta na santidade? Esta é a verdadeira caridade, que permanecerá sempre, conforme nos explica o Papa Bento XVI na sua encíclica, caridade na verdade. Por isso afirmava já São Tomás: “Quem vive na caridade, participa em todo o bem que se faz no mundo”,[8] e ainda: “O ato de um realiza-se mediante a caridade do outro, daquela caridade por meio da qual todos nós somos um só em Cristo”.[9]


[1] Cf. S. Th. II-II Q. 184, a. 2.

[2] Loc. Cit.

[3] Ver a este respeito NETTO DE OLIVEIRA, José. Perfeição ou Santidade e outros textos espirituais. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2002.

[4] Ver, por exemplo, n. 941, 1533, 2013.

[5] Entre outros: Lumen Gentium, n. 32; Gaudium et Spes, n. 34 ; Gravissimum Educationis, n. 2; Presbyterorum Ordinis, n. 2.

[6] Visita Ad Limina Apostolorum dos Bispos do Canadá – Atlântico. 20 mai. 2006. Disponível em : <www.vatican.va>.

[7] Capítulo V: A Vocação de todos à santidade na Igreja.

[8] Symb. Apost.

[9] IV Sent. d. 20, a. 2; q. 3 ad 1.

O mistério da Santíssima Trindade

Mons. João S. Clá Dias, EP

O mistério da Santíssima Trindade é o principal de nossa fé. Essencialmente se concentra num mistério de conhecimento e de amor. O primeiro precede o segundo, não por anterioridade de tempo mas, por pura lógica. Em face disto, podemos afirmar que a primeira atividade de Deus é a de conhecer. O Filho é gerado pelo Pai por via do conhecimento. Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado, revela-nos algumas maravilhas desse íntimo conhecimento no seio da Trindade Santíssima: “Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece o Filho senão o Pai; nem alguém conhece o Pai senão o Filho” (Mt 11, 27). “Em verdade, em verdade vos digo: O Filho não pode de si mesmo fazer coisa alguma, mas somente o que vir fazer o Pai; porque tudo o que fizer o Pai, o faz igualmente o Filho. Porque o Pai ama o Filho, e mostra-lhe tudo o que ele faz” (Jo 5, 19-20).

Quem melhor nos revelaria o Pai, do que Jesus, Seu Unigênito? Ele nos torna possível penetrar nos segredos da vida íntima de Deus, através dessa virtude teologal, não como no enunciado de um teorema abstrato, mas de maneira toda divina e sobrenatural: “Nós agora vemos [a Deus] como por um espelho, um enigma; mas então [O veremos] face a face. Agora conheço-O em parte; mas então hei de conhecê-Lo como eu mesmo sou [dele] conhecido” (1 Cor 13, 12-13).

É por essa mesma virtude que cremos na Revelação sobre a procedência, por via de amor, da terceira pessoa, o Espírito Santo. E ademais, permite-nos ela abarcar todos os mistérios da salvação.

In: Lumen Veritatis, n. 4.

Haverá esperança para uma cultura centrada na mera ciência?

Pe. François Bandet, EP

A fim de melhorar o entendimento da ciência quotidiana, é necessário tomar em conta duas características da ciência que influenciam tremendamente: a sua refletividade e a sua tecnicalidade.

Por refletividade, entendemos o meio de integração da dimensão da consciência no campo da ciência e, a partir daí, atingindo uma dimensão filosófica.

Pela sua tecnicalidade, a ciência distancia-se de toda a teoria e torna-se exclusivamente a técnica. Os dados tornam-se o mais importante e no seu caminho tentam “possuir” as leis da natureza.

Como a ciência sempre desejou “transformar” o mundo, está ligada à humanidade no seu ato de ser, no seu corpo e no seu espírito, tocando atualmente em problemas políticos, éticos e colocando em questão a própria humanidade.

Surge então um dilema para a humanidade: seguir a mentalidade lógica e técnica da ciência, olhando por cima de todas as considerações éticas, criando tensões e conflitos e concentrando-se na expansão e no desenvolvimento da “transformação” do mundo; ou encontrar (ou inventar) uma nova moralidade ética para justificar as novas conquistas.

Através da sua capacidade de transformar o mundo, a ciência criou novos problemas para a humanidade. Considerada, formalmente, um elemento de unificação, tornou-se hoje muito controversa devido aos excessos que produziu. Pense-se, por exemplo, nos atuais problemas e desastres ecológicos.

O futuro do homem e a sua existência parecem encontrar-se totalmente e irreparavelmente ligados à ciência e à tecnologia de amanhã. Por isso se deve desenvolver uma nova relação com a Fé, que deve ser respeitada e encorajada.

O conflito que surge pode ser encontrado ao nível do homem, da sua existência e da urgência de submeter a ciência aos valores morais humanos. Por outro lado, a Fé não deve mostrar um completo desinteresse em relação à ciência; poderá até tornar-se uma forte fonte de inspiração para ajudar a encontrar um senso de moralidade que irá fazer com que se produzam abundantes frutos de diálogo e unidade no mundo.

A ambiguidade da ciência moderna reside no fato de ter contribuído para o progresso da humanidade, mas que também está na origem de várias tensões, aberrações e desastres.

Cada vez se torna mais evidente que não é possível lidar com o problema do significado da vida, com questões éticas, e com um sistema de valores, no contexto de uma cultura centrada apenas na ciência.

Tradução de Pe. José Manuel Victorino de Andrade do original em inglês para Lumen Veritatis, n. 6, 2009.

As associações privadas de fiéis

Mons. João S. Clá Dias, EP

O Código atual traz a auspiciosa novidade das associações privadas de fiéis. Os cânones 298 a 329 tratam das associações de fiéis, dividindo os textos legislativos em quatro capítulos. No primeiro, expõe as “normas comuns” (cân. 298-311); no segundo, prescreve normas sobre associações públicas de fiéis (cân. 312-320); o terceiro (cân. 321-326) trata das associações privadas de fiéis; por fim, no quarto (cân. 327-329), introduz algumas “normas especiais para as associações de leigos”.

As associações de fiéis — sejam elas integradas por clérigos e leigos, ou só por clérigos, ou só por leigos — são distintas dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica. Sua finalidade é, mediante o esforço em conjunto de seus membros, fomentar uma vida mais perfeita, promover o culto público, ensinar a doutrina cristã, além de outras obras de apostolado, isto é, iniciativas de evangelização, exercício de obras de piedade e caridade, e animação da ordem temporal com o espírito cristão (cf. cân. 298). As associações privadas não podem, obviamente, incluir entre suas finalidades o exercício de atividades que, por sua natureza, são exclusivas da autoridade eclesiástica (cf. cân. 301). Essa restrição, porém, não empana sua natureza eclesial.[1]

Como já foi referido, o cânone 215 garante a todos os fiéis o direito de fundar e dirigir associações. O cânone 299, § 1, reitera esse direito, especificando: “Por acordo privado, os fiéis têm o direito de constituir associações, para obtenção dos fins mencionados no cân. 298, § 1, salva a prescrição do cân. 301, § 1”. E acrescenta no § 2: “Essas associações, mesmo se louvadas ou recomendadas pela autoridade eclesiástica, denominam-se privadas”. E o cânone 321 garante aos fiéis o direito de dirigir e governar as associações privadas, nos termos de seus estatutos.

Em seu Dicionário de Direito Canônico, Salvador (1997, p. 65) designa as finalidades das associações como sendo “as mesmas da missão de Cristo e da Igreja”, da qual todo fiel participa em virtude do Batismo. Têm elas, portanto, fins religiosos.

Chiapetta (1994, p. 67) corrobora essa opinião, afirmando que do cân. 298, § 1 resulta claramente que as associações de fiéis “tendem a fins religiosos, correspondentes ou conexos com a missão da Igreja”. E acrescenta: “As associações cujos objetivos são profanos e temporais (econômicos, sindicais, políticos, profissionais, culturais etc.) não se enquadram nesse dispositivo e, como tais, são estranhas ao ordenamento canônico. Delas se ocupa a legislação civil”.

Em razão do ato fundacional algumas distinções e características se apresentam. Assim, dependendo de quem promova e efetive a fundação, a associação, esta será pública, se foi erigida por a autoridade eclesiástica competente, e privada, se por iniciativa dos fiéis.

Ainda com relação à iniciativa fundacional, cabe destacar que, segundo o cânone 301, § 1, somente a “autoridade eclesiástica competente” pode erigir associações que tenham por objetivo promover o culto público, ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou alguma outra finalidade cuja obtenção esteja reservada, por sua natureza, à autoridade eclesiástica.

Outro tipo de associação é o caracterizado pelo cânone 302, o qual denomina “clericais” aquelas que satisfazem três condições: “São dirigidas por clérigos, assumem o exercício de ordem sagrada e são reconhecidas como tais pela autoridade competente”. Segundo Ferrer Ortiz (1991, p. 210), essas associações são sempre públicas e o termo “clerical” refere-se não só aos clérigos que as dirigem e ao fato de o ato constitutivo emanar da autoridade eclesiástica, mas também “a uma modalidade de exercício do ministério sagrado por seus membros”.[2]

Ghirlanda (2007, p. 269) chega a uma definição sintética de associação privada nos seguintes termos:

Associação privada é a que, surgida por iniciativa dos fiéis, leigos, clérigos ou religiosos, governada por eles segundo os estatutos próprios, estando sempre em relação com a autoridade eclesiástica que pode também erigi-la em pessoa jurídica privada, se propõe finalidades religiosas ou caritativas, exceto aquelas cuja obtenção é reservada somente à autoridade eclesiástica. A natureza privada da associação não diminui de nenhum modo sua eclesialidade.

O cânone 304 prescreve que todas as associações de fiéis — públicas ou privadas — precisam ter seus estatutos nos quais se determinem sua finalidade, sede, governo, regras para admissão de sócios etc. Os estatutos das associações privadas devem ter pelo menos o reconhecimento, recognitio, da autoridade eclesiástica.

Sem embargo, autores como Chiapetta entendem como legítima a existência de entidades privadas com fins religiosos, sem o reconhecimento dos estatutos. Navarro (2002, p. 431-432) opina no mesmo sentido, mencionando diversos doutrinadores, e afirma ser essa a posição adotada por “algumas Conferências Episcopais”. Entre estas, a Conferência Episcopal Italiana e a Francesa, as quais tratam do assunto em documentos por ele colecionados.

Não só isso: segundo ele, as referidas Conferências Episcopais tomam em consideração até associações que não têm estatutos, ou nem cheguem a ter propriamente estrutura e organização, mas cuja existência seria legítima, em decorrência dos direitos de associação e de reunião.

Consignemos também que as associações privadas podem possuir ou não personalidade jurídica na Igreja. Esta se adquire por um decreto formal da autoridade eclesiástica competente, à qual compete aprovar previamente os estatutos. Em síntese, pode-se dizer que existem três espécies de associações privadas distintas na atual legislação canônica:

– Associações de fato, baseadas exclusivamente na livre vontade dos seus componentes e sem qualquer reconhecimento, aprovação ou ereção por parte da autoridade eclesiástica.

– Associações com estatutos apenas reconhecidos, isto é, sem um decreto formal de aprovação.

– Associações com personalidade jurídica e estatutos aprovados, por meio de decreto formal da autoridade competente.

No que se refere aos efeitos do reconhecimento, só podem ser sujeitos de obrigações e de direitos as associações dotadas de personalidade jurídica (cf. cân. 310).

In: Lumen Veritatis, n. 6.



[1] Fuentes (2002, p. 514) trata de uma delicada distinção entre as associações civis, que tendam a fins “que afetam mais ou menos diretamente à Igreja”, e as associações eclesiais. Para não alongar demasiadamente o presente estudo e desviar o foco que são propriamente as associações privadas de fiéis, deixamos de tratar do interessante assunto aqui e recomendamos a quem nele deseje se aprofundar que consulte o próprio texto de Fuentes.

[2] Diz o autor: “[O Código de Direito Canônico] denomina clericais àquelas associações de fiéis que estão sob a direção de clérigos, fazem seu o exercício da ordem sagrada e são reconhecidas como tais pela autoridade competente (cân. 302). Emprega o termo clerical em sentido técnico-jurídico, fazendo referência não só a quem dirige a associação e ao ato constitutivo da mesma pela autoridade eclesiástica — que lhe confere o caráter de pública — senão também a uma modalidade no exercício do ministério sagrado por parte de seus membros. Por esta razão, uma associação formada exclusivamente por clérigos e destinada a fomentar entre seus sócios uma forma concreta de espiritualidade sacerdotal, no exercício do ministério e sob a dependência do próprio Ordinário, não terá a condição de clerical, será uma associação comum de fiéis e poderá ser tanto pública como privada (Gutiérrez)” (FERRER ORTIZ, 1991, p. 210).

Caráter das inteligências elevadas: notável doutrina de São Tomás de Aquino

 Por que certas verdades simples não se apresentam a todas as inteligências? Como o gênero humano acaba admirando um homem tido por extraordinário, se soube ver certas coisas que o mundo inteiro (ao menos assim parece) poderia ter visto como ele? Isto é perguntar a razão de um segredo da Providência, é questionar por que o Criador concede a alguns espíritos de elite uma grande força de intuição, ou, por assim dizer, uma visão intelectual imediata, recusada ao maior número (de pessoas).

São Tomás expõe sobre esse fato particular uma admirável doutrina. Segundo o santo doutor, o raciocínio é uma marca da fraqueza de nosso espírito. A faculdade de desenvolver as ideias nos foi dada para superar essa debilidade. Os anjos compreendem, mas não raciocinam. Quanto mais uma inteligência é elevada, mais o número de suas ideias diminui, porque ela encerra, num pequeno número desse tipo de coisas, aquilo que as inteligências de um grau inferior repartem em número maior. Assim, os anjos do mais alto grau abraçam, com a ajuda de algumas ideias apenas, um círculo imenso de conhecimentos. O número de ideias vai-se reduzindo sempre nas inteligências criadas, à medida que elas se aproximam do Criador. E Ele, a Ideia por excelência, o Ser infinito, a Inteligência infinita, quer tudo numa mesma ideia, simples, única, imensa, ideia que não é outra que a sua essência. Que sublime teoria. Ela revela um conhecimento admirável dos segredos do espírito e nos sugere inumeráveis aplicações relativamente às faculdades do homem.

De fato, os espíritos de elite não se distinguem pela quantidade de suas ideias. Eles não possuem senão um pequeno número, no qual eles envolvem o mundo. A ave das planícies se fadiga de rasar a terra; ela passa e repassa pelos mesmos lugares, não passando jamais as sinuosidades e os limites do vale onde nasceu. A águia, em seu voo majestoso, sobe, sobe sempre, não se detém antes dos mais altos cumes, e de lá seu olhar acurado contempla as montanhas, os cursos dos rios, as vastas planícies cobertas de cidades populosas, as verdes pradarias e as ricas pastagens.

Há em todas essas questões um ponto de vista culminante, em que se posiciona o gênio. Desta feita, o seu olhar domina e envolve as coisas. Se ele não é dado ao comum dos homens de se elevar até lá numa primeira volta, ao menos ele deve tender para isso sem cessar. Os resultados pagam o esforço ao cêntuplo. Como se pode observar, toda a questão, ou mesmo toda a ciência, resume-se em um pequeno número de princípios essenciais, dos quais todos os outros decolam. Devem-se compreender esses princípios e o resto se tornará simples e fácil, e não nos deteremos mais em detalhes (escusados).

Apresente ao espírito o objeto simplificado o mais possível e desembaraçado por assim dizer, de toda a folhagem inútil. A sua singeleza exige. Para obter que ele multiplique sua atenção, evite exigir muito dele. Trate de circunscrevê-lo. Esse método lhe facilita a compreensão das coisas, dá às suas percepções a exatidão e a lucidez, e ajuda possantemente a memória.

Traduzido do Francês. BALMES, Jaime. Art d’arriver au vrai: Philosophie pratique. Paris: Auguste Vaton, 1850. p. 129-140 (Capítulo XVI), por Pe. José Victorino de Andrade, EP. In: Lumen Veritatis, n. 7, 2009.

O agir e o contemplar no ensinamento de São Tomás

Diác. Inácio de Almeida, EP

Diversos são os trechos da obra de São Tomás em que ele versa sobre a Contemplação, como o IV artigo do opúsculo De Magistro (questões Discutidas sobre a Verdade, XI) que tem por título: “Se ensinar é ato da vida contemplativa ou ativa”. O Angélico também abordou esse tema em seus Comentários ao III Livro das Sentenças de Pedro Lombardo (Distinção XXV, Q. I, A. 2) quando analisava se a vida contemplativa consistia somente num ato do entendimento. Entretanto, foram nas questões 179 a 182 da II- IIa, da Suma Teológica, que ele tratou mais largamente desta temática.

Convém recordar que, de acordo com Camello (2000, p. 18), quando São Tomás escrevia sobre a natureza ativa ou contemplativa do ensino, tinha bem presente a polêmica suscitada pelos mestres seculares da Universidade de Paris, que discutiam sobre a verdadeira natureza do ensino, e se o magistério convinha somente aos homens de vida ativa ou também àqueles de vida contemplativa ia se desenvolvendo um surdo conflito entre professores do clero secular e os mestres que provinham das ordens religiosas. O que se há de preferir: a vida ativa ou a vida contemplativa? A quem está reservada uma e outra? Ensinar é missão de ativos ou de contemplativos? Não parece inadequado que se pense nos desdobramentos teóricos do conflito político-universitário, como fazendo pano de fundo para o texto de São Tomás.

 No Doutor Angélico, o ensino e a pregação, a transmissão daquilo que se contemplou passará a fazer parte da vida contemplativa. O ideal da vida cristã será uma vida na qual o contemplativo, movido pelo dinamismo suscitado pela própria contemplação, é capaz de deixar “a Deus por Deus”, ou seja, para servi-Lo nos irmãos. A vida ativa, na concepção tomista, é ordenada para o bem do próximo, sendo mais perfeitamente levada à luz da contemplação quando se procura a verdade suprema que é Deus.

Forment (2005) afirma que a supremacia da contemplação apresenta-se como fundamental no pensamento de São Tomás. Seu ideal de perfeição se baseia na primazia da contemplação sobre a ação, embora reconhecendo que esta última é necessária, porque o homem não é só espírito e deve adquirir sua perfeição como homem.

Sem embargo, a ação não se revela como oposta à contemplação, senão que é um instrumento seu, sua preparação, ou até mesmo um de seus efeitos. Por isso, São Tomás declara que quando as necessidades nos levam por um momento a deixar a contemplação, não quer dizer que devemos abandoná-la por completo:

Às vezes, premidos pelas necessidades, temos de deixar a contemplação para nos darmos às obras da vida ativa; mas não de modo que devamos abandonar completamente a contemplação. Por isso diz Agostinho: O amor da verdade deseja um santo repouso. Mas, a caridade, se for preciso, faz-nos aceitar um justo trabalho, isto é, o da vida ativa. Se ninguém, contudo, nos impuser essa carga entreguemo-nos ao estudo e à contemplação da verdade. Mas, sendo-nos ela imposta, a caridade mesmo nos impõe a necessidade de aceitá-la. Nem por isso, contudo, devemos abandonar de todo a doce contemplação da verdade, não seja que, privados dessa suavidade, sintamos a opressão da necessidade. Por onde é claro que quem é chamado da vida contemplativa para a ativa, não sofre uma subtração, mas deve fazer antes uma adição (q. 182 II-IIa, a.1).

Com base nesta compreensão da contemplação, se entende a defesa que o Angélico faz do ideal de vida inaugurado por São Domingos e continuado pelos frades Dominicanos. Assim, São Tomás citado por Velasco (2003, p. 95) falando desse centro da vida espiritual que é o amor, escreverá que:

No amor devem-se levar em conta estes três graus. É a Deus a quem devemos amar por si mesmo. Mas há muitos que com gosto e sem grande pesar se afastam da contemplação de Deus, para seguir atrás dos negócios terrenos. Nestes só se torna presente um pequeno amor. Outros, em compensação, sentem na contemplação de Deus uma alegria tal que não podem abandonar nem para ocupar-se do serviço de Deus para a salvação do próximo. Finalmente, há outros que conseguem um grau tão alto de amor que, embora sintam sua alegria maior na contemplação de Deus, deixam-na para servir a Deus no cuidado pela salvação do próximo. Esta foi a perfeição de Paulo. Esta é a perfeição própria dos prelados e pregadores.

Tomás “viveu a vida de um mestre e com toda a entrega que era capaz” (PIEPER, 2005). Na Suma Contra os Gentios se encontra uma discreta indicação do que ele considerava como a principal tarefa de sua vida, fazendo suas as palavras de Santo Hilário: “Sou consciente de que o principal dever de minha vida para com Deus é esforçar-me para que minhas palavras e todos meus sentidos falem dele” (2007, p. 40). Aquela perfeita união que havia em São Tomás entre a vida de oração e a vida do estudo era “o segredo de sua santidade”:

Eis aqui o segredo do singular esplendor de seu magistério. O magistério — nos ensina ele mesmo — é uma obra da vida ativa e é preciso confessar bem alto que às vezes não se encontram nele mais que as cargas e os estorvos próprios da ação, se oculta também ali um perigo para a vida do espírito, na pesada revolta dos conceitos que constitui o labor pedagógico e que está sempre exposta, se não se a vigia constantemente, a fazer-se material e mecânica. “São Tomás foi um professor completo, porque foi mais que um simples professor, já que nele o discurso descendia por inteiro dos simplíssimos cumes da contemplação” (MARITAIN, 1942, p. 98-99).

São João da Cruz diz algo semelhante quando trata daqueles que têm a função de ensinar. Este autor afirma que a grande força de quem é mestre não está propriamente nas palavras, mas sim na vida interior, porque o ensinar é um exercício mais espiritual do que propriamente vocal, já que embora seja exercido por meio da palavra, não teria verdadeira força nem eficácia se não viesse da vida interior. São João da Cruz (1984) conclui dizendo

Por mais alta que seja a doutrina, de si não causa ordinariamente mais proveito do que o que tiver de espírito. Por isso que se diz: “Tal mestre, tal discípulo”. E é por isso que vemos geralmente, pelo menos tanto quanto podemos julgar neste mundo, que quanto melhor é a vida (dos que ensinam), tanto maior é o fruto que tiram; (quanto aos demais), embora tenham dito maravilhas, logo são esquecidos (Subida do Monte Carmelo; L. III, C. 45).

Desta forma é que se entende melhor toda a eficácia do ensino de São Tomás, pois de acordo com Grabmann (apud AMEAL, 1947, p. 130) “a figura científica de São Tomás não se pode separar da grandeza ético-religiosa de sua alma; em Tomás, não se pode compreender o investigador da verdade sem o Santo”. Para o Angélico, embora a contemplação de Deus nesta vida seja imperfeita se comparada com a celeste, contudo, é mais agradável que qualquer outra contemplação por causa da excelência do objeto contemplado, e citando Aristóteles, diz que:

As nossas teorias são fracas relativamente a essas nobres e divinas substâncias: mas, embora o que delas conhecemos seja pouco, contudo, a elevação mesma desse conhecimento nos causa um prazer maior que tudo o mais que ele possa abranger. E o mesmo ensina Gregório: “A vida contemplativa é muito amável e cheia de doçura, eleva a alma acima de si mesma, abre-nos os tesouros celestes e torna patente o mundo espiritual aos olhos da alma” (II-IIa q.180 a.7).

São Tomás faz suas as palavras de Santo Agostinho, quando este explica o trecho do Evangelho de Lucas que narra a visita de Jesus à casa de Marta e Maria:

‘No princípio era o Verbo’ a quem Maria ouvia. ‘O Verbo se fez carne’ a quem Marta servia. […] Escolham para si a melhor parte, isto é, da vida contemplativa; exerçam a palavra, abeberem-se da doce doutrina, cultivem a ciência da salvação… (Marta), tu não escolheste algo de mal, entretanto, (Maria) escolheu a melhor”.

 E citando São Gregório conclui: “Passada esta vida, com ela desaparece a vida ativa; ao contrário, começada nesta vida, a vida contemplativa se consuma na pátria celeste” (II, II, q. 181, a. 4).

Dado o que acima foi dito, pode-se concluir que São Tomás foi eminentemente contemplativo e que sua obra contém numerosos ensinamentos sobre a prática da oração e da contemplação. Por isso, seu ideal de vida bem poderia ser formulado num lema que resume o exercício e a compreensão da contemplação: Contemplata aliis tradere[1], transmitir aos outros as realidades que se contemplam.

In: Lumen Veritatis, n. 5, 2008.


[1] Suma Teológica, IIa IIae, q. 188, a. 6.

Só Deus sacia por completo todos os desejos do coração humano

L'AngelusPe. José Victorino de Andrade, EP

Dificilmente se encontrará alguém que não anseie e procure a felicidade. Esta demanda foi posta por Deus no coração de todos os homens que, à semelhança de Santo Agostinho, apenas descansam quando O encontram e n’Ele “repousam” (Confissões I, 1). O início do Catecismo da Igreja Católica começa exactamente com esta temática, lembrando que o homem é capaz de Deus. Entretanto, esta insaciabilidade leva não só ao desejo de uma realização pessoal, no âmbito da vocação específica de cada um, como também da sociedade doméstica à qual pertence, e mesmo da comunidade, na qual se insere e vive.

Ensina-nos o Compêndio de Doutrina Social da Igreja que “o bem comum da sociedade não é um fim isolado em si mesmo; ele tem valor somente em referência à obtenção dos fins últimos da pessoa e ao bem comum universal de toda a criação” (n. 170). Ou seja, a realização pessoal nunca se faz de um modo isolado, mas num contexto, numa sociedade, peregrinação nesta terra herdada para o Homem a dominar através do seu trabalho, e colher os frutos, obtendo o alimento com o suor do rosto (Gn 1, 28-29; 3, 19).

Assim, a felicidade terrena, imperfeita, não se torna “num mar de alegrias, de contínua beatitude, que, durará sempre” (Is 35, 10), pois falta-lhe a visão beatífica – totus sed non totaliter -, de Deus. Peregrinando pelo mundo, a felicidade será sempre relativa, mas essa busca incessante estará por trás de tudo aquilo que o homem opera.

É impossível que a criatura racional dê um só passo voluntário que não esteja encaminhado, de uma ou outra forma, para a sua própria felicidade, já que, […] todo agente racional obra por um fim, que coincide com um bem (aparente ou real) e, pelo mesmo, conduz à felicidade (ROYO MARÍN, Antonio. Teología Moral para Seglares. 7. ed. Madrid: BAC, 2007. Vol. I. p. 22).

Por isso, explica São Tomás de Aquino que todos desejam alcançar a beatitude, entretanto, diferem nos meios para obtê-la, procurando-a através de riquezas, prazeres, ou outras coisas. Porém, o fim, ainda que implicitamente, permanece o sumo bem para o qual tendem todos os homens (S. Th. I-II, q. 1. a. 7.). Ora, este é identificado pelo Pe. Royo Marín, OP como sendo o próprio Deus:

Não é nem pode ser outro que o próprio Deus, Bem infinito, que sacia por completo o apetite da criatura racional, sem que absolutamente nada possa desejar fora dele. É o Bem perfeito e absoluto, que exclui todo o mal e enche e satisfaz todos os desejos do coração humano (Op. cit.  p. 23).

Oração numa atmosfera de harmonia e concórdia

IMG_2148Mons. João S. Clá Dias, EP

Como outras tantas festas litúrgicas, Pentecostes nos faz recordar um dos grandes mistérios da fundação da Igreja por Jesus. Encontrava-se ela em estado ainda quase embrionário — alegoricamente, poder-se-ia compará-la a uma menina de tenra idade — reunida em torno da Mãe de Cristo. Ali no Cenáculo, conforme nos descrevem os Atos dos Apóstolos na primeira leitura, passaram-se fenômenos místicos de excelsa magnitude, acompanhados de manifestações sensíveis de ordem natural: ruído como de um vento impetuoso, línguas de fogo, os discípulos exprimindo-se em línguas diversas sem tê-las antes aprendido. A alta significação simbólica do conjunto desses acontecimentos, como de cada um em particular, constituiu matéria para inúmeros e substanciosos comentários de exegetas e teólogos de grande valor.

Enquanto figura exponencial, destaca-se Maria Santíssima, predestinada desde toda a eternidade a ser Mãe de Deus. Dir-se-ia que havia atingido a plenitude máxima de todas as graças e dons, entretanto, em Pentecostes, mais e mais Lhe seria concedido. Assim como fora eleita para o insuperável dom da maternidade divina, cabia-Lhe agora o tornar-se Mãe do Corpo Místico de Cristo e, tal qual se deu na Encarnação do Verbo, desceu sobre Ela o Espírito Santo, por meio de uma nova e riquíssima efusão de graças, a fim de adorná-La com virtudes e dons próprios e proclamá-La “Mãe da Igreja”.

Em seguida estão os Apóstolos; constituem eles a primeira escola de arautos do Evangelho. Observavam as condições essenciais para estarem aptos à alta missão que lhes destinara o Divino Mestre, conforme nos relata a Escritura: “Todos estes perseveraram unanimemente em oração, com algumas mulheres e com Maria, Mãe de Jesus, e com os seus irmãos” (At 1, 14). Essa perseverança na oração se realizou de forma continuada e no silêncio, na solidão e clausura do Cenáculo. A atmosfera era de máxima concórdia, harmonia e união entre todos, de verdadeira caridade fraterna. São Lucas em seu relato faz questão de realçar a presença de Maria, certamente para tornar patente o quanto Ela mesma se alegrava em ser uma fiel participante da Comunidade. Uma nota marcante é a submissão e obediência ao Vigário de Cristo tal qual transparece nos versículos subseqüentes, ao relatarem o primeiro ato de governo e jurisdição de São Pedro (At 1, 15-22).

Em síntese, a verdadeira eficácia do apostolado está aí evidenciada, sob o manto da Santíssima Virgem, na união efetiva e afetiva de todos com a Pedra sobre a qual Cristo edificou sua Igreja.