A essência de nossa vida cristã

Mons. João S. Clá Dias, EPDom Miguel de Mañara fundador Santa Caridad Sevilla

Em nosso egoísmo, somos levados a nos considerar o centro de nossas atenções e preocupações, mas a essência de nossa vida cristã é social: “Amai-vos, uns aos outros” (Jo 13, 34; 15, 12; 15, 17); ou: “Quem ama ao próximo, cumpriu a lei” (Rom, 13, 8). Jesus pesa nossos atos em função de nossa misericórdia com o próximo, ou seja, Ele usa, para nos julgar, de um critério social.

Deus distribui seus bens de forma desigual aos homens, para que uns possam dispensar e outros receber. Isso se passa não só no campo material como também, e sobretudo, no campo cultural e espiritual. Pela misericórdia e justiça unidas, seremos nós julgados diante de todos os anjos e homens.

Preparemo-nos, pois, neste Advento, para receber Jesus que vem na plenitude de sua misericórdia, e roguemos Àquela que O traz a este mundo sua poderosa intercessão para o nosso segundo encontro com Ele, quando vier de improviso, na plenitude de sua justiça.

Arautos do Evangelho, n. 47

O sublime reflexo de Deus nas criaturas: a beleza

Ilha dos Frades 083Diác. Felipe Ramos, EP

Vemos que no mundo sensível é fato evidente a graduação das perfeições transcendentais numa maravilhosa hierarquia. É fácil compreender que todas as coisas são ontologicamente boas secundum magis et minus. A apreensão dos graus se torna ainda mais evidente quando se considera o pulchrum, escada segura de contemplação hierárquica das coisas, com a qual atinge, em seu vértice, a sua Suma Perfeição.

Tal Perfeição, absolutamente desproporcional ao homem, nos é revelada por meio desse sublime reflexo de Deus nas criaturas: a beleza.

Ao analisar a Criação e sua multifacetada variedade podemos nos perguntar por que Deus quis criar tal imensidade de seres. Pois sendo Ele infinitamente perfeito, bastaria-se a Si mesmo, sem a absoluta necessidade de criá-los. Porém, na Sua infinita bondade e misericórdia, assim o desejou.

Ora, Seu intuito, ao criar quantidade insondável de seres, foi para que estes não somente refletissem Sua perfeição infinita, mas também a reproduzisse em seus mais variados graus. Deste modo se explica o caráter hierárquico que Deus imprimiu ao Universo.

Contudo, não poderia Deus originar uma única criatura que por si só refletisse todas as suas perfeições tão bem como o conjunto dos seres criados? Parece que isso seria metafisicamente impossível. Pois Deus criou um Universo composto de muitas criaturas para que elas, de um lado pela sua pluralidade, de outro pela sua hierarquização, espelhassem convenientemente a Sua beleza e perfeição divina. Pois assim como um acorde sonoro é belo pela formação de uma unidade harmoniosa numa “terça”, mais belo ainda quando acrescentamos apenas uma nota num acorde de “quinta”, constituindo o que se chama “consonância perfeita”. Analogamente, a ordem da criação é ainda mais bela por sua rica pluralidade, quando coesa na unidade. Portanto, o homem, ao contemplar o mundo ao seu redor pode — aliando-se com a quarta via, ou seja, a partir da observação da gradualidade dos seres criados — inferir nestes, os esplêndidos reflexos da divina Pulchritudo.

Deste modo, o espírito hierárquico dos diversos graus aliados à ordem, às desigualdades harmônicas, ao pulchrum, em suma, leva-nos de proche en proche até a demonstração da existência de Deus, à Sua consideração e, por fim, à contemplação de Sua Suma Perfeição, causa de todas as perfeições.

A Castidade da inteligência: precioso fruto da plena doação de nossa inteligência a Deus

pensadoresMons. João S. Clá Dias, EP

A virtude da Fé nos facilita penetrar além dos umbrais de nossa acanhada natureza, e tomar consciência das profundezas dos liames que unem o universo a Deus. O Criador o transcende infinitamente e, portanto, não há a menor confusão entre Ele e a criação. Porém, é Deus quem mantém as criaturas no ser, como também cada um de seus elementos constitutivos, e até mesmo, é a causa eficiente da santidade que possa existir em cada uma delas. Daí ser-nos necessário o apoio das Sagradas Letras para aprimorar em nós o senso de Deus. Nelas encontraremos as verdades claramente expostas com extremo fervor por Cristo Jesus, sobre a vida íntima de Deus, os atributos do Pai e do Espírito Santo etc.

Assim, a presença de Deus e a própria ação divina, tanto a permanente quanto a atual, sobre todas as criaturas, serão discernidas — ainda que muitas vezes em meio a uma certa penumbra — por uma Fé robusta e viva. E isto consistirá, de certo modo, em alguma participação no conhecimento que Deus possui sobre Si mesmo e sobre o universo. Será a mais elevada vida intelectual, na qual a intensidade dessa virtude teologal determinará maior ou menor penetração (e domínio) desta, naquela.

A Fé, portanto, não constitui um estorvo para a cultura como erroneamente poderia parecer a espíritos menos avisados. Muito pelo contrário, determinação, certeza e substância são conferidas à inteligência que nela se fundamenta. Ela diviniza as qualidades humanas, e jamais as prejudica. E nossa inteligência, assim divinizada, passa a compreender tudo sob o prisma de Deus. Aí estará alojada a castidade de nossa inteligência que consistirá numa íntegra lealdade em face das realidades objetivas e do próprio Deus, tudo analisado com uma esplendorosa clareza devido a uma maior ou menor participação no conhecimento incriado. Ela é um precioso fruto da plena doação de nossa inteligência a Deus, fruto, por sua vez, da iniciativa dEle em nos escolher e de nós tomar posse: “Não fostes vós que me escolhestes mas, fui eu que vos escolhi” (Jo 15, 16).

A antropologia esperançosa de Juan Alfaro

viewPe. François Bandet

Juan Alfaro confronta o problema do homem numa perspectiva global e existencial como presente em toda a ação humana, pois coloca questões que manam da fenomenologia da situação que tem a ver com o homem que vive em relação com os outros, com o mundo, a morte e a história. O problema de Deus deflui da experiência do sentido da vida humana. O homem não pode viver sem se interrogar a respeito do porquê da sua vida, e o problema de Deus será sempre o problema último. O problema de Deus é posterior à realidade visual e necessita de coragem e sinceridade, assim como estes são também necessários para enfrentar o problema último da vida. O “tendere sempre oltre” é difícil mas dá sentido à vida porque o problema de Deus não nasce da falta de sentido mas da própria existência do homem.

No mundo de hoje, no qual existe uma crise da metafísica e do sobrenatural, a questão do sentido da vida, sempre presente na história, ressurge, e Alfaro procura dar uma resposta a estes novos interrogativos da humanidade. O homem é por natureza aberto à transcendência, porque é aberto à questão existencial. O homem de hoje é muito consciente de si próprio e da própria liberdade; a partir da procura de como dar sentido à própria vida, ele é levado a uma abertura e confiança em relação a si mesmo e a Deus.

Não podemos falar, todavia, no “sentido da vida para mim”, mas devemos falar do “sentido da vida em si”. A verdade é o “sentido em si” que deve se tornar “sentido para mim”.

O homem não pode operar como homem sem a convicção de que a sua vida e a sua convicção têm senso. Mas como procurar o sentido da vida? Simplesmente abrindo os olhos à realidade da vida humana, como Alfaro procurou fazer. A primeira realidade da vida é aquela segundo a qual o homem tem um desejo de se conhecer a si próprio.

O problema de Deus poderá ser explicado apenas após aquele do sentido último da vida humana.

A realidade da morte para o homem impõe por si o problema do sentido último da existência humana e redunda num dilema: a morte é a alienação da pessoa humana ou é o dom de uma vida nova? O homem tem em si uma capacidade transcendente de esperança — esperançosa para responder a esta interrogação e tal capacidade se chama Deus. O homem pode encontrar Deus apenas na opção fundamental da sua liberdade de esperança, mas, no momento em que Deus se torna o mistério absoluto que não é possível demonstrar, mas que apenas se mostra, o homem poderá então encontrá-lo se estiver disposto a invocá-Lo, adorá-Lo, esperar nEle enquadrado na esperança — esperançosa.

A construção do bem comum não deve renunciar à Verdade

Paris nocturnaPe. José Victorino de Andrade, EP

Vemos a extrema dificuldade que a política tem hoje na construção da gratuidade, sem os alicerces que dão fundamento à dádiva de si mesmo, à semelhança de Cristo, que deu a vida por todos, e deste modo, da caridade cristã, que se baseia no mandamento novo trazido pelo Senhor. Não se pode tratar de uma caridade estóica que dá sem se compadecer com o próximo, mantendo a distância e não se deixando levar pelos sentimentos, mas de algo totalmente novo, uma novidade que nos pede uma transformação, uma conversão. Assim, a justiça, a solidariedade e a gratuidade partem de uma Palavra que nos fala e renova, santifica e impele.

O Papa Bento XVI na Deus Caritas Est considera exactamente que “nunca haverá uma situação onde não seja preciso a caridade de cada um dos indivíduos cristãos, porque o homem, além da justiça, tem e terá sempre necessidade do amor” (n. 29). Mons. Giampaolo Crepaldi, actual Arcebispo de Trieste, mostrava numa conferência ainda enquanto Secretário do Pontifício Conselho Justiça e Paz, como o Estado nunca será capaz de “produzir” o amor fraterno, mesmo sendo uma sociedade a mais perfeita e a mais justa.1

O dominicano López de la Osa sugere a existência de valores evangélicos em comunicação e a acomodação a uma peculiar terminologia capaz de ser aceite em nossos dias: o compromisso compreensivo numa atitude empática, passando por um segundo momento que implica uma afectividade (simpatia), e que desemboca por sua vez no acto concreto (conatismo), o que leva à construção não só da nossa dignidade, como também do próximo.2

E salientando o peculiar papel dos “outros cristos”, Domenèc Melè chama a atenção para a exemplar unidade de vida à qual os cristãos estão chamados ao actuar na vida pública, que deve impeli-los ao dever e ao bem comum, a estar abertos e cooperantes, sem entretanto renunciar à verdade.3

Esta abertura não deverá deixar de levar a um edificante diálogo. Por isso, Mons. João S. Clá Dias, EP, ao comentar a passagem Evangélica: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21; Mc 12, 17),  salienta: “As coisas de Deus e as coisas da terra não devem ser antagónicas. Pelo contrário, entre elas deve haver colaboração. Na harmonia entre ambas as esferas, a temporal e a espiritual, está o segredo do progresso. E a História nos mostra que nada pode haver de mais excelente do que seguir o conselho de Nosso Senhor: ‘Buscai, pois, o reino de Deus e sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo’” (Lc 12, 31).4

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1 22ª Settimana Sociale dei cattolici trevigiani. Lunedì, 29 settembre 2008. “[…] anche nella società più perfetta e più giusta ci sarà sempre bisogno dell’amore fraterno. La società, ed anche lo Stato, hanno bisogno di una risorsa che essi non sanno produrre”. In: CREPALDI, Giampaolo. Dottrina Sociale della Chiesa e Diritti Umani, 29/09/2008. Disponível em: <www.vanthuanobservatory.org >. Último acesso a 15/12/2010.

2 Cf. LÓPEZ DE LA OSA, José R. Politica y moral. p. 706.

3 Cf. MELÉ, Domènec. Cristianos en la sociedad: Introducción a la Doctrina Social de la Iglesia.  3. ed.  Madrid: Rialp, 2000. p. 203-204.

4 CLÁ DIAS, João S. Dar a César, ou dar a Deus? In: Arautos do Evangelho. São Paulo, n. 10, out. 2002, p. 11.

Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição

jesus2Pe. Carlos Werner Benjumea, EP

RATZINGER, J. / BENTO XVI. Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. São Paulo: Planeta, 2011. 272p. ISBN: 9788576656180.

O segundo volume do livro “Jesus de Nazaré”, do Papa Bento XVI, veio a lume recentemente, confirmando a grande expectativa causada pelo anúncio de sua iminente publicação. Foram já vendidos cerca de um milhão de exemplares da obra, editada em sete línguas. A versão em português do Brasil chegou às livrarias em maio de 2011, por meio da editoria Planeta.

O autor, com a fineza de pensamento e o acurado rigor científico que o caracterizam, apresenta uma Cristologia viva, profunda e enriquecedora a partir dos mistérios da vida de Jesus, desde “a entrada em Jerusalém até a Ressurreição”. A obra, porém, não adoece da frieza acadêmica de um estudo técnico e exaustivo. O propósito de Bento XVI é claro: partindo da exegese histórico-crítica e de seus resultados, vai mais longe, de modo a chegar à interpretação teológica. Este passo é decisivo, pois, se a árvore da exegese não dá bons frutos na área da Cristologia, corre o risco de tornar-se teologicamente estéril.

Trata-se, portanto, de procurar ressaltar o autêntico valor de uma exegese verdadeiramente católica, inspirada pelo sincero desejo de aprofundar à luz da Fé a verdade contida no texto sagrado (cf. Dei Verbum, n. 12), sem descuidar o auxílio da investigação histórica, semântica e arqueológica.

O estilo do livro é habitualmente um reflexo da disposição de espírito do autor. Assim, singeleza e sabedoria inspiram a pena do Papa, sempre aberto ao diálogo crítico e construtivo com a exegese histórica, mesmo quando se apresenta impregnada de positivismo, mostrando seus limites e explorando seus contributos ao estudo das Escrituras.

O livro, com efeito, é convidativo e atraente. Lê-se com paixão e amenidade, sendo difícil deter a leitura. Não se destina exclusivamente ao estudo de técnicos e especialistas. Nas suas páginas encontra-se uma mensagem acessível ao público católico e cristão em geral. O Cardeal Marc Ouellet, por ocasião da apresentação da obra na Sala Stampa do Vaticano, em doze de março deste ano, definiu “Jesus de Nazaré” como “um testemunho comovente, fascinante, libertador”.1

Pelo prestígio do autor e sua capacidade de comunicação, a obra pressagia uma nova aurora na exegese bíblica, por sua acertada aproximação científica e teológica à Pessoa de Jesus.

O conteúdo do livro é substancioso e muito rico, pois aborda os acontecimentos-chave narrados pelos Evangelistas, a fim de tornar possível conhecer melhor a figura e a mensagem de Jesus. A partir desses episódios trágicos e gloriosos — paixão, morte e ressurreição — é possível aprofundar muito especialmente o mistério da filiação divina e da missão redentora de Jesus, nas quais se manifesta o rosto amoroso de Deus.

A obra está estruturada em nove capítulos. Abarca o período que vai desde a entrada em Jerusalém e a expulsão dos vendilhões do Templo até a Ascensão de Jesus aos céus. O Autor põe em foco temas muito debatidos e de vivo interesse nos meios exegéticos e teológicos. À guisa de síntese, enunciamo-los em seguida: A análise do discurso escatológico de Jesus e seu conhecimento a respeito dos acontecimentos futuros; a mensagem de amor ao lavar os pés dos discípulos; a oração sacerdotal de Jesus no Evangelho de São João e sua profunda ligação com a Eucaristia e com a Páscoa; a Última Ceia e a atualidade do caráter expiatório da missão de Cristo; a agonia no Horto das Oliveiras como o grandioso embate da luz contra as trevas; o processo de Jesus com a descrição, em minuciosos detalhes, dos acontecimentos e das personagens envolvidas; a crucifixão e morte de Jesus vistas em seu mais profundo sentido bíblico-salvífico; a Ressurreição de Jesus de entre os mortos; e, por fim, a Ascensão aos céus.

O fio condutor de toda a obra, em continuidade com o primeiro volume, é o fundamento histórico do cristianismo e da própria Escritura. Para Joseph Ratzinger, a mensagem do Novo Testamento não é tão só um conjunto de verdades metahistóricas baseadas em narrações simbólicas. Isso seria transformar em fábula, ou em mito, acontecimentos reais. Pelo contrário, pertence à essência da Revelação o fato de estar fundada na história que aconteceu sobre a face da terra.

Ratzinger exemplifica a este respeito com a Eucaristia: se Jesus não tivesse dado a seus discípulos seu corpo e seu sangue sob as espécies do pão e do vinho, a celebração eucarística perderia seu conteúdo, seria uma “ficção piedosa” e não “uma realidade que estabelece a comunhão com Deus”.

No livro, aborda-se com seriedade o tema do caráter sacrifical da missão messiânica de Jesus, pedra de escândalo de alguns teólogos influenciados pela sensibilidade moderna, avessa à ideia de expiação. Embora a historicidade dos textos eucarísticos do Novo Testamento seja incontestada pelos exegetas, paira a dúvida e continua-se discutindo a respeito do verdadeiro sentido do “sangue derramado” e do “corpo entregue”. Para Ratzinger, estes textos evocam o sacrifício de expiação da Antiga Lei e o levam, ao mesmo tempo, a seu pleno cumprimento.

Depois de explicar a necessidade de deixar-se guiar pela Escritura, abandonando a atitude de querer confrontá-la de forma presunsuosa e racionalista com os critérios humanos, o Santo Padre desvenda primorosamente a força vencedora do sacrifício de Cristo sobre o pecado, a morte e o mal. Na paixão de Jesus, a imundície do mundo entra em contato com O imensamente puro, mas desta vez o mal não vence. Em Jesus, o bem é infinitamente mais forte, com poder para anular e transformar a sordície do pecado.

É o “extremo sim” ao Pai, após o combate interior travado no Horto das Oliveiras, que, por assim dizer, consagra a Cristo Sacerdote, no sentido mais pleno do termo, “segundo o rito de Melquisedec”. Sua doação voluntária leva a humanidade até o alto, até Deus, configurando-o como o Sacerdote perfeito. Ele, tal como o apresenta a epístola aos Hebreus, oferece-Se a Si mesmo: “Tu não queres sacrifícios e oferendas, mas me preparastes um corpo” (Hb 10, 5). São as palavras dirigidas ao Pai pelo Filho como sinal de total obediência e submissão, em atitude diametralmente oposta à soberba de Adão, que quis ser como Deus (cf. Gn 3, 5).

Ressalta-se na obra a diferença existente entre o Salmo que inspira esta passagem e a adaptação dele feita na Epístola aos Hebreus. Com efeito, o ato de “abrir o ouvido” (Sl 39, 7) é substituído pelo de “preparar um corpo” (Heb 10, 5). Eis apontado com clareza o caráter sacrifical e expiatório do sacerdócio de Cristo. Era necessário que o Filho de Deus reparasse com seu holocausto o pecado da humanidade. Mas não se trata só disso: a reparação é ao mesmo tempo triunfo sobre os males decorrentes da soberba e da revolta. A morte é vencida pela Vida Eterna.

Para Ratzinger, esta realidade é expressa de forma simbólica no Evangelho de São João, o qual situa a Ressurreição de Jesus e, portanto, a vitória definitiva sobre a morte, num horto onde havia um sepulcro ainda não utilizado, evocando por contraposição o jardim do Éden, lugar do primeiro pecado.

O Santo Padre, ao tratar da Ressurreição, afronta vários temas candentes. Em primeiro lugar, pergunta-se a respeito da essência da Ressurreição, o que sucedeu com Jesus e se teria Ele simplesmente voltado à vida como Lázaro. Estuda também os dois tipos de testemunhas do evento: a tradição em forma de confissão e a tradição em forma de narração. Em seguida oferece uma síntese conclusiva a respeito da natureza e da significação histórica da ressurreição. Usando a linguagem analógica, o autor explica a Ressurreição como um “salto qualitativo radical”, pois Jesus com seu mesmo corpo “pertence agora totalmente à esfera do divino e do eterno”.

A obra termina com uma perspectiva de índole escatológica, fundada na Ascensão do Senhor aos Céus. Com efeito, a alegria experimentada pelos Apóstolos ao testemunharem o fato indica a nova forma de presença de Jesus no meio deles. Cristo não partiu para uma zona longínqua do universo, mas entrou para sempre na comunhão de vida e de poder com o Deus vivente.

Nessa perspectiva, adquire pleno sentido a promessa de Jesus no Evangelho de João: “Não vos deixarei órfãos. Voltarei a vós” (Jo 14, 18). Ao subir ao Céu, Jesus “foi”, mas ao mesmo tempo “veio”, e sua presença fortalece os discípulos de maneira especial. Com isso, esclarece-se o mistério a respeito da cruz, da ressurreição e da ascensão.

Após oferecer a síntese da mensagem nuclear e central da obra e em razão da impossibilidade de esgotar a sua riqueza, serão destacados outros temas importantes nela tratados.

Ratzinger oferece um contributo à ética cristã definindo sua essência. Para ele, a Lei de Moisés oferecia ao homem um caminho de verdadeira perfeição, mas com a Encarnação do Filho, na Kenosis misericordiosa, manifesta-se o perfil do verdadeiro cristão. Amar como Cristo amou, eis a nota fundamental da moral cristã. E só mediante a participação pessoal na vida de Jesus é-nos comunicada sua ardentíssima caridade.

As reflexões teológicas da obra iluminam de forma especial a vida espiritual cristã. O verdadeiro teólogo deve ser um homem de Fé vivida e, em consequência, pode oferecer reflexões de alto teor espiritual. Ao estudar, por exemplo, a figura de Judas, o traidor desesperado, incentiva a prática da virtude da Esperança na misericórdia do bom Mestre, focalizando o arrependimento de São Pedro, o traidor arrependido.

Não menos oportunas são as reflexões — a propósito da oração de Jesus em Getsêmani e da sonolência dos discípulos — sobre a virtude da vigilância, tão esquecida nestes tempos de individualismo imprevidente: “A sonolência dos discípulos continua sendo uma ocasião propícia para o poder do mal”.

Reflexiona também sobre a surpreendente combinação entre a douta erudição e a profunda ignorância dos estudiosos apoiados sobre um saber que se pretende autossuficiente, incapaz de transformar o homem. Desta forma, interpela o leitor com agudeza, indagando-o acerca da verdade e daquilo que muitas vezes a ela se opõe: nós, o nosso saber, e a fuga à dolorosa verdade.

Desde o ângulo da exegese histórica, a obra traz contributos muito interessantes, como por exemplo, a datação da última ceia de Jesus. Os sinóticos afirmam que a última ceia foi a ceia de Páscoa; São João a situa na parasceve, véspera da Páscoa. Como resolver a aparente contradição? Depois de um acurado estudo, Ratzinger mostra a idoneidade cronológica da narração joanina e aponta para a concordância de fundo entre as duas tradições. Jesus no cenáculo não teria celebrado a páscoa judaica, mas a sua própria Páscoa.

Em síntese, o Santo Padre trata com maestria e par cœur daquilo que conheceu e amou na Pessoa de Jesus, com uma ciência — como ele mesmo explica — que cria comunhão com o conhecido. A mensagem de seu trabalho é, sem dúvida, a mesma de Jesus: “Que Te conheçam a Ti, o único Deus verdadeiro, e Aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17, 3).

Resenha In: Lumen Veritatis, n. 15 Abr./Jun. 2011

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1 In: www.radiovaticana.org. Último acesso a 2 jun. 2011.

A história do Santo Sudário

Sudário

Pe. David Francisco, EP

Quando Jesus disse: “consummatum est” e expirou, José de Arimatéia teve a “audácia de ir a Pilatos” (Mc 15, 43) pedir o corpo de Jesus para proceder ao sepultamento conforme o costume.

Os Evangelhos nos contam que, uma vez concedida a licença, Jesus foi envolto num lençol e depositado num sepulcro novo. São Mateus fala de um pano limpo de linho e São Lucas de um lençol de linho.

O que conhecemos hoje como Sudário é um lençol de linho, de tecido firme e forte, de cor sépia, e de grandes dimensões ( 4,36m de comprimento por 1,10m  de largura) , que traz milagrosamente estampado, de frente e de costas em tamanho natural, a figura de um homem de barba com idade calculada entre 30 e 35 anos, de aproximadamente 1,80m de altura e  pesando mais ou menos 80 quilos, que foi torturado, flagelado e crucificado. Conserva-se há mais de quatro séculos na cidade italiana de Turim.

Um lenço com o qual se enxugava o suor do rosto designava-se: sudário. Depois, com o tempo essa terminologia passou a ser usada para designar o lençol ou mortalha utilizada para envolver cadáveres nos sepultamentos. Com o mesmo significado, temos em grego a palavra “sidon” , daí vem sindonologia que quer dizer: estudo do sudário.

Desde o momento em que José de Arimatéia saiu do Pretório, às pressas, para adquirir o lençol no mercado de Jerusalém, iniciou-se uma história que atravessaria os séculos. Em nossos dias ela desperta interesse tão ou mais significativos que nos primeiros séculos, sobretudo por causa das incógnitas que apresenta e que nem a ciência moderna consegue desvendar inteiramente.

Foi um longo período, marcado por aparecimentos e desaparecimentos que vai desde o ano 30 de nossa era até 1356, quando é entregue por Godofredo de  Charny I  aos cônegos de Lirey, na França. A partir daí, a história do Santo Sudário é bem conhecida  e esta devidamente documentada.

Em 1356, Godofredo de Charny I  – cavaleiro cruzado – entrega aos cônegos de Lirey o Sudário, que estava em seu poder há pelo menos três anos.

Difícil saber, entretanto, como o Sudário foi parar na França porque Godofredo jamais revelou como entrou na posse dele. Acreditam alguns historiadores que tenha sido na época em que Constantinopla caiu nas mãos dos bizantinos.

Em 1390, duas bulas tratando do Sudário foram editadas pelo antipapa de Avignon, Clemente VII.

Não se ouviu falar do Sudário até 1418, quando Humberto, Conde de La Roche, que se casara com Margarida de Charny, recebeu o Santo Sudário dos cônegos de Lirey, para guardá-lo por um certo período em que ocorriam guerras e desordens. O Conde de La Roche, entretanto, veio a falecer sem ter restituído a relíquia aos cônegos de Lirey.

Em 8 de maio de 1443, Margarida de Charny, neta de Godofredo de Charny, foi intimada em juízo a devolver o Sudário aos cônegos de Lirey, quando alegou “ser ele de sua propriedade por direito de conquista feita em guerra por seu avô”.

Em 1453, no dia 22 de março, Margarida entrega o Sudário à mulher do duque Ludovico de Sabóia, Ana de Lusignano.

Em 1457, no dia 30 de maio, Margarida foi apenada com  excomunhão pelo tribunal eclesiástico de Besançon.

Em 7 de outubro de 1459,  Margarida  de Charny faleceu.

Em 1464, no dia 6 de fevereiro, o duque Ludovico de Sabóia, (que estava na posse do lençol),  nega-se a atender um pedido de restituição da relíquia, feito pelos cônegos de Lirey, que se consideravam os legítimos proprietários do lençol.

Em 1502, o Sudário foi levado à Sacra Capela do castelo, em Chambéry, especialmente construída para ele.

Em 1506, o Papa Júlio II aprova a Liturgia do Santo Sudário, com festa anual no dia 4 de maio. Desde 1453 até 1506 o Sudário esteve na posse da família Sabóia, em Chambéry, como objeto privado.

Um violento incêndio, ocorrido na noite de 3 para 4 de dezembro de 1532 na sacristia da Sacra Capela,  atingiu seriamente o Sudário lá guardado dentro de uma urna de prata. O cônego Lambert, ajudado por dois franciscanos e um ferreiro, conseguiu salvá-lo lançando grande quantidade de água sobre a urna, já incandescente e começando a fundir-se. Felizmente os danos, embora irreversíveis, não prejudicaram totalmente as imagens impressas. Como o lençol estava dobrado dentro da urna, as bordas das dobras, que estavam em contato com uma lateral incandescente, ficaram chamuscadas. Algumas gotas da prata fundida também o perfuraram e a água, utilizada para debelar o incêndio, produziu manchas em forma de losango, tanto na imagem frontal, como na dorsal.

Em 1534, no período de 15 de abril a 2 de maio, as irmãs Peronette Rosset, Marie de Barre e Collete Rochete, aplicaram remendos triangulares nos furos, costurando-os pelo avesso do lençol, porque ali não há nenhuma imagem.

Em 1535, por motivo de guerra, o Sudário foi levado para outras cidades da Itália e da França. Saiu de Chambéry, passou por Turim, Vercelli, Milão, Nice, novamente Vercelli

Em 1561, a relíquia retornou a Chambéry. O traslado para Turim deu-se por um ato de piedade do então Cardeal Carlos Borromeu.

Em 1578, no dia 8 de outubro, o Sudário foi trasladado para a Catedral de Turim. Nesse ano, o Cardeal de Milão, hoje São Carlos Borromeu, fez um voto de ir a pé, de Milão a Chambéry, em peregrinação para adorar o Sudário, caso a epidemia de peste desaparecesse de sua cidade. Alcançada a graça, o Cardeal iniciou a caminhada. Para poupá-lo da penosa viagem através dos Alpes, o duque Emanuel Filiberto de Sabóia mandou levar o Sudário até Turim, metade do caminho entre Milão e Chambéry.   Desde então, permanece o Santo Sudário em Turim até nossos dias.

O grande mestre de São Tomás de Aquino

tomasMons. João S. Clá Dias, EP

Ensina-nos Santiago na sua epístola que “se alguém necessita de sabedoria, peça-a a Deus – que a todos dá liberalmente, com simplicidade e sem recriminação – e ser-lhe-á dada” (Tg 1, 5). Assim o fez São Tomás.

Seu grande e insuperável Mestre foi o Santíssimo Sacramento, diante do qual passava rezando horas inteiras, dia e noite. Frequentemente, no momento auge da celebração da Santa Missa, ou seja, na hora da Consagração do pão e do vinho, não só o milagre da transubstanciação se realizava em suas mãos, como também, sua face se transfigurava. Chegou ele a afirmar ter aprendido muito mais junto ao Santíssimo Sacramento do que em todos os seus estudos.1

Guilherme de Tocco, o seu primeiro e principal biógrafo, insiste em dizer que Tomás adquirira o hábito de rezar demoradamente quando tinha de vencer um obstáculo, de intervir num debate importante, de ensinar qualquer matéria mais árdua. Ele confessava assim encontrar a solução dos problemas que o torturavam. Quanto ao tempo que o comum dos homens costumam dedicar ao descanso, Tomás o reduziu a quase nada para prolongar este “Sacrum Convivium” com Jesus Eucarístico.2

O Padre Santiago Ramirez (1975), baseando-se no processo de canonização de Santo Tomás em Nápoles, explica na sua biografia sobre o Aquinate que “Ele era o primeiro a se levantar pela noite, e ia prosternar-se diante do Santíssimo Sacramento. E quando tocavam as Matinas, antes que os religiosos formassem fila para ir ao coro, ele voltava sigilosamente para a sua cela para que ninguém notasse”.3

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1 “Sua alma entrava num comércio íntimo com Deus. Seu corpo se tornava imóvel, suas lágrimas corriam em abundância, e diversas vezes o vimos elevado da terra vários cúbitos. Era o momento no qual São Tomás adquiria os mais altos conhecimentos, encontrava infalivelmente a solução de suas dificuldades, a compreensão dos textos da Escritura, e as decisões teológicas das quais tinha necessidade. Ele mesmo confidenciou a Frei Reginaldo, seu confessor, ter aprendido mais através de suas meditações, na igreja, diante do Santíssimo Sacramento, ou em sua cela aos pés do Crucifixo, que em todos os livros por ele consultados.” JOYAU, Charles-Anatole, O. P., Saint Thomas d’Aquin, Lyon: Librairie Générale Catholique et Classique, 1895. Tradução nossa.

2 Cf. AMEAL, João. São Tomás de Aquino. Iniciação ao estudo da sua figura e da sua obra. 3ª ed. Porto: Tavares Martins, 1947, p. 131.

3 RAMÍREZ, S.: Introducción a Tomás de Aquino, Madrid, BAC. 1975­, p. 83-84­.

A mulher na Bíblia

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Se levais em conta a distância que há entre a família gentílica e a hebreia, vereis logo que estão separadas entre si por um abismo profundo: a família gentílica compõe-se de um senhor e de seus escravos, enquanto a hebreia, do pai, da mulher e de seus filhos. Entram como elementos constitutivos da primeira, deveres e direitos absolutos; a segunda, deveres e direitos limitados. A família gentílica descansa na servidão; a hebreia funda-se na liberdade. A primeira é resultado de um esquecimento; a segunda, de uma recordação; o esquecimento e a recordação das divinas tradições, prova clara de que o homem não ignora, senão porque esquece, e não sabe, senão porque aprende.

Agora se compreenderá facilmente porque a mulher hebreia perde nos poemas bíblicos tudo o que teve entre os gentios de sombrio e de sinistro; e porque o amor hebreu, diferentemente do gentio, que foi incêndio dos corações, é bálsamo das almas. Abri os livros dos profetas bíblicos, e em todos aqueles quadros, risonhos ou pavorosos, com que davam a entender às sobressaltadas multidões, ou que ia desfazendo-se o nebuloso, ou que a ira de Deus estava próxima, achareis sempre em primeiro lugar as virgens de Israel, sempre belas e vestidas de resplendores aprazíveis, levantarem então seus corações ao Senhor em melodiosos hinos e em angélicos cantares, ou depositarem, sob o peso da dor, as cândidas açucenas de suas frontes. […]

Nem se contentaram os hebreus em confiar à mulher o brando cetro de seus lares mas puseram muitas vezes na sua mão fortíssima e vitoriosa o pendão das batalhas e o governo do Estado. A ilustre Débora governou a república na qualidade de juiz supremo da nação; como general dos exércitos, peleou e ganhou batalhas sangrentas; como poetiza, celebrou os triunfos de Israel e entoou hinos de vitória, manejando ao mesmo tempo, com igual soltura e maestria, a lira, o cetro e a espada.

No tempo dos reis, a viúva de Alexandre Janneo teve o cetro dez anos; a mãe do rei Asa governou em nome do seu filho, e a mulher de Hircano Macabeu foi designada por este príncipe para governar o Estado depois de seus dias. Até o espírito de Deus, que se comunicava a poucos, desceu também sobre a mulher, abrindo-lhe os olhos e o entendimento para que pudesse ver e entender as coisas futuras. Hulda foi iluminada com o espírito de profecia, e os reis aproximavam-se dela sobressaltados com um grande temor, contritos e receosos, para saber de seus lábios o que no livro na Providência estava escrito de seu império. A mulher, entre os hebreus, ora governa a família, ora dirige o Estado, ora fala em nome de Deus, ora avassala os corações, cativos de seus encantos. Era um ser benéfico, que já participava tanto da natureza angélica como da humana. Lede apenas o Cântico dos Cânticos e dizei-me se aquele amor suavíssimo e delicado, se aquela esposa vestida de odoríferas e cândidas açucenas, se aquela música harmônica, se aqueles arrebatamentos inocentes e elevados, e aqueles deleitosos jardins, não são mais que coisas vistas, ouvidas e sentidas na terra, coisas que se nos apresentam como sonhos do paraíso.

E entretanto, senhores, para conhecer a mulher por excelência; para ter notícia certa do encargo recebido de Deus; para considerá-la em toda a sua beleza imaculada e altíssima; para formar-se alguma ideia de sua influência santificadora, não basta colocar a vista naqueles belíssimos exemplos da poesia hebraica, que até agora deslumbraram os nossos olhos e docemente embargaram os nossos sentidos. O verdadeiro modelo e exemplo de mulher não é Rebeca, nem Débora, nem a esposa do Cântico dos Cânticos, cheia de fragrâncias como uma taça de perfumes. É necessário ir mais além, e subir mais alto; é necessário chegar à plenitude dos tempos, ao cumprimento da antiga promessa. Para surpreender à maneira de Deus, formando o tipo perfeito de mulher, é necessário subir até ao trono resplandecente de Maria. Ela é uma criatura aparte, mais bela por si só que toda a criação; o homem não é digno de tocar suas vestes brancas, a terra não é digna de servir-lhe de peanha, nem os tecidos de brocado como tapete; a sua brancura excede a neve que se acumula nas montanhas; o seu corado, o rosado dos céus; o seu esplendor ao resplandecente das estrelas. Maria é amada de Deus, venerada pelos homens, servida pelos anjos. […] O Pai a chama filha, e lhe envia embaixadores; o Espírito Santo a chama esposa, e lhe faz sombra com as suas asas; o Filho a chama mãe, e faz de sua morada o seu sacratíssimo ventre. Os Serafins compõem a sua corte; os céus a chamam Rainha; os homens a chamam Senhora: nasceu sem mancha, livrou o mundo, morreu sem dor, viveu sem pecado. Vede aí a mulher, senhores, vede aí a mulher, porque Deus em Maria as santificou: às virgens, porque Ela foi Virgem; às esposas porque Ela foi Esposa; às viúvas porque Ela foi Viúva; às filhas, porque ela foi Filha; às mães porque ela foi Mãe. Grandes e portentosas maravilhas obrou o cristianismo no mundo: fez as pazes entre o céu e a terra, destruiu a escravidão, proclamou a liberdade humana e a fraternidade dos homens. Mas com tudo isso, a mais portentosa de todas as suas maravilhas, a que mais profundamente influiu na constituição da sociedade doméstica e da civil, é a santificação da mulher, proclamada desde as alturas evangélicas. E além do mais, senhores, desde que Jesus Cristo habitou entre nós, nem sobre as pecadoras é lícito lançar o escárnio e o insulto, porque até os seus pecados podem ser lavados pelas suas lágrimas.

O Salvador dos homens colocou a Madalena sob o seu amparo. E quando chegou o tremendo dia em que se nublou o sol, estremeceram e deslocaram-se os despojos da terra, ao pé da sua cruz estavam juntas a sua inocentíssima Mãe e a arrependida pecadora, para dar-nos assim a entender que os seus amorosos braços estavam abertos igualmente à inocência e ao arrependimento.

Excerto de discurso proferido por Juan Donoso Cortés a 16 de abril de 1848, ao tomar assento na Real Academia de la Lengua. Tradução do original em espanhol presente em OBRAS de D. Juan Donoso Cortés. (Ord.) Gavino Tejado. Madrid: Imprenta de Tejado, 1854. Tomo III. p. 171-198, por Pe. José Manuel Victorino de Andrade, EP  para a revista Acadêmica Lumen Veritatis, n. 15, abr./jun. 2011.

A família, bem necessário e imprescindível para toda a sociedade

Pe. Álvaro Mejía Londoño, EPfamilias

A família é um bem necessário e imprescindível para toda a sociedade, núcleo e realidade natural, fundamento da própria sociedade, e tem o direito de ser protegida e reconhecida pela sociedade e pelo Estado. Ela tem uma dimensão social única, pela sua natureza, posto que a procriação situa-se como princípio “genético” da sociedade, como lugar primário de transmissão e cultivo de valores e, consequentemente, como princípio da cultura e garantia da própria sobrevivência da sociedade. Podemos dizer com toda a segurança que o matrimônio tem as suas próprias leis, não dependendo do arbítrio das pessoas ou da sociedade. Não é um fenômeno meramente cultural e dependente do “sentir” subjetivo da época atual, mas tem como fundamento o próprio Deus.

É preciso ter presente que a estabilidade do matrimônio e da família não está exclusivamente confiada à intenção e à boa vontade dos implicados; ele tem um caráter institucional, adquire caráter público, inclusive após o reconhecimento jurídico por parte do Estado. Está em causa a própria dignidade do(s) gerado(s) ser o fruto de uniões íntimas permanentes, provir de pais unidos, estabilidade essa que deve ser do interesse de todos, sobretudo velando por estes que são os mais débeis: os filhos.

“Com o matrimônio se assumem publicamente, mediante o pacto de amor conjugal, todas as responsabilidades do vínculo estabelecido. Dessa assunção pública de responsabilidades resulta um bem não só para os próprios cônjuges e filhos no seu crescimento afetivo e formativo, como também para os outros membros da família. Dessa forma, a família que tem por base o matrimônio é um bem fundamental e precioso para a sociedade inteira, cujos entrelaces mais firmes estão sob os valores que se manifestam nas relações familiares que encontram sua garantia no matrimônio estável. O bem gerado pelo matrimônio é básico para a própria Igreja, que reconhece na família a “Igreja doméstica” (Lumen gentium n.11, Decr. Apostolicam auctositatem, n.11). Tudo isso se vê comprometido com o abandono da instituição matrimonial implícito nas uniões de fato”.1

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1. Conselho Pontifício para a Família. Família – Matrimônio e “Uniões de fato”. 26 jul. 2000.