O conflito entre a ciência e a Fé

água LourdesPe. François Bandet, EP

No começo o século XIX existiu um sério conflito entre a ciência e a Fé. Foi o período do iluminismo, no qual a razão foi honrada como a única intérprete do conhecimento. Naquele período, o movimento contrário à religião apelidado de positivismo defendeu que a dimensão metafísica da vida era contrária ao senso comum. Hoje, essa mentalidade reducionista reemergiu como uma nova forma de cientificismo,1 no qual valores e a noção do ser são descartados como um mero produto das emoções e da imaginação. As questões básicas da vida: o que eu posso saber? O que devo eu fazer? O que devo esperar?2 são consideradas por uma tal mentalidade científica como um lamentável fruto da irracionalidade e da fantasia.

Entretanto, o conflito entre Fé, religião e ciência ainda existe hoje apesar do fato de essas matérias não se oporem, pelo contrário, complementarem-se harmoniosamente. Até Galileu explicitamente declarou que a Fé e a ciência, como duas fontes de verdade, não se podem opor uma à outra.3 O que é necessário para uma harmonia apropriada entre os dois é que cada uma permaneça no seu respectivo campo. O conflito começa quando uma ou outra, arbitrariamente, estende o seu campo de ação, projetando-se no campo específico ou na matéria do outro.

A harmonia, a paz e a coexistência são favorecidas quando cada disciplina tem uma ideia clara da sua própria natureza e objetivo.4 Um cientificismo militante e positivo, onde as disciplinas de teologia e filosofia são absorvidas pela ciência, é por certo uma fonte de tensão e conflito. Por exemplo, o cosmologista Stephen Hawking é renomado por extrapolar da sua disciplina científica para teorias filosóficas, a fim de defender suas cosmológicas conclusões sob o pretexto da “estética”. Por basear as suas teorias numa tal evidência não científica, Hawking tenta excluir Deus do seu cosmos, tornando-o um “Deus de vácuo” numa dimensão deística.

Assim como o universo teve um começo, nós podemos supor que teve um criador. Mas se o universo está realmente autocontido, não tendo limite ou borda, sem qualquer princípio ou fim: existindo simplesmente, que lugar teria então um criador?5

Diante de tal atitude, a teologia não se deve afastar da ciência, e, pior ainda, da razão. Deve continuar o diálogo através da filosofia, como um tipo de moderador já sugerido por João Paulo II:

Como em épocas precedentes, também hoje — e talvez mais ainda — os teólogos e todos os homens de ciência na Igreja são chamados a unirem a Fé com a ciência e a sapiência, a fim de contribuírem para uma recíproca compenetração das mesmas […].6

A ciência física, entretanto, deve ser pragmática e baseada em reais observações. A teologia deve continuar comunicante e provocando transcendência, a fim de não perder o seu alvo específico.7 Uma espécie de atitude de “regresso ao essencial” é necessária, para evitar cair no erro de sobrepor ou, pior ainda, isolar-se sob a forma de “fideísmo”.

Outra fonte de dificuldade no diálogo entre a Fé e a ciência surge quando há certa manipulação dos autores ao tentar vulgarizar a ciência. Einstein, por exemplo, conta na sua autobiografia como, aos 17 anos, ele deixou de ser religioso devido à leitura de livros de ciência populares. Como resultado, até o momento da sua morte ele nunca foi capaz de se libertar da constante desconfiança em relação a qualquer forma de autoridade.8 De fato, as dificuldades entre as duas disciplinas são geralmente resultado ou da falsa ciência ou da má teologia. O cientista tem a sua autonomia que o teólogo deve respeitar, enquanto este também não deve se virar para a ciência de maneira a serem-lhe iluminados os mistérios da sua Fé.

Apenas na media e em escritos científicos populares e polêmicos, o mito da luz da verdade puramente científica prevalece. Na verdade, escritores como Richard Dawkins e Daniel Dennet9 são responsáveis por perpetuar o mito de que a ciência não pode coexistir com a religião e, a partir daí, a ciência deve continuar a lutar à sombra do obscurantismo religioso impreciso.

A autêntica ciência não tem a necessidade de formar uma ideologia em torno de controvérsias com outras disciplinas. Assim sendo, o conflito da ciência não é com a Fé, mas com as interpretações filosóficas da Fé. A ciência e a Fé não estão em contradição. Afirmar que são inimigas uma da outra é uma das grandes distorções culturais dos tempos modernos. A vulgarização da ciência é o problema e é, geralmente, fruto de uma questão ideológica.10 Essas distorções devem-se ao fato de os pseudo-cientistas caírem em certos esquemas, promovidos muitas vezes por interesses econômicos ou políticos. A descrença não é fruto das novas descobertas e do progresso, mas de ideologias. “Nós devemos defender a liberdade religiosa contra a caracterização de uma ideologia que se apresenta como se fosse a única expressão da razão […]”.11

Traduzido do original em inglês por José Victorino de Andrade (IFAT) para a Revista Lumen Veritatis n. 6 (jan./mar. 2009) com autorização e revisão do autor.

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1 Cf. Pope John Paul II, Fides et Ratio, 88.

2 Cf. Kant, Critique of Pure Reason, Bohn, London, 1855, 488.

3 «Sacred Scripture and the natural world proceeding equally from the divine Word, the first as dictated by the Holy Spirit, the second as a very faithful executor of the commands of God» wrote Galileo in his letter to Father Benedetto Castelli on 21 December 1613. Pope John Paul II, Fides et Ratio, footnote 29.

4 Cf. P. Haffner, Creazione e scienze, Millstream Productions, Rome, 2008, 125.

5 S. W. Hawking, A Brief History of Time, Bantam Press, London, 1988, 140-141; cit. in P. Haffner, The Mystery of Reason, Gracewing, Herefordshire, 2001, 162.

6 Pope John Paul II, Redemptor Hominis, 19.

7 Cf. L. Oviedo, Whom to blame for the charge of secularization?, in Zygon, 2005, vol. 40, no. 2, 360.

8 Cf. A. Einstein, Pensieri degli anni difficili, Torino, Boringhieri, 1955. In: Benvenuto Matteucci, Scienza, Fede e Ideologie, in Scienza e Fede, 1983, n. 9. 35.

9 Cf. J. Polkinghorne, Belief in God in an Age of Science, Yale, New Haven, 1998, 77.

10 Cf. Scienza e non credenza, the plenary assembly of The Secretariat for Non-Believers, March 31 – April 3, 1981; P. Haffner, The Mystery of Reason, Gracewing, Herefordshire, 2001, 160,161.

11 J. Ratzinger, La Repubblica, 19 November 2004, Interview of Cardinal Ratzinger with Marco Politi.

A lei eclesiástica enquanto modelo para as demais

catedra

Diác. José Victorino de Andrade, EP

A lei proveniente do Estado tem o dever de atender ao bem estar e à ordem terrena. Porém, o homem é composto de corpo e alma, e por isso é necessária uma sociedade espiritual que o oriente para a eternidade: a Igreja. Uma sociedade, aliás, não meramente espiritual, mas também organizada hierarquicamente, terrena e visível. Não se deve, entretanto, considerar duas entidades, mas uma única realidade, conforme nos explica a Lumen Gentium “Da mesma forma que a natureza assumida serve ao Verbo divino de instrumento vivo de salvação, também a estrutura social da Igreja serve ao Espírito de Cristo, que a vivifica, para o crescimento do corpo” (n. 8).

A fim de dirigir e governar os seus membros, esta também possui um conjunto de leis chamadas eclesiásticas ou canônicas. O seu estudo requer um anterior aprofundamento da lei em geral, na sua realidade e variedade, a fim de estabelecer as bases para um conhecimento mais profundo e preciso da sua aplicação e importância.

Uma abordagem do direito canônico, enquanto ordenamento eclesiástico, leva-nos a algumas considerações históricas e particulares. Em primeiro lugar, deve-se ter em conta que ele influenciou e inspirou grande parte dos sistemas legais vigentes no Ocidente. Se bem que em dado momento da História tivesse havido um certo retorno ao direito e à cultura greco-romana, sobretudo com o advento do Renascimento e a promoção e influência dos legistas junto às cortes, não há dúvida que o direito ocidental muito deve à Igreja:

O direito canônico foi o primeiro sistema legal moderno da Europa, e permitiu demonstrar que era possível compilar um corpo legal coerente e sofisticado a partir da miscelânea de estatutos, tradições e costumes locais frequentemente contraditórios com que tanto a Igreja como o Estado se confrontavam na Idade Média.1

Além de estar na origem do desenvolvimento legislativo do Ocidente, pertence aos fundamentos do moderno sistema jurídico, e do direito criminal, baseado de certa forma na teoria da reparação de Santo Anselmo e na moral cristã.2 Também Miguel Reale considera que

tanto no momento da elaboração da lei, como no da sua aplicação e interpretação, a Moral intervém de maneira decisiva, sendo certo também que certas regras jurídicas não têm outra justificação senão a decorrente de regras morais, as quais, por sua vez, se apoiam ‘em uma certa concepção religiosa do mundo’.3

Na medida em que o direito canônico ajudou a construir o moderno sistema legal, também hoje ele pode servir de referência pelas suas características e universalidade, iluminando e contribuindo com os demais legisladores e codificações legais.

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1. WOODS JR. Thomas. O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica. Lisboa: Atheleia, 2009. p. 12. O autor desenvolve este tema no capítulo 10 deste mesmo livro, sobretudo nas páginas 205-208.

2. Cf. Ibidem, p. 221.

3. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 488.

Os desafios da nova evangelização por Dom Odilo Scherer

Odilo

São Paulo (Terça-feira, 07-06-2011, Gaudium Press) Na coletiva que concedeu nesta sexta na sede da cúria em São Paulo, o arcebispo metropolitano de São Paulo, cardeal Dom Odilo Pedro Scherer, falou sobre dois temas bastante atuais para a Igreja: a questão dos desafios da comunicação moderna – à luz do 45º Dia Mundial das Comunicações Sociais, que foi celebrado pela Igreja neste domingo – e da nova evangelização, discutidos no âmbito da primeira Assembleia Plenária do novo Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, da qual o cardeal participou, na semana passada, em Roma.
De acordo com a arquidiocese de São Paulo, o primeiro tópico abordado pelo arcebispo foi a mensagem do Papa Bento XVI para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, “Verdade, anúncio e autenticidade de vida na era digital”.
“Nós estamos passando para uma página nova na história da humanidade”, afirmou o cardeal, referindo-se às mudanças culturais que as novas tecnologias propiciaram. O arcebispo lembrou que não foi a primeira vez que Bento XVI abordou esta questão, tendo em outras ocasiões já citado a importância da incorporação das ferramentas digitais para a evangelização.
O purpurado salientou, no entanto, que as novas ferramentas também trazem novos problemas, e que a Verdade e a coerência no anúncio não podem jamais serem relativizados. “A verdade nunca pode ser deixada de lado. Ela deve permanecer como referencial em todas as formas de comunicação. Quando a comunicação não está a serviço da verdade, gera destruição, gera desagregação”.
Segundo Dom Odilo, com a facilidade de acesso aos meios digitais, cada vez mais pessoas se empenham na evangelização por esses meios, mais é preciso, para tanto, que esses produtores de conteúdo se baseiem nos fundamentos da fé e doutrina cristã.
Sobre a Nova Evangelização, Dom Odilo, que chegou de Roma recentemente, onde participou da primeira plenária do recém-criado Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, disse que o maior desafio da Igreja nos dias de hoje é anunciar o Evangelho justamente nos lugares onde há tradição cristã. Em muitos desses lugares, refletiu, o problema não é nem mais tanto em difundir o Cristianismo ou Catolicismo, mas evitar a descrença total das pessoas.
“É preciso criar uma nova consciência missionária”, ressaltou dom Odilo, ao ponderar que a Europa, responsável pela evangelização de boa parte do mundo, inclusive da América Latina, precisa (re)evangelizar-se. “É preciso desenvolver uma nova forma de vivência da fé. Os povos a serem evangelizados estão dentro de casa”.
Segundo ele, a linguagem para essa evangelização também é um desafio, precisando ser “atualizada” e “renovada”, mas sem perder a sua essência. Dom Odilo falou também sobre a “crise da evangelização” em países do Oriente Médio, alguns dos quais sofrem ainda com perseguição a minorias cristãs, e destacou que no Sínodo dos Bispos sobre o Oriente Médio, em outubro do ano passado, foram levantadas essas e muitas outras questões relacionadas à “sobrevivência do cristianismo na região”.
De acordo com Dom Odilo, é também por tudo isso que a Igreja está com grandes expectativas com relação ao Sínodo dos Bispos do ano que vem, que será sobre a “Nova evangelização e transmissão da fé”.
“A Igreja conta com a contribuição dos bispos do mundo inteiro para a reflexão deste tema. Espera-se em todos os católicos uma nova consciência de que o Evangelho não é um bem que deve ficar apenas conosco, mas é um bem para o mundo. Por isso, temos que retomar sempre de novo, o mandato de Jesus: ‘Ide pelo mundo inteiro e anunciai o evangelho a toda criatura'”, concluiu.

Com Arquidiocese de São Paulo

O alcance dos efeitos dos sacramentais

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Diác. Ignácio Montojo, EP

Os efeitos que produzem os sacramentais são principalmente espirituais” (CDC, 1166). Os que normalmente pede a Igreja são em forma de graças atuais para auxilio no exercício da virtude, muito especialmente em ordem às virtudes teologais infusas – fé, esperança e caridade –, a perdoar os pecados veniais, à melhor preparação para a recepção dos sacramentos e à proteção contra os demônios seja por meio de exorcismos ou de bênçãos.

Mesmo as indulgencias, por exemplo, são sacramentais pelos quais é obtida – por obra da Igreja administradora como ministra da Redenção do tesouro dos méritos de Cristo e dos santos – a remissão da pena temporal devida a Deus pelos pecados e que deveria ser satisfeita no Purgatório. Do mesmo modo, no caso das bênçãos constitutivas as quais consagram de maneira permanente para o serviço de Deus uma coisa ou uma pessoa, sua eficácia, é também de caráter infalível.

Mas quem diz efeitos “principalmente espirituais” está admitindo implicitamente a possibilidade de obter graças materiais desde que estas cooperem para a obtenção dum bem espiritual maior na ordem amorosa e sumamente sapiencial da Providência. Tais pedidos poderão ser, por exemplo, o alivio de nossos sofrimentos, o afastamento dos castigos divinos, a cura de doenças, uma abundante colheita ou uma viagem bem sucedida, etc., sempre desde que sejam conforme a vontade de nosso Pai Celeste e, insistimos, para a maior santificação da alma e com vistas à vida eterna.

Os sacramentais oferecem, pois, aos fiéis bem dispostos a possibilidade de santificar quase todos os eventos da sua vida por meio da graça divina que, como vimos, flui dos méritos da Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo e, neste caso, é administrada pela Santa Igreja. Neste sentido preparam para receber com fruto os sacramentos.

Mas é preciso considerar que, se bem que seus efeitos não dependem principalmente da disposição moral do ministro ou do sujeito, pode esta concorrer a uma eficácia maior, pois Deus outorga seus dons em quantidade e qualidade maior em virtude do mérito e disposições que concorrem em quem os administra, confere ou recebe. É mesmo que acontece com a oração. Serão mais eficazes na medida em que nos identificarmos, por nossa religiosidade profunda, com a Igreja que opera através deles e com sua intenção. Pode-se dizer nesse sentido – e é tal a tese defendida por muitos teólogos – que os sacramentais operam quase ex opere operato (REGATILLO apud MARTÍN, 2002: 1647), ou seja que eles não tem o poder natural, como os sacramentos, de operar a graça, mas sim de obtê-la da misericórdia e bondade de Deus. São ajudas poderosas com as quais se recebe, por isso mesmo, proteção contra as tentações, graças e ajudas segundo o caso, assim como capacidade operativa e graças atuais para corresponder a vontade de Deus segundo a vocação e carisma próprios.

Entretanto, deve-se sempre levar em consideração que a oração da Igreja, Esposa Mística de Nosso Senhor Jesus Cristo, não pode deixar de ser plenamente aceita pela Divindade e, por tanto, se bem que o sacramental não é totalmente infalível como o sacramento (desde que devidamente recebido) senão que segue, como vimos, as regras habituais da oração, e ainda que opera mais por via de misericórdia que de justiça, não deixa de ser evidente que sua eficácia supera de longe a duma obra boa feita sem ser sacramental, tanto quanto pode ter de aceito e sumamente agradável à Divina Majestade a oração da Esposa amantíssima, indefectivelmente santa, castíssima e fidelíssima de Jesus Cristo. Isto mais se aplicará, se couber, quanto a principal finalidade é contribuir à santificação dos fieis.

O senso do maravilhoso capaz de regenerar o homem

auroraMons. João S. Clá Dias, EP

O homem é um todo substancial, harmonioso, constituído de um corpo cuja forma é a alma, e potências: vegetativa, sensitiva e intelectiva, que interatuam. Assim, se alguém, durante um passeio pelo campo, se encontra com um touro furioso, produz-se no organismo uma série de reações em cadeia: a glândula suprarrenal injeta imediatamente adrenalina no sangue, o coração se acelera, os brônquios se dilatam e a respiração também se acelera. A sensação de medo provoca reações fisiológicas que colocam o corpo em um estado correspondente à alma. Existem, pois, os estados físicos de medo, vaidade, coragem e muitos outros.

Entretanto, existe também o estado físico provocado pelo maravilhoso, que produz enorme bem estar e dispõe para o esforço e para a dedicação ao bem. A saúde se beneficia, uma série de indisposições orgânicas entram em ordem e se enfrentam melhor os estados de aflição e angústia. O deleite produzido pelo senso do maravilhoso é insuperável. Uma “experiência do maravilhoso” está ao alcance do homem e, quando bem assimilada, produz no organismo um efeito que poderá ser comparado a alguns medicamentos e antidepressivos. O que não quer dizer que os medicamentos não devam ser utilizados, mas a “maravilho-terapia” poderá favorecer uma recuperação mais rápida e eficaz.

Bosques, campinas, montanhas, as variações do céu diurno e noturno, as auroras e os ocasos, o mar majestoso… são remédios naturais postos por Deus à nossa disposição. Mas não são os únicos; também as obras humanas, as netas de Deus, segundo expressão de Dante.1

Faz parte da arte de bem viver o aproveitar tudo o que possa ser objeto de contemplação. O maravilhoso é o melhor da realidade, e aponta para o Absoluto. Os medievais eram especialistas nesta arte e fomentavam com naturalidade a “celestialização” das coisas; tudo o que faziam tendia ao ápice do maravilhoso. Comentava Dr. Plinio Corrêa de Oliveira que “a alma maravilhável é uma alma maravilhosa, capaz de fazer maravilhas”.2

O homem de hoje não perdeu a capacidade de admirar, por mais que a sociedade lhe faça muitos outros convites. É preciso proporcionar-lhe ocasiões para, maravilhando-se, discernir nas coisas aquilo que elas têm de belo, de bom e de verdadeiro, ou sua ausência, e com isto poder voltar-se para o essencial: Deus.

D. Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, descreve a adesão daquele que deixa “seduzir-se” pela Beleza que salva:

“É no interior da evidência objetiva, que se deixa perceber a partir do sujeito com a  primeira reação do ‘espanto’ e da ‘admiração’, que se encontra já a força que leva o homem a reconhecê-la como bela e, portanto, boa e verdadeira e por isso mesmo cheia de sentido para ser amada e seguida”.3

1 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. X vol. Trad. de Pinto de Campos J.; Augusto Falcão C. e Della Ninna A., São Paulo [s. d.]. Vol. II.  Inferno, canto XI, verso 105.

2 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. A admiração é a nossa estrela de Belém: Pronunciamento. São Paulo, 13 maio 1988.

3 FISICHELLA, Rino. Introdução à Teologia Fundamental. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2006. p. 142.

Se tudo é verdade, o que é a verdade?

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Diác. José Victorino de Andrade, EP

O homem hodierno julgar-se-ia menos moderno se não criticasse os antigos. Para ele, as verdades passaram a possuir uma validade. As descobertas do passado foram ultrapassadas pelo presente, e sofrerão reparos no futuro. Tudo é transitório. Apenas a opinião alheia se enche de brios, pouco disposta a dialogar, ou pelo menos, a reconhecer uma verdade exterior.

Consequentemente, muitos autores contemporâneos, ao pretenderem apoderar-se da verdade, sentam-se em sua cátedra embevecida de pretensões infalíveis, cujos escritos destilam os seus próprios dogmas, muito distantes, por vezes, do mundo real. E quanto mais escandalosos, provavelmente, mais publicitados e comentados.

As fátuas inverdades emanadas vão ao encontro de homens ávidos de mudanças que transformem a sua existência, consequência do vazio deixado pelo rechaço à metafísica e aos seus interlocutores. Ao enveredarem por novas vias que criam uma ruptura com as antigas, aderem facilmente a novos projectos que lhes tragam uma libertação dos velhos preconceitos éticos.

Numa cultura hedonista, na qual as a igreja foi substituída pelo shopping, a beleza da virtude pela estética corporal, o jejum e a penitência pela dieta e o suor no ginásio, uma religião de dogmas e prescrições morais só poderia surgir ao pensamento contemporâneo como algo ultrapassado, impositivo, que asfixia a própria pretensão de verdade.

Assim, nega-se a verdade na sua transcendência absoluta, da qual dimanam todas as demais, e corre-se o sério risco de “panteistizá-la”. Todos com a verdade, e a verdade com todos. Se tudo é verdade, terá sentido o próprio termo? Como convidar o homem a sair de si, e dos seus preconceitos recentemente criados, a esmo, conforme o cardápio apresentado por verdades relativizadas, engolidas sem mastigar, que o empanturram de critérios pouco judiciosos, assimilados com a mesma rapidez com que muda o canal da TV?

A resposta não é uma verdade abstracta, mas uma pessoa concreta: Jesus Cristo, a “Palavra eterna que se exprime na criação e comunica na história da salvação” (Verbum Domini n. 11). Para o cristão, a Verdade absoluta, Deus, encarnou e fez-se homem (Cf. Jo 1, 14), possui um rosto — “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9) — e um nome, não havendo debaixo do céu salvação em nenhum outro (Cf. At. 4, 12). Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida (Cf. Jo 14, 6). Esta é a grande novidade do cristianismo, um Deus pessoal, não distante, que entra na História.

Como renunciar Àquele que possui palavras de vida eterna (cf. Jo 6, 68), e trocá-las por palavras humanas, levadas e esquecidas pelo tempo, ou superadas por uma nova erudição ou pensamento falível? Em Jesus, “a Palavra não se exprime primariamente num discurso, em conceitos ou regras; mas vemo-nos colocados diante da própria pessoa de Jesus. A sua história, única e singular, é a palavra definitiva que Deus diz à humanidade” (VD n.11). Esta, excede toda e qualquer capacidade intelectual humana que “com as suas próprias capacidades racionais e imaginação, jamais teria podido conceber” (Loc. Cit.).

Como chegarmos à conclusão de que não nos enganamos? São João é nossa testemunha: “‘Nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai, como Filho único cheio de graça e de verdade’ (Jo 1, 14b). A fé apostólica testemunha que a Palavra eterna Se fez Um de nós” (VD n. 11). Apenas a Revelação poderia trazer uma verdade plena que orientasse os homens em sua peregrinação terrena e os levasse a um seguro conhecimento, tanto quanto possível à sua natureza limitada.

Descobrimos assim que a verdade não é abstracta, variável, limitada, mas que é o próprio Deus encarnado, que entrando na história concreta dos homens, com Palavras de vida eterna, orienta-os na sua peregrinação terrena, convidando-os a conformar a sua vida à luz da Revelação.

V Domingo Páscoa

clerusTexto recebido de Clerus.org

Neste quinto domingo do tempo pasqual, a Igreja nos propõe, como na última semana, um texto do evangelista São João, onde o Senhor revela aos próprios discípulos, algumas verdades profundas sobre a sua identidade.

O motor, aquilo que faz com que o discurso desenvolva-se entre os interlocutores protagonistas do texto bíblico em questão, não é um genérico desejo de felicidade, mas aquilo que representa o coração das expectativas mais profundas, próprias dos homens: o desejo de ver a Deus face a face! «Disse-lhe Felipe: “Senhor, mostra-nos o Pai, isso nos basta”» (Jo. 14,8).

A postura dos que falam com Jesus poderia representar para nós um escândalo. De fato, o inciso de Felipe – “nos basta” – como também aquilo que Tomé fala em relação ao seu desconhecimento do lugar para onde iria Jesus, e, por isso, a impossibilidade de seguí-lo (cf. Jo. 14.5), colocam os dois Apóstolos numa situação difícil, fazendo-nos, inclusive, a tomar certa distância dos mesmos. Na verdade, quantas não foram as vezes que, em nossas jornadas, deixamos que o torpor da nossa fé deixasse o nosso espírito penoso de suportar, obscurecendo a nossa mente, deixando-nos como que cegos diante das “obras” que o Senhor realiza em nossas vidas? E assim, desconsideramos a importante chamada de Jesus: “Crede-me: eu estou no Pai e o Pai está em mim. Crede, ao menos, por causa destas obras” (Jo. 14,11).

Trata-se de uma verdade inegável: sempre afirmamos de seguir o Senhor, e o dizemos de verdade, mas tal sequela poderia ser só a nível intelectual. Isto ocorre porque não deixamos sedimentar em nós a Sua Palavra, não a deixamos germinar através da oração (cf. At. 6,4), mas principalmente, não damos a nossa disponibilidade para que, regenerados pelos sacramentos, Cristo faça-se presente através da nossa humanidade, “para oferecer sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus” (1Pd. 2,5).

O Senhor Ressuscitado, vencendo a morte deu-nos o exemplo e abriu para nós as portas do Paraíso, mostrando-nos, assim, não só que Ele é o caminho que nos conduz ao Pai, mas também a verdade e a vida: “Quem me viu, tem visto o Pai” (Jo. 14,9).

Peçamos ao Pai que continue dando-nos o seu Espírito, para que seja claro em nós, que só através de Cristo podemos conhecer os bons desígnios  que a Providência pensou para a nossa vida, de tal forma que a nossa esperança e as nossas ações estejam fundadas somente Nele. Dessa forma, será mais simples dar-se conta que o Senhor está sempre ao nosso lado, e, assim, poderemos ser instrumentos eficazes para que Ele se manifeste a todo o mundo.

É uma tarefa que nasce da preferência de Deus: para os primeiros discípulos, como vemos na segunda leitura, estava claro o fato que eram preferidos: “Vós sois a gente escolhida, o sacerdócio régio, a nação santa” (1Pd. 2,9). Devemos nos apropriarmos de novo desta consciência, pois experimentando a nova vida em Cristo, possamos cantar com o salmista: “Exultai, justos, no Senhor, que merece o louvor dos que são bons” (Sl. 32,1).

A escravidão a Nossa Senhora enquanto suprema liberdade

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Dr. José Mário da Costa

A forma suprema da liberdade consiste em aceitar a autoridade daqueles que nos ajudam a praticar a verdade e o bem, ou seja, a fazer aquilo que de fato queremos. Não há, portanto, forma mais cristalina e mais sublime de liberdade do que sermos escravos de Nossa Senhora. É o auge da dignidade humana, porque é fazer, em tudo, aquilo para onde as nossas melhores apetências caminham.

Qual é a conseqüência disso para nós, quando formos nos consagrar a Nossa Senhora? É levarmos um espírito amoroso de autoridade, isto é, compreendendo a função da autoridade, compreendendo a função da obediência e compreendendo que, fazendo-nos tão pequenos diante dEla, fazemos uma coisa sublime, uma coisa altamente dignificante. Não devemos nunca nos envergonharmos de obedecer, de seguir um outro, porque exatamente aí está a mais alta dignidade do homem.

Neste ponto de nossa argumentação, alguém poderia perguntar: “Esta doutrina da escravidão de amor a Virgem Maria é linda! Mas qual seria a sua utilidade prática? E que relação teria com a tese da nossa pesquisa?”

É São Luiz Maria Grignion de Montfort quem vai responder a estas duas perguntas. O capítulo V do seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem tem como título:  Esta devoção conduz à união com Nosso Senhor. (Grignion de Montfort, 1961, p. 145).

Em seguida, explica o santo: “Esta devoção é um caminho fácil, curto, perfeito e seguro para chegar à união com Nosso Senhor, e nisto consiste a perfeição cristã.” (idem, p. 145). Ele faz uma longa demonstração desta tese em seu Tratado. (ibidem, p. 146-163).

Portanto, conforme ensina São Luiz de Montfort, a perfeição cristã consiste na união com Nosso Senhor, e a escravidão de amor a Virgem Maria, ensinada por ele, é um caminho fácil, curto, perfeito e seguro para se chegar a esta união.

Em resumo, a doutrina do santo consiste na consagração de si mesmo a Jesus pelas mãos de Maria. “Assim será um fiel e amoroso escravo de Jesus e Maria quem, pelas mãos de Maria Santíssima, se entregar inteiramente ao serviço deste Rei dos reis, e que não reserva nada para si”. (ibidem, p. 131).

Em vista disso, uma grande difusão dessa forma de devoção à Santíssima Virgem seria um forte instrumento para conduzir os homens à vida eucarística, trazendo assim de volta ao redil de Cristo as ovelhas desgarradas.

Imutabilidade intrínseca e extrínseca da Lei Natural

reloPe. Leopoldo Werner, EP

Imutabilidade intrínseca

A lei natural, em si mesma, é imutável, pois seus primeiros princípios são inerentes à consciência humana e não desaparecem por meio das vicissitudes da História, como ensina o Catecismo da Igreja Católica:

A lei natural é imutável e permanente através das variações da história; ela subsiste sob o fluxo das ideias e dos costumes e constitui a base para seu progresso. As regras que a exprimem permanecem substancialmente válidas. Mesmo que alguém negue até os seus princípios, não é possível destruí-la nem arrancá-la do coração do homem. Sempre torna a ressurgir na vida dos indivíduos e das sociedades (CEC, 2001: 518).

Dito com outras palavras, em todos os lugares e em todas as épocas o homem será impelido pela sua consciência a fazer o bem e evitar o mal, isto é, a respeitar a vida do próximo, sua liberdade, não mentir nem difamar, etc. Pois todas estas obrigações, como veremos mais adiante, emanam da lei natural.

No caso da lei positiva isto não acontece, pois um mesmo ato pode ser legal para um povo e ilegal para outro. Ponhamos um exemplo extraído das leis de trânsito: para um motorista inglês, circular pelo lado esquerdo da calçada é o modo correto de fazê-lo. Se alguém o imitasse no nosso País, incorreria em flagrante ilegalidade, além de se expor a um grave acidente.

Imutabilidade extrínseca

Como ao homem não é dado renunciar à sua condição de criatura humana, e como a lei natural está inserida dentro de seu coração, não é lícito abrogá-la, nem mesmo transgredi-la sem ferir os fundamentos da sua própria dignidade, e não pode dispensá-la, pois constitui um patrimônio inalienável, já que com ela permanece, desde a concepção até a sua morte natural. Esta é uma lei da sua natureza, da sua dignidade, e da sua superioridade como ente racional dotado de liberdade para aperfeiçoar seu ser em direção ao fim absoluto, que é o próprio Deus, Criador de todas as coisas.

A lei natural é imutável e permanente através das variações da história. Subsiste sob o fluxo das ideias e dos costumes e está na base do respectivo progresso. As regras que a traduzem permanecem substancialmente válidas. Mesmo que se lhe neguem até os princípios, não é possível destruí-la nem tirá-la do coração do homem (CEC 2001: 1958).

Convém, entretanto, fazer-se uma importante precisão sobre a imutabilidade extrínseca da lei natural tomando por base a doutrina de São Tomás. Ensina o Doutor Angélico que ela não pode mudar “a modo de subtração, a saber, de modo que deixe de ser lei natural algo que antes fora segundo a lei natural” (AQUINO: 2005, Vol. IV: 569). Mas nada proíbe que mude por algo que se lhe acrescente, como de fato tem acontecido ao longo da História.