A Ressurreição do Senhor

Mons. João S. Clá Dias, EPjesus2

Quia surrexit sicut dicit… Tal como havia anunciado aos seus (Mt 16, 21; 17,9; 17, 22; 20, 19; Jo 2, 19, 20 e 21; Mt 12, 40), Jesus ressuscitou. Esse supremo fato já havia sido previsto por David (Sl 15, 10) e por Isaías (Is 11, 10).

São Paulo ressaltará o valor desse grandioso acontecimento: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1 Cor 15, 14). Daí a importância capital da Páscoa da Ressurrei­ção, a magna festa da Cristandade, a mais antiga, e centro de todas as outras, solene, majestosa e pervadida de júbilo: “Haec est dies quam fecit Dominus. Exultemus et laetemur in ea” — esse é o dia que o Senhor fez, seja para nós dia de alegria e felicidade (Sl 117, 24).

Na liturgia, essa alegria é prolongada pela repetição da palavra “aleluia”, pelo branco dos paramentos e pelos cânticos de exultação. Com razão dizia Tertuliano: “Somai todas as solenidades dos gentios e não chegareis aos nossos cinqüenta dias de Páscoa” (De idolatria, c 14).

Na Ressurreição do Senhor, além de contemplarmos o triunfo de Jesus Cristo, celebramos também a nossa futura vitória, sendo aplicáveis a nós as belas palavras de São Paulo: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está o teu aguilhão?” (1 Cor 15, 55).

As sete palavras de Jesus

cruz-livroMons. João S. Clá Dias, EP

Afirma São Tomás que “o último na ação é o primeiro na intenção”. Pelos derradeiros atos e disposições de alma de quem transpõe os umbrais da eternidade, chegamos a compreender bem qual foi o rumo que norteou sua existência. No caso de Jesus, não só na morte de cruz, mas também, de forma especial, em suas últimas palavras, vemos o sentido mais profundo de sua Encarnação. Nelas encontramos uma rutilante síntese de sua vida: constante e elevada oração ao Pai, apostolado através da pregação, conduta exemplar, milagres e perdão. A cruz foi o divino pedestal eleito por Jesus para proclamar suas últimas súplicas e decretos. No alto do Calvário se esclareceram todos os seus gestos, atitudes e pregações. Maria também compreendeu ali, com profundidade, sua missão de mãe. Jesus é a Caridade. A perfeição dessa virtude, nós a encontramos nas “Sete Palavras”. As três primeiras têm em vista os outros (inimigos, amigos e familiares); as demais, a Si próprio.

1ª Palavra: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34) Pai — É o mais suave título de Deus. Nessa hora extrema, Jesus bem poderia invocá-Lo chamando-O Deus. Percebe-se, entretanto, claramente a intenção do Redentor: quis afastar, dos fautores daquele crime, a divina severidade do Juiz Supremo, interpondo a misericórdia de sua paternalidade. Chega-se a entrever a força de seu argumento: se o Filho, vítima do crime, perdoa, por que não o fazeis também Vós? É a primeira “palavra” que os divinos lábios d’Ele pronunciam na cruz, e nela já encontramos o perdão. Perdão pelos que Lhe infligiram diretamente seu martírio. Perdão que abarca também todos os outros culpados: os pecadores. Nesse momento, portanto, Jesus pediu ao Pai também por mim. Embora não houvesse fundamento para escusar o desvario e ingratidão do povo, a sanha dos algozes, a inveja e ódio dos príncipes e dos sacerdotes, etc., tão infinita foi a Caridade de Jesus que Ele argumenta com o Pai: “porque não sabem o que fazem”. A ausência absoluta de ressentimento faz descer do alto da cruz a luminosidade harmoniosa e até afetuosa do amor ao próximo como a si mesmo. Ouvindo essa súplica, chegamos a entender quanta isenção de ânimo havia em Jesus, na ocasião em que expulsou os vendilhões do Templo: era, de fato, o puro zelo pela casa de seu Pai.

2ª Palavra: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43) A cena não podia ser mais pungente. Jesus se encontra entre dois ladrões. Um deles faz jus à afirmação da Escritura: “Um abismo atrai outro abismo” (Sl 41, 8). Blasfema contra Jesus, dizendo: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo, e salva-nos a nós” (Lc 23, 39). Enquanto esse ladrão ofende, o outro louva Jesus e admoesta seu companheiro, dizendo: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício? Para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez mal algum” (Lc 23, 40-41). São palavras inspiradas, nas quais transparecem a santa correção fraterna, o reconhecimento da inocência de Cristo, a confissão arrependida dos crimes come-tidos. São virtudes que lhe preparam a alma para uma ousada súplica: “Senhor, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino!” (Lc 23, 42). Ao referir-se a Jesus enquanto “Senhor”, o bom ladrão professa sua condição de escravo e reconhece-O como Redentor. O “lembra-te de mim” é afirmativo, não tem nenhum sentido condicional, pois sua confiança é plena e inabalável. Compreende a superioridade da vida eterna sobre a terrena, por isso não pede aquilo que, para o mau ladrão, constitui um delírio: o afastamento da morte, a recuperação da saúde e da integridade. O bom ladrão confessa publicamente a Nosso Senhor Jesus Cristo, ao contrário até mesmo de São Pedro, que havia três vezes negado o Senhor. Tal gesto lhe fez merecer de Jesus este prêmio: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43). Jesus torna solene a primeira canonização da história: “Em verdade…” A promessa é categórica até quanto à data: hoje. São Cipriano e Santo Agostinho chegam a afirmar ter recebido o bom ladrão a palma do martírio, pelo fato de, por livre e espontânea vontade, haver confessado publicamente a Nosso Senhor Jesus Cristo.

3ª Palavra:“Junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cleófas, e Maria Madalena. Quando Jesus viu sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: ‘Mulher, eis aí teu filho’. Depois disse ao discípulo: ‘Eis aí tua mãe’.E dessa hora em diante o discípulo a levou para a sua casa” (Jo 19, 25-27). Com essas palavras, Jesus finaliza sua comunicação oficial com os homens antes da morte (as quatro outras serão de sua intimidade com Deus). Quem as ouve são Maria Madalena, representan-do a via da penitência; Maria, mulher de Cleófas, a dos que vão progredindo na vida espiritual; Maria Santíssima e São João, a da perfeição. Consideremos um breve comentário de Santo Ambrósio sobre este trecho: “São João escreveu o que os outros calaram: [pouco depois de] conceder o reino dos céus ao bom ladrão, Jesus, cravado na cruz, considerado vencedor da morte, chamou sua Mãe e tributou a Ela a reverência de seu amor filial. E, se perdoar o ladrão é um ato de piedade, muito mais é homenagear a Mãe com tanto carinho… Cristo, do alto da cruz, fazia seu testamento, distribuindo entre sua Mãe e seu discípulo os deveres de seu carinho” (in S. Tomás de Aquino, Catena Áurea). É arrebatador constatar como Jesus, numa atitude de grandioso afeto e nobreza, encerrou oficialmente seu relacionamento com a humanidade, na qual se encarnara para redimi-la. Do auge da dor, expressou o carinho de um Deus por sua Mãe Santíssima, e concedeu o prêmio para o discípulo que abandonara seus próprios pais para segui-Lo: o cêntuplo nesta terra (Mt 19, 29). É perfeita e exemplar a presteza com que São João assume a herança deixada pelo Divino Mestre: “E dessa hora em diante, o discípulo a levou para a sua casa” (Mt 19, 27). São João desce do Calvário protegendo, mas sobretudo protegido pela Rainha do céu e da terra. É o prêmio de quem procura adorar Jesus no extremo de seu martírio.

4ª Palavra: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27, 45) Jesus clama em alta voz. Seu brado fende não somente os ares daquele instante, mas os céus da história. Nossos ouvidos são duros, era indispensável falar com força. Jesus não profere uma queixa, nem faz uma acusação. Deseja, por amor a nós, fazer-nos entender a terrível atrocidade de seus tormentos. Assim mais facilmente adquiriremos clara noção de quanto pesam nossos pecados e de quanto devemos ser agradecidos pela Redenção. Como entender esse abandono? Não rompeu-se — e é impossível — a união natural e eterna entre as pessoas do Pai e do Filho. Nem sequer separaram-se as naturezas humana e divina. Jamais se interrompeu a união entre a graça e a vontade de Jesus. Tampouco perdeu sua alma a visão beatífica. Perdeu Jesus, isto sim, e temporariamente, a união de proteção à qual Ele faz menção no Evangelho: “Aquele que me enviou está comigo; ele não me deixou sozinho” (Jô 8, 29). O Pai bem poderia protege-Lo nessa hora (cfr. Mc 14, 36; Mt 26, 53; Lc 22, 43). O próprio Filho poderia proteger seu Corpo (Jo 10, 18; 18, 6), ou conferir-lhe o dom de incorruptibilidade e de impassibilidade, uma vez que sua alma estava na visão beatífica. Mas assim determinou a Santíssima Trindade: a debilidade da natureza humana em Jesus deveria prevalecer por um certo período, a fim de que se cumprisse o que estava escrito. Por isso Jesus não se dirige ao Pai como em geral procedia, mas usa da invocação “meu Deus”. A ordem do universo criado é coesa com a ordem moral. Ambas procedem de uma mesma e única causa. Se a primeira não se levanta para se vingar daqueles que dilaceram os princípios morais por meio de seus pecados, é porque Deus lhe retém o ímpeto natural. Se assim não fosse, os céus, os mares e os ventos se ergueriam contra toda e qualquer ofensa feita a Deus. Mas como frear a natureza diante do deicídio? Por isso, na hora daquele crime supremo, “cobriu-se toda a terra de trevas”… (Mt 27, 45).

5ª Palavra: “Tenho sede.” (Jo 19, 28) Assinala o evangelista que Jesus dissera tais palavras por saber “que tudo estava consumado, para se cumprir plenamente a Escritura”. Vendo um vaso cheio de vinagre que havia por ali, os soldados embeberam uma esponja, “e fixando-a numa vara de hissopo, chegaram-lhe à boca” (Jo 19, 28-29). Cumpria-se assim o versículo 22 do salmo 68: “Puseram fel no meu alimento; na minha sede deram-me vinagre para beber”. Qual a razão mais profunda desse episódio? É um verdadeiro mistério. Jesus derramara boa quantidade de seu preciosíssimo Sangue durante a flagelação. As chagas, em via de cicatrização, foram reabertas ao longo do caminho e ainda mais quando Lhe arrancaram as roupas para crucificá-Lo. O pouco sangue que Lhe restava escorria pelo sagrado lenho. Por isso, a sede tornou-se ardentíssima. Além desse sentido físico, a sede de Jesus significava algo mais: o Divino Redentor tinha sede da glória de Deus e da salvação das almas. E o que lhe oferecem? Um soldado lhe apresenta, na ponta de uma vara, uma esponja empapada de vinagre. Era a bebida dos condenados. Podemos de alguma maneira aliviar pelo menos esse tormento de Jesus? Sim! Antes de tudo, compadecendo-nos d’Ele com amor e verdadeira piedade, e apresentando-Lhe um coração arrependido e humilhado. Devemos querer ter parte nessa sede de Cristo, almejando acima de tudo à nossa própria santificação e salvação, com redobrado esforço, de modo a não pensar, desejar ou praticar algo que a Ele não nos conduza. Para Ele será uma água fresca e cristalina nossa fuga vigilante das ocasiões próximas de pecado. Compadeçamo-nos também dos que vivem no pecado ou nele caem, e trabalhemos por sua salvação. Em suma, apliquemo-nos com ânimo na tarefa de apressar o triunfo do Imaculado Coração de Maria. O Salvador clama a nós do alto da cruz que defendamos, mais ainda que o bom ladrão, a honra de Deus, procurando conduzir a opinião pública para a verdadeira Igreja. É nosso dever buscar entusiasmadamente a glória de Cristo, “que nos amou e por nós se entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor.” (Ef 5, 2).

6ª Palavra: “Tudo está consumado.” (Jo 19, 30) A Sagrada Paixão terminara e, com ela, a pregação. Todas as profecias haviam se cumprido, conforme interpreta Santo Agostinho: a concepção virginal (Is 7, 14); o nascimento em Belém (Mq 5, 1); a adoração dos Reis (Sl 71, 10); a pregação e os milagres (Is 61, 1; 35, 5-6); a gloriosa entrada em Jerusalém no dia de Ramos (Zc 9,9) e toda a Paixão (Isaías e Jeremias). Na Cruz foi vencida a guerra contra o demônio: “Agora é o juízo deste mundo; agora será lançado fora o príncipe deste mundo” (Jo 12, 31). No paraíso terrestre, o demônio adquirira de modo fraudulento a posse deste mundo, com o pecado de nossos primeiros pais. Jesus a recuperou como legítimo herdeiro. Consumado também estava o edifício da Igreja. Este iniciou-se com o batismo no Jordão, onde foi ouvida a voz do Pai indicando seu Filho muito amado, e se concluiu na cruz, na qual Jesus comprou todas as graças que serão distribuídas até o fim do mundo através dos sacramentos. Para que o preciosíssimo Sangue do Salvador ponha fim ao império do demônio em nossas almas, é preciso que crucifiquemos nossa carne com seus caprichos e delírios, combatendo também o res-peito humano e a soberba. Jesus nos abriu um caminho que, aliás, todos os santos trilharam.

7ª Palavra: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.” (Lc 23, 46) Estabeleceu-se na Igreja, desde os primórdios, o costume de enco-mendar as almas dos fiéis defuntos, a fim de que a luz perpétua os ilumine. Jesus, porém, não tinha necessidade de encomendar sua alma ao Pai, pois ela havia sido criada no pleno gozo da visão beatífica. Desde o primeiro instante de sua existência, encontrava-se unida à natureza divina na pessoa do Verbo. Portanto, ao abandonar o corpo sagrado, sairia vitoriosa e triunfante. “Meu espírito”, e não alma, provavelmente aqui significaria a vida corporal de Jesus. Mas Jesus aguardava sua ressurreição para logo. Ao entregar ao Pai a vida que d’Ele recebera, sabia que ela Lhe seria restituída no tempo devido. Com reverência tomou o Pai Eterno em suas mãos a vida de seu Filho unigênito, e com infinito comprazimento a devol-véu, no ato da ressurreição, a um corpo imortal, impassível e glorioso. Abriu-se, assim, o caminho para a nossa ressurreição, ficando-nos a lição de que ela não pode ser atingida senão pelo calvário e pela cruz.

AVE CRUX, SPES ÚNICA.

O desafio da Evangelização nas grandes cidades

Pe. José Victorino de Andrade, EP

A vida na cidade é tentadora para aqueles que vão trocando as histórias em torno da matriarca e do patriarca pela caixinha mágica cujas novelas quebram tabus e mitificam a pseudo felicidade das grandes urbes. É a floresta de cimento que acolhe em suas ruas uma legítima aspiração de realização pessoal e dignidade de vida. Aí o relacionamento humano torna-se muitas vezes impessoal, distante, e assim se torna também o relacionamento com o sobrenatural. Não havendo lugar para um Deus Providência, próximo ao homem, Ele acaba por ocupar um pequeno e distante espaço de mantenedor da felicidade, da riqueza e da saúde, coisa que nós descobrimos que nem mesmo os grandes centros urbanos são totalmente eficazes em nos oferecer.

A religiosidade do homem nas grandes cidades é um dos maiores desafios em nossos dias e deve ser fruto de uma renovada e continuada reflexão. Quem oferecerá ao homem pós-moderno citadino a satisfação integral que ele tanto almeja? Os Shoppings, cujas galerias se enchem mais que as assembleias, quais novos templos onde as divindades do marketing regalam materialmente os mortais consumistas? As dependências ou vícios capazes de alienar o ser para novas e perturbadoras místicas? E se na vida prática da cidade, ao dobrar da esquina se encontra uma padaria, drogaria ou mercadinho, porque não procurar o espaço religioso mais próximo, ainda que de outro credo? A vida plural da cidade não oferece todas as facilidades? Deus junto à minha porta, ou mesmo na minha casa, dentro de mim, à minha medida…

Deus é grande demais para se submeter e limitar às minhas elaborações e à minha imaginação, é um Deus pessoal e não individual, um Deus que se fez homem, não um homem que faz deus… Viver nas grandes urbes não deve significar uma autonomia fria e distante de um Deus que se fez carne, quis ter um rosto e falou ao homem de todos os tempos e de todas as nações, do campo ou da cidade. Há muitos que O procuram e cabe a cada um de nós conduzi-los e favorecer aquele mesmo encontro que nos seduziu e conquistou. Ele está presente no centro e na periferia, onde dois ou mais estiverem reunidos em Seu Nome, naqueles cristãos lábios que o pronunciam e anunciam. É com alegria que o Evangelho deve ser anunciado, e o Papa Francisco deixou-o bem claro na sua última Exortação Apostólica. Afinal, um cristão triste, é sempre um triste cristão.

A missão não ficou tão distante como em outros tempos. Hoje, ela começa na sua casa, junto a seus vizinhos, em seu bairro, na sua cidade e dispõe de variados e eficazes meios, além do pessoal e da proximidade que são insubstituíveis e de grande importância, complementados com a internet, redes sociais, celular, entre muitos outros. É este estado permanente de missão que o plano pastoral da CNBB nos propõe para este grande Brasil, partindo de um encontro e uma experiência com Nosso Senhor Jesus Cristo e da alegria do anúncio da sua Palavra. 

A procura do Absoluto

pescadorMons. João Clá Dias, EP

Dentre as diversas formas do conhecimento analógico de Deus, a via eminentiae procura atribuir às coisas visíveis graus de perfeição superiores aos que possuem, como forma de elevar a alma a Deus na consideração admirativa do Universo.

Entende-se a importância primordial de uma correta impostação de espírito na consideração da criação, no sentido de favorecer os bons frutos da catequese e da formação cristã, pois ao se tomar uma pessoa, educada na escola da “procura do absoluto”,[1] para ela, acreditar nos conteúdos da Fé, torna-se algo quase conatural. Saber que aquele Deus, por ela tão almejado, revelou-Se misericordiosamente, produz-lhe um grande gáudio interior, levando-o a exclamar com Jeremias: “Bastava descobrir as tuas palavras e eu já as devorava, tuas palavras para mim são prazer e alegria do coração” (Jr 15, 16).

Quando São Tomás se pergunta — seguindo seu método clássico inspirado nas disputationes medievais — pela origem da desigualdade das coisas, defronta-se com algumas objeções, dentre as quais chamamos a atenção sobre a primeira, sobretudo pela resposta a ela dada pelo santo doutor. Com efeito, se Deus é o ótimo por essência, não pode ter criado senão coisas ótimas, as quais deveriam ser todas necessariamente iguais. Pois, a partir do momento que uma fosse melhor que a outra, a inferior deixaria de ser ótima. (cf S Th I, q. 47, a. 2)

Responde São Tomás com seu clássico estilo:

A un agente óptimo le corresponde producir todo su efecto de forma óptima. Sin embargo, no en el sentido de que cada una de las partes del todo que hace sea absolutamente óptima, sino que es óptima en cuanto proporcionada al todo. […] Así, de cada una de las criaturas se dice en el Gen 1, 4, Vio Dios que la luz era buena. Lo mismo se dice de las demás cosas. Pero de todas en conjunto dice (v.31): Vio Dios todo lo que había hecho y era muy bueno.

As perfeições de Deus, refletidas nas várias criaturas em diversos graus e modos, têm sua representação mais admirável no conjunto da Criação, a qual forma como que um imenso e magnífico mosaico que reproduz a Beleza incriada. O Universo é melhor do que cada uma das partes, por refletir com maior perfeição a grandeza e majestade de Deus.

Seguindo o divino exemplo, a alma que trilha as vias da “procura do absoluto” não deve se deter apenas na consideração de cada uma das obras de Deus isoladamente, mas é chamada a admirar a ordem do Universo no seu conjunto.

Entretanto, há uma obra na Criação que o fiel deve considerar com um amor que toca quase na adoração: é a Igreja Católica, Apostólica e Romana. Nela, se reflete de modo ainda mais perfeito a beleza infinita de Deus, pois ela é “toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível” (Ef 5, 27). O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira assim falava da Santa Igreja, como obra-prima de Deus:

Deus Se reflete, ainda, em uma obra-prima mais alta e mais perfeita do que o Cosmos. É o Corpo Místico de Cristo, a sociedade sobrenatural que veneramos com o nome da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Constitui Ela mesma, todo um universo de aspectos harmônicos e variegados, que cantam e refletem, cada qual a seu modo, a formosura santa e inefável de Deus e do Verbo Encarnado.

Na contemplação, de um lado, do Universo e, de outro lado, da Santa Igreja Católica, podemos elevar-nos à consideração da beleza santa, infinita e incriada de Deus.[2]

in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 10, Jan-Mar 2010. p. 20-22.


[1] Tendo visto como pela busca do pulchrum se tende à perfeição, com magnanimidade e senso de hierarquia, compreende-se melhor essa contemplação das criaturas rumo ao que é mais elevado, que, por herança do Prof. Corrêa de Oliveira, na instituição dos Arautos se designa por “procura do Absoluto”, e em linguagem escolástica é chamada conhecimento analógico de Deus.

[2] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. O Escapulário, a profissão e a consagração interior, in Mensageiro do Carmelo. São Paulo, 1959, ano 47, ed. especial, pp. 58-65.

Partida e permanência de Cristo

Pe. Alex Barbosa de Brito, EP

Ao chegar a plenitude dos tempos, a Luz verdadeira iluminou a obscuridade: “et Verbum caro factum est”[1], erguendo Sua tenda[2] no meio de nós.” (Jo 1,14). Deus, que “habita numa luz inacessível” (1 Tm 6,16), vem ao encontro do homem, mostra-Lhe sua humana face, “para acostumar o homem a apreender a Deus e acostumar Deus a habitar no homem.” (Irineu de Lião, Adv. Haer. III, 20,2).

Entretanto, concluída a missão terrena de Jesus, o Céu reclama o seu Rei. Depois de combater longamente, é chegada a hora do triunfo. São Pedro Julião Eymard[3] (2002, p. 44) afirma que Jesus “não quer abandonar sua nova família, os filhos que acaba de gerar: ‘Vou-me e venho a vós’, diz aos apóstolos.”

Partindo, permaneceu! “Jesus terá dois tronos, um de glória no Céu, outro de mansidão e de bondade na terra. Duas cortes: a corte celeste, triunfante, e a corte terrestre, composta daqueles que foram remidos por Ele.” (EYMARD, 2002, p. 44). Admirável, ousada e segura é a afirmação do santo da Eucaristia: “se não fosse possível permanecer simultaneamente cá e lá, havia de preferir ficar na terra conosco, a voltar ao Céu sem nós.” (Ibidem).

De fato, alguém que tivesse assistido ao desenrolar paulatino de todos os episódios da Paixão de Cristo, movido por fé e compaixão, e soubesse também de sua ressurreição e visse sua ascensão aos céus, poderia legitimamente pôr-se uma série de conjecturas: “Será que Ele vai voltar? Quanto tempo demorará? Ou será que Ele nunca mais virá à terra? Até o fim do mundo ninguém mais o verá? Depois dessa paixão tão cruel, das maravilhas da ressurreição e ascensão, será que poderá ficar ausente do convívio daqueles por quem tanto fez?” Oh! Ele disse que seria necessário partir para que fosse enviado o Consolador (Jo 16,7), mas prometeu permanecer junto dos homens: Ego vobiscum sum omnibus diebus usque ad consummationem saeculi (Mt 28,20).

Seria inadmissível que tivesse deixado definitivamente de conviver com os homens. Tudo clamava para que o Senhor não se separasse deles. Teria de haver algum modo de, partindo, permanecer, sem se perder nada de seu convívio. Esse paradoxo teria solução?

Na Carta Encíclica Dominum et vivificantem[4], João Paulo II ensina que esse voltar e permanecer de Cristo é obra do Espírito Santo: “Cristo, que partiu na humanidade visível, vem, está presente e atua na Igreja de forma tão íntima que faz dela o seu corpo” (DV 61) e “a expressão mais completa da ‘partida e permanência’ de Cristo, por meio do mistério da Cruz e da Ressurreição, é a Eucaristia” (DV 62). Só um Deus sumamente amoroso poderia arquitetar tão sublime solução.

Texto extraído e adaptado do trabalho de dissertação na disciplina de Direito Canônico apresentado no Pontifício Instituto Superior de Direito Canônico


[1] “Da parte de Deus a última palavra foi dada: o seu Verbo eterno, que se entregou por nós” […] e na Eucaristia temos perenemente, no corpo ferido, no sangue derramado, a real e eficiente presença da sua última palavra, o “Sim” de Deus. “Na antropologia hebraica, termos como “carne” ou “corpo” não descrevem divisões ou dicotomias no homem. Significam, antes, o homem todo, considerado sob um determinado aspecto. O pedaço de pão distribuído por Jesus significa para os discípulos a certeza da presença de Jesus entre eles.” (EMANUEL BOUZON & KARL ROMER, A palavra de Deus, Ano B, p. 189).

[2] “O Logos presente no mundo como luz rejeitado pelos homens toma a carne humana, torna-se um homem: kai o logos sarx egeneto (kai logoV sarx egeneto) e o ‘Logos se fez carne’ (v. 14ª). O termo sarxsarx – (em hebraico, basar) designa na antropologia bíblica justamente o elemento de fraqueza e caducidade no homem. O Logos tornou-se perfeitamente solidário com o gênero humano (cf. 1 Jo 4,9 s; Gl 4,4s). Ele, que desde o início em pròs tòn Theón – “estava com Deus” – em determinado momento da história salvífica eskhnwsen en hmin (eskhnwsen en hmin): “lançou sua tenda entre nós” (cf. v. 14 b. O verbo eskhnóo (eskhnwo) indica justamente a ação do beduíno que arma a tenda.) (BOUZON & ROMER, Ano A, p. 42-43).

[3] EYMARD, Pedro Julião. In Escritos e Sermões: A Divina Eucaristia.  Trad. do francês de Mariana Nabuco.  Taubaté: Impresso pelas Irmãs Sacramentinas, distribuído pela Loyola.

[4] IOANNES PAULUS PP. II DOMINUM ET VIVIFICANTEM sobre o Espírito Santo na Vida da Igreja e do Mundo. Datada de 18 mai. 1986. Vide Referências Bibliográficas.

A solução para os problemas sociais

Pe. José Victorino de Andrade, EP

O mandamento novo (Jo 13, 34) foi capaz de criar aqueles fundamentos que lançaram as suas raízes na sociedade, que cresceu e se espalhou pelo ocidente. Talvez esta nova et vetera proposta seja em nossos dias a única capaz verdadeiramente de regenerar a sociedade, diante dos múltiplos desafios que a cercam. Corajosamente, lembrava João Paulo II na Centesimus annus: “não existe solução fora do Evangelho para a questão social” (AAS 83 [1991], p. 800).1

A Bíblia contém “valores antropológicos e filosóficos que influíram positivamente sobre toda a humanidade” (Verbum Domini, p. 177). Estes não estagnaram, mas pertencem à perene riqueza da mensagem evangélica, que deve resgatar os homens do seu ego para se voltarem ao alter. O próprio Jesus não se preocupou em ser servido, mas em “servir e dar a sua vida para redenção de muitos” (Mc 10, 45). Os seus ensinamentos contêm uma incomensurável universalidade espacial e temporal, própria a fazer crescer na verdade e na caridade, e a oferecer resposta aos anseios de todos os homens, tempos e nações.

A Sagrada Escritura é a inspiradora dos gestos concretos que tiram a Doutrina Social da Igreja do mero papel, transportando-a para a vida real e concreta dos homens, chamando o batizado a fazer-se, à semelhança de São Paulo, tudo para todos, por causa do Evangelho (I Cor 9, 22-23). Conforme Bento XVI na Verbum Domini, a Palavra deve iluminar “cada âmbito da humanidade: a família, a escola, a cultura, o trabalho, o tempo livre e os outros setores da vida social” (p. 155), proporcionando assim um encontro com o próprio Cristo, a conversão e a capacidade de florescer e edificar uma “humanidade nova” (p. 156).

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1 “Quemadmodum fecit Leo Pontifex, oportet repetamus non esse extra Evangelium solutionem ‘quaestionis socialis’ at contra ‘res novas’ posse in eo suum veritatis spatium invenire rectamque moralem collocationem” (n. 5. Tradução minha da parte grifada). O Papa João Paulo II, afirma, ademais, a importância da Escritura para a “recta colocação moral” acerca das “coisas novas”, e o imprescindível anúncio da Doutrina Social da Igreja para a Nova Evangelização (AAS 83 [1991], p. 800).

Os benefícios das tentações

jesus-e-apostolos1Evangelho – 1º domingo da quaresma

No deserto, Jesus não foi tentado apenas ao fim dos quarenta dias de jejum, mas ao longo de todo esse período.

Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

Pervadidos de mistério e propícios à meditação, o batismo do Senhor e a tentação no deserto constituem o pórtico de sua vida pública. Sobre essa matéria muito tem sido escrito ao longo dos séculos, procurando esclarecer seus mais profundos significados. Fixemos hoje nossa atenção nas tentações sofridas por Jesus.

Depois da teofania no Rio Jordão, encontramos no deserto dois sumos generais, Cristo e Satanás, num enfrentamento face a face. A guerra ali travada tornou-se o paradigma da luta de todo homem, durante sua existência terrena, a qual, por sua vez, recebe a influência de um e outro general. A aceitação de uma dessas influências determina sua vitória ou derrota pessoal.

Ação de Satanás sobre as almas

Sobre o supremo chefe dos maus e seus sequazes, o próprio Jesus diria mais tarde: “Vós tendes por pai o demônio e quereis fazer os desejos do vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque a verdade não está nele. Quando ele diz a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8, 44). Características estas que tornam singular o modo de agir de Satanás. Seu governo não é exercido no interior das almas, e nem sequer infunde nos seus um influxo vital. Ele consegue, isto sim, obscurecer o entendimento do pecador e apresentar-lhe maus desejos, através de tentações que lhe sugere. O demônio não tem outra intenção a não ser afastar os homens de Deus, seu Criador, e levá-los à revolta. Deseja que todos pequem o quanto possível, para assim perderem o uso da verdadeira liberdade. Na sua ação mais direta, o demônio explora nos homens a tríplice concupiscência.

De outro lado, ele odeia a verdadeira união que deve reinar no relacionamento entre os homens, e, atuando em sentido oposto, visa obter a desagregação da sociedade.

Modo de atuar de Jesus Cristo

Por sua vez, Cristo também exerce sobre os seus súditos uma influência externa, própria a qualquer rei, mas o faz com toda a perfeição e de maneira mais eficaz. Sua doutrina é clara e lógica; não só Ele a ensina com palavras, mas apresenta-Se a Si mesmo como seu exemplo insuperável e atraente. Quem puser em prática seus preceitos chegará infalivelmente à vitória.

Sua ação sobre os fiéis é incomparavelmente mais profunda do que a de Satanás sobre os seus respectivos seguidores. Jesus é a cabeça do Corpo Místico, e d’Ele deflui para os seus membros a graça santificante. Devido à união hipostática com Deus, a humanidade de Cristo tem virtude para santificar (1). É em função dela que São Paulo afirma: “Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim. A minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé no Filho de Deus, que me amou e Se entregou por mim” (Gl 2, 20).

A vida divina do batizado

Essa vida, infundida por ocasião do Batismo, é tão necessária e superior que, sem sua seiva, nada pode realizar o cristão. “Sem Mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Por isso afirma São Paulo: “Tudo posso n’Aquele que me conforta” (Fl 4, 13).

Essa é a vida que nós, batizados, devemos buscar, na certeza da vitória, caso com ela estabeleçamos uma perfeita união. Assim como as portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja (cf. Mt 16, 18), assim também cada um de nós — desde que unido pela fé e pelas obras a Cristo Jesus, nosso sumo general, Rei, Sacerdote e Profeta — não conhecerá o fracasso, e com toda a segurança chegará ao triunfo final, pois foi Ele quem nos mereceu o amparo e auxílio contra as tentações.

Por que Cristo Se dispôs a ser tentado

Essa perspectiva nos tornará claro o Evangelho de hoje, pois “Cristo quis ser tentado” e até mesmo “voluntariamente Se apresentou ao tentador” (2). Dispôs-Se Ele a ser nosso exemplo “para nos ensinar o modo de vencer as tentações do diabo. Por isso diz Santo Agostinho que Cristo Se deixou tentar pelo diabo a fim de ser nosso mediador e nos ajudar a triunfar sobre as tentações daquele, prestando-nos não apenas seu socorro, mas dando-nos também seu exemplo” (3). Da mesma forma como Jesus, pelo fato de ter abraçado sua própria morte, pôde dizer a esta: “Onde está teu aguilhão? Onde está tua vitória?”, assim também, em relação às nossas tentações, Ele as venceu no deserto. Pois, como ensina São Gregório, é compreensível que “Nosso Salvador, o qual viera para ser morto”, quisesse também “ser tentado, de tal modo que, por suas tentações, Ele pudesse vencer as nossas, assim como, por sua morte, Ele venceu a nossa” (4).

Melhor do que ninguém, Jesus sabia os riscos pelos quais passamos em nossa existência e quis, com o exemplo de sua própria vida, advertir-nos a respeito deles — sobretudo aqueles de nós mais chamados a uma via de maior entrega e perfeição. “De tal modo que ninguém, por mais santo que seja, pense estar seguro e imune à tentação. Por isso Cristo quis ser tentado após seu batismo, como diz Santo Hilário, porque ‘as tentações do diabo assaltam principalmente quem está santificado, pois ele deseja sobretudo triunfar sobre os santos’. Daí também estar escrito: ‘Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação’ (Eclo 2, 1)” (5).

Quem poderia nos ensinar eficazmente a vencer as tentações com firmeza, senão o próprio Cristo?

Por fim — ainda segundo São Tomás de Aquino —, Jesus permitiu que o demônio O tentasse “para dar-nos confiança em sua misericórdia, pelo que se diz: ‘Porque não temos n’Ele um pontífice incapaz de compadecer-Se das nossas fraquezas. Ao contrário, passou pelas mesmas provações que nós, com exceção do pecado’ (Heb 4, 15)” (6).

ii – ensinamentos
a tirar das tentações de jesus cristo

1 Jesus, cheio do Espírito Santo, partiu do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, 2 onde esteve quarenta dias, e foi tentado pelo demônio. Não comeu nada nestes dias; passados eles, teve fome.

Este início do capítulo 4 vem envolto num insondável mistério: “Cheio do Espírito Santo…” Ademais, “foi levado pelo Espírito…”. Por que “levado”? Outro Evangelista dirá “conduzido”, e um terceiro, “impelido”. São verbos categóricos que exprimem bem o poder empregado pelo Espírito Santo para agir em nossas almas quando eleitas para uma grande missão.

O batismo deve ter-se realizado à altura de Jericó. Dali saindo, provavelmente subiu as encostas agrestes do Monte Quarentena (Djebel Qarantal), composto de rochas avermelhadas, com cinco cristas muito características, separadas por consideráveis ravinas. Ainda hoje encontram-se por aquelas pedras escavações feitas à mão, que o zelo fervoroso de contemplativos trabalhou para favorecer a solidão procurada por eles. No seu ponto mais alto, um observador pode percorrer o lindo panorama circular: ao norte, o Hermon; a oeste, a terra de Judá; ao sul, o Mar Morto; a leste, o Monte Nebo (de onde Moisés avistou a Terra Prometida pouco antes de morrer), e os planaltos da Perea. Naqueles tempos, por lá deviam vagar animais selvagens, tornando o lugar muito inóspito para qualquer homem, ainda mais na situação de solidão em que se encontrava Jesus, conforme nos relata Marcos: “Esteve em companhia dos animais selvagens” (Mc 1, 13). Hoje, no cimo do monte, ergue-se o convento de São João, ocupado por monges gregos que solicitamente acompanham os peregrinos até a gruta que teria sido freqüentada pelo Salvador e chegam a indicar, até mesmo, as marcas de seus divinos pés sobre as pedras do caminho.

Jesus foi tentado durante quarenta dias

São Lucas nos fala de tentações ao longo de quarenta dias, entretanto só menciona as três últimas delas. Como entender este fato? São Tomás assim no-lo responde: “Segundo a explicação de Beda, o Senhor foi tentado durante quarenta dias e quarenta noites. Mas não se trata daquelas tentações visíveis mencionadas por Mateus e Lucas, as quais ocorreram evidentemente após o jejum, mas de outros assaltos que Cristo pôde sofrer do diabo durante aquele tempo do jejum” (7). São Tomás de Aquino é harmônico, neste seu parecer, com muitos outros autores como, por exemplo, São Justino, Orígenes, Santo Agostinho, se bem que outros tantos — como Suárez, Lagrange, Plummer — discordem deste ponto de vista.

São Mateus é ainda mais categórico ao dizer: “Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio” (Mt 4, 1).

Na história da criação, os primeiros a padecerem a prova da tentação foram os Anjos, e nem todos permaneceram fiéis… A seguir foram os nossos primeiros pais, e de seu pecado sofrerão as conseqüências todos os homens, até o fim do mundo. Mas Jesus era impecável e, apesar disso, pôde efetivamente ser tentado. N’Ele não existia o fomes peccati nem sequer a mais leve inclinação ao pecado, quer fosse pela carne ou até mesmo pelas pompas e vaidades do mundo, por possuir, ademais, um juízo sereno e clarividente. Porém, quanto às sugestões diabólicas externas, não havia o menor inconveniente em que viesse submeter-Se a elas voluntariamente, pois, não sendo interiores e também por não haver a menor imperfeição em Quem as padeceu, deixam a exclusividade de toda a malícia ao tentador (8).

De acordo com os desígnios de Deus, “convinha [a Jesus] que Ele se tornasse em tudo semelhante aos seus irmãos” (Hb 2, 17), pois, para levar até os extremos limites seu amor por nós, ao “compadecer-Se de nossas fraquezas”, maior perfeição manifestaria quando passasse “pelas mesmas provações que nós, com exceção do pecado” (Hb 4, 15).

Sobre a razão da oração e do jejum, baste-nos lembrar que “esta espécie de demônio só se pode expulsar à força de oração e de jejum” (Mt 17, 20).

A dúvida do demônio

3 Então o demônio disse-Lhe: “Se és Filho de Deus, diz a esta pedra que se converta em pão”.

Os autores se conjugam no comentário deste versículo, e dentre eles se destaca Suárez (9), afirmando que, ao tentar Jesus, o demônio não visou principalmente fazê-Lo pecar, mas saber ao certo se Ele era ou não o Filho de Deus. Com uma habitual e sintética clareza, São Tomás assim nos explica esse particular: “Como diz Santo Agostinho, ‘Cristo Se fez conhecer dos demônios na medida que Lhe pareceu conveniente, não porque Ele é a vida eterna, mas por certos efeitos temporais de seu poder’, de onde podiam eles conjecturar que Jesus era o Filho de Deus. Mas como viam n’Ele sinais de debilidade humana, não sabiam com certeza que era Filho de Deus; por isso quiseram tentá-Lo. Esse é o sentido das palavras de Mateus (Mt 4, 2-3), quando se diz que, depois que teve fome, o tentador se aproximou d’Ele; pois, como diz Santo Hilário, ‘o demônio não teria ousado tentar Cristo se não tivesse observado n’Ele, pela debilidade da fome, a natureza humana’. Isso é evidente pelo próprio modo de tentar, quando ele fala: ‘Se és o Filho de Deus’. Santo Ambrósio explica tais palavras, dizendo: ‘O que denota essa maneira de se expressar, senão que ele sabia que o Filho de Deus haveria de vir, mas não acreditava que tivesse vindo na fraqueza da carne?’” (10).

Algo devia saber Satanás sobre aquele varão sui generis, o qual, apesar de nascido numa gruta, havia sido louvado por anjos, pastores e reis do Oriente. Pois, se assim não fosse, teria empregado menos sofisticação na elaboração das tentações, como adiante veremos. O fato de o demônio começar pela suposição “se és o Filho de Deus” demonstra sua suspeita, não ainda inteiramente comprovada, de se tratar do Messias prometido, se bem que humano e não divino. E por isso procura seduzi-Lo e fazê-Lo abandonar as vias do Pai.

Como fez o demônio para tentar Jesus

Sobre a maneira de o demônio apresentar a Jesus suas seduções, divergem as opiniões dos autores. Uns poucos chegam a conferir-lhes um caráter meramente simbólico, ou seja, não passaram de invenções dos Evangelistas para ajudar os homens em suas lutas espirituais. Outros, apesar de aceitarem sua existência real, julgam não terem ocorrido senão por pura sugestão interna. Ambas as suposições não nos parecem cabíveis, tanto debaixo do prisma meramente histórico, como do teológico. Entre os que escolhem a via mais segura está Suárez, categórico em admitir a hipótese de o demônio ter assumido forma física para poder tentar Jesus:

“Satanás deve ter aparecido usando a figura humana, como o diálogo entre um e outro parece exigir. Talvez com a aparência de um santo varão ou alguma outra que julgasse mais própria para convencer. Não pôde tentar o Senhor a não ser pela palavra, do mesmo modo como fez com Adão, pois ambos careciam de paixões insubordinadas, e não era decoroso que o tentador pudesse atuar na imaginação ou potências internas de Cristo” (11).

Através das pequenas coisas, tenta o demônio as grandes vocações

Ainda dentro dos ensinamentos de São Tomás de Aquino (12), sabemos que os homens entregues às vias da perfeição, o demônio não procura tentá-los diretamente para os pecados mais graves. Sua aproximação inicial é através das imperfeições e faltas leves, até o momento de propor as graves. Essa metodologia, ele a empregou no Paraíso terrestre ao seduzir nossos primeiros pais. Começou esforçando-se por despertar a gula de Eva: “Por que não comeis?…” Depois sua vã curiosidade: “Vossos olhos se abrirão…” Por fim, apresentou-lhe o último grau de orgulho: “Sereis como deuses…”

No caso do presente versículo, serve-se Satanás de uma situação concreta. Depois de quarenta dias em completo jejum, fizeram-se presentes em Jesus as características de Filho do Homem: teve necessidade de repor suas energias, sentiu o ímpeto da fome. De todas as virtudes, uma das mais importantes é a fé. Sem uma direta revelação, assimilada por essa virtude, nenhuma criatura, humana ou angélica, é capaz de admitir a hipótese da união das duas naturezas em Cristo. Por isso o espírito maligno — que não possui a fé — aproxima-se d’Ele a fim de chamar-Lhe a atenção para as pedras do caminho que mais se assemelhavam às formas dos pães da época. Quiçá chegasse a Lhe fazer a proposta tendo nas mãos algumas delas.

Inversão da ordem: um ato revolucionário

Depois de insidiosamente procurar estimular o amor-próprio de sua suposta vítima, quis o demônio fazer Jesus utilizar-Se, com desobediência e abuso, dos poderes divinos, para satisfazer a fome e, assim, ser levado também à gula. Ardilosa a proposta, pois a necessidade era real; e que é o pão senão um alimento dos pobres? Conseguiria o demônio, por essa via, não só levar aquele Homem ao uso indevido do poder de fazer milagres, como, ademais, comprovar a messianidade d’Ele. Se Jesus tivesse caído nessa artimanha, sua natureza divina seria, nessa ocasião, subjugada à humana. No fundo, praticaria um ato revolucionário, ao inverter a verdadeira ordem e grau de importância dos seres, embora, absolutamente considerado, não seja nenhuma falta saciar a fome nem mesmo fazer um milagre.

Sobre este particular, ensina-nos o Doutor Angélico:

“Usar do necessário para o sustento não constitui pecado de gula; mas pode pertencer a esse vício o fato de o homem agir de modo desordenado pelo desejo desse sustento. Ora, é desordenado querer obter o alimento por meio de um milagre, quando se pode recorrer a meios humanos para o sustento do corpo. Cristo podia satisfazer sua fome de outra maneira, sem necessidade de um milagre, fazendo como São João Batista (Mt 3, 4), ou mesmo indo a localidades vizinhas. Por isso o demônio pensava que Cristo pecaria se, sendo um homem como os outros, tentasse fazer milagres para aplacar a fome” (13).

Diabólica exploração das revoluções

4 Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus’”.

Jesus poderia ter transformado as pedras em pão, como depois multiplicaria por duas vezes os pães e os peixes. Mas não o fez. Nessa ocasião, não terá querido Ele, além de outros objetivos, ensinar-nos a ilegitimidade das revoltas por ter faltado alimento?

Quantas revoluções foram levadas a cabo, ao longo da História, por uma pura, malévola e — por que não dizer? — diabólica exploração da fome! Nas circunstâncias de penúria, por que não se voltam os homens para o mesmo Deus de Moisés, que não deixou sem alimento o seu povo durante quarenta anos no deserto?

Supremacia da vida espiritual sobre a corporal

Em sua resposta repassada de sabedoria divina, Jesus torna patente, ao demônio e à humanidade, a existência de uma vida muito mais nobre do que a corporal, ou seja, a espiritual. “A palavra de Deus” é constituída pelas ordens divinas, por tudo aquilo que reflete sua soberana vontade, como mais tarde Ele mesmo afirmaria: “Meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que Me enviou” (Jo 4, 34).

É notável a diferença da reação de Jesus diante dessa proposta feita por Satanás, e diante da feita por Maria nas Bodas de Caná: à sua venerável Mãe, Ele atendeu, por saber o quanto era vontade do Pai confirmar o poder impetratório das súplicas de sua Filha bem-amada.

Na frase de Jesus retrucando ao demônio, torna-se claro não ser imprescindível o pão. Deus dispõe incontáveis meios para resolver o problema da fome. Jesus se alimentará como for da vontade do Pai. Se o desígnio d’Este é que a palavra O sustente, qual a necessidade do pão? E se este for indispensável, não tem o Pai o poder de o conceder?

Dupla tentação: medo e ambição

5 O demônio conduziu-O então a um alto monte, mostrou-Lhe, num momento, todos os reinos da terra, 6 e disse-Lhe: “Dar-Te-ei o poder de tudo isto, e a glória destes reinos, porque eles foram-me dados, e eu dou-os a quem quiser. 7 Portanto, se Tu me adorares, todos eles serão teus”.

As mais variadas hipóteses foram levantadas por alguns autores sobre qual teria sido esse alto monte, com vista para todos os reinos da terra. Para uns teria sido o Tabor, para outros o Nebo ou o Hermon. De qualquer deles, porém, é impossível contemplar os reinos deste mundo. Mais acertadamente opinam os que optam por afirmar ter-se servido o demônio de suas artes de magia, espelhismo ou fantasmagoria, para fazer transcorrer diante dos olhos de Jesus “num momento” as maravilhas dos reinos com seus palácios e esplendores; em síntese, todas as belezas das glórias exteriores de nossa terra de exílio.

Na sua inferioridade de anjo decaído, com muita ignorância, julgou haver atraído irresistivelmente Jesus e, por essa razão, propõe-Lhe logo um pecado de idolatria para, assim, entregar-Lhe a posse de tudo. Comentando essa passagem, São Jerônimo bem atribui ao demônio uma linguagem soberba, e sobretudo falsa, pois o espírito maligno não pode prometer nem, menos ainda, conceder reinos a ninguém, sem a permissão de Deus (14). Não obstante, ele é senhor dos vícios e dos pecados. Acreditava poder lisonjeá-Lo para açular uma irrefreável ambição ou, então, amedrontá-Lo, revelando-Lhe a poderosa oposição que enfrentaria, se contra Ele se levantassem aqueles reinos, caso não os aceitasse ao preço da idolatria. Não sofreu, porém, o Divino Redentor a atração da ambição nem o temor do poderio adverso.

Desde o Paraíso terrestre, nós, homens e mulheres, quando sem a graça e a virtude, somos fascinados pelo sonho de ser deuses. Essa é a desastrosa história de boa parte da humanidade. Felizes aqueles e aquelas que respondem a Satanás como o fez Jesus.

A grande tentação da humanidade decaída

8 Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás’”.

Tornar-se o senhor do mundo, possuir todos os bens e todas as riquezas, ainda que deixando de adorar o verdadeiro Deus: eis a tentação diante da qual não poucos sucumbem, em nosso estado de prova; e, às vezes, até por preços muito menores.

Na resposta de Jesus, encontramos o divino exemplo a seguir. Reproduzindo o versículo 13 do capítulo 6 do Deuteronômio, faz um juramento de fidelidade ao Pai: a não ser Ele, ninguém, nem coisa alguma, merece homenagens e muito menos adoração.

Tentação de vanglória

9 Levou-O também a Jerusalém, colocou-O sobre o pináculo do Templo e disse-Lhe: “Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo; 10 porque está escrito que ‘Deus mandou aos seus anjos que Te guardem, 11 e que Te sustenham em suas mãos, para não magoares o teu pé em nenhuma pedra’”.

É um paradoxo imaginar o anjo caído dos Céus transportando seu Criador pelos ares. A isso se submeteu nosso Salvador, para benefício dos que foram expulsos do Paraíso.

É digna de nota a sutileza diabólica nesta tentação, pelo fato de se servir de citação da Escritura para conferir maior solidez à sua argumentação. Aprendeu a lição do próprio Jesus, ao receber d’Ele sua primeira resposta.

Grande espetáculo causaria sua descida sensacional, amparado por anjos, em meio ao pátio do Templo. E, se isso acontecesse, provado estaria para Satanás a filiação divina de Jesus, objetivo ansiosamente desejado por seus ardis. Já não é mais a gula, nem a ambição, mas a vanglória, que a tantos leva para o inferno, o instrumento usado pelo demônio para tentar o Messias.

12 Jesus respondeu-lhe: “Também foi dito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’”.

Uma nova confusão inflige Jesus ao revoltado Satanás, também com palavras do Deuteronômio (6, 16). Colocar-se em perigo grave, obrigando Deus a intervir, é um pecado cheio de malícia.

13 Terminada toda esta espécie de tentação, o demônio retirou-se d’Ele até outra ocasião.

A maioria dos autores é partidária de ter, de fato, o demônio continuado a investir contra Cristo, ao longo de sua vida pública, propondo-Lhe, através destes ou daqueles, a aceitar a coroa ou a praticar milagres imprudentes.

Foi só no Horto, no Pretório e no Calvário que ele imaginou ter conseguido realizar seu sonho, todo feito de gaudium phantasticum. Entretanto, ali, Cristo triunfou sobre os infernos, o pecado e a própria morte!

Revista Arautos número 62

1 ) Cf. São Tomás de Aquino, Suma Teológica III, q. 8, a. 6c.

2) Idem III, q. 41 a. 1.

3) Id. ibid.

4) Id. ibid.

5) Id. ibid.

6) Id. ibid.

7) Op.cit. III, q. 41, a. 3 ad. 2.

8) Cf. op. cit. III, q. 41 a. 1 ad. 3.

9) Cf. Francisco Suárez S.J.,Misterios de la Vida de Cristo, BAC, Madrid, t. 1, p. 825.

10) São Tomás de Aquino, Suma Teológica III, q. 41, a. 1, ad. 1.

11) Op. cit. BAC, Madrid, t. 1, p. 825.

12) Cf. op. cit. III, q. 41, a. 4.

13) Op. cit. III, q. 41, a. 4, ad. 1.

14) Cf. Comment. In Matth., h. 1.

Lembra-te, homem, de que és pó

Mons. João S. Clá Dias, EPMuerte Catedral de Salamanca 004

Por meio do Ciclo Litúrgico, com sabedoria e didática, rememora a Igreja ao longo do ano os mais importantes episódios da existência terrena do Verbo Encarnado. As solenidades da Anunciação e do Natal, as comemorações do Tríduo Pascal e da Ascensão de Nosso Senhor aos Céus, entre outras, compõem um variado caleidoscópio, apresentando à piedade dos fiéis diferentes aspectos da infinita perfeição de nosso Redentor. As graças dispensadas pela Providência em cada um desses momentos históricos revivem, de certo modo, e se derramam sobre aqueles que devotamente participam dessas festividades.

Precedendo as solenidades mais importantes — o Nascimento do Salvador e sua Paixão, Morte e Ressurreição — a Igreja destina dois períodos de preparação: o Advento e a Quaresma, pois convém que, para celebrar tão elevados e sublimes mistérios, os fiéis purifiquem suas almas das misérias e apegos, tornando-as mais aptas a receber as dádivas celestes.

Na Quarta-Feira de Cinzas têm início os quarenta dias que antecedem a Semana Santa. As três leituras desse dia — uma passagem do Profeta Joel, um trecho de uma epístola de São Paulo e outro do Evangelho — nos falam da necessidade do jejum e da penitência como meios de melhor combater os vícios, pela mortificação do corpo, e propiciar a elevação da mente a Deus. Pois, segundo nos ensina o Papa São Leão Magno, “nós nos mortificamos para extinguir em nós a concupiscência. E o resultado da mortificação deve ser o abandono das ações desonestas e dos desejos injustos”.

Como mais adiante veremos, os textos litúrgicos em questão fazem referência, sobretudo, a um tipo de penitência que agrada especialmente a Deus e que é essencial para nossa vida espiritual. Trata-se de evitar os exageros do amor próprio, procurando não atrair as atenções dos outros sobre si mesmo, de maneira que a alma, limpa e ornada da virtude da humildade, ofereça ao Senhor um sacrifício de agradável perfume.

De forma cogente, a liturgia da Quarta-Feira de Cinzas recorda-nos também nossa condição de mortais: “Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris — Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó hás de voltar”, diz, de modo categórico, uma das duas fórmulas usadas pela Igreja para a imposição das cinzas.2 Após a cerimônia, a fronte dos fiéis fica marcada por um traço escuro cujo aspecto trágico e carente de beleza parece proclamar:  “De uma hora para outra, podemos ser levados pela morte, retornando ao pó!”.

A consideração da árdua passagem desta vida para a eternidade muitas vezes nos inquieta. Entretanto, tal pensamento é altamente benfazejo para compenetrar-nos da necessidade de evitar o pecado que, sem o arrependimento e o imerecido perdão, poderá fechar-nos, para sempre, as portas do Céu: “Lembra-te de teu fim, e jamais pecarás” (Eclo 7, 40).

A Cátedra de São Pedro

catedra

Nenhum transeunte parecia dar qualquer atenção àquele judeu de aspecto grave que subia com passo firme uma rua do Monte Aventino, em Roma, no ano 54 da Era Cristã. Entretanto, poucos séculos depois, de todas as partes do mundo acorreriam a essa cidade imperadores, reis, príncipes, potentados e, sobretudo, multidões incontáveis de fiéis para oscular os pés de uma imagem de bronze desse varão até então desconhecido e quase desprezado pela Roma pagã. Pois fora a ele que o próprio Deus dissera: “Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,19).

Sim, era o Apóstolo Pedro que retornava à Capital do Império para ali estabelecer o governo supremo da Santa Igreja.

Provavelmente o acompanhavam alguns cristãos, entre os quais Áquila e sua esposa Prisca, batizados por ele poucos anos antes. Na Epístola aos Romanos, São Paulo faz a este casal a seguinte referência altamente elogiosa: “Saudai Prisca e Áquila, meus cooperadores em Cristo Jesus; pela minha vida eles expuseram as suas cabeças. E isso lhes agradeço, não só eu, mas também todas as igrejas dos gentios. Saudai também a comunidade que se reúne em sua casa” (Rom 16,3-5).

Irrigada pelo sangue dos primeiros mártires, a evangelização deitava fundas raízes nas almas e se difundia rapidamente por todo o orbe.

Mas não existiam ainda edifícios sagrados para a celebração do culto divino, de modo que esta se fazia em residências particulares.

Assim, Áquila e Prisca tiveram o privilégio incomparável de acolher em seu lar a comunidade cristã. Ali São Pedro pregava, instruía, celebrava a Eucaristia. Dessa modesta casa governava ele a Igreja, por toda parte florescente, apesar dos obstáculos levantados pelos inimigos da Luz.

Tomada de enlevo e veneração pelo Príncipe dos Apóstolos, Prisca reservou para uso exclusivo dele a melhor cadeira da casa. Nela sentava-se o Santo para presidir as reuniões da comunidade.

Após a morte do Apóstolo, essa cadeira tornou-se objeto de especial veneração dos cristãos, como preciosa evocação do seu ensinamento. Passaram logo a denominá-la de “cátedra”, termo grego que designa a cadeira alta dos professores, símbolo do magistério.

Era primitivamente uma peça bem simples, de carvalho. No correr do tempo, algumas partes deterioradas foram restauradas ou reforçadas com madeira de acácia. Por fim, foi ornada com alto-relevos de marfim, representando diferentes temas profanos.

Há testemunhos e documentos suficientes para acompanhar sua história desde fins do século II até nossos dias.
Tertuliano e São Cipriano atestam que em seu tempo (fim do séc. II e início do séc. III) essa cátedra era conservada em Roma como símbolo da Primazia dos Bispos da urbe imperial.

Por volta do século IV, colocada no batistério da Basílica de São Pedro, era exposta à veneração dos fiéis nos dias 18 de janeiro e 22 de fevereiro.

Durante toda a Idade Média ela foi conservada na Basílica do Vaticano, sendo usada para a entronização do Soberano Pontífice.

Em 1657 o Papa Alexandre VII encomendou ao escultor e arquiteto Bernini um monumento para exaltar tão preciosa relíquia. Empenhando todo o seu gênio, construiu ele o magnífico Altar da Cátedra de São Pedro, considerado por muitos sua obra-prima.

Nesse altar cheio de simbolismo, o mármore da Aquitânia e o jaspe da Sicília, sobre os quais se apóia o monumento, representam a solidez e a nobreza dos fundamentos da Igreja. As quatro gigantescas estátuas que sustentam a cátedra – representando Santo Ambrósio, Santo Agostinho, Santo Atanásio e São João Crisóstomo, Padres da Igreja Latina e da Grega – recordam a universalidade da Igreja e a coerência entre o ensinamento dos teólogos e a doutrina dos Apóstolos.

No centro do altar foi colocada em 1666 a cátedra de bronze dourado dentro da qual se encerra, como num relicário, a bimilenar cadeira de São Pedro.

Nos documentos eclesiásticos, a expressão Cátedra de Pedro tem o mesmo significado de Trono de São Pedro, Sólio Pontifício, Sede Apostólica.

Num sentido figurativo, equiparase ela a Papado e até mesmo a Igreja Católica.

Afirmaram os Padres do IV Concílio de Constantinopla (ano 859): “A Religião católica sempre se conservou inviolável na Sé Apostólica (…) Nós esperamos conseguir manter-nos unidos a esta Sé Apostólica sobre a qual repousa a verdadeira e perfeita solidez da Religião cristã”.

Nessa mesma época o Papa São Nicolau I pôde com inteira razão sustentar que “nos concílios não se reconheceu como válido e com força de lei senão aquilo que foi ratificado pela Sede de São Pedro, não tendo sido tomado em consideração aquilo que ela recusou”.

Em uma de suas cartas, São Bernardo usa a expressão “Santa Sé Apostólica” para se referir à pessoa do Papa e afirma que a infalibilidade é privilégio “da Sé Apostólica”.

Após a solene definição do dogma da Infalibilidade papal no Concílio Vaticano I, todos os católicos, eclesiásticos ou leigos, são unânimes em proclamar que o Papa é e sempre será isento de erro em matéria de fé e de moral, de acordo com as palavras de Jesus ao Príncipe dos Apóstolos: “Eu roguei por ti a fim de que não desfaleças; e tu, por tua vez, confirma teus irmãos” (Lc 22,32).

A Cátedra de Pedro é, o mais eloqüente símbolo dessa Infalibilidade, do Papado, da pessoa do Papa e da própria Santa Igreja de Cristo. Mais ainda, pois na Exortação Apostólica Pastores Gregis, Sua Santidade João Paulo II afirma que nela se encontra “o princípio perpétuo e visível, bem como o fundamento da unidade da fé e da comunhão”.

Por este motivo, para ela se volta nossa entusiástica admiração de modo especial no dia de sua Festa litúrgica, 22 de fevereiro.

(Victor Hugo Toniolo in:Revista Arautos do Evangelho, Fev/2005, n. 38, p. 32 e 33)

A inveja

Diác. Inácio Almeida, EP
Etimologicamente, a palavra “inveja” vem do verbo latino videre que indica a ação de ver, e da partícula in. Desta forma, invidere significa olhar com maus olhos, projetar sobre o outro um olhar malicioso.
Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1986) inveja é: 1- desgosto ou pesar pelo bem ou pela felicidade de outrem; 2- Desejo violento de possuir o bem alheio. O Dicionário Houaiss (2003), define inveja como: “sentimento em que se misturam o ódio e o desgosto, e que é provocado pela felicidade ou a prosperidade de outrem. É o desejo irrefreável de possuir ou gozar, em caráter exclusivo, o que é possuído ou gozado por outrem”.
Para Tanquerey (1955, p. 531), a inveja é ao mesmo tempo: “paixão e vício capital. Como paixão é uma espécie de tristeza profunda que se experimenta na sensibilidade à vista do bem que se observa nos outros; esta impressão é acompanhada duma constrição do coração que lhe diminui a atividade e produz um sentimento de angústia…”
Segundo a Enciclopédia Europeo-Americana (1930, p. 203) a inveja, no seu conceito filosófico, “É uma paixão que é ao mesmo tempo, filha do orgulho e da malquerença. É um profundo pesar do bem que o outro goza e que se volta contra as pessoas a quem quer mal porque possuem o que ele por inveja quisera para si”.
As definições sobre a inveja que oferecem os diversos filósofos no decorrer da História concordam notavelmente entre si. Na tradição aristotélica, ela é uma dor causada pela boa fortuna que goza alguns de nossos semelhantes. Para São Tomás de Aquino (Suma Teológica II-II, q. 36, a. 1.) a inveja é: “A tristeza do bem alheio enquanto se considera como mal próprio, porque diminui a própria glória ou excelência”.