Uma ética original e originária

Diác. José de Andrade, EPluz

A questão ética, hoje, assume contornos de uma importância que não deve ser descurada, pois jamais pode consistir em um negócio, um jogo de interesses ou algo passageiro, mas num compromisso fundamentado na ética original e originária, conforme explica de modo muito acurado o Pe. Carlos Arboleda Mora: “Original porque própria ao cristianismo e originária pois é raiz de toda a ação social no mundo”.[1]

O Papa Bento XVI, na Caritas in Veritate, chamou a atenção para os perigos de uma ética vagamente interpretada, sobretudo quando ela se presta a “designar conteúdos muito diversos, chegando-se a fazer passar à sua sombra decisões e opções contrárias à justiça e ao verdadeiro bem do homem”, imperando, deste modo, a necessidade de uma ética “amiga da pessoa” (n. 45).

Na verdade, certa corrente da ética contemporânea levanta uma questão há muito predicada pelo Cristianismo: No relacionamento humano, o homem nunca poderá consistir um meio para outro homem, algo que se usa, mas deve ser considerado como um fim.[2] Não se refere ao fim último, que é o próprio Deus, que deve animar e continuamente purificar esse relacionamento, enquanto raiz e princípio, mas um fim enquanto uma atitude verdadeiramente altruísta, de procura do bem comum, proporcionando felicidade, sendo que ela “está mais em dar do que em receber” (At 20, 35).

Ora, a Igreja teve desde sempre algo forte e credível a apresentar ao mundo e que se funda no mandamento novo trazido por Nosso Senhor Jesus Cristo (Cf. Jo 13, 34-35) iluminando e firmando as regras de ouro éticas de todos os tempos. Os autores mais insuspeitos reconhecem-no. Por exemplo, J. B. Bury, entre as várias críticas acirradas ao Catolicismo, atribui entretanto aos cristãos a extensão da caridade a todos, uma vez que Sócrates, ao formular “a regra de vida ‘fazei ao outros’, provavelmente não queria incluir entre os ‘outros’ escravos ou selvagens”.[3] Ou mesmo Voltaire, ao reconhecer que os “Povos que não professavam esta religião romana imitaram, mas apenas de forma imperfeita, caridade tão generosa”.[4]

Uma vez que as raízes cristãs do Ocidente são um fato histórico inegável e incontornável, a moralização dos povos está na base de uma construção civilizacional que veio a sofrer uma forte ruptura quando quis dissociar a moral da religião e fundamentá-la na mera razão. Kant não é um nome estranho nesse sentido. Os fundamentos da sociedade Ocidental são sólidos, entretanto, sofreram abalos, na medida em que enfraqueceu a moralidade e a influência que a Igreja tinha nesse campo. Apesar disso, vão suportando o peso de uma mentalidade que se preocupa mais com o crescimento do edifício, do que com os fundamentos morais que o suportam. Ao pensarmos em certas sociedades, apelidadas simplesmente de primeiro mundo, devido à “qualidade de vida” mensurada por vários valores de referência de carácter universal, com máquinas, técnica, esperança média de vida… tudo isto é bom, mas está longe do excelente se não for acompanhado por uma forte estrutura moral. Corrêa de Oliveira chega mesmo a ponderar o perigo da ruína de um povo que viva com muita técnica e pouca moral. Conforme ele:

O alicerce de toda civilização é a moralidade. E quando uma civilização se edifica sobre os alicerces de uma moralidade frágil, quanto mais ela cresce, tanto mais se aproxima da ruína. É como uma torre que, assentando-se sobre alicerces insuficientes, ruirá desde que chegue a certa altura.[5]

Na verdade, o homem não se pode esquecer que por detrás de toda uma cultura atual, está um patrimônio, também ele moral, que progrediu à medida que acrescentou novas coisas às já existentes. O problema está em que muitas vezes certas premissas válidas, imutáveis e perenes são esquecidas ou deliberadamente postas de lado, em nome de uma cultura, dita moderna, sobrepondo-se o novo e despojando-se o existente. Porém, aquilo que tem o seu fundamento em Cristo goza da perenidade que apenas deve ter em vista as diferentes maneiras e riquezas de serem apresentadas às várias culturas.[6] A lei moral da Igreja possui as suas raízes em Nosso Senhor, e portanto, na lei eterna, além de estar também fundamentada na lei inscrita no coração dos homens, a natural. Uma ética sem qualquer fundamentação teológica ou metafísica está sujeita às frágeis bases do compromisso social.[7]

Os Papas, e o colégio episcopal em união com eles, sobretudo nestes últimos dois séculos, têm proposto e aplicado os ensinamentos da moral nos seus múltiplos âmbitos, sempre em nome e com a autoridade a eles confiada por Jesus Cristo. Estes ensinamentos, inspirados pelo Espírito Santo, envolvem também questões relativas à vida social, ou mesmo à economia e à política, nunca deixando de exortar à verdade. O Magistério intervém assim para exortar as consciências e propor valores.[8]

Ora, entre tantos problemas que afligem a sociedade humana de nossos dias, ensina-nos o Papa Bento XVI na Caritas in Veritate que “o problema decisivo é a solidez moral da sociedade em geral” (n. 51). Esta é a chave de ouro para abrir a porta à solução de múltiplas questões, e está desde sempre nas mãos da Igreja. Entretanto, como em tantas fechaduras duplas, a porta abre-se mais facilmente com o concurso de uma outra chave. E o Estado a tem nas suas mãos, cabendo-lhe também uma palavra. As duas chaves, cada uma na sua fechadura, serão capazes de abrir as portas à construção do bem comum e da civilização do amor.


[1] ARBOLEDA MORA, Carlos. Experiencia y testimonio. Medellín: UPB, 2010, p. 22. (Tradução nossa).

[2] Ver estudos de ética não utilitarista ou consequencialista que defendem esta tese, como os apresentados por: CHALMETA, Gabriel. Ética Social: Familia, profesión y ciudadanía. 2. ed. Pamplona:o utilitaristas ou consequencialistasabrielocura do bem comum, proporcionar felicidade para ser feliz,  EUNSA, 2003. Sobretudo as páginas 30-31; 42 e o capítulo V em geral que aborda a questão da amizade. Também em RHONHEIMER, Martin. La Perspectiva de la Moral: Fundamentos de la Ética Filosófica. Madrid: Rialp, 2000, p. 109-115.

[3] Ver BURY, J. B. The Idea of Progress. Fairford: Echo Library, 2010, p. 5.

[4] Apud WOODS JR, Thomas. O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica. Lisboa: Atheleia, 2009, p. 185.

[5] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Século de Progresso ou de ruínas. In: Dr. Plinio. São Paulo: Retornarei, n. 34, jan. 2001, p. 9.

[6] O próprio Papa João XXII dizia no início do Concílio Vaticano II, a 11 de out. 1962: “Occorre che questa dottrina (= la dottrina cristiana nella sua integralità) certa e immutabile, che dev’essere fedelmente rispettata, sia approfondita e presentata in modo che risponda alle esigenze del nostro tempo. Altra cosa è infatti il deposito stesso della fede, vale a dire le verità contenute nella nostra venerabile dottrina, e altra cosa è la forma con cui quelle vengono enunciate, conservando ad esse tuttavia lo stesso senso e la stessa portata”: AAS 54 (1962), 792; cf L’Osservatore Romano, 12 ottobre 1962, p. 2.

[7] Este é o pensamento do Arcebispo Jean-Louis Bruguès, exposto em conferência de 1/11/2010 no Seminário São Tomás de Aquino (SP), abordando a Encíclica Veritatis Splendor, de João Paulo II. Também o nº 53 do documento é elucidativo a esse respeito.

[8] Podem-se encontrar estas ideias sobretudo no nº 4 da Veritatis Splendor do Papa João Paulo II (1993). Conforme o Arcebispo Jean-Louis Bruguès na conferência supracitada, “a própria Encíclica visa mostrar o direito do Magistério em intervir em certas questões particulares”.

Pedagogia moderna: foco na inteligência apenas?

Pe. Ricardo Basso, EPFamilia2

Nas últimas décadas, notam-se louváveis esforços no sentido de resgate da visão do homem como um todo na educação, como Howard Gardner, professor de Neurologia na Boston School of Medicine e de Psicologia na Harvard University, com sua “Teoria das inteligências múltiplas” (1983), em que a inteligência humana é apresentada como tendo várias facetas, ampliando os horizontes pedagógicos que haviam se restringido apenas às inteligências lingüística e lógico-matemática. Estas por sinal são a base também para os testes de QI (Quociente Intelectual), hoje muito contestados, e com razão, porém, tanto em voga até há pouco. Encontramos casos curiosos de testes de QI aplicados a esportistas célebres que os apontaram no limite da debilidade mental… Outras inteligências – ou seja, talentos, capacidades e habilidades mentais – deveriam igualmente ser trabalhadas, segundo Gardner, como a visual/espacial, a corporal/cinestésica, a musical, a interpessoal e a intrapessoal. Por que matemática, por exemplo, seria mais importante do que música? Concepção essa mais holística, que é aceita geralmente pelos educadores contemporâneos. Um progresso, sem dúvida. Embora, diga-se de passagem, não esteja ainda nossa legislação educacional devidamente atualizada quando permite que os exames de reclassificação se restrinjam às disciplinas de português e matemática simplesmente. Quantos futuros artistas e esportistas que quiçá serão famosos, um dia, não estarão sendo prejudicados hoje?

Porém, o foco da atenção da grande maioria dos educadores modernos é o mecanismo da inteligência, o funcionamento do cérebro, a epistemologia no homem, o que não é suficiente, pois não abarca a pessoa inteira. Procura-se reduzir o homem à matéria, não considerando estudos científicos recentes que revelam como a percepção e as atividades mentais são metaneuronais.

Se a percepção é metaneuronal, com maior razão o deve ser a atividade mental, o pensamento. A primeira atividade mental é a formação de conceitos ou idéias, operação que consiste em eliminar o acidental de uma coisa, para ficar com sua essência. […] Portanto, devemos concluir que: se para chegar à abstração prescindimos de toda informação sensorial, que é a que nos proporcionam os neurônios, o processo de abstração há de ser metaneuronal. […] Se não é o cérebro o que se encarrega de abstrair, quem é o responsável desta função? Segundo Aristóteles […] é o entendimento agente, que como atividade anímica que é, não reside no cérebro mas corresponde à pessoa, composto substancial de corpo e alma (SANZ, 2007: 140-141, tradução nossa).

Naturalmente, as novas descobertas no campo da psicologia e da neurologia são muito úteis, porém, segundo aponta a antropologia cristã, há uma falha capital ao não se considerar a alma humana e o primordial papel da vontade na educação de uma criança. Estuda-se o corpo humano, sobretudo o cérebro e seu funcionamento; ignora-se a alma. Sobretudo ignora-se a realidade dos efeitos do pecado original nas potências da alma: inteligência, vontade e sensibilidade. Sendo o homem principalmente alma, a qual, como espírito, é superior à matéria, não se considera o que de mais importante há no ser humano. Daí, a crônica insuficiência notada na pedagogia moderna, nos seus múltiplos e variados sistemas de ensino.

Com todo o avanço técnico, não é recorrente a queixa entre os educadores quanto à baixa qualidade dos estudantes, e do nível de aprendizagem? Quem ousaria afirmar que os jovens de hoje aprendem mais e estão mais preparados que seus pais ou avós, na mesma idade?

Pelos frutos se conhece a árvore, diz o provérbio popular.

Santidade segundo o carisma e a espiritualidade carmelitanos

sta-teresinhaPe. Alex Brito, EP

O carisma carmelitano, sem escapar da definição geral proposta pela Doutrina Católica, possui particularidades que cumpre serem ressaltadas aqui.

Uma delas é a idéia de um Deus absoluto com leis absolutas, o qual governa o universo com bondade e misericórdia, sem deixar de exercer sua justiça para com aquelas criaturas que obstinadamente fogem de Seu Amor Misericordioso que constantemente as atrai para Si. O que trás como conseqüência lógica um desejo de reparação através de uma vida inteiramente dedicada ao seu serviço. É a isso que se refere implicitamente Berardino (1995: 75) ao falar sobre o primado de Deus na vida do carmelita. Para tanto, toma como arquétipo Maria Santíssima, a qual de tal maneira tinha a Deus como centro absoluto de sua vida, que mereceu conter o Verbo de Deus em seu claustro virginal, e a respeito da qual afirmam as Escrituras: “Sua mãe guardava todas estas coisas em seu coração”[1] (BÍBLIA SAGRADA, 2002: 1349), significando a maneira com que ela se dispunha a cumprir inteiramente a missão que lhe foi confiada, acompanhando todos os acontecimentos relacionados ao seu Divino Filho com grande atenção, tal era o seu ardente desejo de dedicar-se inteiramente a Ele.

Do que foi dito acima concluímos pertencer à tônica do carisma carmelitano um grande zelo pela glória de Deus, que se traduz num não menor zelo pela reparação de tantas ofensas perpetradas contra ela, e pela salvação das almas. O zelo ardoroso é o que define tal espiritualidade, que toma como protótipo o Profeta Elias, o qual ao ser interpelado por Deus no alto do Monte Horeb, respondeu-lhe: “Estou devorado de zelo pelo Senhor, o Deus dos Exércitos”[2] (BIBLIA SAGRADA, 2002: 392).

Outro aspecto relevante diz respeito ao despojamento de si mesmo que caracteriza o espírito carmelitano. Sem assumir os extremismos a que chegaram certas correntes quietistas que transformaram o processo de santificação numa espécie de busca nihilista muito semelhante em seus aspectos essenciais a certas religiões orientais, em especial o budismo, tem bem presente diante de si a vacuidade das criaturas contingentes com as quais se depara, procurando esvaziar-se de todo apego desordenado a elas, com o objetivo de aderir com todas as veras da alma ao Único Necessário. Para o Carmelita, tal busca é inspirada pelo próprio Deus, e trás como resposta a ação divina, ora por meio de purificações dolorosas, ora por meio de graças especialíssimas de consolação que conduzem certas almas privilegiadas até, usando a expressão de Saint-Laurent (1997), às alturas vertiginosas dos êxtases.

Faz-se preciso salientar que tais favores extraordinários não devem ser o objetivo final de uma alma autenticamente carmelitana, mas somente meios através dos quais a Providência lhe manifesta o seu apreço e a incentiva à perseverança. Para o carmelita, antes de tudo, tais favores não consistem na santidade, mas são uma via posta por Deus para alcançá-la. A santidade consiste antes de tudo na vontade inteiramente voltada para o Altíssimo, mesmo em meio aos mais atrozes sofrimentos e obscuridades. Amar não significa sentir amor, significa querer amar, viver o amor, morrer de amor. O principal favor que uma alma imbuída dessa espiritualidade deseja possuir é o amor de Deus, mesmo que para tanto se faça necessário o mais duro dos sacrifícios, ou seja, o absurdo da rejeição por parte de Deus. Mesmo se tal se sucedesse, o que é de potentia Dei ordinata[3] impossível, a alma continuaria a amá-lo com todas as suas veras.

Tal ideal parece mergulhar na impossibilidade diante da realidade do instinto de conservação que pertence à natureza humana. Entretanto, pode ser alcançado, desde que a pessoa humana se abandone inteiramente nas mãos de Deus. E é o abandono um dos pontos que mais merece destaque no carisma carmelitano.

Um outro aspecto interessante reside no fato de esse amor ser uma fonte de inspiração para uma vida autenticamente apostólica, pois o zelo pela glória de Deus trás como conseqüência o desejo de vê-lo inteiramente servido pela universalidade dos homens, porque a alma se dinamiza ao perceber tal não ser ainda realidade. É por esta causa que Saint-Laurent (1997) chama Santa Teresa de Ávila a Santa do Apostolado.


[1] Lc 2, 51

[2]1Rs 19,10

[3] Expressão latina que se refere ao poder de Deus ordenado a um fim por Ele estabelecido.

Algumas variações filosóficas da lei natural na modernidade

tibidabo Pe. Jorge Filipe Teixeira Lopes, EP

Nos séculos XVII e XVIII desenvolvem-se os dois veios centrais do pensamento jusnaturalista moderno: racionalismo e empirismo. Se eles são aparentemente opostos, há contudo um ponto que une as duas tendências: é a individualidade originária do ser humano, quer dizer, o homem no seu estado de natureza é solitário e livre.*

Thomas Hobbes
Para Hobbes, o homem tem uma natureza má e a vida humana é “solitária, miserável, repugnante, brutal e breve”.1 Torna-se então necessário a existência de um soberano que disponha impreterivelmente dos seus súbditos, sem limite de autoridade à excepção da sua vida. Desse modo, lei natural e lei civil não diferem e a primeira reduzir-se-á somente ao célebre axioma hobbesiano de que os contractos devem ser guardados. Cumpre obedecer cegamente à autoridade em vista do bem comum. Em Hobbes a sociedade é um grande homem artificial, uma estrutura humana erigida para proteger e fortalecer o homem natural. Considerado o “Pai” dos estados totalitários modernos, o seu Leviatã, de 1668, é um dos apogeus emblemáticos da modernidade no que tange à centralização antropológica.2

David Hume
David Hume glorificava-se de haver destruído a ideia de lei natural, o que, para Maritain, é perfeitamente natural; tendo reduzido a natureza à pura constatação dos factos, a lei natural perde a sua razão de ser. Não há natureza humana para ele, mas simplesmente paixões, inclinações e percepções.3

John Locke
Locke considera a sociedade como o produto utilitarista dos interesses individuais, sendo a lei natural simplesmente qualquer coisa como um mandamento do senso comum, com a única função de estabelecer os direitos inalienáveis de cada indivíduo.4 Puritano, Locke pretende que os homens livres são virtuosos — e não selvagens como em Hobbes — e obedecem à razão, quer dizer, a uma lei natural instituída por Deus. Segundo Bertrand Russell, a doutrina dos direitos do homem é uma derivação do puritanismo, e Locke um dos seus mais proeminentes idealizadores.5

Jean-Jacques Rousseau
Para Rousseau a lei natural existe, mas é de si, inacessível; de qualquer forma, o homem tem um direito natural que a razão acaba por destruir. Como? A natureza humana emerge de um estado humano pré-civilizacional, situação plena de liberdades e direitos. Sendo o homem naturalmente bom, este estado seria susceptível de se produzir eternamente, pelo que ele se priva de inúmeras vantagens ao decidir viver em sociedade; isto porque no convívio com os outros indivíduos, cada um vê-se forçado a seguir princípios novos — a voz do dever, da responsabilidade — deixando de poder olhar somente para si. A partir daí, ele necessitará de consultar a razão antes das suas inclinações naturais.6 Por isso, ao sair do estado natural para viver comunitariamente, o homem delimita, pelas leis, os seus direitos e liberdade naturais. Enfim, Rousseau explora a ideia do estado de natureza como nenhum outro filósofo.

Emmanuel Kant
Com Kant surge uma nova concepção de lei natural que não supõe mais a natureza ontológica mas que é deduzida da pura razão prática. A lei natural do homem vai confundir-se com a sua liberdade, e a moral com a vontade individual. “A autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres que lhe são conformes”,7 afirma. Isso significa que toda a obediência a um poder distinto do homem é indigna do homem. Só é moral a obediência à sua própria lei e serão os preceitos morais do imperativo categórico, o único ponto de conformação da ordem jurídica.
Fundada no conceito de que o homem é um ser livre e que por si mesmo se submete a leis incondicionais, a moral não precisa da ideia de um ser superior ao homem para que ele conheça o seu dever, nem precisa de um incentivo para o cumprir, a não ser a própria lei.8
A influência kantiana é inaudita para a história da filosofia do direito ocidental. Foi sob o seu impulso que nasceu toda a escola positivista, para a qual o conhecimento científico limita-se aos factos e às suas leis constantes. Delimitando dessa forma o conhecimento do homem na sua essência, Kant abriu terreno para as mais variadas especulações no campo do imperativo categórico, pelo que não é abusivo concluir que a DUDH representa um momento kantiano por excelência.9
Em Kant o problema moral deixa de existir como valor objectivo uma vez que passa a pertencer exclusivamente ao âmbito da vontade. Conclui-se então que a ideologia dos direitos humanos, baseando-se no pensamento kantiano, exclui qualquer noção de uma moral universal enraizada na natureza do homem, uma vez que esta simplesmente não existe. Então, o bem e o mal são determinados pela opinião pública, a qual deve procurar agir de tal forma que os seus actos possam ser tidos como princípios universais, segundo a expressão do imperativo categórico kantiano. É o reavivar do velho adágio vox populi vox Dei, mas com um novo e dramático componente: é que a vox Dei pode derivar do dia para a noite conforme a subtileza e maleabilidade do jogo de opiniões.

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* O homem no estado de natureza é, no fundo, uma macaqueação da situação humana no Paraíso antes do pecado original.
1 HOBBES, Thomas. Leviathan. [Em linha]. <Disponível em: http://books.google.pt/books?id=-Q4nPYeps6MC&printsec=frontcover&dq=hobbes+ leviathan &lr=&as_brr=1#PPA86,M1 [Consulta: 16 Jun., 2009]. Tradução nossa.
2 Cf. LOPES ALVES, Op. Cit., p. 125-126.
3 Cf. MARITAIN, La loi naturelle ou la loi non écrite, Op. Cit., p. 93.
4 Cf. Ibid. p. 92-94.
5 Cf. RUSSELL, Op. Cit., p. 164-165. Locke é o apóstolo da Revolução Inglesa de 1688 e os direitos do homem e a teoria do laissez-faire originadas no puritanismo tiveram, como é sabido, o seu impulso na Revolução Americana. A influência de Locke na Declaração Americana e nos factores revolucionários que davam coesão aos novos estados é confirmada por André Kaspi, para quem a filosofia lockeana inspirou os insurrectos da Revolução Americana. (Cfr. KASPI, André. La Constitution des États-Unis. Em: Revista Historia. Paris. No. 456 (Dic., 1984); p. 4-12).
6 Cf. ROUSSEAU, Jean Jacques. Du contrat social. Aubier: Montaigne, 1943. p. 114-115. Tradução nossa.
7 KANT, Emmanuel. Critique of the Practical Reason. [Em linha]. <Disponível em: http://books. google.pt/books?id=N549zroUaaUC&pg=PP1&dq=Critique+of+Practical+Reason&lr=&asbrr=1# PPA27,M1> [Consulta: 15 Jun., 2009] Tradução nossa.
8 Cf. KANT. Religion within the boundary of pure religion. Edinburg: Thomas Clark, 1838. p. 1. Tradução nossa.
9 Cf. LOPES ALVES, Op. Cit., p. 28.

Uma longa e persistente indagação

Mons. João Scognamigliopescador Clá Dias, EP

Perguntar por que alguma coisa é, ou existe, é uma questão instigante para o pensamento humano desde o tempo em que os gregos, caminhando pelas sendas nevadas das montanhas da Hélade, sentados diante de colunas dóricas tendo ao fundo um belo bosque, ou navegando em frágeis barquinhos por entre as ilhas do Egeu sob o luminoso sol de outono, ruminavam sobre a essência das coisas.

Por sua própria natureza, o homem é um animal metafísico.[1] Nos últimos 25 ou 26 séculos, uma longa plêiade de pensadores tentou penetrar o mais recôndito fundamento do ser.

Platão, Aristóteles e São Tomás foram aqueles que mais perto chegaram da pura experiência filosófica, conforme mostra Gilson ao longo de sua famosa obra sobre a “unidade da experiência filosófica”. Eles entenderam que só em torno da metafísica do ser se pode fazer filosofia.

Se os pensadores se desviam desses trilhos, e tentam descrever o todo da humanidade por outras vias, o ceticismo cresce, a dúvida triunfa, o subjetivismo se estabelece. Negligenciando-se o ser, perde-se o princípio unificador da filosofia. É a situação na qual nos encontramos hoje.

Por isso, do lado da cultura moderna, o primeiro olhar não encontra ambiente favorável. A ele se vê negada qualquer objetividade e capacidade de captar a realidade das coisas.

O processo que nos trouxe até essa situação tem profundas raízes históricas e ideológicas. Sua gênese remonta às teses de Guilherme de Ockham, no século XIV, e mais ainda à doutrina do cogito, de Descartes. O turvo rio do pensamento ocidental, brotado dessas fontes, redundou em um oceano de incertezas e subjetividade, todo hostil ao ser e, consequentemente, contra o primeiro olhar.

O passo radical e decisivo para o obscurecimento do ser foi dado por Kant, com sua revolução copernicana do pensamento. Ele mesmo qualificou assim sua gnoseologia, no prefácio para a segunda edição da Crítica da razão pura. Semelhantemente ao sucedido na astronomia com a teoria de Nicolau Copérnico, a mente humana (o sol) não mais gravita em torno do objeto (a terra), mas, ao contrário, são “os objetos” que “devem se regular segundo nosso conhecimento … no que diz respeito à intuição dos objetos”, afirma Kant. Era preciso revirar os conceitos adquiridos pela filosofia perene.

Como observa Abelardo Lobato, “o homem toma o lugar que antes era ocupado pelo ser e havia sido reservado na história para Deus ou a physis”.[2] Com o homem colocado assim no centro do processo cognoscitivo, a experiência subjetiva toma o poder e praticamente empurra de lado o conhecimento metafísico, fazendo cessar o longo primado da ontologia. A metafísica, a moral e a religião são transformadas por Kant em meras servidoras da antropologia. É destronado o ser, e até Deus, e em seu lugar é elevado o “eu pensante”.

A partir de então, a percepção do mundo palpável que nos rodeia vai depender não mais da realidade, mas do desejo humano.[3] Daí poder-se falar apropriadamente do esquecimento do ser como um dos maiores desastres da história do pensamento ocidental — para usar expressão de Heidegger, embora aplicando-a a uma quadra histórica diferente e rejeitando o sentido obscuro e hostil à metafísica que ele lhe dava.

Às filosofias alheias à realidade do mundo cabe bem a crítica do italiano vivaz e observador: “La filosofia è quella cosa con la quale e senza la quale il mondo va tale e quale”.

Fato é que, apesar de todos os equívocos e erros falaciosos ao longo da história, os homens nunca abandonaram a indagação sobre o âmago do ser. De fato, conforme observou Gilson, em todas as doutrinas metafísicas, verifica-se esta nota constante: “Por mais divergentes que possam ser, elas concordam na necessidade de descobrir a primeira causa de tudo o que é” .[4]

Aquele que foi descrito como o mais sábio dos santos, e o mais santo dos sábios — São Tomás de Aquino —, foi quem levou mais longe e mais alto essa inquirição metafísica, partindo do menor e mais humilde ser material, concreto, até deparar com o próprio Ser.

A partir das coisas — que são imediatamente dadas à intuição sensitiva —, passa-se, por meio da atuação da inteligência, ao conhecimento do ser ou sua essência imaterial, para em seguida alcançar, a partir desse ser material, a essência e existência dos seres espirituais, da alma humana, em primeiro lugar, e finalmente a Existência em si, o Esse per se subsistens, fundamento último — Causa primeira eficiente e Causa final suprema — de todo ser.[5]

A filosofia de São Tomás está toda fundada e articulada sobre o ser. Todo o pensamento “razoável” do Ocidente, a partir do fim do século XIII, é devedor à grande obra realizada por quem merecidamente recebeu o título de Doutor Comum — da filosofia e da teologia também. Obra comparável, em grandeza, ousadia, harmonia e pulcritude, à arquitetura gótica que lhe foi contemporânea.

In: Lumen Veritatis, nº12, jun./set. 2010.


[1] GILSON, Étienne. The Unity of Philosophical Experience. New York: Charles Scribner’s Sons, 1937. p. 307.

[2] LOBATO, Abelardo. El hombre en cuerpo y alma. Tratado I: El cuerpo humano. In: El Pensamiento de Tomás de Aquino para el hombre de Hoy. vol. 1. Valencia: Edicep, 1994. p. 78.

[3] A filosofia de Max Scheler, que ambicionava aprofundar a antropologia kantiana, “não só deixava de lado o ser”, mas “não tinha uma adequada concepção da função da inteligência na compreensão do real”, e “diluía o espírito do homem em uma nebulosa com o espírito absoluto, cuja característica era a impotência e a debilidade” (LOBATO, Abelardo. Ibidem, p. 79).

[4] GILSON, Étienne. Op. Cit. p. 306.

[5] DERISI, Octavio Nicolás. Tratado de Teología Natural. Buenos Aires: Educa, [s.d.]. p. 134.

O conceito autêntico da Paz

Diác. Leonardo Barraza Aranda, EPliriocruz

O que é a ordem? Com base na doutrina tomista podemos dizer que a ordem é a reta disposição das coisas segundo sua natureza e finalidade. Assim, um corpo humano, vai estar em ordem, quando os membros que o compõem estão dispostos de tal maneira que cumprem com o objetivo para o qual existem. Logo, tranqüilidade e ordem são duas condições fundamentais para a existência da paz. Mas deixemos ao próprio Santo Agostinho (1964, p.169) em sua obra “A Cidade de Deus ” que exponha a sua doutrina:

A paz do corpo é a ordenada complexão de suas partes; a da alma irracional, a ordenada calma de suas apetências. A paz da alma racional é a ordenada harmonia entre o conhecimento e a ação, a paz do corpo e da alma, a vida bem ordenada e a saúde do animal. A paz entre o homem mortal e Deus é a obediência ordenada pela fé sob a lei eterna. A paz dos homens entre si, sua ordenada concórdia. A paz de casa é a ordenada concórdia ente os que mandam e os que obedecem nela; a paz da cidade a ordenada concórdia entre governantes e governados. A paz da cidade celeste é a ordenadíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, ao mesmo tempo,em Deus. A paz de todas as coisas, a tranqüilidade da ordem.

Em síntese, para o Santo Doutor, a paz em quanto belo dom de Deus “é o mais consolador, o mais desejável e o mais excelente de todos”. 34

“A paz na terra, anseio profundo de todos os homens de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus.” (JOÃO XXIII, 1962, n.1)

Com estas palavras, o Beato João XXIII, iniciou sua Encíclica Pacem in Terris dedicada ao tema da paz. Depois de expor a doutrina católica a respeito da ordem que Deus imprimiu na criação, passa a deplorar que dita ordem não prevaleça no relacionamento entre os seres humanos. Em outras palavras, a paz só se estabelecerá quando a humanidade respeitar a harmonia que Deus instituiu na criação e na alma do homem como um reflexo de suas infinitas perfeições.

Com efeito, João XXIII, (1962, n.4) afirma: “Contrasta clamorosamente com essa perfeita ordem universal a desordem que reina entre indivíduos e povos, como se as suas mútuas relações não pudessem ser reguladas senão pela força.” E seguindo sua linha de argumentos, o Santo Padre expõe a doutrina católica a propósito da existência no íntimo do ser humano de uma ordem, que a consciência deste se manifesta e obriga peremptoriamente a observar: “mostram a obra da lei gravada em seus corações, dando disto testemunho a sua consciência e seus pensamentos” (Rm 2, 15).

O reconhecimento da existência de uma lei moral que regule as relações entre os homens e o respeito por ela, é uma das claves apontadas por João XXIII para a sustentação da paz. Principio que os pontífices posteriores não deixaram de repetir.

Com efeito, o Papa Bento XVI (2007, n.3), em seu discurso para o Dia Mundial da Paz, relembrou esta doutrina:

O meu venerado predecessor João Paulo II, dirigindo-se à Assembléia Geral das Nações Unidas no dia 5 de Outubro de 1995, teve a ocasião de dizer que nós « não vivemos num mundo irracional ou sem sentido, mas […] existe uma lógica moral que ilumina a existência humana e torna possível o diálogo entre os homens e os povos ». A “gramática” transcendente, ou seja, o conjunto de regras da acção individual e do recíproco relacionamento entre as pessoas de acordo com a justiça e a solidariedade, está inscrita nas consciências, nas quais se reflecte o sábio projecto de Deus. Como recentemente quis reafirmar, « nós cremos que na origem está o Verbo eterno, a Razão e não a Irracionalidade ».A paz é, portanto, também uma tarefa que compromete cada indivíduo a uma resposta pessoal coerente com o plano divino. O critério que deve inspirar esta resposta não pode ser senão o respeito pela “gramática” escrita no coração do homem pelo seu divino Criador.

A procura pelo respeito desta “gramática” a qual aludem os recentes Pontífices, guarda uma relação íntima com a prática da virtude, em contraste com o pecado. O termo justiça significa nas Sagradas Escrituras a observância plena dos mandamentos da lei de Deus e a prática das virtudes, ou seja, a santidade da vida. Por isso, Nosso Senhor Jesus Cristo diz: ” Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça” (Mt 5, 6). A Paz e a justiça são inseparáveis.

Já os padres do Concilio Vaticano II na Constituição Pastoral Gaudium et

Spes (1965, n.78) haviam destacado esta importante verdade da doutrina católica:

A paz não é ausência de guerra; nem se reduz ao estabelecimento do equilíbrio entre as forças adversas, nem resulta duma dominação despótica. Com toda a exactidão e propriedade ela é chamada «obra da justiça» (Is. 32, 7). É um fruto da ordem que o divino Criador estabeleceu para a sociedade humana, e que deve ser realizada pelos homens, sempre anelantes por uma mais perfeita justiça.

E ao mesmo tempo reiteram que o cuidado da paz demanda um domínio para evitar o pecado:

Com efeito, o bem comum do género humano é regido, primária e fundamentalmente, pela lei eterna; mas, quanto às suas exigências concretas, está sujeito a constantes mudanças, com o decorrer do tempo. Por esta razão, a paz nunca se alcança duma vez para sempre, antes deve estar constantemente a ser edificada. Além disso, como a vontade humana é fraca e ferida pelo pecado, a busca da paz exige o constante domínio das paixões de cada um e a vigilância da autoridade legítima.

Analisando estes ensinamentos, podemos concluir que a paz não é possível sem um espírito e uma mentalidade que tenham como fundamento uma harmonia no interior do ser humano. Na verdade, a raiz mais profunda da discórdia e desentendimentos surgem no coração do homem. Só o amor autentico a um bem supremo, a saber, Deus, ao qual todos reconheçam e respeitem como legislador, pode conseguir o respeito mútuo e a fraternidade entre os homens e os povos. É por isso que os Pontífices Romanos são categóricos ao afirmar que nunca haverá verdadeira e duradoura paz na terra sem a prática das virtudes cristãs.

Que é o homem, e para que serve? (Eclo 18, 8)

Diác. José Victorino de Andrade, EP

O que é o ser humano? Esta é uma pergunta que ocupa o pensamento dos filósofos há séculos. Ela semprepensadores importou, pois toca diretamente em nós, a nossa origem, o nosso destino, em suma: o nosso ser e sua complexidade, questão desde sempre particularmente difícil. Sócrates pretendia conhecer o homem a partir de si mesmo, Platão e Aristóteles arriscaram algumas definições, de certa forma incompletas. Diógenes procurava-o ironicamente, de lamparina na mão, mesmo à luz do dia, mostrando-se ávido de um encontro que o esclarecesse verdadeiramente.[1] O livro do Eclesiástico transmite-nos esta demanda, mesmo entre o Povo Eleito: “Que é o homem, e para que serve?” (Eclo 18, 8).

Apesar da Antropologia Filosófica se ter firmado apenas no início do século passado, numerosos foram os aportes que os pensadores cristãos propuseram, desde a Patrística aos nossos dias, partindo a maior parte das vezes da Revelação. A linguagem filosófica, enquanto ferramenta para suas doutrinas, nunca esteve excluída. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino fizeram-no de modo muito especial. Mais tarde, outros filósofos como Descartes, Kant e Heiddegger esforçar-se-iam por dar uma visão que acabou por marcar, de certa forma, a pós-modernidade.

Entretanto, em nossos dias, a questão continua em aberto. Talvez pela insaciabilidade humana, característica que tem marcado o homem de todos os tempos, e com a presente crise metafísica, quanto mais ele pensa ter encontrado uma resposta, mais esta lhe parece levar a contradições, a novas perguntas, e a perder-se em um emaranhado de suposições. Conforme a Gaudium et Spes, “a natureza espiritual da pessoa humana encontra e deve encontrar a sua perfeição na Sabedoria, que suavemente atrai o espírito do homem à busca e ao amor da verdade e do bem, e graças à qual ele é levado por meio das coisas visíveis até as invisíveis” (n. 15).

Atenta e maternal, a Igreja continua a apontar para o absoluto do qual dimana o relativo, para um criador e um fim último, para o invisível que se fez visível, para uma felicidade possível, não plena, mas de peregrinos a caminho de uma “pátria melhor, isto é, a pátria celeste” (Hb 11, 16). Ensina-nos, enfim, que há uma Razão por detrás de tudo, ao contrário da irrisão e do acaso.[2]

Para caracterizar o homem com precisão, Mondin sugere uma análise da própria vida humana, a fim de se chegar com autenticidade a uma compreensão do seu ser, pois uma característica do homo vivens é “uma vida consciente de si mesma”. Entretanto, “seu verdadeiro significado pode ser colhido apenas descobrindo a finalidade para a qual é orientada”, portanto, a “finalidade última da vida humana”.[3] Ora, São Tomás de Aquino pensou o homem, neste âmbito, talvez como nenhum outro. Na Suma Teológica, não só situa o homem no vasto conjunto do Universo, como trata da relação de Deus com a criação: os Anjos enquanto criaturas puramente espirituais; o Mundo, criatura puramente corporal e, finalmente, o homem, ao mesmo tempo espiritual e corporal, criatura singular que reúne em si a totalidade do universo.[4]

Por que abordar este tema do ponto de vista do Aquinense? Não haveria em outras culturas e, sobretudo, em nosso tempo, autores de maior discernimento e precisão ao pensar o homem inserido no mundo em que vivemos? Afinal, não terá o homem evoluído? Será válida uma consideração com mais de 500 anos? Paulo VI, dirigindo-se ao Pe. Aniceto Fernandez — Mestre Geral da Ordem dos Dominicanos, em 1964 — parece responder-nos a estas questões:

Nos trabalhos de São Tomás de Aquino podem ser encontrados um compêndio das verdades universais e fundamentais, expressas de forma mais clara e persuasiva. Por esta razão, seu ensinamento constitui um tesouro de inestimável valor, não apenas para a Ordem Religiosa na qual ele é um grande luminar, mas para toda a Igreja, e para todas as mentes sedentas de verdade.

Não é sem razão que ele tem sido apelidado como «o homem de todos os tempos». O seu conhecimento filosófico, o qual reflete as essências das coisas realmente existentes na sua certa e imutável verdade, nem é medieval, nem próprio a alguma nação particular; transcende o tempo e o espaço, e não é menos válido para toda a humanidade em nosso tempo.[5]


[1] Reale parte deste episódio para interpretar a procura do filósofo: Diógenes não visava um homem comum e qualquer, até porque se locomovia nas ruas movimentadas de Atenas, mas sim aquele que vivesse conforme a “sua mais autêntica essência”, e em conformidade com “sua natureza mais genuina”. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2006. Vol. III. p. 24.

[2] Quanto a esta temática, o então Cardeal Ratzinger deixou-nos vários aportes em numerosas conferências. Ver, por exemplo, alguns de seus pronunciamentos, como as versões originais em alemão: Wer ist das eigentlich – Gott?, hgrs. Von H.J. Schulz, München 1969, S.240f. Também em Dogma und Verkündigung, 4. Aufl. Donauwörth, S. 152-156. Em português ver, por exemplo, Fé Verdade Tolerância: O Cristianismo e as grandes religiões do Mundo. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2009. p. 164-166. Também um compêndio de várias alocuções sobre este assunto no Prefácio da obra Criação e Evolução: Uma Jornada com o Papa Bento XVI em Castel Gandolfo. Lisboa: UCE, 2007.

[3] Para estas e outras considerações importantes do autor, recomendamos a leitura de MONDIN. Battista. O homem. Quem é ele?: Elementos de Antropologia Filosófica. 13. ed. São Paulo: Paulus, 2008. As citações presentes no texto estão nas páginas 60 e 61.

[4] Cf. TORREL, Jean-Pierre. Santo Tomás de Aquino: Mestre Espiritual. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2008. p. 304-305. Aconselhamos a leitura do capítulo que nestas páginas se inicia, intitulado: “O homem em discussão”.

[5] Indeed, in the works of Saint Thomas can be found a compendium of the universal and fundamental truths, expressed in the clearest and most persuasive form. Por this reason, his teaching constitutes a treasure of inestimable value, not only for the Religious Order of which he is the greatest luminary, but for the entire Church, and for all minds thirsting for truth. Not without reason has he been hailed as «the man of every hour». His philosophical knowledge, which reflects the essences of really existing things in their certain and unchanging truth, is neither medieval nor proper to any particular nation; it transcends time and space, and is no less valid for all humanity in our day. PAULO VI. Feast of Saint Thomas Aquinas, March 7, 1964. AAS 56 [1964] p. 303-304

Os transcendentais e a beleza

Paulo Martosdefault.jpg

In: Lumen Veritatis, nº 10 (p. 33-49)

Um dos importantes benefícios para a sociedade consiste em preservar e aperfeiçoar os valores, ou seja, as qualidades que tornam alguma coisa mais estimada ou menos.

Há uma hierarquia entre os valores, os quais podem ser religiosos, metafísicos, morais, culturais, econômicos, etc. Conforme afirma Garcia (1989, p. 60 e 64), um valor não depende da mera preferência, mas geralmente é o fruto de um arrazoado mais ou menos profundo e a consequência de um juízo estético. E acrescenta: “Os valores que mais motivam a conduta […] são a verdade, a beleza, o transcendente”.

Em filosofia se emprega o termo ‘axiologia’ — do grego ‘axia’, valor, e ‘logos’, tratado — para indicar o “estudo ou teoria de alguma espécie de valor, particularmente dos valores morais” (FERREIRA, 1986, p. 209).

Estudaremos neste trabalho um desses valores, o belo, baseando-nos especialmente em autores medievais. Como se sabe, na Idade Média houve grande desenvolvimento das doutrinas sobre o pulchrum, as quais se concretizaram em diversos campos, sobretudo no artístico.

1. Que é a beleza?

Para conceituar a beleza, é necessário dar alguns passos no campo da metafísica, a qual, segundo H. D. Gardeil (1967), designa a parte superior da filosofia, que pretende dar as razões e os princípios últimos das coisas.

1.1 Os transcendentais do ser

Em todas as coisas há qualidades que constituem seu próprio ser e estão além da matéria; por essa razão são chamadas transcendentais. A palavra ‘transcendental’ provém do verbo latino ‘transcendo’ (trans: passar; scando: subir), e significa literalmente “passar subindo” (cf. SARAIVA, 1983, p. 1216).

Jan Aertsen (2003, p. 120) afirma: “A metafísica […] é a ciência do que é transcendente”. E o Dicionário Aurélio esclarece: os transcendentais são “qualidades que pertencem ao ser enquanto tal, convindo, em graus diversos, a todos os seres” (FERREIRA, 1986, p. 1699).

Em cada ser existem quatro propriedades: “Unum, bonum, verum, pulchrum” — ente indiviso, bom, verdadeiro e belo. São Tomás de Aquino acrescenta uma quinta propriedade: ‘aliquid’, aquilo que torna um ser diferente de outro (cf. MARTINS FILHO, 2003, p. 33).

Jacques Maritain (1882-1973), filósofo que foi embaixador da França junto à Santa Sé, considera o pulchrum como “o esplendor de todos os transcendentais reunidos”. E Francis J. Kovach afirma: A beleza é o “mais rico, mais nobre e mais compreensivo de todos os transcendentais, […] o único transcendental que inclui todos os demais” (apud AERTSEN, 2003, p. 325 e 326).

1.2 Método etimológico

Filósofos da Antiguidade pagã, em especial Platão, Aristóteles e também Cícero, escreveram sobre a beleza. Com o advento da era cristã, esse tema foi desenvolvido particularmente por Santo Agostinho. E na Idade Média, sobretudo nos séculos XI a XIII, alcançou um auge. As palavras beleza, decoro e formosura têm sentidos semelhantes, mas não idênticos. Para se compreender o significado de um vocábulo, um ótimo método consiste em recorrer a sua etimologia, segundo o costume medieval.

Edgar de Bruyne (1947), que foi professor na Universidade de Gand (Bélgica), transcreve diversas opiniões a respeito desses termos, as quais podem ser assim sintetizadas.

Beleza tem um sinônimo, pulcritude, proveniente do latim ‘pulcher’, síncope de ‘pulvere carens’, ou seja, “sem poeira, sujeira ou defeito”.

O termo ‘decoro’, de ‘decorus’, segundo um autor é composto de ‘decus oris’ (beleza do rosto). Outro prefere focalizar a beleza na alma ou no coração, e não na forma do rosto: ‘decorus’ se decompõe em ‘decus cordis’ (ornato do coração).

E ‘formosura’ se origina de ‘formosus’. Segundo Dom Bruno Forte (2006), arcebispo de Chieti (Itália), nessas questões tal é a importância da forma que o latim emprega também a palavra ‘formosus’ para designar aquilo que é belo.

Conforme o artista plástico Cláudio Pastro (Revista Passos, janeiro-fevereiro 2008, p. 41), “a palavra beleza tem origem no sânscrito: bet-El-za. Za: brilho; El: Deus, o que está acima; bet: casa. Beleza: a casa onde Deus brilha”.

1.3 Características da beleza

Santo Agostinho, em uma de suas epístolas (PL 33, 65), escreveu: “‘Omnis pulchritudo est partium congruentia cum quadam suavitato coloris’ — Toda beleza é a congruência das partes com certa suavidade de cor” (apud BRUYNE, 1947, p. 16).

A congruência das partes é a proporção ou harmonia e a suavidade de cor, a luminosidade. Conforme Guillaume d’Auvergne (1190-1245), que foi Arcebispo de Paris, a beleza visível se caracteriza, ora pela posição das partes no interior do todo, ora pela cor; ou mais ainda por esses dois elementos reunidos (cf. BRUYNE, 1947, p. 61).

Santo Alberto Magno (1206-1280) e seu discípulo Ulric de Strasbourg ensinam que a beleza é “o resplendor da forma substancial ou atual nas partes da matéria perfeitamente proporcionadas e determinadas” (apud BRUYNE, 1947, p. 84). A proporção caracteriza a “matéria” de uma substância estética; a luz é sua forma. Os dois princípios subsistem, porém fundidos, constituindo uma unidade harmoniosa.

Entre as características da beleza, o Doutor da Graça inclui a grandeza (cf. BRUYNE, 1947, p. 107), a qual evidentemente não se refere ao tamanho de um corpo. Assim se pode, por exemplo, afirmar: “Tal pessoa tem grandeza de alma”, ou seja, não é mesquinha, mas está voltada para horizontes grandiosos.

Complementando a ideia de Santo Agostinho e de Guillaume d’Auvergne, São Tomás de Aquino (Suma Teológica I, q. 39, a. 8, ad. a) afirma que a beleza possui três características: luminosidade, proporção ou harmonia entre as partes e integridade.

1.4 Beleza visível imagem da invisível

Ensina a Igreja (Catecismo da Igreja Católica, n. 190 a 301) que Deus criou todas as coisas a partir do nada; e as sustenta, pois do contrário desapareceriam. A finalidade da criação é glorificar o Onipotente, e todos os seres são vestígios, imagens ou semelhanças de Deus.

O Criador é a Perfeição, a própria Beleza, com B maiúsculo. E as criaturas são belas enquanto reflexos da Beleza divina.

Esse tema foi amplamente desenvolvido pelos vitorinos, escola de pensamento assim chamada em razão do nome da abadia São Vítor, situada em Paris e fundada no ano 1100. Seus principais representantes foram Hugo e Ricardo de São Vítor.

Hugo de São Vítor (1096-1141) — mestre de Ricardo — escreveu, entre outras obras, Eruditio didascalica (Instrução didática), composta de seis livros que tratam de pedagogia.

Por sua vez, Ricardo de São Vítor (1110-1173) redigiu uma obra sobre a Santíssima Trindade, que influenciou profundamente a espiritualidade medieval e moderna (cf. Le Petit Robert, 1995, p. 1762).

Segundo os vitorinos, “omnis visibilis pulchritudo invisibilis pulchritudinis imago est — toda beleza visível é imagem da beleza invisível” (BRUYNE, 1947, p. 90).

Explica Hugo que existem duas espécies de beleza: a simples (invisível) e a composta (sensível), regida pela proporção. A alma, cuja beleza é impalpável, se rejubila, se honra, se emociona com as belas formas sensíveis porque as ama na medida em que sua estrutura lhe é aparentada, familiar e querida. A beleza das coisas corporais e a dos espíritos derivam do mesmo Artista, isto é, Deus, que as pré-adapta uma à outra.

1.5 Teofania

A beleza da criatura é uma revelação da Beleza infinita e indivisível; ou seja, é em sentido próprio uma teofania, palavra proveniente do grego ‘theophania’, a qual significa “manifestação de Deus em algum lugar, acontecimento ou pessoa” (FERREIRA, 1986, p. 1664).

Explica Bruyne (1947): As coisas são belas na medida em que manifestam — de maneira sem dúvida perecedora, mutável e imperfeita — a perfeição divina. Assim como a palavra da Sagrada Escritura, a beleza da natureza nos revela Deus. Pelas imagens sensíveis de Sua invisível Beleza, o Criador nos recorda que devemos amá-Lo.

O conjunto da criação é uma autêntica teofania, como afirma Santo Agostinho em um de seus sermões:

Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar, interroga a beleza do ar que se dilata e se difunde, interroga a beleza do céu… interroga todas estas realidades. Todas elas te respondem: Olha-nos, somos belas. Sua beleza é um hino de louvor (confessio). Essas belezas sujeitas à mudança, quem as fez senão o Belo (Pulcher), não sujeito à mudança? (apud Catecismo da Igreja Católica, n. 32).

1.6 Beleza, Bem e Verdade

Os transcendentais belo, verdadeiro e bom não devem ser vistos como compartimentos separados, pois estão intimamente relacionados entre si. A beleza é considerada “splendor boni et veri” — o esplendor do bom e do verdadeiro (RETEGUI, 1999, p. 42).

Podemos fazer uma comparação com o arco gótico, o qual se compõe de duas linhas verticais paralelas que se erguem, se curvam elegantemente e se unem. Uma das linhas do arco se refere ao “verdadeiro”, a outra, ao “bom”, e o ponto de junção, ao “belo”.

Segundo Santo Alberto Magno, “o belo é uma síntese do verdadeiro e do bom” (apud BRUYNE, 1959, p. 154).

Tomás Gallus, também chamado Tomás de Verceil, o último dos vitorinos, escreveu uma obra sob o título A estética mística, na qual mostra, entre outras coisas, o profundo relacionamento entre a beleza e o bem: a vista e o ouvido colaboram especialmente para captar o belo; o olfato, o paladar e o tato para perceber o bem. Comentando esse livro, explica Bruyne que o Altíssimo é o Bem e a Beleza. Amando a Deus nós nos transformamos n’Ele: contemplando a Beleza, nos tornamos bons e nos tornamos belos amando o Bem (cf. BRUYNE, 1947, p. 124).

Carlos Magno, citado por Weiss (1969, p. 779), costumava dizer que a Religião é em geral mãe das artes, e a beleza naturalmente irmã do verdadeiro e do bom. Quem compreende e ama a beleza não cai facilmente em vícios vulgares.

O teólogo suíço Hans Urs von Balthasar, em sua obra Glória, escreveu que, num mundo sem beleza ou incapaz de percebê-la, o bem perde igualmente sua força de atração. Quando se perde a capacidade de afirmar a beleza, os argumentos em favor da verdade esgotam sua força de conclusão lógica (cf. FORTE, 2006, p. 77).

Segundo a filosofia perene, o aspecto do Absoluto percebido por meio da sensibilidade é o belo; o compreendido pela inteligência, o verdadeiro; e o desejado pela vontade, o bom.

Se o bom, o verdadeiro e o belo estão intimamente relacionados entre si, o mesmo sucede com o mau, o falso e o feio. Como observa Ulric de Strasbourg, “a fealdade e o mal — também o erro, acrescentamos — resultam da privação” (apud BRUYNE, 1959, p. 287), ou seja, não têm essência.

1.7 Não depende do gosto de cada pessoa

Muito se fala hoje em dia que a beleza é subjetiva. Tal assertiva não é nova, pois já David Hume (1711-1776), em sua História de seis ideias, escreveu: “A beleza não é nenhuma qualidade das coisas em si mesmas. Existe na mente de quem as contempla, e cada mente percebe uma beleza diferente” (apud VÁZQUEZ, 1999, p. 173).

Essas afirmações entram em choque com o ensinamento de Hugo de São Vítor: “A beleza é uma propriedade estritamente objetiva da maneira de ser das coisas. Ela se impõe por si mesma, antes da consideração de qualquer relação utilitária para o homem” (apud BRUYNE, 1947, p. 104).

Devido à limitação deste artigo, não apresentaremos os diversos argumentos para refutar a ideia da subjetividade da beleza, a qual, aliás, se aplica também aos outros dois transcendentais. Pois, se a beleza é subjetiva, por que não serão subjetivos a verdade e o bem? Vemos assim que subjetivismo e relativismo são doutrinas afins.

Recordemos apenas a consideração formulada pelos autores de uma obra publicada pela Universidade de Navarra (Espanha): Se a pulcritude de algo dependesse do gosto de cada um, não teria nenhum sentido falar de beleza e feiura (cf. ALVIRA et al., 2001, p. 193).

1.8 Definições de beleza

Tendo em vista os textos acima, podemos agora apresentar algumas definições de beleza.

Conforme Cícero, “a beleza é o brilho objetivo da forma indivisível, a superabundância da luz formal, a liberalidade sem limites da ideia, impregnando todas as harmonias e dando-lhes um sentido” (apud BRUYNE, 1947, p. 85).

Em sua obra Convite à estética, Adolfo Sánchez Vázquez (1999, p.186) apresenta várias definições de beleza, entre as quais destacamos as seguintes:

Ideia eterna, perfeita, imutável, da qual participam, temporal, imperfeita e diversamente, as coisas empíricas belas (Platão); resplendor de uma luz inteligível nas coisas sensíveis (Plotino); esplendor do Supremo Bem nas coisas sensíveis (Marsilio Ficino); esplendor da forma no sensível (Maritain); modo de estar presente a verdade como desvelamento do ser (Heidegger).

Alguns autores conceituam a beleza como sendo “o esplendor da forma nas partes proporcionadas da matéria” (COLLIN, 1950, p. 556).

Segundo os escolásticos, a beleza é a unidade na variedade (cf. LECLERCQ, 1947, p. 17).