O insuperável exemplo de Cristo

Mons. João S. Clá Dias, EP

A Igreja nos ensina que sem a graça, a qual nos é dada mais especialmente por meio dos Sacramentos, o cumprimento da Lei se torna muito dificultado. O homem pode até cumprir vários mandamentos, mas o fará só por certo tempo e não em sua integridade. “Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanecer em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto; porque sem Mim nada podeis fazer” (Jo 15,5).

Com efeito, a natureza humana, depois do pecado, ficou enfraquecida e não consegue, sem a graça, se mover estavelmente em direção ao bem.

Além da graça, a natureza humana necessita de exemplos. É muito conhecida a frase: “As palavras movem, os exemplos arrastam”. Essa regra, que se aplica aos vários campos de atividades do homem, mostra-se ainda mais verdadeira no tocante à vida sobrenatural. Uma pessoa instruída na doutrina pode até ficar convencida, mas não arrebatada. O que arrebata é o exemplo, e esse foi dado aos homens de maneira insuperável pelo próprio Cristo.

É em torno dessas considerações que se situam as admoestações de São Paulo aos judeus de seu tempo, sempre tendentes a olhar para a letra e não para o espírito. A Lei de si não salva, diz ele:

Pois a Lei nada levou à perfeição. Apenas foi portadora de uma esperança melhor que nos leva a Deus (Hb 7, 19).

A Lei, por ser apenas a sombra dos bens futuros, não sua expressão real, é de todo impotente para aperfeiçoar aqueles que assistem aos sacrifícios que se renovam indefinidamente cada ano (Hb 10, 1).

Essa lição de São Paulo — o Apóstolo dos Gentios —, dirigindo-se ao seu próprio povo, vale para todos os tempos da História da Salvação, e devemos retê-la também, quando pensarmos em evangelização. Assim procederam aqueles doutores e confessores, sacerdotes e mártires, aquelas virgens e mulheres fortes que se entregaram ao apostolado desde os alvores da vida da Igreja: souberam, eles e elas, ser eficazes não só pelo ensino da doutrina, da Lei, mas especialmente pela oração e pelo exemplo.

A Filosofia Jusnaturalista de São Tomás

tomasPe. Jorge Filipe Teixeira Lopes, EP

Tendo como fundo de quadro a concepção filosófica que antecedeu os tempos modernos, poder-se-á entender melhor o fundamento daquilo a que se poderia chamar de uma antropologia medieval, a qual tinha como premissa maior a noção bíblica do homem enquanto ser criado à imagem e semelhança de Deus. Ademais, cumpre entender que a concepção tomista de lei e direito natural não é senão a mesma que durante séculos foi sustentada pela Igreja e pelos Padres da Igreja; e que antes disso já na antiguidade os Estóicos, Cícero, e até os poetas gregos como Sófocles, defendiam a sua existência denominando-a como lei não escrita[1]. S. Tomás de Aquino teve o privilégio de condensar o pensamento e consolidá-lo nas questões da Suma Teológica que dizem respeito à lei.

1.2.1 A lei natural como decorrência da lei divina.  O doutor angélico fundamenta as suas teses sobre lei e direitos naturais pressupondo três categorias de leis: lei eterna, lei natural e lei humana. No que diz respeito à lei natural, para o aquinate ela não é senão a participação da lei eterna na criatura racional, ou seja, a lei eterna que é a ordem divina, promulgada no homem por meio da razão natural. Deus ao criar o homem e todo o universo colocou uma ordem em cada natureza, através do que cada ser age de acordo com o fim da sua natureza e, portanto qualquer homem ao nascer está sujeito à lei e deve agir conforme ela[2]. Assim se exprime também S. Agostinho quando afirma que: “A razão é que d’Ele (Deus) receberam a categoria de naturezas, e tornam-se defeituosas na medida em que se afastam da sua ideia-arquétipo, pela qual foram produzidas”[3]. Segundo Étienne Gilson, no pensamento medieval a ideia de lei natural está subjacente à razão divina e à lei eterna, pois esta se confunde com a vontade ou a razão de Deus. O princípio analógico de que a lei natural está para a lei eterna assim como o ser está para o Ser, vale indistintamente para toda a ordem de criaturas. Deus “[…]“concriou” a lei natural aos seres que ele chamava à existência e como o facto de existirem se dá por uma participação analógica com o ser divino, assim também analogicamente participam da Sua lei eterna, pois a regra da sua actividade está inscrita na própria essência e estrutura do seu ser”[4]. Esse é um ponto sobre o qual todos os Padres da Igreja e todos os filósofos estão de acordo, aparte os detalhes técnicos do problema.

1.2.2. Natureza, razão e lei natural.  Maritain começa por salientar que para se ter uma noção clara dos pontos de divergência entre a concepção de lei natural tomista e as modernas, é necessário analisar três pontos: quais são, para S. Tomás, as noções de natureza, de razão e de lei natural, em contraposição às concepções modernas[5].

Para o doutor angélico, a palavra natureza designa a essência humana, o que quer dizer que não se refere somente à percepção sensorial, num sentido empírico da observação, mas a uma certa essência inteligível destacada da experiência. A natureza humana tem uma capacidade própria da sua natureza de conhecer o mundo que a rodeia, transcendendo-o, entretanto, pela sua inteligibilidade e abstracção. Por outro lado, as exigências da natureza têm uma força de lei em razão da lei eterna, pois é a razão divina a única criadora da lei natural e reguladora dessa lei na razão humana, donde se poder compreender o carácter sagrado dessa mesma lei.

Como segundo ponto, para S. Tomás a razão é uma razão exclusivamente humana; o homem é um animal racional, um indivíduo sem nenhuma mescla de uma razão abstracta superior. Assim, e sob esse aspecto, os preceitos da lei natural, ao contrário dos vários modos da razão humana de conceituar ou racionalizar – dedução, demonstração ou silogismo – são lhe conhecidos através de uma inclinação ou conaturalidade. E por lhe serem assim conhecidos, a razão humana não intervém na sua idealização, pois ela, a lei natural, tem por sua única razão de existência a razão divina[6].

Como terceiro ponto, podemos notar que quando consideramos a lei natural do ponto de vista gnoseológico[7]- diferentemente do sentido ontológico ou do que a lei natural é e contém – parece fundamental que ela seja conhecida por inclinação, o que significa a bem dizer que ela pode ser conhecida e por consequência pode ser uma medida efectiva da razão prática humana. Ela, apesar de não ser escrita pelos homens, é-lhes conhecida em diferentes graus, e é da sua recusa que se originam os erros que por vezes se dão entre os homens. O princípio básico, evidente em si, e infalivelmente comum a todos os homens e que é intelectualmente percebido em virtude dos conceitos em jogo, é a noção de que é preciso fazer o bem e evitar o mal. É este o primeiro princípio da lei natural conhecido por todos os homens[8].

1.2.3. O conhecimento por conaturalidade.  A lei natural é o conjunto de coisas que o homem sabe que deve ou não fazer e que defluem necessariamente deste princípio, o qual não se regula teoricamente como um teorema de geometria. Quando S. Tomás diz que a razão humana descobre os regulamentos da lei natural sobre a conduta das inclinações da natureza humana, Maritain afirma que ele quer dizer que o modo segundo o qual a razão humana conhece a lei natural, não é o modo do conhecimento racional mas um modo próprio do conhecimento por inclinação: conhecimento por simpatia ou conaturalidade[9].

A conaturalidade é uma espécie de conhecimento, não totalmente claro como os que se obtêm por via dos conceitos ou do julgar conceptual, mas é um conhecimento não sistemático, vital, a modo de instinto, de simpatia, através do qual o intelecto forma os seus julgamentos e que, ao modo de uma melodia, produz uma vibração nas tendências profundas do sujeito, tornando-as conscientes e em concordância com as suas inclinações. Em S. Tomás, todas as coisas perante as quais o homem tem uma inclinação natural são tomadas pela razão como naturalmente boas, e é nesse naturalmente que se apoia o conhecimento por conaturalidade da lei natural[10].

A definição de conaturalidade explica o porque Maritain, ao abordar o terceiro ponto que diz respeito especificamente à lei natural, faz notar que a lei natural é essencialmente uma lei não escrita, se bem que acidentalmente os seus preceitos possam obviamente escrever-se como um código de conduta humano ou divino, como são os Mandamentos. De qualquer forma, ela não obriga mais do que um direito natural ou um código jurídico virtual[11]. Sob esse aspecto, a lei natural aplica-se no campo prático do seguinte modo: sendo o homem um animal político, a ideia de sociedade política natural tem a sua constituição na vontade que os homens têm de viver em comunidade, aliada pela razão e pela virtude. Nesse contexto, em razão das exigências da vida política, há um apelo ao ser humano para que se constitua conforme aquilo que a sua natureza lhe indica, pelo que a lei natural pode ser determinada e precisada numa lei positiva que cada circunstância social ou determinada época histórica suscitam. Fica claro que essa contingência e precisão a que é sujeita a lei natural não pode de forma alguma sujeitá-la a ponto de distorcer a razão do seu fundamento. Uma lei positiva que não lhe seja conforme nunca poderá ter o estatuto de lei[12].

TEIXEIRA LOPES, Jorge Filipe. Fundamentação dos direitos humanos na Lei Natural. Universidad Pontificia Bolivariana – Escuela de Teologia, Filosofia y Humanidades. Licenciatura Canónica em Filosofia. Medellin, 2009. p. 22-27.


[1] Ibid., p. 65. Veja-se a célebre citação de Cícero acerca da lei natural: “A razão recta, conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo senado; não há que encontrar para ela outro comentador nem intérprete; não é uma lei em Roma e outra em Atenas, – uma antes e outra depois, mas una, sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os tempos;” (Ver CÍCERO. De Republica. Livro III. XVII).

[2] AQUINO, São Tomás. Suma Teológica. I-II. Q. 91. a.2.  São Paulo: Loyola, 2005. p. 530-532.

[3] SANTO AGOSTINHO. O livre arbítrio. Braga: Faculdade de Filosofia da UCP, 1998. p. 42.

[4] GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 407-409.

[5] MARITAIN, Jacques. La loi naturelle ou loi non écrite. Fribourg: Éditions Universitaires, 1986. p. 83. O autor faz um quadro sinóptico bastante elucidativo das concepções tomista, racionalista e empirista de lei natural.

[6] Ibid., p. 83-84.

[7] Ibid., p. 20-35.  Maritain distingue os aspectos ontológicos e gnoseológicos no primeiro capítulo da sua obra. Sob o ponto de vista ontológico, o homem tem na sua natureza inteligente tudo o que pode proporcionar a sua realização enquanto ser humano e, portanto, tem fins que correspondem necessariamente à sua constituição essencial e que são os mesmos para todos. Nesse sentido, tem uma ordem, uma disposição interna que a razão deve descobrir e inclinar a vontade a agir de acordo com esses fins essenciais e necessários do ser humano. Sob o aspecto gnoseológico, pode-se conceber a lei natural não em si, mas como a medida dos actos humanos. Então, e por ser uma lei não escrita, ela vai crescendo no processo de conhecimento do homem, à medida que se desenvolve a sua consciência moral. A lei natural não é conhecida conceptualmente pela razão humana mas por uma inclinação para a qual tende a natureza humana. Como primeira regra, a natureza humana busca para si tudo o que lhe parece um bem e ao qual a natureza propende, o que denota que há uma série de regulamentos morais que antecedem a razão. Nesse sentido, é o princípio da própria lei natural sob o aspecto de que por ela o homem tem uma ideia daquilo que deve e daquilo que não deve fazer.

[8] Ibid., p. 27.

[9] Ibid., p. 28. São Tomás desenvolve bastante este tema na S. Th. II-II, Q. 45, a. 2. Para Abelardo Lobato, há um apetite natural que é manifestado na lex naturalis do homem como uma participação da lei eterna. “Tomás de Aquino colocou em relevo de muitos modos, tudo o que é conatural ao homem. A natureza compreende a totalidade, é determinada pela espécie, e tem um peso ontológico que se inclina para os bens convenientes a ela, com anterioridade aos dinamismos das potências. Na esfera do conhecer há que se admitir conhecimentos por conaturalidade e por instinto, que brotam espontaneamente do espírito do homem”. Por se tratar de um conhecimento instintivo prévio, o conhecimento por conaturalidade reveste-se de uma suma primazia na determinação dos actos humanos. Por isso, esse apetite natural tende para o bem de modo determinado e seguro. (Cfr. LOBATO, Abelardo. El hombre en cuerpo y alma. Valencia: Edicep, 1994. p. 212-213).

[10] Ibid., p. 28-30.

[11] Ibid., p. 85. Há um aspecto aparentemente difícil de compreender e que diz respeito à dificuldade em reconhecer a universalidade e, sobretudo, a cognoscibilidade da lei natural. Se ela é cognoscível por todos os homens, como se explica que o infanticídio era expediente comummente utilizado na Ásia na época da dinastia Ming, segundo os relatos de Marco Polo, assim como era também entre os Gregos e Romanos? Ou que no Egipto Antigo, a profissão de ladrão tivesse sido reconhecida pelo Estado? Ou que, em certos reinos orientais, houvesse o costume de, a determinada altura da vida do suserano, este ser cegado? Se é verdade que à lei natural carecem as objectividades normativas, pois não se pode extrair dela um regulamento específico para cada situação concreta, para S. Tomás a lei e o direito naturais são inter-dependentes da lei moral, ou seja, ela está enraizada na natureza humana, sob o aspecto moral, reflectindo tendências humanas universais. De qualquer forma, a aplicação do ponto de vista prático, será tanto mais diferente quanto diferentes forem os aspectos culturais de cada povo. É preciso em primeiro lugar distinguir duas coisas: primeiro, que há preceitos primeiros e segundos da lei natural, sendo os primeiros mais evidentes que os segundos; segundo, que há aspectos etnológicos e históricos que proporcionam uma maior ou menor capacidade de um povo seguir a lei moral natural. Sobre estes pontos ver (MARITAIN, La loi naturelle ou loi non écrite. Op. Cit., p. 7-9). De qualquer forma, é de se notar que quanto mais bárbaro um povo, mais afastado dos primeiros princípios de fazer o bem e agir de acordo com a razão – vejam-se os povos em cujos rituais alucinantes se buscava a divindade através da perda da razão, e relacione-se isso com a poligamia, sacrifícios humanos, canibalismo, etc. Num indivíduo acontece algo de semelhante no que diz respeito à perda do senso moral: qualquer criança sabe perfeitamente que a mentira é má; entretanto, na primeira mentira, as barreiras morais, psicológicas e até operacionais que a natureza tem na sua rectidão primeira, caem. Mentindo uma segunda vez, fá-lo-á mais desembaraçadamente e, no final, o problema não será vencer os obstáculos da mentira, mas sim vencer os obstáculos para não mentir. Sob esse aspecto, os povos ficam também atolados nos seus erros, à força de tanto os praticar, podendo-se entender a expressão da Escritura quando afirma que o pecador torna-se escravo do seu pecado. Os vícios de um povo toldam a límpida visão das coisas que a lei moral, naturalmente, proporciona, pelo que Maritain entende como uma concepção tomista que o conhecimento da lei natural pelo homem cresce na medida em que este progride na sua experiência moral.

[12] Ibid., p. 86.

Quando os homens decidem cooperar com Deus

catedral-de-strasbourgPe. José Victorino de Andrade, EP

Deus manifesta-se na obra da criação. São Paulo escreveu aos Romanos: “Com efeito, o que é invisível nele – o seu eterno poder e divindade – tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras” (Rm 1, 20). Além da perfeição e da bondade com que Deus se manifestou na obra de suas mãos, coube ao homem, criado à sua imagem “cooperar com o Criador no aperfeiçoamento da criação e imprimir, por sua vez, na terra, o cunho espiritual que ele próprio recebeu”.[1] Conforme Paulo VI:

“Deus, que dotou o homem de inteligência, de imaginação e de sensibilidade, deu-lhe assim o meio para completar, de certo modo, a sua obra: ou seja artista ou artífice, empreendedor, operário ou camponês, todo o trabalhador é um criador. Debruçado sobre uma matéria que lhe resiste, o trabalhador imprime-lhe o seu cunho, enquanto para si adquire tenacidade, engenho e espírito de invenção”.[2]

Os homens, ao longo dos tempos, fizeram maravilhas que certamente reflectiram sobremaneiramente a Deus. Saíram das suas mãos obras de arte esplendorosas, pinturas, esculturas, edifícios públicos, administrativos, catedrais, jardins, palácios e castelos… Encontram-se um pouco por todo o mundo obras de grande valor histórico, cultural e artístico que se inspiraram em valores metafísicos e que deslumbram a todos que os contemplam. Portanto, que aliaram o fenómeno religioso aos demais. Compreende-se assim o conselho dado por João Paulo II num encontro com o mundo das religiões, da política, da cultura e da arte:

“Vós, homens e mulheres da cultura, da arte e da política, deveis sentir a religião como a vossa aliada. Ela encontra-se ao vosso lado para oferecer aos jovens sérios motivos de compromisso. Efectivamente, que ideal é capaz de mobilizar para a procura da verdade, da beleza e do bem do credo em Deus, que abre à mente, de par em par, os horizontes incomensuráveis da suma perfeição?”[3]

Vemos assim que a Igreja tem algo a dizer a esta sociedade, que a religião abre novas fronteiras e visualizações, sobretudo quando os homens decidem cooperar com a voz da Graça.

[1] PAULO VI. Populorum Progressio, 27

[2] Idem.

[3] JOÃO PAULO II. Viagem Apostólica ao Azerbaijão e à Bulgária. Baku, 22 de Maio de 2002. 


O Sacerdócio em São Tomás

Pe. Mário Sérgio Sperche, EP

Para São Tomás, o termo sacerdote proveniente de sacra dans, “o que dá o sagrado”, define a essência presbiteral, por se coadunar com suas duas funções principais: “primeiro, tem por missão comunicar ao povo as coisas sagradas que recebe de Deus, portanto, exercer a função de oráculo transmitindo a Palavra de Deus; segundo, sua própria pessoa está dedicada “à mais sagrada de todas as coisas, o culto divino”. O

 Doutor Angélico considera-o como “instrumento da misericórdia e da justiça divina, às vezes, das leis humanas”. Onde se entrevê o seu aspecto real. E acrescenta: “Os sacerdotes são os embaixadores e intérpretes para todas as instruções doutrinárias e morais, que apraz a Deus comunicar aos homens”[1]. Dir-se-ia que o sacerdote em seus três ministérios, está fundamentado embora não explicitamente nesta afirmação tomista.

O sacerdote age in persona Christi capitis, pois, como foi dito, no novo Testamento existe apenas um sacerdote: Jesus Cristo, o agente principal dos sacramentos e do culto cristão. Daí procede toda a dignidade sacerdotal. Dir-se-ia que o sacerdote empresta sua laringe para Cristo perdoar os pecados e consagrar a hóstia na Missa, supremo ato sacrifical[2].

O Ministro principal, o Ministro de Excelência da Igreja é o próprio Cristo. Jesus Cristo é o único sacerdote, e, portanto, todas as cerimônias do Antigo Testamento cederam lugar aos ritos instituídos e operados por Ele através do ministro secundário[3].

Em São Tomás a mediação se dá não somente no sacrifício, mas também na Palavra como “oráculo transmitindo a Palavra de Deus”, ou ainda como “embaixadores e intérpretes” das leis divinas. Esta é a essência do sacerdócio católico. Hugo Rahner recorda que esta “mediação”, que é “essência do sacerdócio”, se ordena tanto ao culto quanto à pregação[4]. Frei Antonio Royo Marín ressalta que estas funções estão fundamentadas no sacramento da ordem, pois, “o presbiterado constitui um verdadeiro sacramento, que imprime na alma um caráter indelével”[5].


[1] S. Th. 3, q.22, a.1, a.2 In: AQUINAS.

[2] S. Th. 3, q.82, a. 1. Resp.

[3] S. Th. 3, q. 71, a. 4.

[4] RAHNER, Teología dela pregación. Buenos Aires: Plantin, 1950, p. 225.

[5] ROYO MARÍN, Antonio. Teología moral para seglares.  Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1994, p. 528.

As diferentes cruzes

Mons. João S. Clá Dias, EP

Cruz“Se alguém quer seguir-Me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me.Porque quem quiser salvar a sua vida, a perderá; mas quem perder a vida por amor de Mim e do Evangelho, salva-la-á” (Mc 8, 35).

Esta afirmação tão categórica exige de nossa parte uma especial análise e degustação, por ser repetida, ademais, nos outros Evangelhos (cf. Mt 10, 38-39; Lc 17, 33; Jo 12, 25). Aqui se encontram as condições para sermos verdadeiros discípulos de Cristo.

1. “Se alguém quer…” Depende de nossa livre vontade. Esperar por uma graça que realize em nós a plenitude de nossa salvação, sem o menor concurso de nossa vontade, é confundir Redenção com Criação, ou a vida eterna com a natural. Esse convite, evidentemente, deve receber uma resposta afirmativa de nossa parte. E é indispensável que seja fervorosa, pertinaz e contínua. Ou, por outra, não podemos nos esquecer um só segundo dessa determinação.

2. “…negue-se a si mesmo…” A origem de todos os pecados encontra-se no amor desordenado a nós mesmos, em detrimento da verdadeira caridade. E o melhor remédio para essa terrível enfermidade é essa renúncia a nós mesmos, para encontrar-nos em Deus. Seu primeiro grau consiste no horror ao pecado mortal, preferindo morrer a consentir nessa aversão a Deus. O segundo diz respeito ao pecado venial consciente e deliberado. O terceiro incide sobre as imperfeições e o amor próprio, tão sorrateiro em imiscuir-se até na prática das virtudes. Ao se progredir neste último grau, maior se torna nossa liberdade interior, como também o gozo da paz e de consolações. Quem vive no oposto a esses três graus, ou não entendeu a grandeza deste convite, ou conscientemente o recusou.

3. “…tome sua cruz …” — Há cruzes e cruzes! As extraordinárias se apresentam diante de nós em épocas de perseguição religiosa. São os suplícios e a própria morte. Devemos enfrentá-los tal qual o fizeram Jesus e todos os mártires, jamais renegando a nossa fé.

Outras haverá que são comuns a todos os tempos. Boa parte delas não são procuradas por nós, mas indesejadas, como por exemplo, as doenças, as debilidades da ancianidade, os rigores do clima, etc. Outras, ainda, são oriundas do acaso: as perdas financeiras, as desgraças, os contratempos, a pobreza, a incompreensão e o ódio gratuito da parte dos outros, perseguições, injustiças. Às vezes, são os efeitos do nosso próprio caráter, temperamento, inclinações, etc.

Como são numerosas as cruzes que surgem ao longo de nossa vida!… Não as podemos evitar; pelo contrário, temos obrigação de carregá-las. E a experiência nos mostra como elas se tornam mais pesadas sobre nossos ombros quando as conduzimos entre choramingos e lamúrias, ou, pior ainda, se contra elas nos revoltamos. Ademais, nestes casos diminuímos, ou até perdemos, os correspondentes méritos.

Por fim, há também as cruzes escolhidas livremente por nós. Abraçar a via do matrimônio, ou a de uma comunidade religiosa, ou ainda a de leigo solteiro vivendo cristãmente no mundo, significa compreender e desejar todos os sofrimentos que são correlatos a cada situação. O cumprimento perfeito de cada uma das exigências do respectivo estado de vida, a subordinação das paixões, o freio dos caprichos, a privação destas ou daquelas comodidades, etc., constituem um campo florido de cruzes, inerentes ao caminho eleito por nossa deliberação. Sem contar a aridez, o tédio, o desgosto que de tempos em tempos nos assaltam ao longo da estrada percorrida por nós, e sem volta atrás. Mas se nossa decisão foi consciente e, sobretudo, se teve origem num sopro do Espírito Santo, jamais devemos nos arrepender. Muito pelo contrário, enchamo-nos de ânimo e até de entusiasmo, dando passos firmes rumo à meta final de nossa salvação.

4. “… e siga-Me” — Se empregássemos o melhor de nossos esforços, praticando os maiores sacrifícios para carregar nossa cruz, mas num caminho diferente do traçado por Jesus, não bastaria! É preciso abraçar a própria cruz, “por Ele, com Ele e n’Ele”. Na contemplação dos padecimentos da Paixão de Cristo, encontrarei as energias para carregar minha própria cruz.

Quanto a perder ou salvar a vida, comenta o Pe. Andrés Fernández Truyols SJ: “O que o Mestre quer gravar no coração de seus ouvintes é que  devemos estar dispostos a passar por tudo, até mesmo a morte, desde que seja para salvar a alma. Porque de nada adianta ao homem ganhar o mundo todo se, no fim, vier a perder a sua alma, ou seja, se não alcançar a salvação eterna” (1).

1) Vida de Nuestro Señor Jesucristo, BAC, Madrid, 1954, vol. III, p. 369.

Obediência: O exemplo de São Tomás de Aquino

Diác. Inácio de Almeida, EP

Um dos hábitos pessoais de São Tomás era o de caminhar em torno do claustro. Andava depressa, com ímpeto e de cabeça erguida. Chesterton dizia que este modo de proceder do Angélico era uma “ação muito própria dos homens que travam as suas batalhas na inteligência”.1

Provavelmente foi numa dessas suas caminhadas que ocorreu o seguinte fato: um jovem frade do convento de Bolonha, necessitando fazer algumas compras, solicitou ao superior que lhe designasse alguém para acompanhá-lo até a cidade. Foi-lhe respondido que o primeiro frade que encontrasse pelo caminho deveria ser o seu acompanhante. Naquela ocasião, Tomás ali se encontrava apenas de passagem e, como de costume, passeava a passos largos em torno do claustro, certamente em altas meditações. Os dois acabaram se encontrando, ocasião em que o jovem frade se dirigiu ao Aquinate com as seguintes palavras: “Meu bom irmão, o superior lhe ordena que venha comigo”.2

Então Frei Tomás, com um gesto de cabeça, assentiu ao chamado e seguiu-o sem nada dizer. Como o outro religioso era mais jovem e caminhava ainda mais depressa, o Mestre Tomás ia ficando para trás, sendo constantemente repreendido pelo companheiro por isso. O santo desculpava-se humildemente e esforçava-se em segui-lo. Por outro lado, alguns cidadãos de Bolonha, que conheciam Frei Tomás, ficaram admirados por vê-lo seguir com tanta dificuldade um frade de pouca idade. Intuíram então que se tratava de algum engano, aproximaram-se do noviço e informaram-lhe quem era o ilustre acompanhante. Assustado, o bom frade se voltou para São Tomás pedindo perdão, o qual foi imediatamente concedido. O povo, por sua vez, dirigindo-se ao mestre, perguntou o motivo daquele modo de agir, ao que o Angélico respondeu: “A obediência é a perfeição da vida religiosa, pela qual o homem se submete ao homem por Deus, como Deus obedeceu ao homem em favor do homem”.3

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1) Chesterton, G.K. Santo Tomás de Aquino. Santo Tomás de Aquino: Biografia. Trad. Carlos Ancêde Nougué. São Paulo: LTr, 2003, p. 109.

2) Guilelmus de Tocco. Ystoria sancti Thome de Aquino. Ed. intr. e notas: Claire Le Brun-Gouanvic. Toronto: PIMS, 1996, cap. 25, p. 148: “Bone Frater, prior mandat quod veniatis mecum”.

3) Loc. cit.: “Quod in obedientia perficitur omnis religio, qua homo homini propter Deum subicit, sicut Deus homini propter hominem obediuit”.

A castidade da inteligência

Mons. João S. Clá Dias,EP

A castidade natural da inteligência consiste numa lealdade em face da realidade objetiva, numa busca da verdade, sem apego às próprias opiniões ou inclinações, uma vez que o homem é criado com a faculdade para conhecer retamente, e não para deformar sua visualização sobre a obra da criação. Na proporção em que penetra nas realidades dos seres em busca de uma união maior com Deus, ela cresce em sua capacidade de analisá-las com integridade, elevação e pureza.

Pelo contrário, se o homem perde essa castidade natural da inteligência, ao negar-se a procurar a Deus na obra da criação — e isso acontece sempre — as trevas penetram de certo modo em seu coração, podendo levá-lo à idolatria, conforme nos afirma o apóstolo: “Com efeito, a ira de Deus manifesta-se do céu contra toda a impiedade e injustiça daqueles homens que retêm a verdade de Deus na injustiça[1], porque o que se pode conhecer de Deus é-lhes manifesto, pois Deus lho manifestou. De fato, as coisas invisíveis dele, depois da criação do mundo, compreendendo-se pelas coisas feitas, tornaram-se visíveis, e assim o seu poder eterno e a sua divindade[2], de modo que são irrecusáveis, porque, tendo conhecido a Deus, não O glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, mas desvaneceram-se nos seus pensamentos e obscureceu-se o seu coração insensato, pois, dizendo ser sábios, tornaram-se estultos, e mudaram a glória de Deus incorruptível na figura de um simulacro de homem corruptível, de aves, de quadrúpedes e de serpentes” (Rm 1, 18-23).

Depois de empreender os movimentos iniciais nas veredas do uso da razão, com seus puros e naturais recursos, logo nos primeiros esforços para compreender os seres criados que o circundam, pode o homem conceber a idéia da existência de Deus. Verá que Ele se constitui no ser absoluto, causa eficiente de toda criação, conservador do universo. Não tardará em se dar conta de ser Ele o fim supremo de cada criatura em particular, como também do conjunto de todas elas. Por isso, conforme lemos nesses versículos de São Paulo, uma inteligência virginal, jamais “retém” em si mesma o conhecimento desinteressado e, portanto, nunca recusa os ensinamentos nascidos das realidades criadas, assim trilhando as vias em busca de Deus, a não ser que já O tenha encontrado. E mesmo neste caso, crescerá nela, o desejo de ainda mais e mais reencontrá-Lo.

Eis, naturalmente falando, uma inteligência casta. Nesse caminho da descoberta de Deus, essa inteligência, nEle repousará, contemplando Seus esplendores em Sua obra, com inteira abertura, sem a menor resistência, e até mesmo reticência, com integridade, submissão à realidade que conduz ao divino, e na mais perfeita lealdade.

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[1] É preciso inteligir e agir em consequência do conhecimento que o homem tem de Deus e de Sua natureza através da obra da criação, caso contrário, esse conhecimento se torna enclausurado na maldade do pecado original, na qual todos nós nascemos. Uma vez retida essa “verdade de Deus”, o conhecimento passa a ser inativo.

[2] “Deus, criando e conservando todas as coisas por meio de Seu Verbo, proporciona aos homens nas coisas criadas, um testemunho permanente de si mesmo…” (Dei Verbum, 3 – Concílio Vaticano II).

Caráter das inteligências elevadas conforme São Tomás de Aquino

s-tomas

BALMÈS, Jacques. Art d’arriver au vrai: Philosophie pratique. Paris: Auguste Vaton, 1850. p. 138-140 (Capítulo XVI). Traduzido do Francês por: Pe. José Victorino de Andrade, EP.

 

Por que certas verdades simples não se apresentam a todas as inteligências? Como o gênero humano acaba admirando um homem tido por extraordinário, se soube ver certas coisas que o mundo inteiro (ao menos assim parece) poderia ter visto como ele? Isto é perguntar a razão de um segredo da Providência, é questionar por que o Criador concede a alguns espíritos de elite uma grande força de intuição, ou, por assim dizer, uma visão intelectual imediata, recusada ao maior número (de pessoas).

 

São Tomás expõe sobre esse fato particular uma admirável doutrina. Segundo o santo doutor, o raciocínio é uma marca da fraqueza de nosso espírito. A faculdade de desenvolver as ideias nos foi dada para superar essa debilidade. Os anjos compreendem, mas não raciocinam. Quanto mais uma inteligência é elevada, mais o número de suas ideias diminui, porque ela encerra, num pequeno número desse tipo de coisas, aquilo que as inteligências de um grau inferior repartem em número maior. Assim, os anjos do mais alto grau abraçam, com a ajuda de algumas ideias apenas, um círculo imenso de conhecimentos. O número de ideias vai-se reduzindo sempre nas inteligências criadas, à medida que elas se aproximam do Criador. E Ele, a Ideia por excelência, o Ser infinito, a Inteligência infinita, quer tudo numa mesma ideia, simples, única, imensa, ideia que não é outra que a sua essência. Que sublime teoria. Ela revela um conhecimento admirável dos segredos do espírito e nos sugere inumeráveis aplicações relativamente às faculdades do homem.

 

De fato, os espíritos de elite não se distinguem pela quantidade de suas ideias. Eles não possuem senão um pequeno número, no qual eles envolvem o mundo. A ave das planícies se fadiga de rasar a terra; ela passa e repassa pelos mesmos lugares, não passando jamais as sinuosidades e os limites do vale onde nasceu. A águia, em seu voo majestoso, sobe, sobe sempre, não se detém antes dos mais altos cumes, e de lá seu olhar acurado contempla as montanhas, os cursos dos rios, as vastas planícies cobertas de cidades populosas, as verdes pradarias e as ricas pastagens.

 

Há em todas essas questões um ponto de vista culminante, em que se posiciona o gênio. Desta feita, o seu olhar domina e envolve as coisas. Se ele não é dado ao comum dos homens de se elevar até lá numa primeira volta, ao menos ele deve tender para isso sem cessar. Os resultados pagam o esforço ao cêntuplo. Como pudemos observar, toda a questão, ou mesmo toda a ciência, resume-se em um pequeno número de princípios essenciais, dos quais todos os outros decolam. Devem-se compreender esses princípios e o resto se tornará simples e fácil, e não nos deteremos mais em detalhes (escusados).

 

Apresente ao espírito o objeto simplificado o mais possível e desembaraçado por assim dizer, de toda a folhagem inútil. A sua singeleza exige. Para obter que ele multiplique sua atenção, evite exigir muito dele. Trate de circunscrevê-lo. Esse método lhe facilita a compreensão das coisas, dá às suas percepções a exatidão e a lucidez, e ajuda possantemente a memória.

 

Devemos concluir acerca das doutrinas aqui contidas […] que se deve renunciar ao raciocínio e mesmo ao estudo, e se abandonar à sorte de um quietismo intelectual? Isto, a Deus não agrada! Se há uma condição indispensável ao progresso de toda a faculdade, é o trabalho. Tanto na ordem intelectual, como na ordem física, um órgão que não funcione entorpece e perde uma porção de sua vida. Um membro que não se mova, paralisa. Os gênios mais dotados não entram plenamente em posse de suas forças sem um trabalho penoso e sustido. A inspiração não desce sobre o desocupado; ela exige, antes, produzir uma espécie de fermentação de ideias e sentimentos elevados. A intuição, quer dizer, a vista de espírito, não se adquire sem um longo hábito de olhar. O golpe de vista rápido, seguro e delicado de um grande pintor não é um dom gratuito da natureza; é um dom que se deve à contemplação apaixonada, à observação, ao estudo paciente de bons modelos. O sentimento divino da harmonia não se desenvolveria jamais na organização, mesmo a mais harmoniosa, se contrastasse sem cessar dos seus [aspectos] ásperos e discordantes.

 

in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 7, abr-jun 2009. p. 124-126.

 

Sem a dimensão jurídica, não seria compreensível a Igreja tal como foi fundada por Cristo

Pe. José Manuel de Andrade, EP

Há uma tendência de querer ver na Igreja apenas um lado carismático, pretendendo dispensá-la do aspecto jurídico, sendo que este não é desprovido de um significado e uma missão. Ele existe para que, havendo uma sociedade eclesial de instituição definida, se crie de forma acabada e com os devidos contornos, em seu tempo e em seu lugar, uma ordem baseada nos valores evangélicos e participa do fim a que se propõe a Igreja: a salvação das almas.

São Paulo ensina que a justificação não se realiza pelas obras da lei, mas por meio da fé (cf. Rm 3, 28; cf. Gl 2, 16), porém, não exclui a obrigatoriedade do Decálogo (cf. Rm 13, 8-10; cf. Gl 5, 13-25; 6, 2), nem nega a importância da disciplina na Igreja de Deus (cf. 1 Cor 5-6). Já o primeiro Concílio, de Jerusalém, presidido por Pedro, compreendia uma parte dogmática e moral e outra disciplinar.[1]

Assim sendo, a necessidade do direito na Igreja não deve traduzir-se por uma simples conveniência, por muito intensa que seja. Esta dimensão jurídica é fundamental, porque sem ela não é compreensível a Igreja tal como foi fundada por Cristo.[2] Conforme João Paulo II:

“Como principal documento legislativo da Igreja, baseado na herança jurídico-legislativa da Revelação e da Tradição, o Código deve ser considerado instrumento indispensável para assegurar a devida ordem tanto na vida individual e social como na própria atividade da Igreja. Por isso, além dos elementos fundamentais da estrutura hierárquica e orgânica da Igreja, estabelecidos por seu Divino Fundador ou fundamentados na tradição apostólica ou em tradições antiquíssimas, e além das principais normas referentes ao exercício do tríplice múnus confiado à Igreja, é necessário que o Código defina também certas regras e normas de ação”.[3]

Assim sendo, o Direito dentro do Povo de Deus não é só uma ordenação de condutas, mas também uma estrutura da sociedade; ele ordena e organiza o grupo social criando vínculos, estabelecendo situações jurídicas, delimitando âmbitos de competência e autonomia, outorgando poderes e direitos, etc.[4] Conforme afirmava Paulo VI: “A vida da Igreja não pode existir sem um ordenamento jurídico”.[5]


[1] Cf. BÍBLIA SAGRADA (anotada pela Faculdade de Teologia da Universidade de Navarra) Braga: Edições Theologica, 1990. Vol. II. p. 257.

[2] Ver Mt 16, 19 e Jo 21, 17.

[3] JOÃO PAULO II. Constituição Apostólica Sacrae Disciplinae Leges. In: Communicationes, XV (1983).

[4] Cf. INSTITUTO MARTÍN DE AZPILCUETA. Comentário Exegético al Código de Derecho Canónico. 3. ed. Pamplona: EUNSA, 2002. Vol. I.  p. 40-41.

[5] “Vita ecclesialis sine ordinatione iuridica nequit exsistere”. (Apud Herranz, J. Il Dirito Canonico, Perché? Lezione all’Università Cattolica di Milano. 29 aprile 2002 tradução minha).

A obrigação de guardar o segredo

Pe. Caio Newton Fonseca, EP

Por direito natural, de si, há obrigação de guardar, de não revelar qualquer espécie de segredos. Porém, esta obrigatoriedade admite graus.

O segredo natural em coisa grave obriga de si sub gravi et ex iustitia. Por isso quem extorquiu de outrem um segredo, por via dolosa ou culposa, está obrigado a reparar todo o dano, seja com relação à fama lesada, seja com relação a eventuais danos patrimoniais, posto que estes danos fossem previstos pelo menos em confuso.

Assim, revelar ou divulgar um segredo natural é, por si, pecado grave.

O segredo prometido obriga como qualquer promessa. A gravidade e a obrigatoriedade se deduzem do ânimo com que foi feita a promessa e da extensão das obrigações que se quis assumir. Portanto, revelar um segredo meramente prometido, por si, ordinariamente não obriga senão sub levi. Porém, conforme o caso, pode chegar a ser grave.

O segredo confiado obriga, por justiça e por si, sub gravi, seja porque baseado num contrato ou num quase-contrato, seja porque ordinariamente é de notável interesse para o bem público que seja fielmente mantido. Portanto, obriga mais gravemente do que o segredo natural e o segredo prometido.

Como foi dito, a obrigação dos diversos segredos é diversa. Como regra geral, pode-se considerar que o segredo obriga segundo a quantidade do dano que se faz injustamente ou ao bem público ou ao bem privado, consequente à violação. (Cf. PRÜMMER-MÜNCH, op. cit., II, pp. 177-179; GUZZETTI, in Enciclopedia Cattolica, XI, col. 255).