A ciência não deve excluir a caridade

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Ao longo de séculos, a Igreja teve um papel importantíssimo na construção da sociedade Ocidental. Criou as Universidades, e os Hospitais, desenvolveu a farmacêutica baseada nos produtos naturais (que tanta procura voltaram a ter nos nossos dias), foi uma verdadeira mecenas em termos de arte e cultura, conservou preciosas obras de arte e bibliotecas, desenvolveu o Direito Romano e a ideia de mercado, e a própria ciência e astronomia moderna lhe deve muito do que sabe e tem hoje. Bastaria lembrar a importância que tiveram sacerdotes como: Francisco de Vitória, pai do direito internacional, Nicholas Steno, pai da geologia, Athanasius Kircher, pai da egiptologia, Roger Boscovich, pai da moderna teoria atómica, ou mesmo os estudos da sismologia elaborados pelos filhos de Santo Inácio que fizeram com que muitos hoje lhe apelidassem de “Ciência Jesuítica” ou as cerca de 35 crateras lunares que levam o nome de matemáticos e astrónomos da mesma Companhia de Jesus, entres tantos outros que não caberia aqui enumerar[1].

Muitos foram também os leigos de convicções profundamente religiosas que estavam persuadidos que as suas investigações trariam contributos para desvendar o cosmos, mediante a perspectiva e o assombro do mistério de Deus e da sua criação, além da consciência de estarem verdadeiramente a promover o bem comum. Salientam-se nomes como: Louis Pasteur (1822-1895), Alessandro Volta (1745-1827) e André-Marie Ampère (1775-1836), entre outros[2].

John Bagnell Bury, historiador, lembra o histórico diálogo entre Roger Bacon e o Papa Clemente IV, e o interesse deste Pontífice pelas ciências, o que permitiu uma reforma intelectual na época, ampliando e reformando os estudos nas Universidades, beneficiando inclusive os estudos teológicos e das Escrituras[3].

Entretanto, de modo até um pouco dramático, muitos convencionaram que a ciência se havia de separar totalmente da religião, afastando-se dos seus benéficos contributos. Quiseram pisar em solo que estava palmilhado por filósofos e teólogos há décadas ou mesmo séculos, colocando em causa soluções já propostas, entrando em campos que não lhes pertenciam, preferindo escalar por seus próprios meios quando as cordas que lhe permitiam ascender ao alto, mais depressa e seguramente, estavam ali, ao lado dos investigadores. Assim, o investigador moderno “escalou as montanhas da ignorância e está para chegar ao cume; quando consegue alcançar a última pedra, é recebido por um grupo de teólogos que há séculos estão ali sentados”[4].

 A procura pelo saber, não deve excluir a caridade e, por isso, o importantíssimo papel da religião e o seu contributo para que a caridade seja muito mais do que mera filantropia e se aplique a todos os domínios, devendo envolver toda a existência humana e preenchê-la, pois a caridade é sobremaneiramente o amor, e Deus é amor (Ver 1Jo 4, 8-4 e 16). Esta deve fecundar todas as nossas acções, conforme São Paulo: “Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver amor, nada sou […] de nada me aproveita (1Cor 1-3).

 Deste modo, entendemos melhor a aplicação que Bento XVI na Caritas in Veritate relacionando a caridade ou o amor – fruto do Espírito Santo – com a Sabedoria – dom do mesmo Espírito – que longe de se excluírem, atraem-se, têm a mesma proveniência, e para ela retornam, não sem antes terem produzido um bem superior: “A caridade não exclui o saber, antes reclama-o, promove-o e anima-o a partir de dentro. O saber nunca é obra apenas da inteligência; pode, sem dúvida, ser reduzido a cálculo e a experiência, mas se quer ser sapiência capaz de orientar o homem à luz dos princípios primeiros e dos seus fins últimos, deve ser ‘temperado’ com o ‘sal’ da caridade. A acção é cega sem o saber, e este é estéril sem o amor” (n. 30).

A técnica e a ciência, assim como o saber humano e seu salutar crescimento, dependem em grande medida desta referência. Seria como uma possante ave que deseja levantar voo e dificilmente alcançará os píncaros mais elevados se as duas asas, diametralmente opostas, não funcionarem juntas, coordenadamente. A caridade e a ciência, assim como todos os seus domínios e desdobramentos, devem voar juntas.


[1] Acerca deste assunto ver WOODS JR, Thomas. O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica. Lisboa: Atheleia, 2009. s.p.

[2] Para outros nomes e informação detalhada acerca de cada uma destas personagens ver um esboço da tese de mestrado na Gregoriana do Pe. Eduardo Caballero em: Revista Arautos do Evangelho. Sao Paulo. No. 95 (Nov., 2009); p. 37-39.

[3] “[Bacon chief work, the Opus Majus,] was addressed and sent to Pope Clement IV., who had asked Bacon to give him an account of his researches, and was designed to persuade the Pontiff of the utility of science from an ecclesiastical point of view, and to induce him to sanction an intellectual reform, which without the approbation of the Church would at that time have been impossible” (BURY, The idea of progress. Fairford: Echo Library, 2010, p. 20).

[4] JASTROW, R. God and the Astronomers. New York, 1978. p. 116.