Obediência: O exemplo de São Tomás de Aquino

Diác. Inácio de Almeida, EP

Um dos hábitos pessoais de São Tomás era o de caminhar em torno do claustro. Andava depressa, com ímpeto e de cabeça erguida. Chesterton dizia que este modo de proceder do Angélico era uma “ação muito própria dos homens que travam as suas batalhas na inteligência”.1

Provavelmente foi numa dessas suas caminhadas que ocorreu o seguinte fato: um jovem frade do convento de Bolonha, necessitando fazer algumas compras, solicitou ao superior que lhe designasse alguém para acompanhá-lo até a cidade. Foi-lhe respondido que o primeiro frade que encontrasse pelo caminho deveria ser o seu acompanhante. Naquela ocasião, Tomás ali se encontrava apenas de passagem e, como de costume, passeava a passos largos em torno do claustro, certamente em altas meditações. Os dois acabaram se encontrando, ocasião em que o jovem frade se dirigiu ao Aquinate com as seguintes palavras: “Meu bom irmão, o superior lhe ordena que venha comigo”.2

Então Frei Tomás, com um gesto de cabeça, assentiu ao chamado e seguiu-o sem nada dizer. Como o outro religioso era mais jovem e caminhava ainda mais depressa, o Mestre Tomás ia ficando para trás, sendo constantemente repreendido pelo companheiro por isso. O santo desculpava-se humildemente e esforçava-se em segui-lo. Por outro lado, alguns cidadãos de Bolonha, que conheciam Frei Tomás, ficaram admirados por vê-lo seguir com tanta dificuldade um frade de pouca idade. Intuíram então que se tratava de algum engano, aproximaram-se do noviço e informaram-lhe quem era o ilustre acompanhante. Assustado, o bom frade se voltou para São Tomás pedindo perdão, o qual foi imediatamente concedido. O povo, por sua vez, dirigindo-se ao mestre, perguntou o motivo daquele modo de agir, ao que o Angélico respondeu: “A obediência é a perfeição da vida religiosa, pela qual o homem se submete ao homem por Deus, como Deus obedeceu ao homem em favor do homem”.3

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1) Chesterton, G.K. Santo Tomás de Aquino. Santo Tomás de Aquino: Biografia. Trad. Carlos Ancêde Nougué. São Paulo: LTr, 2003, p. 109.

2) Guilelmus de Tocco. Ystoria sancti Thome de Aquino. Ed. intr. e notas: Claire Le Brun-Gouanvic. Toronto: PIMS, 1996, cap. 25, p. 148: “Bone Frater, prior mandat quod veniatis mecum”.

3) Loc. cit.: “Quod in obedientia perficitur omnis religio, qua homo homini propter Deum subicit, sicut Deus homini propter hominem obediuit”.

A vida contemplativa de São Tomás

Diác. Inácio de Araújo Almeida, EP

Ao tratar sobre a vida contemplativa de São Tomás, Maritain afirmou que “se a sua santidade foi a santidade da inteligência, é porque nele a vida de inteligência era inteiramente sustentada e iluminada pelo fogo da contemplação infusa e pelos dons do Espírito Santo”.1 Esse autor francês também nos recorda que o Angélico “rezava continuamente, chorava, jejuava, desejava. Cada um dos seus silogismos é como um coagular-se da sua oração e das suas lágrimas. E a graça da lúcida serenidade que a sua palavra nos causa, provém indubitavelmente do fato de que também o menor dos seus textos permanece invisivelmente impregnado do seu desejo e da força pura do mais ardente amor. A obra-prima da intelectualidade pura e rigorosa transborda de um coração possuído de caridade”.2

São Tomás tinha bem presente que a vida acadêmica distanciada de sua finalidade sobrenatural pode trazer desastrosas consequências. Na Suma Teológica explica que o estudo é, em si mesmo, ordenado à aquisição da ciência, mas quando se almeja a ciência “sem a caridade, esta incha e produz dissensões”.3 De modo contrário, quando a ciência é acompanhada pela caridade, edifica e gera a concórdia. Em seu primeiro período de docência em Paris, alguns dos professores seculares levantaram a objeção de que o ensino universitário seria incompatível com a vida religiosa. São Tomás logo procurou refutar essa teoria, e é certamente por esse motivo que na Suma Teológica se argumenta que o estudo é próprio ao estado religioso por três razões: a primeira delas, por favorecer diretamente a contemplação, iluminando o entendimento. A segunda, porque aparta os obstáculos à contemplação, ou seja, os erros que são frequentes por parte daqueles que desconhecem as Escrituras. Em terceiro lugar, porque o estudo nos afasta da concupiscência da carne e, além do mais, é útil para adquirir a virtude da obediência.4

Quando o Angélico escrevia, tinha como intenção primordial o louvor a Deus e o bem das almas. Ele trabalhava incansavelmente a fim de que Cristo fosse cada vez mais conhecido e amado. Por essa razão, Innos Biffi, comentando as obras de São Tomás, dizia que a Suma Teológica era “acima de tudo uma iniciativa de amor; não uma arrogante pretensão de exaurir a insondabilidade de Deus, mas, sim, o reconhecimento de sua transcendência, que, entretanto, é pela graça que realmente é comunicada ao homem. Para amar se deseja saber, e nada é mais digno de ser amado que Deus. E é este amor e esta paixão que sentimos circular nos infinitos e surpreendentes trechos das partes, das questões e dos intermináveis artigos da Suma Teológica de São Tomás, que foi um dos mais altos místicos da cristandade”. 5

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1) Maritain, Jacques. Le docteur angélique. Fribourg: Éditions Universitaires; Paris: Saint Paul, 1983, p. 51.

2) Loc. cit.

3) Summa Theologiae, II-II, q. 188, a. 5, ad 2.

4) Summa Theologiae, II-II, q. 188, a. 5, co.

5) Biffi, Inos. Cattedrali della teologia, Le pietre e le idee. L’Osservatore Romano, 1 maio 2010.

O sublime reflexo de Deus nas criaturas: a beleza

Ilha dos Frades 083Diác. Felipe Ramos, EP

Vemos que no mundo sensível é fato evidente a graduação das perfeições transcendentais numa maravilhosa hierarquia. É fácil compreender que todas as coisas são ontologicamente boas secundum magis et minus. A apreensão dos graus se torna ainda mais evidente quando se considera o pulchrum, escada segura de contemplação hierárquica das coisas, com a qual atinge, em seu vértice, a sua Suma Perfeição.

Tal Perfeição, absolutamente desproporcional ao homem, nos é revelada por meio desse sublime reflexo de Deus nas criaturas: a beleza.

Ao analisar a Criação e sua multifacetada variedade podemos nos perguntar por que Deus quis criar tal imensidade de seres. Pois sendo Ele infinitamente perfeito, bastaria-se a Si mesmo, sem a absoluta necessidade de criá-los. Porém, na Sua infinita bondade e misericórdia, assim o desejou.

Ora, Seu intuito, ao criar quantidade insondável de seres, foi para que estes não somente refletissem Sua perfeição infinita, mas também a reproduzisse em seus mais variados graus. Deste modo se explica o caráter hierárquico que Deus imprimiu ao Universo.

Contudo, não poderia Deus originar uma única criatura que por si só refletisse todas as suas perfeições tão bem como o conjunto dos seres criados? Parece que isso seria metafisicamente impossível. Pois Deus criou um Universo composto de muitas criaturas para que elas, de um lado pela sua pluralidade, de outro pela sua hierarquização, espelhassem convenientemente a Sua beleza e perfeição divina. Pois assim como um acorde sonoro é belo pela formação de uma unidade harmoniosa numa “terça”, mais belo ainda quando acrescentamos apenas uma nota num acorde de “quinta”, constituindo o que se chama “consonância perfeita”. Analogamente, a ordem da criação é ainda mais bela por sua rica pluralidade, quando coesa na unidade. Portanto, o homem, ao contemplar o mundo ao seu redor pode — aliando-se com a quarta via, ou seja, a partir da observação da gradualidade dos seres criados — inferir nestes, os esplêndidos reflexos da divina Pulchritudo.

Deste modo, o espírito hierárquico dos diversos graus aliados à ordem, às desigualdades harmônicas, ao pulchrum, em suma, leva-nos de proche en proche até a demonstração da existência de Deus, à Sua consideração e, por fim, à contemplação de Sua Suma Perfeição, causa de todas as perfeições.

São Tomás e o hilemorfismo

Ms. Antônio Chaves Sobrinho (IFAT)tomas

São Tomás aceita e desenvolve a doutrina aristotélica da matéria e da forma, do ato e da potência. Aperfeiçoa e aprofunda esses conceitos, tirando deles ensinamentos que se perpetuaram na Escolástica até nossos dias. Mais ainda, ele sublima a doutrina hilemórfica e chega a alturas não sonhadas por Aristóteles. Através da multiplicidade das formas chega àquelas que são puras e se identificam com as substancias angélicas. Fala de formas independentes da matéria que são inteligências, substâncias espirituais puras, quididades simples e perfeitas. Ele afirma:

[…] o relacionamento da matéria e da forma é tal que a forma dá ser à matéria e, deste modo, é impossível que haja matéria sem alguma forma; no entanto, não é impossível haver alguma forma sem matéria. Mas se se encontram algumas formas, que não podem ser senão na matéria, isto lhes advém na medida em que estão distanciadas do primeiro princípio que é o ato primeiro e puro. Donde, aquelas formas, que estão próximas ao máximo do primeiro princípio, serem formas substanciais por si, sem matéria. De fato, a forma, de acordo com a totalidade de seu gênero, não necessita da matéria, como foi dito. Tais formas são inteligência e, por isso, não é preciso que as essências ou quididades destas substâncias sejam algo de outro que a própria forma (AQUINO, n. 48).

A partir desses conceitos São Tomás explicita um ponto fundamental da filosofia escolástica que é o da essência e da existência. São princípios ontológicos distintos, mas inseparáveis, cuja composição explica a estrutura metafísica profunda do ser.

No plano da criatura, antes do ser, não há nem essência, nem existência, entidades que, por outro lado, são absolutamente incapazes de existir independentemente uma da outra. Nem a essência nem a existência existem isoladamente; somente o ser que elas compõem: são dois princípios correlativos que só têm realidade enquanto se completam (GARDEIL, 1967, p. 121).

A essência é aquilo que faz com que um ser seja ele mesmo e não outro. É o que define cada ente, diz o que é uma realidade, está no íntimo de cada ser e o caracteriza. Ela responde à pergunta: o que é isto ou aquilo (quid sit)?

A existência é a última atualização da essência, é o ato ou a perfeição essencial de cada ente. Ela responde à pergunta: isto ou aquilo é (an sit)? De fato, “a existência é sempre dada, como atualidade de uma essência determinada tanto que essência e existência, se são realmente distinguíveis, são necessariamente inseparáveis em um ser dado” (JOLIVET, 1972, p. 229). O esse ou existência desempenha a função de ato e a essência a de potência. Nessa análise que São Tomás faz do ser ele opera uma profunda transformação e elevação da ontologia de Aristóteles. A partir da existência como última perfeição dos entes ele chega ao “Ipsum esse subsistens.” O ser é, para ele, tanto em Deus quanto nas criaturas, existência por excelência. Estes dois princípios, que nas criaturas são distintos mas inseparáveis, no Criador se identificam em sua pura simplicidade. Nele, essência e existência são, pois, uma só coisa. Como se vê, o Doutor comum chega à mais alta concepção do ser, à sua noção e constituição essencial. O ser é ato que engloba todas as perfeições, pois o ato de ser é o fundamento da realidade de tudo quanto existe. O ser é ato em sentido pleno porque não inclui nenhuma limitação. Indo além dos universais, ele considera o ser sobretudo como transcendental. O Doutor Angélico voa do visível para o invisível, do finito para o infinito a fim de chegar à mais alta concepção do “esse” que tem sua fonte em Deus. Portanto, o ato de ser é o núcleo de sua metafísica, enquanto a composição essência-existência constitui, em sua filosofia, a estrutura fundamental dos entes criados (cf. SOBRINHO, 2007, p. 49-52).

A essência ou quididade é o objeto da primeira operação de nossos espíritos, é uma aptidão para existir, para o ser, em função do qual é medida e definida como uma autêntica essência. “Ens e essência se divisam como ‘aquilo’ que, primeiro, o intelecto concebe” (AQUINO, 2005, p. 7).

É, portanto, penetrando em sua essência que a inteligência se adequa aos seres e os conhece. Ela como que se torna um com eles e os ilumina como um farol. Etiene Gilson afirma que a corporeidade ou a matéria limita o ser, mas o que ele contém de espiritual tem por efeito amplificá-lo (cf. p. 293). E Maritan, discorrendo sobre o mistério do ser, afirma que ele é rico demais em inteligibilidade, puro demais para nossa inteligência, em se tratando das coisas espirituais. Ao mesmo tempo ele comporta certa resistência inteligível quando se trata do não ser ou da potência (cf. p. 15).

A existência ou ato de ser (actus essendi), é, portanto, o termo do pensamento, o objeto para o qual, primeiramente e por si, se orienta a inteligência. E é por isto que Santo Tomás afirma que é na segunda operação do espírito (juízo) que propriamente se realiza a apreensão do ser, porque é pelo juízo que a existência é apreendida, não mais, somente, como significada ou indicada ao espírito (o que é o caso do conceito), mas, como exercida, atual e “possivelmente por um sujeito. Assim, também, devemos dizer que é no juízo que se completa o conhecimento, enquanto está orientada (sic) para a apreensão do ser (JOLIVET, 1972, p. 197-198).

Como se vê, o conceito transcendental do ser, a essência e a existência ou ato de ser, sendo esta a última atualização daquela, são pontos fundamentais da ontologia tomista, que estavam vagamente esboçados ou sugeridos no hilemorfismo aristotélico e em sua teoria do ato e da potência. São Tomás via com os olhos da razão e entrevia com os da fé. Quem tem visão sobrenatural vai ao coração das coisas.

Em sua hierarquia ontológica ou graus de perfeição dos seres visíveis e invisíveis ele ultrapassa também Platão. As ideias deste, consideradas independentes e existentes por si mesmas, são concebidas por São Tomás na Mente Divina, tendo uma realidade lógica que passa a ser ontológica, se a vontade de Deus as concretiza. Esses possíveis são infinitos em Sua mente, alguns dos quais, concretizados, constituem o universo criado. Também as formas puras de São Tomás, correspondentes ao mundo angélico, vão além da pluralidade de motores imóveis sugerida por Aristóteles. Mais ainda, se o estagirita considera esses motores independentes do Ato Puro, que é o Motor Imóvel por excelência, o Doutor Angélico subordina todos os anjos a Deus. Estes guardam os homens, regem os astros e governam os demais seres criados por ordem de seu Criador. E cada ente, nessa hierarquia, desempenha a função de mestre, regente, modelo e guia em relação a seu inferior. Deste modo, toda a obra da criação realiza, na ordem do ser, uma “servitudo ex caritate”, atraída pelo divino amor.

O grande mestre da escolástica trata também da natureza humana, bem como da angélica, em sua substância. O homem é um composto hilemórfico de corpo e alma, matéria e espírito, constituindo, assim, um elemento de ligação entre o mundo material — minerais, vegetais e animais — e o mundo espiritual — os anjos. Estes dois elementos — matéria e espírito — estão de tal modo unidos, no ser humano, que formam uma só substância composta. A essência do homem abarca a forma e a matéria, ou seja, a alma e o corpo. Ele é um animal racional. Os anjos, pelo contrário, são substâncias simples ou formas puras.

“Portanto, a essência da substância composta e da substância simples diferem nisto que a essência da substância composta não é apenas a forma, mas abarca a forma e a matéria; no entanto, a essência da substância simples é apenas forma”. (AQUINO, n. 49)

Entretanto “tais substâncias, embora sejam apenas formas sem matéria, não há nelas uma simplicidade completa nem são ato puro, mas têm uma mistura de potência” (Idem, 52). Mesmo não sendo ato puro, a substância simples é forma e ser, pois “tem o ser a partir do ente primeiro que é apenas ser; e este é a causa primeira que é Deus.” (Idem, n. 55).

Tendo matéria em sua composição, cada homem não pode esgotar as perfeições de sua espécie. Daí a necessidade da pluralidade de indivíduos. O anjo, contrariamente, esgota as perfeições de sua espécie e, por isso, esta não comporta multiplicidade. Cada anjo é uma espécie diferente. Conforme a Introdução à Suma Teológica de Marie-Joseph Nicolas:

“A natureza humana só se realiza numa pluralidade, em si ilimitada, de indivíduos. Cada natureza angélica, ao contrário, é única. Toda multiplicidade no mundo dos puros espíritos é uma multiplicidade entre essências diversas, e a singularidade se identifica com a especificidade” (p. 49).

Estes são alguns reflexos do hilemorfismo aristotélico que, incidindo sobre a mente cristalina de São Tomás de Aquino, como uma luz ultrapassando um belo vitral, saem do outro lado purificados, sublimados e multicoloridos.

O que os anjos vêem: natureza e graça

Pe. Colombo Pires, EPanjos Tradução do Original Pe. Romanus Cessario, O.P.

Apesar da inteligência humana e angélica possuírem uma performance diferente, a distinção clássica entre a visão matutina e vespertina dos anjos sugere uma verdade importante acerca do conhecimento disponível a todos que vivem na Fé de Jesus Cristo. A noção que os anjos possuem dois tipos de visão aparece inicialmente nos comentários de Santo Agostinho acerca da criação na Bíblia, o De Genesi ad litteram, Book IV, chapters 22-31 onde o Doutor da Graça fala de um amanhecer e de um anoitecer no conhecimento dos Anjos. A tradição teológica subsequente alargou essa distinção, pois, como Hugo de São Vítor observa, “ há muitas questões acerca da natureza angélica, as quais a curiosidade da mente humana não foi capaz de descobrir”.1 Então, na sua Summa theologiae, não surpreende descobrir que São Tomás de Aquino estende a intuição do conhecimento angélico de Agostinho.

O Santo de Hipona inventou as expressões conhecimento “matutino” e “vespertino” como parte da sua interpretação dos seis dias da criação presentes no Gênesis… (Ele) chamou “matutino” ao conhecimento angélico das coisas no seu primordial começo, precisamente como existem no Mundo; e “vespertino” ao seu conhecimento da realidade criada enquanto existindo na sua própria natureza.2

Porque a “escuridão da noite” caracteriza, mais propriamente, o conhecimento dos anjos decaídos que se fixaram na realidade criada, o Aquinate rejeita esse ponto de vista. Ele defende que como o amanhecer e o anoitecer estão conotadas com a luz do dia, “ambos os tipos de conhecimento expressados por estes termos pertencem aos anjos que estão na luz”.3

Nenhum teólogo contestaria que o que os anjos vêem na manhã, nomeadamente, tudo como existe no divino mundo da criação, forma a única base para a genuína reflexão teológica. O próprio São Paulo testemunha a centralidade desse tipo de conhecimento quando ele lembra aos Colossenses que Cristo “é a imagem de Deus invisível, o primogênito de toda a criação; Por Ele todas as coisas foram criadas, no céu e na terra, visíveis e invisíveis” (Col 1, 15-16).

Enquanto nós frequentemente associamos a teologia com a realidade de Deus e os Seus feitos, com mistérios como a Trindade, a Ressurreição de Cristo, e a Imaculada Conceição da Virgem Maria, a reflexão teológica estende-a apropriadamente ao que os homens e as mulheres fazem. Por outras palavras, a fé do cristão determina a questão ética. Também as virtudes da vida cristã estão entre aquelas realidades visíveis que encontram a sua realização em Cristo. De fato, Orígenes, autor do II século, afirma esta verdade quando escreve: “Não se surpreendam ao falarmos das virtudes do amado Cristo, porque em outros casos nós estamos afeitos a olhar o próprio Cristo como a substância daquelas muitas virtudes”.4

Pelo fato de Cristo permanecer a fonte de todo o bem moral para a pessoa que aceita a mensagem do Evangelho, a Igreja afirma que o ensino da moral cristã possui uma distinta especificidade. Numa variedade de maneiras, os teólogos contemporâneos enfatizam a importante ligação entre a reta conduta Cristã e a autêntica crença cristã.

Hans Urs von Balthasar, por exemplo, identifica Cristo como a “norma pessoal e concreta”5 da vida moral. Isto quer dizer, entre outros, que sem uma efetiva união com Cristo, nenhuma pessoa humana pode, na prática, atingir a perfeição da vida moral que conduz à beatífica companhia com a Trindade, os anjos e os santos. Para mais, “é Cristo, o novo Adão, que plenamente desvenda a própria humanidade e desdobra o Seu nobre chamado revelando o mistério do Pai e do amor do Pai”.6

Por outras palavras, apenas a pessoa que abraça uma vida cristã de virtudes vive inteiramente de acordo com a norma da verdade moral que Cristo, a “imagem do Deus invisível,” comunica ao mundo, e em Cristo realiza a perfeição da natureza humana.

Por um lado, devido à sua inteligência superior, os anjos conhecem os divinos mistérios do mundo com grande clareza. Nós, por outro lado, conhecemos as verdades da fé sombriamente, isto é, apenas pela crença na Palavra de Deus, Primeira Verdade.7 E por causa da escuridão moral que caracteriza o pecado no mundo, as verdades da fé acerca da conduta humana parecem por vezes obscuras para a pessoa que ainda deve aprender a apreciar a medida espiritual que Cristo estabelece para vida humana. Certamente, uma ponderação contemplativa mais profunda da verdade revelada — um esforço na fé para ver mais claramente o que os anjos bons vêem na “manhã” quando tudo aparece na “imagem perfeita” — forma a característica básica do dinamismo da vida Cristã. Significa isto, então, que o conhecimento da fé apenas pode fornecer instrução moral para o crente Cristão? Tradicionalmente, a Igreja dá uma resposta negativa a essa questão. A razão humana — a que está inerente a capacidade e o objeto próprio — não está abrogada pelo dom da fé. O ser humano, alumiado pela fé em Cristo continua a englobar o mundo com a sua capacidade racional de inteligência. E para que se possa compreender plenamente o esplendor da vida Cristã, é importante conhecer as razões porque o conhecimento humano autêntico ajuda a crença Cristã, especialmente em matérias que concernem a própria conduta da vida humana.

O fato de a razão preservar todo o seu vigor no contexto da vida cristã indica um papel genuíno para a filosofia dentro de uma compreensão cristã do mundo e da pessoa humana. Nas suas Gifford Lectures (1931-32), Étienne Gilson levantou a questão da filosofia Cristã: “Eu chamo Cristã a toda a filosofia que, apesar de manter as duas ordens formalmente distintas, considera a revelação Cristã um auxiliar indispensável para a razão”.8 Quer nós aceitemos ou não esta proposta especifica, Gilson deixa ao menos uma noção de como a crença Cristã pode considerar o esse rerum, o ser das coisas, de um ponto de vista formalmente distinto daquele da fé divina. E se essa procura pessoal por sabedoria se desenvolve num inquérito intelectual, nós podemos justamente chamar à pessoa que o pratica um filósofo Cristão. O conhecimento filosófico demanda esse rerum quod in propria natura habent, isto é, busca desvendar as naturezas próprias que as coisas têm nelas mesmas. Apesar da filosofia poder apenas conseguir um conhecimento limitado da natureza das coisas, o ensinamento filosófico ainda representa um esforço discursivo da parte da pessoa humana a fim de obter o que os anjos vêm ao escurecer, um “conhecimento da realidade criada enquanto existente na sua própria natureza.” A Igreja, cada vez mais, incentiva este esforço, e ela fá-lo baseada em São Paulo: “Com efeito, o que é invisível nele — o seu eterno poder e divindade — tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras” (Rm 1, 20).

O Cristão sabe que há limites para os “princípios e as causas” que os filósofos procuram. A “filosofia primordial” de Aristóteles, na realidade, convida-nos a contemplar a existência da mais alta verdade, embora os poços que alcançaram esta meta obtiveram apenas um oblíquo, inferencial conhecimento deste último princípio; isto é, um conhecimento da dependência dos seres criados de uma única, fonte que todas as pessoas chamam Deus.9 Devido a ter explorado extensivamente a diferença entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, São Tomás de Aquino oferece uma nota incaracteristicamente acabrunhada acerca daquelas pessoas que se apóiam apenas na razão para descobrir a verdade acerca da existência humana.

Porque Aristóteles viu que não há nenhum outro conhecimento humano nesta vida exceto através das ciências especulativas, ele sustentou que o homem não pode atingir uma completa, mas apenas uma relativa felicidade. Com isto fica claro o que o nobre gênio entre os filósofos experienciou no curso do seu tempo.10

Mas enquanto o Cristão escapa a esse triste estado, ele ou ela precisam experimentar alguma frustração dos filósofos. Como um teólogo aponta, “se o homem não estabelece um contato definitivo com Deus a um ponto que não é graça (no sentido teológico da palavra), então o Deus que se revela não se pode endereçar ao homem de modo significante. Daí, a solene declaração da Igreja que a existência de Deus pode ser naturalmente conhecida (Dz 3004, 3026) e que a alma humana é imortal (Dz 1440)”.11

Quando a Igreja defende a dignidade do chamado humano e restaura a esperança para aqueles desconsolados de qualquer destino mais alto, ela reconhece que a sua mensagem atingiu o mais profundo do coração humano. Ao mesmo tempo, por causa do sobrenatural senso de fé, o Povo de Deus recebe uma verdade que excede a capacidade do conhecimento humano, a verdade que os liberta (Cf. Jo 8, 32).

Retornemos à distinção que Santo Agostinho e São Tomás de Aquino fizeram entre o conhecimento matutino e vespertino dos anjos — o seu cognitio matutina e vespertina — a fim de ver que aplicação pode ter na ética teológica. O Aquinate explica a base para distinguir os dois tipos de conhecimento angélico da seguinte maneira: Para o ser das coisas deflui do Mundo como de um primeiro (ou primordial) princípio, e esta efusão termina no ser das coisas o que elas possuem em sua própria natureza.

São Tomás fala de um “defluir” que se espalha da fonte criativa de todas as coisas em Deus e termina na variedade de naturezas criadas que existem no mundo.12 A expressão da verdade divina assemelha-se a este fluir do ser. No ponto de vista do Aquinate, encontra-se a inesperada compleição da metafísica na revelação Cristã. Através da revelação divina, Deus comunica um conhecimento da realidade como ela existe no Seu Filho, mesmo apesar de os crentes ainda gozarem da capacidade de adquirir um conhecimento das coisas reais como elas existem nelas próprias.

O filósofo americano vai ainda tão longe de afirmar que “a teologia revelada promete uma visão dos princípios que o metafísico busca, e até mesmo deseja”.13

In: Lumen Veritatis, nº5.

Este texto foi publicado com a gentil permissão do corpo editorial da AMATECA series of Handbooks of Catholic Theology e foi traduzido pelo Pe. Colombo Pires E.P. da edição inglesa do Father Cessario’s Le Virtù (Milan 1994).

[Romanus Cessario, O.P. The Virtues, Or the Examined Life (London/New York: Continuum, 2002)].

1 De Sacramentis Bk 1, chap. 5, no. 19 (PL 176: 254).
2 Summa theologiae Ia q. 58, a. 6.
3 Ibidem.
4 Origen, Commentary on the Song of Songs, Bk 1, in Origen, The Song of Songs: Commentary, trans. R. P. Lawson (Ancient Christian Writers, vol. 26; Westminster, MD and London, 1957), p. 89.
5 Hans Urs von Balthasar, “Nine Theses in Christian Ethics”, in International Theological Commission: Texts and Documents 1969-1985, ed, Michael Sharkey (San Francisco, 1989), p. 108.
6 Gaudium et spes, nº. 22.
7 O Aquinate chega a especular se os anjos possuem essa claridade acerca das verdades da fé mesmo antes da sua confirmação na glória (ver Summa theologiae IIa-IIae q. 5, a. 1). Em qualquer caso, a distinção de Santo Agostinho refere-se ao que os anjos conhecem após a sua irreversível escolha de amor a Deus.
8 The Spirit of Medieval Philosophy (New York, 1940), p. 37.
9 Cf. In De Trinitate Bk 5, chap. 4.
10 Contra gentiles Bk III, c. 48.
11 Edward Schillebeeckx, Revelation and Theology, vol. 1 (New York, 1967), pp. 154, 155.
12 Porque ele afirma firmemente a total implicação da doutrina Cristã da criação ex nihilo, São Tomás reconhece que toda a natureza criada possui mas nunca extingue o seu próprio ato de ser. A grande contingência dos seres criados deriva da tênue afirmação que têm na existência, onde quer que a divina omnipotência e infinitude repousem na identidade da essência e existência que pertence unicamente a Deus. Por outras palavras, a explicação do Aquinate acerca do “defluir” permanece livre de emanacionismo ou outra conotação panteísta.

13 Mark D. Jordan, Ordering Wisdom:The Hierarchy of Philosophical Discourses in Aquinas (Notre Dame, IN, 1986), p. 178. Jordan explica mais tarde esta conexão: “Se há uma diferença metodológica entre metafísica e teologia, não haveria então uma segregação material delas nos textos (de São Tomás). O discurso da metafísica não está encerrado em algum ponto abaixo da teologia na hierarquia das ciências. O leitor passa imperceptivelmente de um discurso para outro. De fato, não é como se estivéssemos a passar ao lado da metafísica, mesmo se alguém sabe que a metafísica, enquanto ela mesma, não pode prover a necessidade de um estágio mais alto. Pelo contrário, encontra-se a inesperada compleição da metafísica na revelação” (p. 177).

O dever moral como raiz do direito

Diác. Jorge Filipe, EPnouvelle1

Em S. Tomás, o direito é uma ordenação ou exigência de perfeição do homem na convivência social. Essa ordenação dada, é eminente em maior ou menor grau segundo se trate de direitos naturais ou de direitos positivos, em maior ou menor dependência dos naturais[1]. Ao falar da lei natural ele descreve o seu efeito formal – o direito natural – como uma “inclinação natural ao acto e fim devidos”[2]. O aquinate faz corresponder a ordem das inclinações naturais à ordem dos preceitos da lei natural e dos consequentes deveres naturais. Essa ordenação ou inclinação constitutiva do direito dá-se em grau máximo na lei e direito naturais. Portanto, o acto justo, definidor da virtude da justiça é dar a cada um o que é seu, ou seja, aquilo que a sua perfeição exige ou necessita para o desenvolvimento da vida em sociedade, plasmados na lei natural em ordem à sociedade, e na lei humana de acordo com aquela[3].

Em termos de uma raiz metafísica dos direitos humanos, para Rodríguez o direito não é uma faculdade, nem uma realidade formalmente moral – honesta ou pecaminosa – mas uma ordenação que relaciona essencialmente o homem livre à sua perfeição sociopolítica, conforme a lei natural de convivência – no caso do direito natural – e as determinações da lei positiva – no caso do direito positivo. Nessa ordem de ideias, o direito natural é a potência ou faculdade volitiva do homem enquanto ordenada ou referida naturalmente àqueles bens que lhe são devidos ou seus, no seu comportamento sociopolítico, segundo os ditames de sindérese. Daí decorre o direito positivo que é a mesma faculdade volitiva do homem enquanto revestida de poder proveniente da autoridade – da potestas. Exercer correctamente a liberdade enquanto princípio e sujeito de acções e hábitos morais, é a autêntica vontade livre do homem[4]. Dentro dessa liberdade, o direito – ius subiectivum – constitui o fundamento da ordem da justiça, o justoiustum obiectivum -, concepção onde reside o fundamento último dos direitos humanos.

 


[1] Ibid.. p. 211. “Por isso é que o direito de um, uma vez que funda o correlativo dever do outro, está, por sua vez, fundado na exigência dada, obrigação ou necessidade mais ou menos natural de auto-aperfeiçoar-se com o exercício das suas funções, pelas quais é responsável perante Deus, autor da natureza individual e social do homem e das suas inclinações naturais”.

[2] AQUINO. S. Th. I-II. Q. 91. a.2. p. 531.

[3] RODRÍGUEZ, Estudios de antropología teológica, Op. Cit. p. 212-214. A razão pela qual há vários preceitos da lei natural é a mesma razão porque há vários bens e cada um desses bens deve ser desejado conforme o que o que a recta razão indicar. Agora, entre esses bens, há alguns a que o homem chega de forma imediata e outros que só são encontrados através de um processo lento de apreensão daquele bem, sendo que a inclinação natural é o prumo que indica a obrigação ou não de os buscar. Assim, conclui S. Tomás que como o bem tem natureza de fim e o mal do contrário, segue-se que tudo aquilo a que o homem se sente naturalmente inclinado, a razão apreende como uma coisa boa e que, portanto, deve ser procurado, sendo que o contrário o apreende como mau, devendo ser por isso evitado. Assim se entende que a ordem dos preceitos da lei natural seja correlata à ordem das inclinações naturais. (Cfr. AQUINO. S. Th. I-II. Q. 94. a.2. p. 562-563).

[4] Ibid., p. 217-218.

O ensinamento da Suma Teológica nos Seminários

Corentin Le Grand[1] [2]

III. Teologia especulativa e teologia positiva[3]

Tomas AquinoTodo o ensinamento teológico deve recorrer à autoridade e à razão, cabendo-lhe um papel preponderante em nossos Seminários. É necessário oferecer aos alunos o entendimento das expressões e das fórmulas dogmáticas enquanto noções que os preenchem, mostrando-lhes que não há nas verdades propostas contradição evidente, mas que se harmonizam entre si, além de interrogar os princípios para chegar às conclusões que eles encerram, e deduzir as verdades umas a partir das outras: eis o objeto dos primeiros ensinamentos teológico. Ora, São Tomás tratou de tudo isso melhor que ninguém.

Encontramos o Doutor Angélico nos decretos dos Padres reunidos nos Concílios de Lyon, Viena, Florença, Trento, e do Vaticano, de tal forma que aos textos conciliares foram cedidos os mesmos termos da Suma Teológica. Quem, mais que São Tomás, tirou conclusões das verdades reveladas? Nós lhe devemos o maior número de corolários que constituem o ensinamento comum dos catecismos, quando tratam da Encarnação e da Eucaristia. Nenhum Doutor sistematizou como ele: a Teologia não visa, com efeito, atingir seu objeto, senão sub ratione Dei;[4] donde a melhor síntese será aquela que parte da noção verdadeira e suprema de Deus, e não a que considera todas as coisas relacionadas a qualquer problema específico, como por exemplo, a liberdade humana. Uma sistematização perfeita deverá remontar a Deus considerado em Si mesmo, ou a um mistério do Ser supremo, e não a Deus enquanto bem e fim último do homem, porque a noção de ser é anterior à de bem. E a ideia que origina a Suma é, precisamente, Deus enquanto tal.[5]

Porém a questão quid sit[6] supõe a questão an sit,[7] e esta se resolve, em Teologia, por via de autoridade. Isto quer dizer que o professor dará importância à Teologia positiva e, ao ensinar São Tomás, explorará o magnífico tesouro que ele oferece a esse ponto de vista. A Suma, conforme escreve Freppel, é como um reservatório onde o fluxo da tradição se despejou por um instante antes de retomar seu curso pelos tempos. Sagrada Escritura, pregação apostólica, apologistas cristãos, Padres da Igreja, concílios, teólogos; São Tomás resume tudo, e que resumo! [8]

Ele é, entre os autores da Idade Média, aquele que melhor aplicou os resultados da Teologia positiva à Teologia escolástica.[9]

Como não poderia deixar de ser, a Suma nasce da Bíblia. Desta forma, menciona todos os livros do Novo Testamento, mas somente dois da Antiga Lei, e mesmo assim curtos e pouco assinaláveis: Abdias e Sofonias. Em contrapartida, partes notáveis poderiam ser reconstruídas graças às citações, e algumas quase integralmente, como no caso de certos capítulos do Gênesis.

O mestre sabe bem que o sentido literal é o verdadeiro, e normalmente o único eficaz. Muitas vezes ele recorre à Tradição para a explicação de um texto, quando o sentido não aparece claro, e quem contestará a legitimidade do procedimento? Por vezes, é verdade, a passagem escriturística não comprova nem representa senão uma semelhança de palavras com a tese a ser demonstrada, ou é mesmo — e isto é mais grave, quando se trata de textos dogmáticos — mal interpretada. Mas grande número de textos que se adaptam de modo imperfeito à verdade teológica é extraído do Sed contra. Por outro lado, não exijamos dos teólogos da Idade Média a precisão da crítica moderna: a exemplo dos Padres, uma longa interpretação os satisfaz muitas vezes. E, ademais, poderemos reprovar o Santo Doutor por considerar [apenas] a Vulgata? Isso não o impede de notar, em um ou outro lugar e de vez em quando, certas particularidades hebraicas, de apelar para outras versões, de precisar ou discutir algumas expressões gregas. Nossos próprios manuais de teologia ainda têm alguns progressos a fazer quanto a esse ponto. Pertencerá, aliás, ao professor, suprir as lacunas, corrigir os erros, completar remetendo à Suma — cuja riqueza escriturística conhecemos —, de rejuvenescer a explicação de São Tomás pela crítica textual, por uma interpretação conforme as leis da hermenêutica e os dados da filologia.

Entretanto, a autoridade que fundamenta a doutrina sagrada é representada também pela Tradição. São Tomás recorre a ela, e com tanta frequência que as citações transformam a Suma num repertório sistemático de Patrologia. Conforme Leão XIII:

 Os ensinamentos dos Padres jaziam por todos os lados como membros esparsos de um grande corpo. São Tomás os reuniu, fortificou uns com outros, classificou numa ordem admirável, e, por fim, os desenvolveu tão bem que sua obra permanece para a Igreja católica, verdadeiramente única, tanto em sua força tutelaria como em beleza.[10]

Os dois primeiros séculos da literatura eclesiástica são raros na Suma, sem dúvida porque foram escritos em grego, e esta produção era menos conhecida na Idade Média. Numerosas obras da época, perdidas no tempo, viram a luz do dia apenas mais tarde. Dos Padres apostólicos, apenas Clemente de Roma é nomeado, e o mesmo se diga quanto aos apócrifos. Nada consta dos Apologistas. São relativamente poucas as citações de obras posteriores ao século VIII, talvez porque três ou quatro séculos parecessem a São Tomás uma antiguidade insuficiente: A seus olhos, os nomes mais consideráveis, são: Rabano Mauro, Anselmo, Bernardo e, mais que todos, Pedro Lombardo, o Mestre das Sentenças, que ele frequentemente utiliza sem o citar, sobretudo para a documentação patrística. Não o utilizaria da mesma maneira Alexandre de Hales?

Que abundância, em relação ao período intermediário! Ele interroga o Oriente e o Ocidente, os Padres e os Doutores; os símbolos e as definições dos concílios. Inicialmente Orígenes, Tertuliano e Cipriano; depois, após muito tempo, o pseudo-Dionísio e João Damasceno, Boécio, Gregório Magno e Isidoro de Sevilha. E, entre uns e outros, os ilustres representantes do mais brilhante período literário da História da Igreja: Atanásio, o primeiro dos polemistas, os quatro Doutores da Igreja grega e os quatro da latina, entre os quais Agostinho, que ensinou a toda a Idade Média. O bispo de Hipona é para o Doutor Angélico a grande autoridade teológica, tal como Aristóteles representa a da razão.

Ele chega ao ponto de usar apócrifos. Mas o inconveniente não é grave se a doutrina spuria e das supposititia[11] representa de alguma forma a doutrina tradicional da Igreja. Ele fundamenta o Dogma apenas na grande e larga Tradição, e que discernimento na escolha de suas autoridades! Os testemunhos invocados numa questão são os dos especialistas; assim, a propósito da Graça, Agostinho intervém cinquenta e quatro vezes, contra cinco de Gregório, quatro de Dionísio, três de João Damasceno, duas de Ambrósio e Jerônimo, uma de Rabano Mauro e de Anselmo. Para mais, não será a admirável habilidade e a consciência do Doutor Angélico na utilização dos textos? De uma leitura, ele retém a frase ou a fórmula que exprime de maneira concentrada a substância do livro.

Esta imensa erudição será durante longo tempo uma das grandes fontes da patrística, e nós veremos os grandes teólogos, como Durand,[12] adotar e transcrever as soluções e os textos propostos por São Tomás.

Trata-se, portanto, de saber aproveitar esse tesouro.

Foi bem observado que “a interpretação não deve estar à frente da informação, mas, ao contrário, ela deve segui-la da mesma forma como o trabalho crítico não pode prejulgar a obra dogmática”[13] e que “a Teologia positiva torna-se, assim, a base necessária da Teologia especulativa”.[14] Com efeito, dar a conhecer é um fato contingente e deve se fundamentar por meio de provas. Daí não se deduz que, apenas com os documentos, possamos reconstituir a Teologia na sua íntegra. Gardeil o demonstrou excelentemente em seus estudos sobre “A Reforma da Teologia Católica”,[15] ao propor o método dito regressivo. A tradição é o gênero de informação que esteve à frente das primeiras elaborações teológicas. Com o tempo, este método não se modificará essencialmente, e ninguém teve a ideia de estabelecer a Teologia sobre o terreno da informação documentária e crítica.

Por isso, não se trata de fundamentar a Teologia sobre a informação documentária e crítica, pois o documento não é mais que um vestígio inadequado, sempre posterior, da tradição viva; ele não é toda a tradição, nem consequentemente toda a Teologia: esta é mais abarcativa que aquela.

Ele[16] não se contentará mais com uma aquisição preguiçosa, nem em aprender São Tomás de cor ou querer resolver tudo através das fórmulas da Suma.

A verdade está no meio: nem reconstrução ao estilo de novidade, nem um domínio que dispense trabalhar, mas laboriosa revisão. Ora, a revisão supõe que se parta de algo já conhecido.

Colocar-se-á então de mãos dadas a Teologia positiva e a Teologia escolástica insistindo: o procedimento será aquele do fides quaerens intellectum.[17]

É praticamente certo que essas condições se realizarão no estudo da Suma, propondo no início do tratado, da questão, do artigo, a doutrina a ser estabelecida; determinando seu valor teológico, explicando filosoficamente, e então, somente nessa altura, lançando o olhar sobre os textos citados por São Tomás. Colocaremos estes testemunhos em seu contexto, faremos a crítica textual e literária, esclarecê-los-emos por todos os meios possíveis e aproximá-los-emos de outras fórmulas do mesmo autor ou de autores diferentes, completando-os.

Por vezes, será suficiente estudar desta forma um só Padre, seja porque ele fala em nome de todos, como Agostinho na querela dos Rebatizados, seja porque representa a primeira autoridade para a questão debatida, como o mesmo Agostinho no tratado da Graça. Outras vezes, os textos propostos por São Tomás servirão como pedras angulares, às quais se juntarão outros testemunhos mais antigos ou recentes. Sempre se evitará justapor, sem explicação ou conexão, os textos tomados ao acaso, as fastidiosas lidainhas que não oferecem outro interesse que o de sobrecarregar inutilmente a memória do aluno… a menos, e isso é mais simples, que ele não fique sem os ler.

Entretanto, São Tomás não é somente rico pelo passado; ele é também, de alguma forma, um “grande do porvir”. Por que não comparar sua doutrina à dos teólogos posteriores, aos Cânones conciliares e às Atas eclesiásticas, que nele se inspiraram frequentemente, ou tomaram emprestada sua letra? Escrevia Pio X:

 A Suma comentada torna mais fácil a compreensão e a ilustração dos decretos solenes, da Igreja enquanto docente e dos atos que daí decorrem. Pois, após a bem-aventurada partida do Santo Doutor, nenhum Concílio houve na Igreja no qual não ele não se fizesse presente com as riquezas de sua doutrina.[18]

O professor tomista deverá, então, ao ensinar a Suma, mostrar como essa obra é precisamente o “resumo” da doutrina tradicional da Igreja, tomada sobre o claro pensamento dos Padres e exposta com a razão teológica, e como as decisões doutrinárias posteriores vivem das conclusões teológicas formuladas pelo Doutor Angélico. Assim, nós teremos uma pequena síntese do pensamento da Igreja, na qual a Suma Teológica terá um papel fundamental. É o caminho que unirá as Teologias positiva e escolástica numa só ciência, como na realidade o são, pois não parece possível separá-las. A doutrina da Igreja é uma só, sempre viva e vivificante.

Tradução do Prof. José Manuel Victorino de Andrade (IFAT)

 


[1] Tradução a partir do original francês. LE GRAND, Corentin. l’Enseignement de la Somme Théologique dans les Séminaires. Paris : Pierre Téqui, 1922. p. 35-43. (Première question : III Théologie spéculative et théologie positive).

[2] Provincial de Saint-Denis (Convento de Kermabeuzen-Quimper), Doutor em Teologia e Filosofia pela Academia de São Tomás e professor de Teologia Dogmática no Seminário de Quimper.

[3] Cf. O artigo de Coconnier, Positive ou spéculative, na Revue Thomiste, Janeiro 1903, p. 629-653, assim como os artigos de Legendre, sobre a Suma Teológica, na Revue des Facultés catholiques.

[4] [Nota do tradutor] “Omnia autem pertractantur in sacra doctrina sub ratione Dei: vel quia sunt ipse Deus; vel quia habent ordinem ad Deum, ut ad principium et finem” (S. Th. I, q. 1, a.7.). Na doutrina sagrada, tudo é tratado com referência a Deus: ou porque se trata do próprio Deus, ou porque está ordenado para Deus, como princípio e fim (tradução minha).

[5] R. P. GARRIGOU-LAGRANGE, De revelatione, I, p. 31.

[6] Quid sit Deus? O que é Deus? (tradução minha).

[7] An sit Deus? Acaso existe Deus? (tradução minha).

[8] Oeuvres, tome III, 3éme. Édition, p. 350.

[9] Cf. Os artigos de T. R. P. GARDEIL, La documentation de saint Thomas. Resposta a M. Turmel, na Revue Thomiste, Mai-Décembre 1904.

[10] Cf. Aeterni Patris. Na Encíclica encontra-se o seguinte texto: “Tomás coligiu suas doutrinas, como membros dispersos de um mesmo corpo; reuniu-as, classificou-as com admirável ordem, e de tal modo as enriqueceu, que tem sido considerado, com muita razão, como o próprio defensor e honra da Igreja” (n. 21).

[11] Doutrina “bastarda” ou ilegítima e das suposições ou conjeturas (tradução nossa).

[12] [Nota do tradutor] Guillaume Durand de Saint-Pourçain, dominicano francês, filósofo escolástico e teólogo, consultor de Clemente V e João XXII no Palácio Papal durante o exílio de Avignon e mais tarde bispo das Dioceses de Puy e Meaux. Conhecido como Doctor modernus, inaugurou o terceiro período da escolástica. Adotou muitas vezes o pensamento de São Tomás, embora também seja conhecido pelas críticas que lhe teceu. Os comentários às Sentenças de Pedro Lombardo constituem sua principal obra.

[13] Mignot, Lettres sur les études ecclésiastiques, p. 304.

[14] Idem.

[15] Revue Thomiste, Mars-Avril 1903, Idée d’une méthode régressive.

[16] [Nota do tradutor] O aluno.

[17] A Fé procurando o intelecto / o entendimento (tradução minha).

[18] Motu proprio Doctoris Angelici.