O homem é, por natureza e por vocação, um ser religioso

Pe Pedro EPPe. Alex Barbosa de Brito, EP

O homem é, por natureza e por vocação, um ser religioso. Porque provém de Deus e para ele caminha, o homem só vive uma vida plenamente humana se viver livremente sua relação com Deus.O homem é feito para viver em comunhão com Deus, no qual encontra sua felicidade: “Quando eu estiver inteiramente em Vós, nunca mais haverá dor e provação; repleta de Vós por inteiro, minha vida será verdadeira” (Santo Agost., Conf. 10,28,39). (CATECISMO, 2001: 26)

“O homem é, por natureza e por vocação, um ser religioso” (CATECISMO, 2001: 26). Por natureza porque tendo sede do infinito, nunca se satisfaz inteiramente com as criaturas que se lhe apresentam pelos sentidos, por serem estas relativas e finitas. O homem tem sede natural de algo absoluto e transcendente que o tome por inteiro, em todas as suas potências, e na própria essência mesma de sua alma de modo eterno e infinito.

Por vocação, pois se o mesmo Deus criou a humanidade com esse instinto que a estimula a procurá-lo é porque de fato deseja que o faça, visto ser próprio da Sabedoria Divina não fazer nada sem uma finalidade. Esse desejo do absoluto no homem constitui, portanto, um chamado posto em sua própria natureza, sendo um sinal infalível de sua vocação religiosa.

Levando em consideração o que foi dito acima, fica fácil compreendermos o que é afirmado no parágrafo seguinte: “O homem é feito para viver em comunhão com Deus, no qual encontra sua felicidade”. (CATECISMO, 2001: 26)

Eis o que demonstra a este respeito São Tomás:

A beatitude última e perfeita, não pode estar senão na visão da divina essência, para a evidência do que duas cousas se devem considerar. A primeira é que o homem não é perfeitamente feliz, enquanto lhe resta algo a desejar e a buscar. A segunda é que a perfeição é relativa à natureza do seu objecto. Ora, o objecto do intelecto é a qüididade, i.é, a essência da cousa, como diz Aristóteles. Por onde, a perfeição do intelecto esta na razão directa do seu conhecimento da essência de uma cousa. De um intelecto, pois, que conhece a essência de um efeito sem poder conhecer, por ele, o que a causa essencialmente é, não se diz que atinge a causa em sim mesma, embora possa, pelo efeito, saber se ela existe. Por onde, permanece naturalmente no homem o desejo de também saber o que é a causa, depois de conhecido o efeito e de sabido que tem causa. E tal desejo é o de admiração e provoca a indagação, como diz Aristóteles. […] Se, pois, o intelecto humano, conhecendo a essência de um efeito criado, somente souber que Deus existe, a sua perfeição ainda não atingiu a causa primeira. E assim, terá sua perfeição pela união com Deus como o objeto em que só consiste a beatitude do homem conforme já se disse. (AQUINO, I-II Q. 3, A. 8, REP, 1980: 1057 , grifo nosso)

Entretanto, embora Deus tenha criado a humanidade com tais anseios naturais, estes são insuficientes para produzir de um modo perfeito esta relação, pela incapacidade da natureza humana acrescida pelas conseqüências do pecado original. É o que afirma o Doutor Angélico a respeito da Doutrina Sagrada:

Para a salvação do homem, é necessária uma doutrina, conforme à revelação divina, além das filosóficas, pesquisadas pela razão humana. Porque, primeiramente o homem é por Deus ordenado a um fim que lhe excede a compreensão racional […]. Ora, o fim deve ser previamente conhecido pelos homens, que para ele têm de ordenar as intenções e atos. De sorte que, para a salvação do homem, foi preciso, por divina revelação, tornarem-se-lhe conhecidas certas verdades superiores à razão. Mas também, naquilo que de Deus pode ser investigado pela razão humana, foi necessário ser o homem instruído pela revelação divina. Porque a verdade sobre Deus, exarada pela razão, por poucos chegaria aos homens, depois de longo tempo e de mistura com muitos erros. ( AQUINO, I Q. 1, A1, REP, 1980: 2)

Faz-se necessária, portanto, uma intervenção da própria Divindade, revelando-se em seu Mistério Trinitário como afirma o Catecismo (2001: 27):

Mediante a razão natural, o homem pode conhecer a Deus com certeza a partir de suas obras. Mas existe outra ordem de conhecimento que o homem de modo algum pode atingir por suas próprias forças, a da Revelação divina (Cf. Conc. Vaticano I: DS 3015). Por uma decisão totalmente livre, Deus se revela e se doa ao homem. Fá-lo revelando seu mistério, seu projeto benevolente, que concebeu desde toda a eternidade em Cristo em prol de todos os homens. Revela plenamente seu projeto enviando seu Filho bem-amado, Nosso Senhor Jesus Cristo, e o Espírito Santo.

A respeito da finalidade dessa Revelação, eis o que acrescenta a mesma obra:

Deus, que “habita uma luz inacessível” (1Tm 6,16), quer comunicar sua própria vida divina aos homens, criados livremente por ele, para fazer deles, no seu Filho único, filhos adotivos (Cf. Ef 1,4-5). Ao revelar-se, Deus quer tornar os homens capazes de responder-lhe, de conhecê-lo e de amá-lo bem além do que seriam capazes por si mesmos. (CATECISMO, 2001: 28).

Como se observa no trecho acima, o fim da Revelação consiste no fato de o homem participar da própria vida divina, com os devidos socorros de Deus para torná-lo capaz de empresa tão além de suas forças. Essa vida divina faz com que a natureza humana torne-se intimamente unida a Deus, através da adoção filial, por meio de Jesus Cristo.

O motivo da Revelação é o amor de Deus: “Por amor, Deus revelou-se e doou-se ao homem”. (CATECISMO, 2001: 32).

Qual deve ser a resposta do homem a esse amor que Deus lhe manifesta pela Revelação? Encontrá-la-emos novamente no Catecismo (2001: 48): ”A resposta adequada a este convite é a fé. Pela fé, o homem submete completamente sua inteligência e sua vontade a Deus”.

Tal fé como fundamento da santidade traz como conseqüência o agir corretamente, como está no Catecismo (2001: 468): “Quem crê em Cristo torna-se Filho de Deus. Esta adoção filial o transforma, propiciando-lhe seguir o exemplo de Cristo. Ela torna-o capaz de agir corretamente e de praticar o bem”.

E o efeito dessa fé posta em obras de perfeição só pode ser o que vem em seguida, no mesmo trecho: “Em união com seu Salvador, o discípulo alcança a perfeição da caridade, a santidade. Amadurecida na graça, a vida moral desabrocha em vida eterna na glória do céu”. (CATECISMO, 2001: 468, grifo nosso)

Em decorrência do que foi exposto acima, torna-se evidente que a Revelação é uma conclamação à santidade pronunciada pelo próprio Deus, e tal conclamação se dirige à universalidade dos homens e mulheres:

Fique bem claro que todos os fiéis, qualquer que seja sua posição na Igreja ou na sociedade, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade. A santidade promove uma crescente humanização. Que todos pois se esforcem, na medida do dom de Cristo, para seguir seus passos, tornando-se conformes à sua imagem, obedecendo em tudo à vontade do Pai, consagrando-se de coração à glória de Deus e ao serviço do próximo. A história da Igreja mostra como a vida dos santos foi fecunda, manifestando abundantes frutos da santidade no povo de Deus. (LUMEN GENTIUM, 2007: 223, grifo nosso)

Em Cristo Jesus somos todos chamados a pertencer à Igreja e, pela graça de Deus, a alcançar a santidade. (LUMEN GENTIUM,2007: 231)

A finalidade para a qual a Igreja propõe alguns desses fiéis que alcançaram a plenitude da vida cristã e já receberam o prêmio da bem-aventurança eterna à veneração pública está no seguinte fato, expresso nos trechos abaixo:

Ao canonizar certos fiéis, isto é, ao proclamar solenemente que esses fiéis praticaram heroicamente as virtudes e viveram na fidelidade à graça de Deus, a Igreja reconhece o poder do Espírito de santidade que está em si e sustenta a esperança dos fiéis propondo-os como modelos e intercessores. (CATECISMO, 2001: 238, grifo nosso)

De fato, os que alcançaram a pátria e estão presentes ao Senhor, por ele, com ele e nele intercedem continuamente junto ao Pai. Fazem valer os méritos que obtiveram pelo único mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, por terem servido em tudo ao Senhor e completado em sua própria carne a paixão de Cristo, em favor do corpo, que é a Igreja. Sua fraternidade solícita é assim um precioso auxílio para a nossa fraqueza.[…]

A Igreja também sempre acreditou que os apóstolos e mártires de Cristo que, derramando seu sangue, deram o testemunho supremo de fé e de amor, estão particularmente unidos a nós. Por isso os venera com particular distinção, juntamente com a santa Virgem Maria e os santos anjos implorando piedosamente o auxílio de sua intercessão. A eles se unem imediatamente os que imitaram mais de perto a castidade e a pobreza de Cristo, seguidos de todos aqueles que se santificaram pela prática das virtudes cristãs e cujo carisma os recomenda á piedosa devoção e à imitação dos fiéis.

Ao contemplarmos a vida daqueles que seguiram fielmente a Cristo, somos estimulados a considerar sob uma nova luz a busca da cidade futura. Em meio às inúmeras veredas deste mundo, aprendemos o caminho certo para chegar à santidade, que consiste na perfeita união com Cristo, segundo o estado e a condição de cada um. Deus manifesta com clareza aos homens sua presença e sua face através da vida daqueles que, iguais a nós na humanidade, foram transformados de maneira mais perfeita segundo a imagem de Cristo. Por eles, Deus nos fala, dá-nos um sinal de seu reino e nos atrai para a verdade do Evangelho, por uma imensa quantidade de testemunhas. (LUMEN GENTIUM, pp. 233-234)

Entretanto, esta santidade que é em sua essência a mesma em todos aqueles que dela participam, manifesta formas acidentais diferentes na diversidade dos santos. Esta verdade vimo-la expressa no trecho supracitado do documento Lumen Gentium, no qual se percebe uma hierarquia e alteridade de santidades através da enumeração sintética das diversas classes de santos veneradas pela Igreja.

É o que encontramos em Saint-Laurent (1997: 47, grifo nosso):

Reina entre os santos uma admirável variedade. A virtude de um rei, como São Luís IX, não é igual à de um mendigo voluntário, como São Bento José Labre. A perfeição de um velho, como o grande Santo Antão do Deserto, não é a de um jovem, como Santo Estanislau Kostka. A santidade de um leigo, não é a de um sacerdote ou de um bispo. Cada um desses heróis sublimes da vida cristã tem a sua própria fisionomia sobrenatural.

Existe, portanto, além de uma vocação à santidade que se refere à generalidade dos homens, um chamado específico para cada um, um modo de ser santo diverso para cada família de almas e para cada ser humano em sua individualidade.

Para finalizarmos este tópico citaremos uma bela passagem sobre este assunto de Garrigou-Lagrange (1938: 28-29), na qual ele dá uma definição de santidade de um modo bastante claro e expressivo, fazendo-a uma conseqüência lógica da vivência profunda e radical da fé, da qual procede o amor a Deus e ao próximo:

Pode-se julgar a vida normal da santidade através de dois pontos de vista bem diferentes:

– Um, focalizando nossa natureza…

– Mas também tomando como referência os mistérios sobrenaturais da inabitação da Santíssima Trindade em nós, da Encarnação redentora e da Eucaristia.

Ora, esse último ponto de vista é o único que representa o juízo da sabedoria, per altissimam causam; o outro modo é pela ínfima causa […].

Se é verdade que a Santíssima Trindade habita em nós, que o Verbo se fez carne, que se oferece sacramentalmente por nós cada dia, na Missa e se dá a nós como alimento, se tudo isso é real, somente os santos que vivem dessa presença divina por conhecimento quase experimental freqüente, e por um amor sempre crescente, em meio às obscuridades e dificuldades da vida, somente esses santos estão inteiramente em ordem. E a vida de íntima união com Deus, longe de se apresentar, no que tem de essencial, como coisa extraordinária em si, aparece como a única normal.

Antes de chegarmos a essa união, somos como pessoas ainda meio adormecidas, que não vivem suficientemente do tesouro imenso que nos foi dado, e das graças sempre novas concedidas aos que querem seguir generosamente a Nosso Senhor.

Por santidade entendemos uma união íntima com Deus, isto é, uma grande perfeição de amor de Deus e do próximo, perfeição que permanece sempre na vida normal, pois o preceito do amor não tem limites.

Para precisar ainda mais, diríamos que a santidade é o prelúdio normal imediato da vida no Céu, prelúdio que é realizado ou na Terra, antes da morte, ou no Purgatório, e que supõe que a alma está perfeitamente purificada, capaz de receber a visão beatífica.

Também percebemos no extrato acima que a condição normal da natureza humana é a santidade, pois, se por ordem entendemos a reta disposição das coisas segundo sua natureza e de acordo com determinado fim, devemos inferir que a verdadeira ordem para uma pessoa humana está na união com Deus, sua causa e sua finalidade.

Só Deus sacia por completo todos os desejos do coração humano

L'AngelusPe. José Victorino de Andrade, EP

Dificilmente se encontrará alguém que não anseie e procure a felicidade. Esta demanda foi posta por Deus no coração de todos os homens que, à semelhança de Santo Agostinho, apenas descansam quando O encontram e n’Ele “repousam” (Confissões I, 1). O início do Catecismo da Igreja Católica começa exactamente com esta temática, lembrando que o homem é capaz de Deus. Entretanto, esta insaciabilidade leva não só ao desejo de uma realização pessoal, no âmbito da vocação específica de cada um, como também da sociedade doméstica à qual pertence, e mesmo da comunidade, na qual se insere e vive.

Ensina-nos o Compêndio de Doutrina Social da Igreja que “o bem comum da sociedade não é um fim isolado em si mesmo; ele tem valor somente em referência à obtenção dos fins últimos da pessoa e ao bem comum universal de toda a criação” (n. 170). Ou seja, a realização pessoal nunca se faz de um modo isolado, mas num contexto, numa sociedade, peregrinação nesta terra herdada para o Homem a dominar através do seu trabalho, e colher os frutos, obtendo o alimento com o suor do rosto (Gn 1, 28-29; 3, 19).

Assim, a felicidade terrena, imperfeita, não se torna “num mar de alegrias, de contínua beatitude, que, durará sempre” (Is 35, 10), pois falta-lhe a visão beatífica – totus sed non totaliter -, de Deus. Peregrinando pelo mundo, a felicidade será sempre relativa, mas essa busca incessante estará por trás de tudo aquilo que o homem opera.

É impossível que a criatura racional dê um só passo voluntário que não esteja encaminhado, de uma ou outra forma, para a sua própria felicidade, já que, […] todo agente racional obra por um fim, que coincide com um bem (aparente ou real) e, pelo mesmo, conduz à felicidade (ROYO MARÍN, Antonio. Teología Moral para Seglares. 7. ed. Madrid: BAC, 2007. Vol. I. p. 22).

Por isso, explica São Tomás de Aquino que todos desejam alcançar a beatitude, entretanto, diferem nos meios para obtê-la, procurando-a através de riquezas, prazeres, ou outras coisas. Porém, o fim, ainda que implicitamente, permanece o sumo bem para o qual tendem todos os homens (S. Th. I-II, q. 1. a. 7.). Ora, este é identificado pelo Pe. Royo Marín, OP como sendo o próprio Deus:

Não é nem pode ser outro que o próprio Deus, Bem infinito, que sacia por completo o apetite da criatura racional, sem que absolutamente nada possa desejar fora dele. É o Bem perfeito e absoluto, que exclui todo o mal e enche e satisfaz todos os desejos do coração humano (Op. cit.  p. 23).

Corrimãos da escada da vida

Mons. João S. Clá Dias, EP

A teologia moral de Santo Agostinho, tanto como a ética de Aristóteles, foram as fontes das doutrinasalianca escolásticas sobre a razão moral. Em De Libero Arbitrio, o bispo de Hipona afirmara que a moralidade exige da vontade humana sua conformidade com as prescrições da lei imutável e eterna, impressa na nossa mente. Tal lei, chamada de summa ratio (“razão suprema”), deve ser sempre obedecida. Por seus padrões é que são julgados os bons e os maus.[1]

Concorde com a tese agostiniana,[2] São Tomás procura definir meticulosamente a lei eterna acentuando de início que ela “não é senão a razão da sabedoria divina, na medida em que ela dirige todos os atos e movimentos”.[3] Essa lei — que se identifica com a Providência Divina — é, portanto, o princípio ordenador de todo o universo criado: “Toda a comunidade do universo é governada pela razão divina. E assim a própria razão do governo das coisas em Deus, como príncipe do universo, tem razão de lei”.[4] Assim, a suprema lei é o próprio Deus, sendo eterna como Ele é eterno; é a Sabedoria de Deus “que move todas as coisas para seu devido fim”.[5] E todas as coisas são avaliadas segundo a lei eterna, seguindo-se daí que dela todas participam de algum modo, e suas propensões para seus atos e fins próprios vêm da impressão em si dessa lei.

Nas questões 90 a 108 da Suma Teológica, parte I-II, São Tomás se estende genialmente sobre o significado e o alcance da lei eterna e sobre as outras leis que dela derivam: a lei natural, a lei divina e a lei humana.

Começando pela lei natural, ele a define como “a participação da lei eterna na criatura racional”, sendo proporcionada pela “luz do intelecto posta em nós por Deus, através da qual conhecemos o que devemos fazer e o que devemos evitar”,[6] por ser uma norma imperativa para dirigir os atos livres do homem.

Noutro lugar, São Tomás descreve a lei natural como os primeiros princípios da atividade moral humana, evidentes de si, não demonstráveis.[7]

Ninguém pode, com sinceridade e no uso normal de suas faculdades mentais,[8] negar a existência dessa lei natural, segundo a qual há obras boas e outras más por sua própria natureza. São Tomás afirma que todos os homens conhecem pelo menos os princípios comuns da lei natural.[9] Diz ele ainda que, “quanto aos princípios comuns da razão quer especulativa, quer prática, a verdade ou retidão é a mesma em todos, e igualmente conhecida”.[10] Quer dizer, não há quem não conheça a distinção entre bem e mal, e nossa obrigação de optar pelo primeiro e rejeitar o segundo se apresenta à inteligência com força de lei.

Também a lei humana positiva tem a obrigação de se conformar com a Sabedoria de Deus. É a ela que o Aquinate se refere quando afirma que, como “o fim último da vida humana é a felicidade ou bem-aventurança […] é necessário que a lei vise maximamente à ordem que é para a bem-aventurança”.[11] A lei temporal não pode colidir com a lei eterna, mas deve secundá-la.

A lei divina — consolidada nos Dez Mandamentos — mostra ao homem o caminho a seguir para praticar o bem e atingir seu fim. São Tomás se pergunta se, havendo já a lei natural e as leis humanas, é preciso também haver uma lei divina positiva. Ele inicia sua resposta lembrando que a bem-aventurança eterna, para a qual o homem foi criado, “excede a proporção da potência natural humana”. Assim faz-se necessário que, “acima da lei natural e humana, fosse dirigido também a seu fim pela lei divinamente dada”.[12]

Todas essas leis são como que corrimãos numa longa e difícil trajetória, numa escada colocada sobre um abismo. Pode ser que esses corrimãos pareçam limitações absurdas à liberdade. Na realidade, são anteparos que Deus nos concedeu para proteger a verdadeira liberdade e para nos auxiliar na ascensão até Ele.

Como estão equivocadas certas correntes de educação que procuram instilar na criança e no jovem a ideia de que os princípios morais são frios e cruéis! O certo, afirmam elas, seria optar por uma moral “amiga”, relativa, dependente apenas das circunstâncias, dos casos particulares, e esquecer tais princípios.

É supérfluo realçar a nocividade de tal doutrina para o tesouro acumulado a partir do primeiro olhar sobre o ser. E que resultados funestos trazem para a sociedade como um todo. Basta olharmos para o que vai se passando à nossa volta…


[1] De Libero Arbitrio, I, 1.6.15.48-49; 51: “Illa lex quae summa ratio nominatur cui semper obtemperandum est et per quam mali miseram, boni beatam vitam merentur […], potestne cuipiam intellegenti non incommutabilis aeternaque videri? An potest aliquando iniustum esse, ut mali miseri, boni autem beati sint? […] Ut igitur breviter aeternae legis notionem, quae impressa nobis est, quantum valeo, verbis explicem, ea est, qua iustum est, ut omnia sint ordinatissima”.

[2] Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 1: “Sed contra est quod Augustinus dicit quod lex aeterna est summa ratio, cui semper obtemperandum est”.

[3] S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Nihil aliud est quam ratio divinae sapientiae, secundum quod est directiva omnium actuum et motionum”.

[4] S. Th. I-II, q. 91, a. 1: “Tota communitas universi gubernatur ratione divina. Et ideo ipsa gubernationis rerum in Deo sicut in principe universitatis existens, legis habet rationem”.

[5] S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Moventis omnia ad debitum finem”.

[6] Collationes in decem praeceptis, Proœmium: “Lex naturae […] nihil aliud est nisi lumen intellectus insitum nobis a Deo, per quod cognoscimus quid agendum et quid vitandum”.

[7] Cf. S. Th. I-II, q. 94, a. 2. “Sunt quaedam principia per se nota”.

[8] “Alguma pessoa dotada de inteligência”, dizia Santo Agostinho (op. cit. 1.6.15.48).

[9] Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 2.

[10] S. Th. I-II, q. 94, a. 4. “Quantum ad communia principia rationis sive speculativae sive practicae, est eadem veritas seu rectitudo apud omnes, et aequaliter nota”.

[11] S. Th. I-II, q. 90, a. 2. “Oportet quod lex maxime respiciat ordinem qui est in beatitudinem”.

[12] S. Th. I-II, q. 91, a. 4. “Excedit proportionem naturalis facultatis humanae. Ut supra legem naturalem et humanam, dirigeretur etiam ad suum finem lege divinitus data”.

Que é o homem, e para que serve? (Eclo 18, 8)

Diác. José Victorino de Andrade, EP

O que é o ser humano? Esta é uma pergunta que ocupa o pensamento dos filósofos há séculos. Ela semprepensadores importou, pois toca diretamente em nós, a nossa origem, o nosso destino, em suma: o nosso ser e sua complexidade, questão desde sempre particularmente difícil. Sócrates pretendia conhecer o homem a partir de si mesmo, Platão e Aristóteles arriscaram algumas definições, de certa forma incompletas. Diógenes procurava-o ironicamente, de lamparina na mão, mesmo à luz do dia, mostrando-se ávido de um encontro que o esclarecesse verdadeiramente.[1] O livro do Eclesiástico transmite-nos esta demanda, mesmo entre o Povo Eleito: “Que é o homem, e para que serve?” (Eclo 18, 8).

Apesar da Antropologia Filosófica se ter firmado apenas no início do século passado, numerosos foram os aportes que os pensadores cristãos propuseram, desde a Patrística aos nossos dias, partindo a maior parte das vezes da Revelação. A linguagem filosófica, enquanto ferramenta para suas doutrinas, nunca esteve excluída. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino fizeram-no de modo muito especial. Mais tarde, outros filósofos como Descartes, Kant e Heiddegger esforçar-se-iam por dar uma visão que acabou por marcar, de certa forma, a pós-modernidade.

Entretanto, em nossos dias, a questão continua em aberto. Talvez pela insaciabilidade humana, característica que tem marcado o homem de todos os tempos, e com a presente crise metafísica, quanto mais ele pensa ter encontrado uma resposta, mais esta lhe parece levar a contradições, a novas perguntas, e a perder-se em um emaranhado de suposições. Conforme a Gaudium et Spes, “a natureza espiritual da pessoa humana encontra e deve encontrar a sua perfeição na Sabedoria, que suavemente atrai o espírito do homem à busca e ao amor da verdade e do bem, e graças à qual ele é levado por meio das coisas visíveis até as invisíveis” (n. 15).

Atenta e maternal, a Igreja continua a apontar para o absoluto do qual dimana o relativo, para um criador e um fim último, para o invisível que se fez visível, para uma felicidade possível, não plena, mas de peregrinos a caminho de uma “pátria melhor, isto é, a pátria celeste” (Hb 11, 16). Ensina-nos, enfim, que há uma Razão por detrás de tudo, ao contrário da irrisão e do acaso.[2]

Para caracterizar o homem com precisão, Mondin sugere uma análise da própria vida humana, a fim de se chegar com autenticidade a uma compreensão do seu ser, pois uma característica do homo vivens é “uma vida consciente de si mesma”. Entretanto, “seu verdadeiro significado pode ser colhido apenas descobrindo a finalidade para a qual é orientada”, portanto, a “finalidade última da vida humana”.[3] Ora, São Tomás de Aquino pensou o homem, neste âmbito, talvez como nenhum outro. Na Suma Teológica, não só situa o homem no vasto conjunto do Universo, como trata da relação de Deus com a criação: os Anjos enquanto criaturas puramente espirituais; o Mundo, criatura puramente corporal e, finalmente, o homem, ao mesmo tempo espiritual e corporal, criatura singular que reúne em si a totalidade do universo.[4]

Por que abordar este tema do ponto de vista do Aquinense? Não haveria em outras culturas e, sobretudo, em nosso tempo, autores de maior discernimento e precisão ao pensar o homem inserido no mundo em que vivemos? Afinal, não terá o homem evoluído? Será válida uma consideração com mais de 500 anos? Paulo VI, dirigindo-se ao Pe. Aniceto Fernandez — Mestre Geral da Ordem dos Dominicanos, em 1964 — parece responder-nos a estas questões:

Nos trabalhos de São Tomás de Aquino podem ser encontrados um compêndio das verdades universais e fundamentais, expressas de forma mais clara e persuasiva. Por esta razão, seu ensinamento constitui um tesouro de inestimável valor, não apenas para a Ordem Religiosa na qual ele é um grande luminar, mas para toda a Igreja, e para todas as mentes sedentas de verdade.

Não é sem razão que ele tem sido apelidado como «o homem de todos os tempos». O seu conhecimento filosófico, o qual reflete as essências das coisas realmente existentes na sua certa e imutável verdade, nem é medieval, nem próprio a alguma nação particular; transcende o tempo e o espaço, e não é menos válido para toda a humanidade em nosso tempo.[5]


[1] Reale parte deste episódio para interpretar a procura do filósofo: Diógenes não visava um homem comum e qualquer, até porque se locomovia nas ruas movimentadas de Atenas, mas sim aquele que vivesse conforme a “sua mais autêntica essência”, e em conformidade com “sua natureza mais genuina”. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2006. Vol. III. p. 24.

[2] Quanto a esta temática, o então Cardeal Ratzinger deixou-nos vários aportes em numerosas conferências. Ver, por exemplo, alguns de seus pronunciamentos, como as versões originais em alemão: Wer ist das eigentlich – Gott?, hgrs. Von H.J. Schulz, München 1969, S.240f. Também em Dogma und Verkündigung, 4. Aufl. Donauwörth, S. 152-156. Em português ver, por exemplo, Fé Verdade Tolerância: O Cristianismo e as grandes religiões do Mundo. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2009. p. 164-166. Também um compêndio de várias alocuções sobre este assunto no Prefácio da obra Criação e Evolução: Uma Jornada com o Papa Bento XVI em Castel Gandolfo. Lisboa: UCE, 2007.

[3] Para estas e outras considerações importantes do autor, recomendamos a leitura de MONDIN. Battista. O homem. Quem é ele?: Elementos de Antropologia Filosófica. 13. ed. São Paulo: Paulus, 2008. As citações presentes no texto estão nas páginas 60 e 61.

[4] Cf. TORREL, Jean-Pierre. Santo Tomás de Aquino: Mestre Espiritual. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2008. p. 304-305. Aconselhamos a leitura do capítulo que nestas páginas se inicia, intitulado: “O homem em discussão”.

[5] Indeed, in the works of Saint Thomas can be found a compendium of the universal and fundamental truths, expressed in the clearest and most persuasive form. Por this reason, his teaching constitutes a treasure of inestimable value, not only for the Religious Order of which he is the greatest luminary, but for the entire Church, and for all minds thirsting for truth. Not without reason has he been hailed as «the man of every hour». His philosophical knowledge, which reflects the essences of really existing things in their certain and unchanging truth, is neither medieval nor proper to any particular nation; it transcends time and space, and is no less valid for all humanity in our day. PAULO VI. Feast of Saint Thomas Aquinas, March 7, 1964. AAS 56 [1964] p. 303-304