O múnus de santificar da Igreja no Código de Direito Canônico

Pe. Carlos Adriano, EPbem-aventuranca

Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu e confiou a Igreja os sacramentos, por meio dos quais Ele nos dispensa a sua vida divina. A graça que se recebe nos sacramentos confere ao homem uma participação nesta vida:

1996. A nossa justificação vem da graça de Deus. A graça é o favor, o socorro gratuito que Deus nos dá, a fim de respondermos ao seu chamamento para nos tornarmos filhos de Deus filhos adotivos participantes da natureza divina e da vida eterna. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2000, p.526 – grifo nosso).

E, tendo Nosso Senhor confiado a administração desses sinais sensíveis à Igreja, esta é chamada a transmitir essa graça, enquanto continuadora da tarefa santificante de Cristo:

Cristo confiou os sacramentos à sua Igreja. Eles são ‘da Igreja’ num duplo sentido: enquanto ação da Igreja, que é sacramento da ação de Cristo, e enquanto existem ‘para ela’, ou seja, enquanto edificam a Igreja. (COMPÊNDIO DO CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2005, p.80).

A maneira como a Igreja transmite essa graça esta claramente expressa no Cânon 834 do Código de Direito Canônico (2008, p. 397):

§ 1. A igreja desempenha seu múnus de santificar, de modo especial por meio da sagrada Liturgia, que é tida como exercício do sacerdócio de Jesus Cristo, na qual, por meio de sinais sensíveis, é significada e, segundo o modo próprio de cada um, é realizada a santificação dos homens, e é exercido plenamente pelo Corpo místico de Jesus Cristo, isto é, pela Cabeça e pelos membros, o culto público de Deus.

A redação deste cânon deixa claro os seguintes princípios:

Como se poderá observar mais adiante, boa parte das normas contidas entre os cânones introdutórios ao Livro IV, tem como fundamento as afirmações acima enunciadas. É o que se desprende com clareza já dos cânones posteriores.

O § 2º do mesmo cânon 834, se vale do enunciado de que todo culto litúrgico é sempre uma ação da Igreja, afirmando que “se realiza quando é exercido em nome da Igreja por pessoas legitimamente a isso destinadas e por atos aprovados pela autoridade da Igreja” (CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, 2008, p. 397). Por este motivo, ninguém pode atribuir-se a si próprio o poder de representar a Igreja na sua administração, estando estabelecido no cânon 835 e parágrafos seguintes as pessoas legitimamente a isso destinadas: Em síntese, exercem o múnus de santificar primeiramente os Bispos, os presbíteros sob sua autoridade, e os diáconos participam da celebração do culto segundo as prescrições do direito. Os demais fiéis também têm a parte que lhes é própria, através da participação ativa nas celebrações, e os pais na vida conjugal.

O “Codigo de Derecho Canónico” da BAC (MANZANARES, 2005, p. 455), traz um interessante comentário a propósito deste cânon:

En sus cuatro §§, este canon  muestra cómo toda la Iglesia, es decir, el pueblo santo congregado y ordenado bajo la dirección de los Obispos, es sujeto de la función santificadora, aunque no todos os miembros tengan la misma parte en su realización. Es una aplicación de c. 204 § 1; y de la afirmada igualdad en cuanto a la dignidad de acción, del c. 208.

O Código ainda sublinha a importância de se avivar e esclarecer o culto cristão, especialmente através do ministério da palavra (cân. 836).

Outro ponto a se destacar é a afirmação de que ações litúrgicas não são privadas, portanto, por sua própria natureza implicam a celebração comum, devendo ser celebradas, onde for possível, com a presença e participação ativa dos fiéis, conforme estabelece o cânon 837 §§ 1º e 2º.

As associações privadas de fiéis

Mons. João Clá Dias, EPassociacao

O Código atual traz a auspiciosa novidade das associações privadas de fiéis. Os cânones 298 a 329 tratam das associações de fiéis, dividindo os textos legislativos em quatro capítulos. No primeiro, expõe as “normas comuns” (cân. 298-311); no segundo, prescreve normas sobre associações públicas de fiéis (cân. 312-320); o terceiro (cân. 321-326) trata das associações privadas de fiéis; por fim, no quarto (cân. 327-329), introduz algumas “normas especiais para as associações de leigos”.

As associações de fiéis — sejam elas integradas por clérigos e leigos, ou só por clérigos, ou só por leigos — são distintas dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica. Sua finalidade é, mediante o esforço em conjunto de seus membros, fomentar uma vida mais perfeita, promover o culto público, ensinar a doutrina cristã, além de outras obras de apostolado, isto é, iniciativas de evangelização, exercício de obras de piedade e caridade, e animação da ordem temporal com o espírito cristão (cf. cân. 298). As associações privadas não podem, obviamente, incluir entre suas finalidades o exercício de atividades que, por sua natureza, são exclusivas da autoridade eclesiástica (cf. cân. 301). Essa restrição, porém, não empana sua natureza eclesial.[1]

O cânone 215 garante a todos os fiéis o direito de fundar e dirigir associações. O cânone 299, § 1, reitera esse direito, especificando: “Por acordo privado, os fiéis têm o direito de constituir associações, para obtenção dos fins mencionados no cân. 298, § 1, salva a prescrição do cân. 301, § 1”. E acrescenta no § 2: “Essas associações, mesmo se louvadas ou recomendadas pela autoridade eclesiástica, denominam-se privadas”. E o cânone 321 garante aos fiéis o direito de dirigir e governar as associações privadas, nos termos de seus estatutos.

Em seu Dicionário de Direito Canônico, Salvador (1997, p. 65) designa as finalidades das associações como sendo “as mesmas da missão de Cristo e da Igreja”, da qual todo fiel participa em virtude do Batismo. Têm elas, portanto, fins religiosos.

Chiapetta (1994, p. 67) corrobora essa opinião, afirmando que do cân. 298, § 1 resulta claramente que as associações de fiéis “tendem a fins religiosos, correspondentes ou conexos com a missão da Igreja”. E acrescenta: “As associações cujos objetivos são profanos e temporais (econômicos, sindicais, políticos, profissionais, culturais etc.) não se enquadram nesse dispositivo e, como tais, são estranhas ao ordenamento canônico. Delas se ocupa a legislação civil”.

Em razão do ato fundacional algumas distinções e características se apresentam. Assim, dependendo de quem promova e efetive a fundação, a associação, esta será pública, se foi erigida por a autoridade eclesiástica competente, e privada, se por iniciativa dos fiéis.

Ainda com relação à iniciativa fundacional, cabe destacar que, segundo o cânone 301, § 1, somente a “autoridade eclesiástica competente” pode erigir associações que tenham por objetivo promover o culto público, ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou alguma outra finalidade cuja obtenção esteja reservada, por sua natureza, à autoridade eclesiástica.

Outro tipo de associação é o caracterizado pelo cânone 302, o qual denomina “clericais” aquelas que satisfazem três condições: “São dirigidas por clérigos, assumem o exercício de ordem sagrada e são reconhecidas como tais pela autoridade competente”. Segundo Ferrer Ortiz (1991, p. 210), essas associações são sempre públicas e o termo “clerical” refere-se não só aos clérigos que as dirigem e ao fato de o ato constitutivo emanar da autoridade eclesiástica, mas também “a uma modalidade de exercício do ministério sagrado por seus membros”.[2]

Ghirlanda (2007, p. 269) chega a uma definição sintética de associação privada nos seguintes termos:

Associação privada é a que, surgida por iniciativa dos fiéis, leigos, clérigos ou religiosos, governada por eles segundo os estatutos próprios, estando sempre em relação com a autoridade eclesiástica que pode também erigi-la em pessoa jurídica privada, se propõe finalidades religiosas ou caritativas, exceto aquelas cuja obtenção é reservada somente à autoridade eclesiástica. A natureza privada da associação não diminui de nenhum modo sua eclesialidade.

O cânone 304 prescreve que todas as associações de fiéis — públicas ou privadas — precisam ter seus estatutos nos quais se determinem sua finalidade, sede, governo, regras para admissão de sócios etc. Os estatutos das associações privadas devem ter pelo menos o reconhecimento, recognitio, da autoridade eclesiástica.

Sem embargo, autores como Chiapetta entendem como legítima a existência de entidades privadas com fins religiosos, sem o reconhecimento dos estatutos. Navarro (2002, p. 431-432) opina no mesmo sentido, mencionando diversos doutrinadores, e afirma ser essa a posição adotada por “algumas Conferências Episcopais”. Entre estas, a Conferência Episcopal Italiana e a Francesa, as quais tratam do assunto em documentos por ele colecionados.

Não só isso: segundo ele, as referidas Conferências Episcopais tomam em consideração até associações que não têm estatutos, ou nem cheguem a ter propriamente estrutura e organização, mas cuja existência seria legítima, em decorrência dos direitos de associação e de reunião.

Consignemos também que as associações privadas podem possuir ou não personalidade jurídica na Igreja. Esta se adquire por um decreto formal da autoridade eclesiástica competente, à qual compete aprovar previamente os estatutos. Em síntese, pode-se dizer que existem três espécies de associações privadas distintas na atual legislação canônica:

– Associações de fato, baseadas exclusivamente na livre vontade dos seus componentes e sem qualquer reconhecimento, aprovação ou ereção por parte da autoridade eclesiástica.

– Associações com estatutos apenas reconhecidos, isto é, sem um decreto formal de aprovação.

– Associações com personalidade jurídica e estatutos aprovados, por meio de decreto formal da autoridade competente.

No que se refere aos efeitos do reconhecimento, só podem ser sujeitos de obrigações e de direitos as associações dotadas de personalidade jurídica (cf. cân. 310).

CLÁ DIAS, João. Os novos movimentos: Quando espírito e jurisprudência se encontram…

in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 6, jan-mar 2009. p. 24-26.


[1] Fuentes (2002, p. 514) trata de uma delicada distinção entre as associações civis, que tendam a fins “que afetam mais ou menos diretamente à Igreja”, e as associações eclesiais. Para não alongar demasiadamente o presente estudo e desviar o foco que são propriamente as associações privadas de fiéis, deixamos de tratar do interessante assunto aqui e recomendamos a quem nele deseje se aprofundar que consulte o próprio texto de Fuentes.

[2] Diz o autor: “[O Código de Direito Canônico] denomina clericais àquelas associações de fiéis que estão sob a direção de clérigos, fazem seu o exercício da ordem sagrada e são reconhecidas como tais pela autoridade competente (cân. 302). Emprega o termo clerical em sentido técnico-jurídico, fazendo referência não só a quem dirige a associação e ao ato constitutivo da mesma pela autoridade eclesiástica — que lhe confere o caráter de pública — senão também a uma modalidade no exercício do ministério sagrado por parte de seus membros. Por esta razão, uma associação formada exclusivamente por clérigos e destinada a fomentar entre seus sócios uma forma concreta de espiritualidade sacerdotal, no exercício do ministério e sob a dependência do próprio Ordinário, não terá a condição de clerical, será uma associação comum de fiéis e poderá ser tanto pública como privada (Gutiérrez)” (FERRER ORTIZ, 1991, p. 210).