Vinícius Sabino Gomes
“Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados”.[1] Na Encíclica Immortale Dei, o Papa Leão XIII ensina que houve uma Civilização Cristã cuja concreta expressão histórica se deu na Cristandade Medieval, e demonstra de modo muito apropriado a influência que a Igreja exerceu sobre a Idade Média. Pois o espírito cristão penetrou no próprio âmago da sociedade de então, produzindo uma “cosmovisão cristã”.* Impelida pela ação evangelizadora da Igreja, a sociedade medieval foi tomando um tônus profundamente cristão.[2] Isso transpareceu em todas as suas camadas sociais, desde os mais ricos e poderosos até os mais pobres e humildes; todas as atividades humanas estavam pervadidas pelo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, de forma a resultar na Cristandade Medieval. “Todos os batizados constituem já sobre a Terra uma entidade viva, fraternal, harmonizada pelos mesmos princípios e unida no mesmo esforço. E essa entidade tem desde então um nome que a designa: chama-se a Cristandade”.[3]
Um dos maiores contributos dessa civilização para o mundo foram as Universidades, grandes centros de ensino superior, onde, à sombra da filosofia escolástica, e superintendidas por ela, progrediam todas as ciências. Ora, quando Étienne Gilson foi convidado para o desafio de definir o espírito da filosofia medieval, constatou um mesmo espírito criador das catedrais góticas e da filosofia de seu tempo, a escolástica:
O espírito da filosofia medieval, tal como entendemos aqui, é portanto o espírito cristão, que penetra a tradição grega, trabalhando-a por dentro e fazendo-a produzir uma visão do mundo, uma Weltanschauung* especificamente cristã. Foram necessários os templos gregos e as basílicas romanas para que houvesse catedrais [góticas]; no entanto, qualquer que seja a dívida dos nossos arquitetos medievais para com seus predecessores, eles se distinguem destes, e o espírito novo que lhes possibilitou criar talvez seja o mesmo que aquele em que se inspiraram, com eles, os filósofos [escolásticos] do seu tempo.[4]
É, portanto, a ideia de uma cosmovisão cristã que explica a unidade de espírito que caracterizou a civilização medieval, e daí a razão de existir uma íntima relação entre a escolástica e as catedrais góticas. Pois se a plena aceitação da concepção católica da vida gerou, não somente um autêntico e inconfundível estilo de vida, mas também uma filosofia e um estilo arquitetônico próprio, é compreensível que tenha havido uma relação entre ambos, o que, aliás, é tomado com naturalidade por inúmeros estudiosos, como se percebe neste trecho de Maria Gozzoli:
Os ensinamentos de uma filosofia ― a escolástica ― que enquadrava harmoniosamente todo o saber do tempo e afirmava a possibilidade de ascender a Deus não só pela fé, como pela razão. Chegava-se a Deus por um esforço do pensamento, complexo mas requintado, rigidamente formal mas rico de subtilezas. Esses mesmos conceitos que, em arquitetura, inspiraram as catedrais góticas, a sua ascensão para Deus, através de construções complexas mas requintadas, formalmente rigorosas, mas de igual modo ricas de pormenores. A enfática verticalidade de tais edificações revela plenamente as transformações do gosto, do pensamento filosófico, dos ideais estéticos, traduzidas, no plano arquitetônico, por uma renovação das técnicas mediante a introdução de uma série de elementos originais típicos do estilo gótico: a abóbada sustentada por uma cruzaria ogival, a utilização do arco quebrado em vez do arco de volta perfeita (ou de volta inteira, arco românico), o emprego do arcobotante e dos contrafortes.[5]
Deste modo, pode-se afirmar que o pensamento escolástico se vê perfeitamente expresso na arquitetura das catedrais góticas.
in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 10, Jan-Mar 2010. p. 86-87.
[1] LEÃO XIII. Encíclica Immortale Dei. 1 de Novembro de 1885. [Em linha]. <Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/ documents /hf_l-xiii_enc_01111885_immortale-dei_po.html> Acesso: 10 Out. 2008.
* Por cosmovisão cristã entende-se a visão do universo do homem medieval, que consistia na continuidade de uma mentalidade cristã, de uma sabedoria cristã e da fé cristã, que foi se configurando lenta mas vigorosamente com o desenvolvimento que a Igreja Católica teve, desde de seus primórdios no caos da era bárbara, até atingir o seu auge na Alta Idade Média.
[2] ROPS, Op. cit., p. 42.
[3] Ibidem, p. 43.
* Weltanschauung é uma palavra de origem alemã que significa literalmente visão do mundo ou cosmovisão. Ela é adotada regularmente em diversas línguas com este significado. Pode ser usada para descrever a maneira como uma pessoa vê o mundo, a imagem que ela faz da vida e dos homens.
[4] GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 2.
[5] GOZZOLI, Maria. Como reconhecer a arte gótica. Lisboa: 70, 1978. p. 8-9.