O Sacerdócio em São Tomás

Pe. Mário Sérgio Sperche, EP

Para São Tomás, o termo sacerdote proveniente de sacra dans, “o que dá o sagrado”, define a essência presbiteral, por se coadunar com suas duas funções principais: “primeiro, tem por missão comunicar ao povo as coisas sagradas que recebe de Deus, portanto, exercer a função de oráculo transmitindo a Palavra de Deus; segundo, sua própria pessoa está dedicada “à mais sagrada de todas as coisas, o culto divino”. O

 Doutor Angélico considera-o como “instrumento da misericórdia e da justiça divina, às vezes, das leis humanas”. Onde se entrevê o seu aspecto real. E acrescenta: “Os sacerdotes são os embaixadores e intérpretes para todas as instruções doutrinárias e morais, que apraz a Deus comunicar aos homens”[1]. Dir-se-ia que o sacerdote em seus três ministérios, está fundamentado embora não explicitamente nesta afirmação tomista.

O sacerdote age in persona Christi capitis, pois, como foi dito, no novo Testamento existe apenas um sacerdote: Jesus Cristo, o agente principal dos sacramentos e do culto cristão. Daí procede toda a dignidade sacerdotal. Dir-se-ia que o sacerdote empresta sua laringe para Cristo perdoar os pecados e consagrar a hóstia na Missa, supremo ato sacrifical[2].

O Ministro principal, o Ministro de Excelência da Igreja é o próprio Cristo. Jesus Cristo é o único sacerdote, e, portanto, todas as cerimônias do Antigo Testamento cederam lugar aos ritos instituídos e operados por Ele através do ministro secundário[3].

Em São Tomás a mediação se dá não somente no sacrifício, mas também na Palavra como “oráculo transmitindo a Palavra de Deus”, ou ainda como “embaixadores e intérpretes” das leis divinas. Esta é a essência do sacerdócio católico. Hugo Rahner recorda que esta “mediação”, que é “essência do sacerdócio”, se ordena tanto ao culto quanto à pregação[4]. Frei Antonio Royo Marín ressalta que estas funções estão fundamentadas no sacramento da ordem, pois, “o presbiterado constitui um verdadeiro sacramento, que imprime na alma um caráter indelével”[5].


[1] S. Th. 3, q.22, a.1, a.2 In: AQUINAS.

[2] S. Th. 3, q.82, a. 1. Resp.

[3] S. Th. 3, q. 71, a. 4.

[4] RAHNER, Teología dela pregación. Buenos Aires: Plantin, 1950, p. 225.

[5] ROYO MARÍN, Antonio. Teología moral para seglares.  Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1994, p. 528.

A eficácia do ministério sacerdotal

Mons. João S. Clá Dias, EP

A santidade de vida do sacerdote, como exemplo para os fiéis de Cristo, é possante elemento para conduzi-los à perfeição. Bem ressalta Dom Chautard que a um sacerdote santo corresponde um povo fervoroso; a um sacerdote fervoroso, um povo piedoso; a um sacerdote piedoso, um povo honesto; a um sacerdote honesto, um povo ímpio.[1] Grande é, pois, o papel da virtude do ministro, para o êxito de seu ministério.

No que respeita à aplicação do valor da Santa Missa, com finalidade propiciatória, é que se pode falar de sua eficácia subjetiva, dependente das disposições de quem a celebra e daqueles aos quais ela é aplicada, como explica São Tomás:

“Na satisfação atende-se mais à disposição de quem oferece do que à quantidade da oferenda. Por isso, o Senhor observou, a respeito da viúva que oferecia duas moedinhas, que ela ‘depositou mais que todos os outros’. Ainda que a oferenda da Eucaristia, quanto à sua quantidade, seja suficiente para satisfazer por toda a pena, contudo ela tem valor de satisfação para quem ela é oferecida ou para quem a oferece, conforme a medida de sua devoção, e não pela pena inteira”.[2]

A respeito deste trecho do Doutor Angélico, Robert Raulin faz o seguinte comentário: “Seria perniciosa ilusão acreditar que o ofertante está dispensado do fervor, sob pretexto de que Cristo, oferecendo-Se na Missa, satisfez plenamente por todos os pecados do mundo”.[3]

Outro argumento, ainda, apresenta o Aquinate, para vincular a eficácia da Eucaristia à devoção dos que se beneficiam do valor infinito deste augusto Sacramento:

“A Paixão de Cristo traz proveito a todos para a remissão da culpa, a obtenção da graça e da glória, mas o efeito só é produzido naqueles que se unem à Paixão de Cristo pela fé e caridade. Assim, também este Sacrifício, que é o memorial da Paixão do Senhor, só produz efeito naqueles que se unem a este Sacramento pela fé e caridade. […] Aproveitam, no entanto, mais ou menos, segundo a medida de sua devoção”.[4]

A especial obrigação dos sacerdotes em trilhar o caminho da santidade é reafirmada no decreto Presbyterorum ordinis: “Estão, porém, obrigados por especial razão, a buscar essa mesma perfeição visto que, consagrados de modo particular a Deus pela recepção da Ordem, se tornaram instrumentos vivos do sacerdócio eterno de Cristo”.[5] E de seu aperfeiçoamento pessoal, ensina o mencionado documento conciliar, decorrerá maior ou menor abundância de frutos de sua ação pastoral:

“A santidade dos presbíteros muito concorre para o desempenho frutuoso do seu ministério; ainda que a graça de Deus possa realizar a obra da salvação por ministros indignos, todavia, por lei ordinária, prefere Deus manifestar as suas maravilhas por meio daqueles que, dóceis ao impulso e direção do Espírito Santo, pela sua íntima união com Cristo e santidade de vida, podem dizer com o Apóstolo: ‘Se vivo, já não sou eu, é Cristo que vive em mim’” (Gl 2, 20).[6]

Ante esta realidade, o sacerdote tem dois grandes deveres. Um para consigo mesmo e outro para com o povo, pois ambos se beneficiam dos frutos da Santa Missa, especialmente o celebrante, conforme o grau de fervor ou devoção.[7]

Segundo alguns teólogos, este fruto especialíssimo da Santa Missa, destinado ao sacerdote, é maior do que o destinado aos demais participantes do Sacrifício Eucarístico, ou àqueles aos quais se aplica o seu valor. É neste manancial inesgotável da misericórdia de Deus que cada ministro ordenado deve ir buscar as melhores graças para a sua santificação, assim como a daqueles que lhe estão confiados:

“Por causa do poder do Espírito Santo, que pela unidade da caridade comunica os bens dos membros de Cristo entre si, acontece que o bem particular presente na Missa de um bom sacerdote se torna frutuoso para outras pessoas”.[8]

Dessa maneira, corresponderá ele à altíssima dignidade de seu ministério, segundo dizia o Santo Cura d’Ars:

“Sem o sacramento da Ordem, não teríamos o Senhor. Quem O colocou ali naquele sacrário? O sacerdote. Quem acolheu a vossa alma no primeiro momento do ingresso na vida? O sacerdote. Quem a alimenta para lhe dar a força de realizar a sua peregrinação? O sacerdote. Quem há de prepará-la para comparecer diante de Deus, lavando-a pela última vez no sangue de Jesus Cristo? O sacerdote, sempre o sacerdote. E se esta alma chega a morrer [pelo pecado], quem a ressuscitará, quem lhe restituirá a serenidade e a paz? Ainda o sacerdote. […] Depois de Deus, o sacerdote é tudo! […] Ele próprio não se entenderá bem a si mesmo, senão no Céu”.[9]


[1] Cf. CHAUTARD, OCSO, Jean-Baptiste. A Alma de todo o apostolado. Porto: Civilização, 2001, p. 34-35.

[2] S Th III, q. 79, a. 5, Resp.

[3] In: AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2006, v. 9, p. 358.

[4] S Th III q. 79, a. 7, ad 2.

[5] PO, n. 12.

[6] Idem.

[7] Cf. ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología Moral para Seglares. Madrid: BAC, 1994, v. 2, p. 158.

[8] S Th III q. 82, a. 6, ad 3.

[9] Palavras de São João Maria Vianney, citadas pelo Papa Bento XVI na Carta para Proclamação do Ano Sacerdotal, 16 jun. 2009.

Os efeitos do sacrifício de Cristo

Mons. João S. Clá Dias, EP

Afirma São Tomás ter o homem necessidade do sacrifício por três motivos: para obter a remissão dos pecados, a graça necessária à santificação e a união perfeita do espírito com Deus, o que se verificará, sobretudo, na glória eterna.[1] O sacrifício de Cristo produziu os efeitos mencionados:

“Ora, tudo isso chegou até nós mediante a humanidade de Cristo. Em primeiro lugar, porque os nossos pecados foram apagados: ‘Foi entregue pelos nossos pecados’, diz a Carta aos Romanos. Em segundo lugar, porque por ele recebemos a graça que nos salva: ‘Ele se tornou causa de salvação eterna para todos aqueles que lhe obedecem’, diz a Carta aos Hebreus. Em terceiro lugar, por ele alcançamos a perfeição da glória, como nos diz a Carta aos Hebreus: ‘Temos confiança, pelo sangue de Jesus, de entrar no santuário’, isto é, na glória celeste”.[2]

Assim, ao Se encarnar o Verbo e assumir a natureza humana, pode enquanto homem ser o mediador sumamente agradável a Deus. Por Seu sacerdócio, por Sua oferenda como vítima de expiação, sela com Seu Sangue a nova e definitiva aliança, da qual todas as anteriores eram uma mera figura: “Jesus se tornou o fiador de uma aliança melhor” (Hb 7, 22). É diante deste mistério de amor com o qual se opera nossa redenção, que o Apóstolo exclama: “Tal é precisamente o sacerdote que nos convinha: santo, inocente, sem mancha, separado dos pecadores e elevado acima dos céus” (Hb 7, 26). Para São Tomás, essas cinco características de Cristo sacerdote marcam a diferença entre o novo sacerdócio e o da Lei Antiga, o qual era figurativo daquele que viria.

Com efeito, explica o Aquinate,[3] Jesus, no respeitante à santidade “reunia as perfeitas condições”, porque “foi consagrado a Deus desde o início de Sua concepção: ‘Por isso mesmo, o Santo que há de nascer de Ti será chamado Filho de Deus’” (Lc 1, 35); Sua inocência foi suma, “visto que Ele não cometeu pecado”; não teve mancha, como muito bem é simbolizado pelo cordeiro sem defeito da Antiga Lei (Êx 12, 5); “foi de maneira absoluta a peccatoribus segregatus — separado dos pecadores”, pois embora tenha vivido entre eles, jamais trilhou suas vias (cf. Sb 2, 15); e, por fim, “está sentado à direita da majestade de Deus” (Hb 1, 3), ou seja, acima de todas as criaturas celestes; “n’Ele a natureza humana é sublimada”, e havendo Se sentado à direita de Deus (cf. Hb 1, 3), “é um sacerdote extremamente adequado”.

Em Cristo é eliminado tudo quanto era imperfeito no sacerdócio do Antigo Testamento. A Lei constituía no sacerdócio homens frágeis e de vida breve (cf. Sb 9, 5) que deviam, com frequência, oferecer sacrifícios por seus próprios pecados e pelos do povo (cf. Lv 16, 5-7), enquanto que “contra a Sabedoria, o mal não prevalece” (Sb 7, 30), pois Cristo não teve de oferecer por Si,[4] devido à sua inocência e santidade. “O Seu único sacrifício bastou para apagar os pecados de todo o gênero humano”.[5]


[1] Cf. S Th III, q. 22, a. 2.

[2] S Th III, q. 22, a. 2, resp.

[3] Super Heb. cap. 7, lec. 4.

[4] “A prefiguração não se pode equiparar à verdade. Por isso, o sacerdócio prefigurativo da antiga lei não podia atingir um grau tal de perfeição que não precisasse mais do sacrifício de satisfação. Ora, Cristo não teve essa necessidade; portanto, a razão não é a mesma para ambos. É o que diz o Apóstolo: ‘A lei estabeleceu, como sacerdotes, homens sujeitos à fraqueza, mas a palavra do juramento, posterior à lei, estabeleceu o Filho perfeito para sempre’(Hb 7,28)” (S Th III q. 22, a. 4, ad 3).

[5] Super Heb. cap. 7, lec. 4.

Pregação de João e Batismo de Jesus

batismo-jesusJosé Afonso Sulzbach de Aguiar, EP

Havia cerca de quatro séculos que nenhum profeta fazia ouvir sua voz em Israel quando, no 15º ano do reinado de Tibério César, aproximando-se os dias anunciados por Daniel em relação à vinda do Messias, um súbito alvoroço percorreu Jerusalém e toda a Judeia. Nas margens sagradas do Jordão – o legendário rio, palco de deslumbrantes milagres e grandiosas cenas – aparecera um varão penitente, um enviado de Deus no espírito de Elias. João Batista era seu nome.

            Modelo de anacoreta até o momento de cumprir sua missão, o filho de Zacarias e Isabel abandonou a longa, austera e mística solidão em que vivera e desceu até o vale do Jordão, para onde convergiam de todos os lados caravanas, a fim de aí pregar palavras de um religioso temor: “Fazei penitência porque está próximo o Reino dos Céus” (Mt 3, 2).

            Multidões de israelitas afluíam para ouvi-lo e receber o seu batismo, símbolo da purificação do coração necessária para merecer o Reino dos Céus. O batismo de João – que era de preparação, de penitência, não ainda o Sacramento – produzia um afervoramento espiritual como nunca se vira antes em Israel. “Pessoas de Jerusalém, de toda a Judeia e de toda a circunvizinhança do Jordão vinham a ele. Confessavam seus pecados e eram batizados por ele nas águas do Jordão” (Mt 3, 5-6).

            E o arauto do Altíssimo apresentava- se sempre como mero precursor, dizendo sem cessar: “Eu vos dou um batismo de água, para que façais penitência. Mas, Aquele que virá depois de mim é mais poderoso do que eu; eu não sou digno de desatar a correia de Suas sandálias; Ele vos batizará no fogo e no Espírito Santo” (Mt 3, 11).

            Seis meses havia que o santo Precursor preparava os filhos de Israel para o encontro com o Messias, quando foi Jesus ao Jordão “a fim de ser batizado por ele” (Mt 3, 13). Ao notar a presença do Inocente no meio da multidão, João inclinou-se e Lhe disse: “Eu devo ser batizado por Ti e Tu vens a mim!” (Mt 3, 14). Jesus respondeu-lhe: “Deixa por agora, pois convém que cumpramos toda a justiça”. E João, obediente, O batizou (cf. Mt 3, 13-15).1

            Quando Jesus saiu da água, o Céu se abriu e o Espírito Santo pairou sobre Ele na forma de uma pomba. “E ouviu-se dos Céus uma voz: Tu és o Meu Filho muito amado; em Ti ponho as Minhas complacências” (Mc 1, 11). Grandiosa manifestação divina com a qual o Pai, o Filho e o Espírito Santo, unidos na obra da Redenção proclamavam a instituição do Sacramento mais necessário para a nossa Salvação.2

 

            Os Sacramentos, o que são?

            De acordo com o Catecismo da Igreja Católica, “os Sacramentos são sinais eficazes da graça, instituídos por Cristo e confiados à Igreja, por meio dos quais nos é dispensada a vida divina. Os ritos visíveis, sob os quais eles são celebrados, significam e realizam as graças próprias de cada Sacramento. Produzem fruto naqueles que os recebem com as disposições exigidas”.3

            No mesmo sentido – embora de forma mais sintética – se expressa o conhecido teólogo padre Antonio Royo Marín, OP, que afirma serem os Sacramentos “sinais sensíveis instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo, para significar e produzir a graça santificante naquele que os recebe dignamente”.

            Acompanhemos o douto dominicano na explicação dos termos desta breve e precisa definição.

            Os Sacramentos são, em primeiro lugar, sinais. – Ou seja, remetem a algo diferente de si mesmos, como a balança simboliza a justiça, ou a bandeira representa a Pátria.

            São sinais sensíveis. – Podem, portanto, ser percebidos pelos sentidos corporais. E o que acontece, por exemplo, com a água no Batismo, o pão e o vinho na Eucaristia, ou o óleo na Crisma e na Unção dos Enfermos.

            Foram instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo. – De acordo com São Tomás, “institui algo quem lhe dá vigor e força”. 5 Assim sendo, somente Nosso Senhor pode ser causa dos Sacramentos, e não a Igreja, “pois a graça santificante brota, como de seu manancial único, do Coração transpassado de Cristo”.6 Segue-se também daí que, como ensina São Pio X, não cabe à Igreja, “inovar nada acerca da substância mesma dos Sacramentos”.7

            Para significar e produzir a graça santificante. – A água do Batismo, por exemplo, lava o corpo do batizado para representar a purificação de sua alma, que fica limpa de todo pecado. E a Eucaristia, nos é dada sob a forma de alimento corporal, para simbolizar o alimento espiritual que a alma recebe pela presença real de Cristo em corpo, sangue, alma e divindade.

            Naquele que os recebe dignamente. – Para que os Sacramentos produzam a graça santificante é necessário que quem os recebe não oponha a eles nenhum obstáculo ou empecilho voluntário. Daí que seja requerido possuir o estado de graça para receber a Confirmação, Eucaristia, Unção dos Enfermos, Ordem e Matrimônio. E estar arrependido, ao menos com atrição sobrenatural,8 para receber a absolvição no Sacramento da Penitência, ou o Batismo quando se trata de pessoa em idade de uso da razão.

            Cabe notar, por fim, que os Sacramentos têm um caráter universal; Jesus Cristo não os instituiu unicamente para alguns escolhidos, mas adotisim para proveito de todos os homens.

                       

            Vida natural e vida sobrenatural

            Levando mais longe a analogia entre o plano simbólico e o plano da graça, São Tomás de Aquino estabelece na Suma Teológica um interessante paralelo entre a vida natural e a vida sobrenatural produzida pelos Sacramentos.9

            Enquanto, na vida natural, o homem é gerado, cresce e se alimenta; na vida sobrenatural, a alma nasce pelo Batismo, atinge a estatura e a força perfeitas pela Confirmação e nutre-se pela Eucaristia. E “como o homem incorre às vezes em enfermidade corporal ou espiritual, sendo esta o pecado, é necessário que seja curado da doença”.10 É esta a função da Penitência (Reconciliação), que restabelece a saúde, e da Unção dos Enfermos, que limpa a alma dos vestígios e sequelas deixados em sua alma pelo pecado.

            A esses cinco Sacramentos unem-se o do Matrimônio e o da Ordem – sendo este último análogo ao poder que recebe um homem para “reger a multidão” e exercer funções públicas – completando assim o número de sete.

            “A partir daí – conclui o Doutor Angélico – fica clara a questão do número dos Sacramentos, também enquanto visa à rebelião do pecado, pois o Batismo se dirige contra a falta de vida espiritual; a Confirmação, contra a fraqueza de alma que se encontra nos recém-nascidos; a Eucaristia, contra a fragilidade da alma diante do pecado; a Penitência, contra o pecado atual cometido depois do Batismo; a Unção dos Enfermos, contra as sequelas do pecado não suficientemente tiradas pela Penitência, ou provenientes da negligência ou da ignorância; a Ordem, contra a desorganização da multidão; o Matrimônio, contra a concupiscência pessoal e contra o desaparecimento da humanidade que acontece pela morte”.11

            “Nada permanece, portanto, à margem da influência benfazeja dos Sacramentos”, observa o padre Antonio Royo Marín.”Por meio deles a vida humana toda é santificada e o homem encontra-se provido com divina abundância de tudo quanto necessita para assegurar sua salvação eterna”.12

 

            O único Sacramento indispensável para a salvação

            Na tradicional relação estabelecida por São Tomás, o Batismo, novo nascimento espiritual, é o primeiro dos sete Sacramentos.13 Mas ele o é também do ponto de vista da necessidade, pois é o único Sacramento indispensável para cada um de nós, individualmente, alcançarmos a Bemaventurança eterna.14

            Assim o afirma com toda precisão o próprio São Tomás: “É pois, claro, que todos são obrigados ao Batismo e que, sem ele, não pode haver salvação para os homens”.15 E mais bela e claramente ainda o próprio Nosso Senhor: “Se alguém não renasce na água e no Espírito Santo, não pode entrar no Reino dos Céus” (Jo 3, 5).16

            Ora, “convém à misericórdia de quem ‘quer que todos os homens se salvem’, que permita encontrar-se facilmente o remédio para a salvação”.17 Daí que a matéria do Batismo seja uma matéria comum, a água, que qualquer um pode obter. E daí também que o ministro do Batismo, em circunstâncias excepcionais, possa ser qualquer pessoa, mesmo um não ordenado, homem ou mulher, e até mesmo um herege ou um pagão.18 Para o Sacramento ser válido, a Igreja só exige que seja utilizada a matéria do Sacramento, observada a forma e aplicada a intenção de fazer o que Ela própria faz, abstraindo de qualquer heresia ou infidelidade.

 

            Batismo e Pecado Original

            Convêm, por fim, não esquecer que a necessidadeeste   Sacramento, conforme explica Besson, “é consequência dos efeitos do Pecado Original e das restituições prometidas pelo Homem-Deus”.19

            Cada um de nós pecou em Adão, e a morte entrou em nossa alma com o pecado; do mesmo modo, cada um de nós foi salvo no novo Adão, e para que a vida dEle entre na nossa alma é preciso que recebamos a graça do Batismo. “Sob as águas do Batismo, a mancha primitiva é apagada da fronte da humanidade; e com o título de filho batizado e regenerado, o homem decaído recupera seus direitos e sua herança celestial. Esta necessidade abrange todos os homens”.20

            Por isso, pouco tempo após seu nascimento, a criança é levada às fontes batismais por um padrinho que responde por sua Fé, e curva sob a água santa sua fronte ainda marcada com o pecado original.21 Consumado o rito, a criança ergue-se livre, inocente e imaculada, com o indelével sinete da ordem sobrenatural. Era escrava, e seus grilhões foram quebrados; estava morta, e foi ressuscitada.

 

            Dois principais efeitos

            Quais são os principais efeitos desse Sacramento?

            Em seu já mencionado livro Somos hijos de Dios, o padre Royo Marín enumera sete, com a precisão própria do teólogo. O Catecismo da Igreja Católica, sob uma focalização mais pastoral, afirma serem principalmente dois: a purificação dos pecados e o novo nascimento no Espírito Santo.22

            Pouco há a afirmar em relação ao primeiro deles, senão que a purificação é tão completa que “todos os pecados são perdoados: o pecado original e todos os pecados pessoais, bem como todas as penas do pecado”.23

            Mas além de assim limpar a alma, este Sacramento “faz do neófito uma criatura nova, um filho adovo de Deus que se tornou participante da natureza divina, membro de Cristo e co-herdeiro com Ele, templo do Espírito Santo”.24

            Com efeito, o Batismo nos torna membros do Corpo de Cristo e nos incorpora à Igreja. Através dele, a vida de Jesus Cristo circula em todo o Corpo, levando Sua graça capital a todos os membros e permitindo-lhes alcançar a graça e as virtudes: “Da cabeça que é Cristo deriva sobre Seus membros a plenitude da graça e da virtude, conforme o Evangelho de João: ‘De Sua plenitude todos nós recebemos’ (Jo 1, 16)”.25

            Assim, na ordem da satisfação, da redenção, do mérito, da oração, do sacerdócio: tudo se tornou comum entre Jesus Cristo e nós, porquanto a Igreja inteira, Corpo Místico de Jesus Cristo, pode ser considerada como uma só pessoa com Ele, conforme ensina São Tomás de Aquino.26

 

            A Paixão de Cristo é comunicada ao neófito

            As consequências desta doutrina têm um alcance maior do que se pensa, a ponto de São Paulo afirmar que pelo Batismo, o crente comunga na morte de Cristo, é sepultado e ressuscita com Ele.27 Sobre isto, comenta São Tomás: “Pelo Batismo somos incorporados na Paixão e Morte de Cristo. Diz Paulo: ‘Se estamos mortos com Cristo, cremos que também viveremos com Ele’.

            Demonstra-se assim que a todo batizado a Paixão de Cristo é comunicada para servir de remédio, como se ele próprio tivesse sofrido e morrido.

            Ora, a Paixão de Cristo é satisfação suficiente para todos os pecados de todos os homens. Por isso, quem é batizado, é liberto do reato de toda pena devida por seus pecados, como se ele próprio tivesse oferecido uma satisfação suficiente por todos os seus pecados”.28

 

Somos filhos de Deus

            Mas talvez o mais tocante e assombroso efeito do Batismo seja produzir a filiação divina.

            Deus tem apenas um filho segundo a Sua natureza, que é o Verbo Encarnado. Só a Ele o Pai transfere eternamente a natureza divina em toda a sua infinita plenitude. Porém, a graça santificante – que é um dos efeitos do Batismo – confere aos neófitos uma participação real e verdadeira nessa filiação “por uma adoção intrínseca, a qual põe em nossa alma, física e formalmente, uma realidade absolutamente divina, que faz circular o próprio sangue de Deus nas veias de nossa alma. Graças a este enxerto divino, a alma se faz participante da mesma vida de Deus. Trata-se de uma verdadeira geração espiritual, um nascimento sobrenatural que imita a geração natural e recorda, por analogia, a geração eterna do Verbo de Deus”.29

            Em uma palavra, a graça santificante, para a qual o Batismo nos abre as portas, não nos dá apenas o direito de nos chamarmos filhos de Deus, senão que nos faz tais em realidade. “Inefável maravilha – conclui o padre Royo Marín – que pareceria inacreditável se não constasse expressamente na divina Revelação”.30 Poderia Deus ter feito mais algo por nós?

 

Notas

1 Durante sua recente visita ao lugar onde fora batizado Jesus, o Papa Bento XVI explica o porquê deste gesto do Redentor: “Jesus se colocou na fila com os pecadores e aceitou o batismo de penitência de João como um sinal profético da sua própria Paixão, Morte e Ressurreição para o perdão dos pecados” (10/5/2009).

2 São Tomás afirma que este Sacramento foi instituído quando Cristo foi batizado, se bem que a necessidade de recebê-lo só tenha sido notificada à humanidade depois da sua Paixão e Ressurreição (cf. ST III, q. 66, a. 2).

3 CIC n. 1131-1132.

4 ROYO MARÍN, OP, Pe. Antonio. Somos hijos de Dios. Madrid: BAC, 1977, p. 93.

5 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 64, a. 2. Cf. Denzinger – Hünermann, n. 1864.

6 ROYO MARÍN, OP, Op. cit., p. 93-94. 7 Denzinger – Hünermann, n. 3556.

8 A atrição, ou contrição imperfeita, é o arrependimento suscitado pelo temor do castigo. Para melhor conhecer as diferenças entre atrição e contrição perfeita, pode-se consultar Arautos do Evangelho, n. 84, dezembro 2008, p. 34-35.

9 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 65, a. 1.

10 Idem, q. 65, a. 1, resp.

11 Idem, ibidem.

12 ROYO MARÍN, OP, Op. Cit., p. 94.

13 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 65, a. 2, resp.

14 Cf. Idem, q. 65, a. 3, ad. 3; a. 4, resp. A Penitência e a Ordem sacerdotal são também de necessidade absoluta, mas a primeira só é requerida para aqueles que pecaram depois do Batismo, e a segunda é imprescindível para a Igreja, não para os indivíduos (cf. ST III, q. 65, a. 4).

15 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, III q. 68, a. 1, resp.

16 Não trataremos neste artigo do batismo de sangue (dos mártires não batizados) nem do de desejo, pois embora produzam os mesmos efeitos do Batismo sacramental, não são eles sacramentos propriamente ditos (cf. ST III, q. 66, a. 11, ad. 2). O leitor interessado em conhecer o que São Tomás afirma sobre ambos, pode consultar o art. 12 da questão 66 (batismo de sangue) e o art. 2 da q. 68 (batismo de desejo). Sobre o problema da crianças não batizadas que não alcançaram o uso da razão, ver a Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé de 19 de abril de 2007.

17 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 67, a. 3.

18 Cf. Idem, q. 67, a. 3-5.

19 BESSON, Mgr. Louis François Nicolas. Les Sacrements. Paris: Reaux- Bray, 1886, p. 116.

20 Idem, ibidem.

21 Sobre a conveniência de não postergar o Batismo das crianças ver Suma Teológica, III, q. 68, a. 3 e 9.

22 Cf. CIC §1262. O Rvmo. Pe. Royo Marín, em sua obra Somos hijos de Dios, faz a relação sistemática dos efeitos do Batismo que reproduzimos no Box anexo.

23 CIC n. 1263.

24 CIC n. 1265.

25 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, III, q. 69, a. 4. Afirma também São Tomás: “Pelo Batismo renascemos para a vida espiritual, própria dos que crêem em Cristo. […] Ora, a vida e a união dos membros com a cabeça da qual recebem o sentido e o movimento” (Suma Teológica, III, q. 69, a. 5).

26 Cf. Idem: “Deve-se dizer que cabeça e membros são como uma única pessoa mística. Portanto, a satisfação de Cristo pertence a todos os fiéis como membros Seus” (ST III, q. 48, a.2 ad 1). “Toda a Igreja, que é o Corpo Místico de Cristo, é considerada como uma só pessoa com sua cabeça, que é Cristo” (ST III, q. 49, a. 1 Resp).

27 Cf. CIC n. 1227.

28 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, III, q. 69, a. 4, Resp.

29 ROYO MARIN, OP, Op. cit., p. 20-21.

30 Idem, p. 21.

(Revista Arautos do Evangelho, Jul/2009, n. 91, p. 22 à 27)

O sacerdote deve ser modelo para os fiéis

Cura d'ArsMons. João S. Clá Dias, EP

Sendo visto pelos fiéis como alguém escolhido por Deus para guiá-los, o ministro ordenado deve ser sempre exemplo preclaro de virtude, como recomenda o Apóstolo a seu discípulo Tito: “Mostra-te em tudo modelo de bom comportamento: pela integridade na doutrina, gravidade, linguagem sã e irrepreensível, para que o adversário seja confundido, não tendo a dizer de nós mal algum” (Tit. 2, 7-8).

Com efeito, uma conduta irrepreensível, inflamada de caridade, dando testemunho da beleza da Igreja e da veracidade da mensagem evangélica, falará muito mais profunda e eficazmente às almas do que o mais lógico e eloquente dos discursos: “O ornato do mestre é a vida virtuosa do discípulo, como a saúde do enfermo redunda em louvor do médico. […] Se apresentarmos nossas boas obras, será louvada a doutrina de Cristo” (Super Tit. cap. 2, lec. 2).

Por vezes, se interpreta a obrigação de dar exemplo, de ser modelo, num sentido minimalista: o de apenas cumprir mais ou menos os próprios deveres, no mesmo nível de todos os outros. E assim, pelo critério da mediania, procura-se contentar a própria consciência. Ora, quem é chamado a servir de exemplo para os outros não deve se comparar com os que lhe são iguais, mas com aqueles que alcançaram o mais alto grau de perfeição.

Cristo, sim, é o verdadeiro modelo do ministro consagrado. É com Ele que o sacerdote deve configurar-se, não só pelo caráter sacramental, mas também pela imitação de Suas perfeições, de forma que nele os fiéis possam ver outro Cristo. Só assim estes se sentirão atraídos pelo bom exemplo de seu pastor e guia.

A história do sacerdócio no contexto bíblico

ord-diaconalMs. Thiago Geraldo

Antes mesmo da instituição do sacerdócio na Bíblia, outros povos exerciam esta função, formando uma hierarquia organizada e hereditária; assim descreve George (1972, p. 924) esse aspecto:

“Entre os povos civilizados que cercam Israel, a função sacerdotal é muitas vezes exercida pelo rei, notadamente na Mesopotâmia e no Egito; o rei é então assistido por um clero hierarquizado, no mais das vezes hereditário, que constitui uma verdadeira casta. Não há nada disso entre os patriarcas. Não existe então nem templo, nem sacerdotes especializados do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó”.

No Antigo Testamento as fontes sacerdotais são de dois tipos: de forma narrativa e de leis (Cf. BORN, p. 1351). Numa primeira visualização acerca do sacerdócio no contexto bíblico, não se encontra o aspecto sacrifical ― que depois veio a ser exercido ―, mas o serviço da adivinhação (Cf. Jz 17,5; 18,5-6; 1 Sm 14,36-42) e a instrução sobre a Torá (Cf. Dt 27,9-10; 31,10-13). Segundo Monloubou (2003, p. 704): “Tanto quanto os profetas, os sacerdotes são moralistas que ensinam o povo a se dispor ao culto e a prolongar os efeitos por uma conduta digna”. Ademais, os chefes de cada família tinham o poder de sacrificar (Cf. Gn 8, 20; 31,54) aliás, como foi o caso do próprio Jetro ― sogro de Moisés ― que ofereceu holocausto e sacrifício no Sinai, depois comeu com Aarão e os anciãos de Israel (Cf. Ex 18,12).

A origem levítica provavelmente remonta a um ramo sacerdotal oriundo de Cades, com os quais Moisés mantinha relações firmes (BROWN, p. 287-288). Eles alegavam possuir a origem sacerdotal exclusiva (Ex 32, 25-28; Dt 33, 8-11). Juridicamente não possuíam terras (Cf. Dt 10, 9), por serem da tribo escolhida, mas zelavam pela tradição das leis sagradas dentro do povo (Cf. Dt 27, 14-26; 31, 24-28). A pessoa de Moisés era considerada levita (Cf. Ex 2, 1-2).

Sobre a origem levítica de Aarão ocorrem controvérsias. Em Ex 4, 13-16 ele é considerado levita e irmão de Moisés; no entanto, ora se torna intercessor junto a Moisés (Nm 12, 11-12), ora assume a condição de sacerdote de um bezerro de ouro idolátrico (Ex 32, 1-5). Este fato ligado à contenda entre Roboão e Jeroboão faz com que Aarão seja uma espécie de precursor do sacerdócio em Betel, pois Jeroboão também construiu um bezerro de ouro em Betel e outro em Dã e estabeleceu sacerdotes do meio do povo que não eram levitas (Cf. 1 Rs 12, 28-33).

Num período pré-monárquico em que ainda não havia rei, cada qual fazia o que lhe parecia melhor; foi assim que Mica, da montanha de Efraim, convidou um levita para tornar-se seu sacerdote, após a fundição de um ídolo com 200 moedas de prata encomendado por sua mãe (Cf. Jz 17). A imagem fundida com as 200 moedas e o sacerdote levita foram mais tarde sequestrados pela tribo de Dã, que queria estabelecer-se na cidade de Laís. O levita alegrou-se por se tornar como que pai e sacerdote de uma tribo em vez de uma família. Jônatas, filho de Gerson, filho de Manassés, constituiu-se, juntamente com seus filhos, sacerdote da tribo de Dã até o dia do cativeiro. O que tem como intento a legitimidade do sacerdócio, remontando-o até Moisés. Isto se passou enquanto a casa de Deus estava em Silo (Cf. Jz 18), onde Eli desempenhava o ofício sacerdotal por meio de sacrifícios e holocaustos (Cf. 1 Sm 1, 3). Após o declínio da família de Eli, tem-se notícia de uma cidade sacerdotal em Nobe. O chefe desta família, o sacerdote Aquimelec, dá alimento a Davi e seus companheiros. Por esse motivo, Saul determina que toda sua família seja exterminada, exceto Abiatar que se refugia com Davi (Cf. 1 Sm 22, 6-23).

Entrando no período monárquico, o sacerdócio ganha estruturação e a partir daí o culto no Templo torna-se vigoroso (Cf. BROWN, p. 288). Salomão organiza a estrutura de seu reino e com isso o culto fica centralizado no Templo em Jerusalém (Cf. 1 Rs 4, 1-6). No entanto, com o cisma samaritano os cultos locais ganham novamente realce (Cf. 1 Rs 12, 25-33). Nessa época o sacerdócio e a monarquia tinham uma firme aliança, como mostra o massacre dos filhos de Acab, no qual Jeú extermina a todos, inclusive os sacerdotes que serviam o rei (Cf. 2 Rs 10, 11). Isto não se passava somente em Israel, mas também em Judá, como o caso do refugiado Joás, que ficou seis anos escondido no Templo e depois, com a conspiração do sacerdote Jojada, torna-se rei (Cf. 2 Rs 11).

As classes sacerdotais formadas em comunhão com a monarquia foram respectivamente deportadas pelos conquistadores de seus reinos. Israel caiu com a invasão assíria e colonos se estabeleceram na Samaria (Cf. 2 Rs 17, 23). Algum tempo depois, sacerdotes são trazidos da deportação para ensinar a religião aos colonos (Cf. 2 Rs 17, 27-28), Judá é conquistada por Nabucodonosor e Sedecias, deportado para a Babilônia (Cf. 2 Rs 25, 7). Inclusive o sumo sacerdote Saraías e Sofonias, segundo sacerdote, são levados para o cativeiro (Cf. 2 Rs 25, 18).

Um passo importante para o sacerdócio de Judá, ocorrido antes da deportação para a Babilônia, deu-se com a descoberta do livro da aliança no Templo, pelo sumo sacerdote Helcias. Após as palavras da profetisa Holda, o rei Josias promoveu uma reforma geral no culto: renovando a aliança com Deus, ele ordenou a Helcias, aos sacerdotes de segunda ordem e aos porteiros que limpassem o Templo de todos os objetos idolátricos que lá havia; despediu os sacerdotes idólatras e os que adoravam os astros do céu e mandou profanar os lugares que tinham sido objeto de culto idolátrico, unificando, dessa forma, o culto ao Deus verdadeiro no templo de Jerusalém (Cf. 2 Rs 22;23, 1-28).

Na época exílica, com a condensação da lei sacerdotal levítica, ficou assegurado que a tribo sacerdotal por excelência seria a de Levi (Cf. Nm 18, 1-7), e mesmo assim nem todos os levitas seriam sacerdotes (Cf. 1Cr 23 , 2). A Aarão e seus filhos ficou reservada a função de sumo sacerdote (Cf. Ex 29, 29-30). No entanto, Ezequiel, ao divisar o “novo Israel” (capítulos 40-48) recorda que os levitas abandonaram o culto verdadeiro para seguir a ídolos, por isso, apenas teriam funções menores dentro do Templo (Cf. Ez 44, 10-14). Os cargos mais importantes, inclusive o de sumo sacerdote, estão reservados aos levitas descendentes de Sadoc, que permaneceram fiéis ao santuário enquanto os israelitas se afastavam (Cf. Ez 44, 15-16). Sadoc foi sacerdote pré-davídico da linhagem de Eleazar, filho de Aarão (Cf. 1 Cr 24, 1-3). Segundo Born (2004, p. 1352):

“Sob Davi aparece uma nova família, a de Sadoc, de origem obscura, mas na tradição sacerdotal ligada com Eleazar, filho mais velho de Aarão. Essa família suplantou a de Eli (1 Sm 2, 27-36) e outras que eram consideradas como descendentes do terceiro e do quarto filhos de Aarão, Nadab e Abiu, e obteve afinal a hegemonia em Jerusalém”.

A reconstrução pós-exílica levou em conta esta declaração de Ezequiel, o que tornou os sadoquitas sacerdotes principais, enquanto à descendência de Arão coube a parte do sacerdócio comum e os genitores levitas ficaram sendo os servos do Templo (Cf. BROWN, p. 288). Além da restauração e centralização do culto no Templo, a leitura e explicação da lei passou a ter um realce cada vez maior. Agora não só o aspecto sacrifical era preponderante, mas a especialização legalista das Escrituras Sagradas se torna cada vez mais relevante (Cf. Ne 8). Essa concepção legalista mais tarde ultrapassa a própria dignidade sacerdotal.

À época do Messias, os sacerdotes já estavam categorizados segundo normas anteriores. Para os sacerdotes comuns havia 24 divisões de serviços (Cf. 1 Cr 24), os quais poderiam exercer outras funções no tempo vago. Geralmente faziam as leituras e explicações da Torá nas sinagogas e eram encarregados das questões de pureza ritual (Cf. Lv 11-15). A hierarquia estabelecida funcionava de forma hereditária. Portanto, a separação entre os sacerdotes principais e os sacerdotes comuns era bem acentuada. Os levitas dessa época que deveriam viver em cidades levíticas (Cf. Lv 21), tinham como funções a de cantores (Cf. 1 Cr 6, 16-17) e demais serviços do Templo (Cf. 1 Cr 6, 33-34).

O exemplo do Santo Cura de Ars

Cura d'ArsO Cura d’Ars era humilíssimo, mas consciente de ser, enquanto padre, um dom imenso para o seu povo: “Um bom pastor, um pastor segundo o coração de Deus, é o maior tesouro que o bom Deus pode conceder a uma paróquia e um dos dons mais preciosos da misericórdia divina”.

Falava do sacerdócio como se não conseguisse alcançar plenamente a grandeza do dom e da tarefa confiados a uma criatura humana: “Oh como é grande o padre! […] Se lhe fosse dado compreender-se a si mesmo, morreria. […] Deus obedece-lhe: ele pronuncia duas palavras e, à sua voz, Nosso Senhor desce do Céu e encerra- Se numa pequena hóstia”.

E, ao explicar aos seus fiéis a importância dos Sacramentos, dizia: “Sem o Sacramento da Ordem, não teríamos o Senhor. Quem O colocou ali naquele sacrário? O sacerdote. Quem acolheu a vossa alma no primeiro momento do ingresso na vida? O sacerdote. Quem a alimenta para lhe dar a força de realizar a sua peregrinação? O sacerdote. Quem há de prepará-la para comparecer diante de Deus, lavando- a pela última vez no Sangue de Jesus Cristo? O sacerdote, sempre o sacerdote. E se esta alma chega a morrer [pelo pecado], quem a ressuscitará, quem lhe restituirá a serenidade e a paz? Ainda o sacerdote. […] Depois de Deus, o sacerdote é tudo! […] Ele próprio não se entenderá bem a si mesmo, senão no Céu”.

Estas afirmações, nascidas do coração sacerdotal daquele santo pároco, podem parecer excessivas. Nelas, porém, revela-se a sublime consideração em que ele tinha o sacramento do sacerdócio. Parecia subjugado por uma sensação de responsabilidade sem fim: “Se compreendêssemos bem o que um padre é sobre a terra, morreríamos: não de susto, mas de amor. […] Sem o padre, a Morte e a Paixão de Nosso Senhor não teria servido para nada. É o padre que continua a obra da Redenção sobre a terra […]. Que aproveitaria termos uma casa cheia de ouro, se não houvesse ninguém para nos abrir a porta? O padre possui a chave dos tesouros celestes: é ele que abre a porta; é o ecônomo do bom Deus; o administrador dos seus bens […]. Deixai uma paróquia durante vinte anos sem padre, e lá adorar-se-ão as bestas. […] O padre não é padre para si mesmo, é-o para vós”.

Santidade objetiva do ministério e santidade subjetiva do ministro

Tinha chegado a Ars, uma pequena aldeia com 230 habitantes, precavido pelo Bispo de que iria encontrar uma situação religiosamente precária: “Naquela paróquia, não há muito amor de Deus; infundi-lo-eis vós”. Por conseguinte, achava-se plenamente consciente de que devia ir para lá a fim de encarnar a presença de Cristo, testemunhando a Sua ternura salvífica: Meu Deus, “concedei-me a conversão da minha paróquia; aceito sofrer tudo aquilo que quiserdes por todo o tempo da minha vida!”: foi com esta oração que começou a sua missão. E, à conversão da sua paróquia, dedicou- se o Santo Cura com todas as suas energias, pondo no cume de cada uma das suas ideias a formação cristã do povo a ele confiado.

Amados irmãos no sacerdócio, peçamos ao Senhor Jesus a graça de podermos também nós assimilar o todo pastoral de São João Maria Vianney.

A primeira coisa que devemos aprender é a sua total identificação com o próprio ministério. Em Jesus, tendem a coincidir Pessoa e Missão: toda a Sua ação salvífica era e é expressão do Seu “Eu filial” que, desde toda a eternidade, está diante do Pai em atitude de amorosa submissão à Sua vontade. Com modesta, mas verdadeira analogia, também o sacerdote deve ansiar por esta identificação. Não se trata, certamente, de esquecer que a eficácia substancial do ministério permanece independentemente da santidade do ministro; mas também não se pode deixar de ter em conta a extraordinária frutificação gerada do encontro entre a santidade objetiva do ministério e a subjetiva do ministro.
O Papa Bento XVI venera o coração do Santo Cura d’Ars, São João Maria Vianney, na Capela do Coral da Basílica de São Pedro, antes da cerimônia de abertura do Ano Sacerdotal, em 2009

O Cura d’Ars principiou imediatamente este humilde e paciente trabalho de harmonização entre a sua vida de ministro e a santidade do ministério que lhe estava confiado, decidindo “habitar”, mesmo materialmente, na sua igreja paroquial: “Logo que chegou, escolheu a igreja por sua habitação. […] Entrava na igreja antes da aurora e não saía de lá senão à tardinha depois do Angelus. Quando precisavam dele, deviam procurá-lo lá” – lê-se na primeira biografia. […]

“Todas as boas obras reunidas não igualam o valor da Missa”

O Santo Cura ensinava os seus paroquianos, sobretudo, com o testemunho da vida. Pelo seu exemplo, os fiéis aprendiam a rezar, detendo-se de bom grado diante do sacrário para uma visita a Jesus-Eucaristia. “Para rezar bem – explicava-lhes o Cura -, não há necessidade de falar muito. Sabe-se que Jesus está ali, no Tabernáculo sagrado: abramos-Lhe o nosso coração, alegremo-nos pela Sua presença sagrada. Esta é a melhor oração”. E exortava: “Vinde à Comunhão, meus irmãos, vinde a Jesus. Vinde viver dEle para poderdes viver com Ele”. “É verdade que não sois dignos, mas tendes necessidade!”.

Esta educação dos fiéis para a presença eucarística e para a Comunhão adquiria uma eficácia muito particular, quando o viam celebrar o Santo Sacrifício da Missa. Quem ao mesmo assistia, afirmava que “não era possível encontrar uma figura que exprimisse melhor a adoração. […] Contemplava a Hóstia amorosamente”.

Dizia ele: “Todas as boas obras reunidas não igualam o valor do Sacrifício da Missa, porque aquelas são obras de homens, enquanto a Santa Missa é obra de Deus”. Estava convencido de que todo o fervor da vida de um padre dependia da Missa: “A causa do relaxamento do sacerdote é porque não presta atenção à Missa! Meu Deus, como é de lamentar um padre que celebra [a Missa] como se fizesse uma coisa ordinária!”. E, ao celebrar, tinha tomado o costume de oferecer sempre também o sacrifício da sua própria vida: “Como faz bem um padre oferecer-se em sacrifício a Deus todas as manhãs!”.

“Círculo virtuoso” entre o altar e o confessionário

Esta sintonia pessoal com o Sacrifício da Cruz levava-o – por um único movimento interior – do altar ao confessionário. Os sacerdotes não deveriam jamais resignar-se a ver os seus confessionários desertos, nem limitar-se a constatar o menosprezo dos fiéis por este Sacramento.

Na França, no tempo do Santo Cura d’Ars, a confissão não era mais fácil nem mais frequente do que nos nossos dias, pois a tormenta revolucionária tinha longamente sufocado a prática religiosa. Mas ele procurou de todos os modos, com a pregação e o conselho persuasivo, fazer os seus paroquianos redescobrirem o significado e a beleza da Penitência sacramental, apresentando-a como uma exigência íntima da Presença eucarística.

Pôde assim dar início a um círculo virtuoso. Com as longas permanências na igreja junto do sacrário, fez com que os fiéis começassem a imitálo, indo até lá visitar Jesus, e ao mesmo tempo estivessem seguros de que lá encontrariam o seu pároco, disponível para os ouvir e perdoar. Em seguida, a multidão crescente dos penitentes, provenientes de toda a França, haveria de o reter no confessionário até 16 horas por dia. Dizia-se então que Ars se tinha tornado “o grande hospital das almas”. […]

Assimilar em si o “novo estilo de vida” inaugurado por Jesus

No mundo atual, não menos do que nos tempos difíceis do Cura d’Ars, é preciso que os presbíteros, na sua vida e ação, se distingam por um vigoroso testemunho evangélico.

Observou, justamente, Paulo VI que “o homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres; ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas”. Para que não se forme um vazio existencial em nós e fique comprometida a eficácia do nosso ministério, é preciso não cessar de nos interrogarmos: “Somos verdadeiramente permeados pela Palavra de Deus? É verdade que esta é o alimento de que vivemos, mais do que o sejam o pão e as coisas deste mundo? Conhecemo-la verdadeiramente? Amamo-la? De tal modo nos ocupamos interiormente desta palavra, que a mesma dá realmente um timbre à nossa vida e forma o nosso pensamento?”.

Assim como Jesus chamou os Doze para estarem com Ele (cf. Mc 3, 14) e só depois é que os enviou a pregar, assim também nos nossos dias os sacerdotes são chamados a assimilar aquele “novo estilo de vida” que foi inaugurado pelo Senhor Jesus e assumido pelos Apóstolos.

Os três conselhos evangélicos, necessários também para os presbíteros

Foi precisamente a adesão sem reservas a este “novo estilo de vida” que caracterizou o trabalho ministerial do Cura d’Ars. O Papa João XXIII, na carta encíclica Sacerdotii nostri primordia – publicada em 1959, centenário da morte de São João Maria Vianney -, apresentava a sua fisionomia ascética referindo-se de modo especial ao tema dos “três conselhos evangélicos”, considerados necessários também para os presbíteros: “Embora, para alcançar esta santidade de vida, não seja imposta ao sacerdote como própria do estado clerical a prática dos conselhos evangélicos, entretanto esta representa para ele, como para todos os discípulos do Senhor, o caminho regular da santificação cristã”.

O Cura d’Ars soube viver os “conselhos evangélicos” segundo modalidades apropriadas à sua condição de presbítero. Com efeito, a sua pobreza não foi a mesma de um religioso ou de um monge, mas a requerida a um padre: embora manejasse muito dinheiro (dado que os peregrinos mais abonados não deixavam de se interessar pelas suas obras sócio-caritativas), sabia que tudo era dado para a sua igreja, os seus pobres, os seus órfãos, as meninas da sua Providence, as suas famílias mais indigentes. Por isso, ele “era rico para dar aos outros e era muito pobre para si mesmo”. Explicava: “O meu segredo é simples: dar tudo e não guardar nada”. Quando se encontrava com as mãos vazias, dizia contente aos pobres que se lhe dirigiam: “Hoje sou pobre como vós, sou um dos vossos”. Deste modo pôde, ao fim da vida, afirmar com absoluta serenidade: “Não tenho mais nada. Agora o bom Deus pode chamarme quando quiser!”.

Também a sua castidade era aquela que se requeria a um padre para o seu ministério. Pode-se dizer que era a castidade conveniente a quem deve habitualmente tocar a Eucaristia e que habitualmente a fixa com todo o entusiasmo do coração e com o mesmo entusiasmo a dá aos seus fiéis.Dele se dizia que “a castidade brilhava no seu olhar”, e os fiéis apercebiam- se disso quando ele se voltava para o sacrário fixando-o com os olhos de um enamorado.

Também a obediência de São João Maria Vianney foi toda encarnada na dolorosa adesão às exigências diárias do seu ministério. É sabido como o atormentava o pensamento da sua própria inaptidão para o ministério paroquial e o desejo que tinha de fugir “para chorar a sua pobre vida, na solidão”. Somente a obediência e a paixão pelas almas conseguiam convencê-lo a continuar no seu lugar. A si próprio e aos seus fiéis explicava: “Não há duas maneiras boas de servir a Deus. Há apenas uma: servi-Lo como Ele quer ser servido”. A regra de ouro para levar uma vida obediente parecia-lhe ser esta: “Fazer só aquilo que pode ser oferecido ao bom Deus”.

Saber acolher os Movimentos Eclesiais e novas Comunidades

No contexto da espiritualidade alimentada pela prática dos conselhos evangélicos, aproveito para dirigir aos sacerdotes, neste Ano a eles dedicado, um convite particular para saberem acolher a nova primavera que, em nossos dias, o Espírito está a suscitar na Igreja, através nomeadamente dos Movimentos Eclesiais e das novas Comunidades. “O Espírito é multiforme nos seus dons. […] Ele sopra onde quer. E fá-lo de maneira inesperada, em lugares imprevistos e segundo formas precedentemente inimagináveis […]; mas demonstra-nos também que Ele age em vista do único Corpo e na unidade do único Corpo”.

A propósito disto, vale a indicação do decreto Presbyterorum ordinis: “Sabendo discernir se os espíritos vêm de Deus, [os presbíteros] perscrutem com o sentido da fé, reconheçam com alegria e promovam com diligência os multiformes carismas dos leigos, tanto os mais modestos como os mais altos”. Estes dons, que impelem não poucos para uma vida espiritual mais elevada, podem ser de proveito não só para os fiéis leigos, mas também para os próprios ministros. Com efeito, da comunhão entre ministros ordenados e carismas pode brotar “um válido impulso para um renovado compromisso da Igreja no anúncio e no testemunho do Evangelho da esperança e da caridade em todos os recantos do mundo”.

“Forma comunitária” do ministério ordenado

Queria ainda acrescentar, apoiado na exortação apostólica Pastores dabo vobis do Papa João Paulo II, que o ministério ordenado tem uma radical “forma comunitária” e pode ser cumprido apenas na comunhão dos presbíteros com o seu Bispo. É preciso que esta comunhão entre os sacerdotes e com o respectivo Bispo, baseada no Sacramento da Ordem e manifestada na concelebração eucarística, se traduza nas diversas formas concretas de uma fraternidade sacerdotal efetiva e afetiva. Só deste modo é que os sacerdotes poderão viver em plenitude o dom do celibato e serão capazes de fazer florir comunidades cristãs onde se renovem os prodígios da primeira pregação do Evangelho. […]

“Eu venci o mundo”

À Virgem Santíssima entrego este Ano Sacerdotal, pedindo-Lhe para suscitar no ânimo de cada presbítero um generoso relançamento daqueles ideais de total doação a Cristo e à Igreja que inspiraram o pensamento e a ação do Santo Cura d’Ars. Com a sua fervorosa vida de oração e o seu amor apaixonado a Jesus Crucificado, João Maria Vianney alimentou a sua cotidiana doação sem reservas a Deus e à Igreja. Possa o seu exemplo suscitar nos sacerdotes aquele testemunho de unidade com o Bispo, entre eles próprios e com os leigos, que é tão necessário hoje, como o foi sempre.

Não obstante o mal que existe no mundo, ressoa sempre atual a palavra de Cristo aos Seus Apóstolos, no Cenáculo: “No mundo sofrereis tribulações. Mas tende confiança: Eu venci o mundo” (Jo 16, 33). A Fé no Divino Mestre dá-nos a força para olhar confiadamente o futuro.

Amados sacerdotes, Cristo conta convosco. A exemplo do Santo Cura d’Ars, deixai-vos conquistar por Ele e sereis também vós, no mundo atual, mensageiros de esperança, de reconciliação, de paz.

(Papa Bento XVI – Excertos da Carta para a Convocação do Ano Sacerdotal, de 16/6/2009)

(Revista Arautos do Evangelho, Agosto/2009, n. 92, p. 6 à 9)

O sacerdócio é sacramento e testemunho de fé, não ofício, afirma Bento XVI em vigília

Cidade do Vaticano (Sexta-feira, 11-06-2010, Gaudium Press) O Papa Bento XVI participou na noite desta quinta-feiraVigilia de uma grande vigília junto aos milhares de sacerdotes de todo o mundo, na espera da missa de sexta-feira pela conclusão do Ano Sacerdotal.

“Bem-vindo em meio a nós”, foi como o cardeal prefeito da Congregação para o Clero, Dom Claudio Hummes, saudou o Papa. “Todos os sacerdotes presentes, junto a seus coirmãos espalhados pelo mundo, desejam manifestar a sua mais filial devoção, sua profunda estima, seu apoio e afeto sinceros”. As palavras do cardeal foram confirmadas com um grande aplauso dos mais de 10 mil sacerdotes presentes à vigília.

“Obrigado de coração Santidade, por tudo que fez, está fazendo e fará por todos os sacerdotes, mesmo por aqueles perdidos”, prossegui o Cardeal Hummes em sua saudação. “Gostaríamos que o Ano Sacerdotal não terminasse nunca, isto é, não terminasse nunca a atenção de cada um para a santidade na própria identidade”, continuou.

O Santo Padre chegou à Praça em papamóvel, passando pelos setores. A parte da vigília com a presença do pontífice consistiu em cinco perguntas feitas por padres de cinco continentes. Os temas foram os mais significativos para os padres, como o desenrolar de sua ação pastoral, o celibato, a teologia. O pontífice reforçou a eles que não se pode “fazer o que se quer ou se deveria fazer, porque nossas forças são limitadas e a sociedade é cada vez mais diversificada e complicada”.

O sacerdócio não é uma profissão ” como qualquer trabalho. É o que diz o Santo Padre Bento XVI sobre a realidade da vocação sacerdotal no mundo de hoje, o testemunho da fé, do celibato e da teologia.

O Papa advertiu ainda contra “a arrogância da razão”, que obscura a presença de Deus no mundo. “Nós, teólogos, devemos usar a razão grande e ter coragem de ir além do positivismo e ir além da experiência. Não nos submetendo a todas as hipóteses do momento”, observo o Santo Padre.

“Há uma teologia que quer ser acadêmica e científica e que esquece a realidade vital, a presença de Deus, o seu falar hoje, e não somente no seu passado”. A “verdadeira teologia” é aquela que “vem do amor de Deus e de Cristo”, explicou o pontífice, que advertiu contra a “tentação” do clericalismo, mal “de todos os tempos”, e também de hoje.

Sobre o celibato, Bento XVI reforçou que o mundo deve pensar no seu futuro, não somente em se concentrar no hoje. O sacerdócio é aquele sinal do futuro que todo homem espera. O presente problema é entender o significado do celibato como “moda para não se casar” que promove o “viver sozinho e por si mesmo, enquanto o celibato é um sim definitivo”. São coisas diferentes, explica Bento XVI. “Se desaparecer o casamento entre o homem e a mulher, desaparece a raiz da nossa cultura”. As palavras do Papa são recebidas pelos padres presentes com um longo aplauso.

O mundo vê o escândalo no celibato, enquanto “não quer ver que existem também os escândalos dos nossos pecados, que obscuram o grande escândalo”. O Papa ressalta “enorme fidelidade” e “grande sinal da fé” no celibato.

O Papa pediu aos sacerdotes que “tornem possível para todos a Eucaristia dominical e para celebrá-la de forma a tornar visível o Senhor”, além de “serem presentes para os sofredores”.

A adoração do Santíssimo concluiu a vigília. Calor, alegria e também oração dominaram a atmosfera da praça. O Santo Padre foi recebido com um grande aplauso e um forte coro de “Bento, Bento”. O Papa estava sorridente.

Aos leigos e religiosas foram preparados somente dois setores na Praça São Pedro para a noite de quinta-feira, todos os outros foram reservados aos sacerdotes, aproximadamente 15 mil, em Roma para celebrar com o Santo Padre a conclusão do Ano Sacerdotal.

Considerações sobre o ministério presbiteral no contexto do Ano Sacerdotal

Diác. José Victorino de Andrade, EPCura d'Ars

O Ano Sacerdotal que estamos celebrando tem trazido fecundos aportes ao ministério presbiteral, fruto das reflexões realizadas em todo o orbe católico e da renovada esperança que esta conclamação produziu no seio da Igreja. A esperança, nota distintiva da Instituição nascida do costado do Senhor e edificada sobre a rocha inabalável de Pedro, tende a se afirmar cada vez mais como a luz orientadora de nossa época, tal como o Magistério Pontifício a apresenta em duas de suas recentes encíclicas: a Novo Millenio Ineunte, de João Paulo II e a Spe Salvi, de Bento XVI. [1]

Nesta perspectiva, os numerosos problemas enfrentados pelos sacerdotes em nossos dias nos encorajam a pedir ao Senhor que, além de conduzi-los à plenitude da santidade por meio da qual serão vitoriosos em seus desafios, mande mais operários para a Sua messe (cf. Mt 9, 38; Lc 10, 2).

Nota o Cardeal Franc Rodé, CM, que o florescimento de novos chamados constitui, antes de tudo, o fruto de uma moção divina, mas não exclui a colaboração humana:

As vocações são um dom de Deus, e a iniciativa é completamente d’Ele. Entretanto, como é Seu costume, Ele normalmente Se serve de causas secundárias e depende de nossa colaboração para realizar Seus planos.[2]

No caso específico das vocações sacerdotais, a “causa secundária” muitas vezes se traduz na exemplaridade do sacerdote junto aos vocacionados. E para oferecerem um testemunho plenamente persuasivo, deverão eles próprios estar convencidos em seu íntimo da força sobrenatural que acompanha seu ministério e da presença constante de Cristo e da Igreja em tudo quanto realizam. O ensinamento do Concílio Vaticano II no Decreto Presbyterorum Ordinis salienta esta verdade alentadora:

 Lembrem-se, pois, os presbíteros que no exercício da sua missão nunca estão sós, mas apoiados na força onipotente de Deus e assim, com fé em Cristo que os chamou a participar do Seu sacerdócio, deem-se com toda a confiança ao seu ministério, sabendo que Deus é poderoso para aumentar neles a caridade. Lembrem-se ainda que têm os seus irmãos no sacerdócio, e até os fiéis de todo o mundo, associados a si. (n. 22)

Diante das exigências e dificuldades inerentes ao ministério sacerdotal, cumpre repetir com São Paulo: “Omnia possum in eo qui me confortat” (Fl 4, 13). O Apóstolo nos adverte a não confiarmos na carne, esperando das forças humanas a eficácia que uma ilusória auto-suficiência nunca poderá conceder. Os que confiam na graça, por sua vez, revestem-se da eficácia divina e este parece ser o segredo pelo qual os presbíteros se tornam instrumentos verdadeiramente úteis nas mãos da Providência. Só assim serão capazes de “cultivarem em si mesmos e difundirem na sociedade as virtudes morais e sociais, de maneira a tornarem-se realmente, com o necessário auxílio da graça divina, homens novos e construtores duma humanidade nova”.[3] Nesse sentido, cabe aos sacerdotes uma responsabilidade não pequena.

Hoje, mais do que nunca, exige-se ao presbítero que seja verdadeiramente pastor, à semelhança do Bom Pastor que é Cristo, a fim de conduzir e orientar o Povo de Deus, ciente, entretanto, dos perigos que o circundam: lobos que procuram reduzir ou dispersar o redil, ovelhas desgarradas que precisam ser libertas do triste carrascal em que se encontram, reconduzidas, amparadas e, se necessário, carregadas. Deste modo, atingirá sua própria perfeição:

 Fazendo todo o sacerdote, a seu modo, as vezes da própria pessoa de Cristo, de igual forma é enriquecido de graça especial para que, servindo todo o Povo de Deus e a porção que lhe foi confiada, possa alcançar de maneira conveniente a perfeição d’Aquele de quem faz as vezes, e cure a fraqueza humana da carne a santidade d’Aquele que por nós se fez pontífice ‘santo, inocente, impoluto, separado dos pecadores’ (Heb. 7, 26).[4]

Entretanto, será que tantas exigências e tarefas correspondentes ao presbítero em nossos dias não o sobrecarregarão? Será razoável exigir-lhe mais responsabilidade? Para mais agora, que se desdobra numa ocupação contínua, extenuante, diante de uma comunidade desproporcionada ou de um elevado número de pastorais a seu encargo… A realidade cotidiana de tantos ministros ordenados aparece-nos muitas vezes preocupante, podendo ser, de imediato, talvez superada por uma equilibrada simbiose entre contemplação e ação e, quando esse equilíbrio não for possível, a estratégia será fazer com que todos os atos sejam impregnados de espírito sobrenatural e tornem-se oração, oblação, serviço. Conforme João Paulo II:

 se a consciência do sacerdote é penetrada pelo imenso mistério de Cristo, se ela está totalmente dominada por ele, então todas as suas atividades, mesmo as mais absorventes (vida ativa) encontrarão raiz e alimento na contemplação dos mistérios de Deus (vida contemplativa), de que ele é administrador.[5]

Embora o ministério sacerdotal exija uma contínua doação de si mesmo, este zelo não deve descurar a “própria casa”, como recomendava Santo Afonso Maria de Ligório: “Visto que sois padre, é muito louvável que trabalheis na salvação das almas, mas não posso aprovar que, para serdes útil aos outros, vos esqueçais de vós mesmo”.[6] A santificação torna-se assim, não uma possibilidade, mas uma necessidade para o próprio desempenho do presbítero, na Igreja e no mundo, conforme afirmou o Vaticano II:

 […] este sagrado Concílio, para atingir os seus fins pastorais de renovação interna da Igreja, difusão do Evangelho em todo o mundo e diálogo com os homens do nosso tempo, exorta veementemente todos os sacerdotes a que, empregando todos os meios recomendados pela Igreja, se esforcem por atingir cada vez maior santidade, pela qual se tornem instrumentos mais aptos para o serviço de todo o Povo de Deus.[7]

Ao proclamar o Ano Sacerdotal, o Papa Bento XVI abriu as portas, tanto para numerosas e criativas iniciativas das Igrejas particulares – de caráter vocacional, pastoral, formativo, entre outras – como, sobretudo, para uma enriquecedora reflexão e encorajamento de todos os presbíteros, a fim de que seu ministério se torne mais fecundo e “constitua para cada sacerdote uma oportunidade de renovação interior e, consequentemente, de sólido fortalecimento no compromisso pela própria missão”.[8]

VICTORINO DE ANDRADE, José. Editorialin: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 9, Out-Dez 2009. p. 3-6.


[1] Encontram-se mais de 100 referências à esperança na recente encíclica de Bento XVI,  Spe Salvi, além de numerosos e significativos incentivos para os tempos vindouros na Novo Millenio Ineunte,  como a marcante exortação: “DUC IN ALTUM! Sigamos em frente, com esperança! Diante da Igreja abre-se um novo milênio como um vasto oceano onde aventurar-se com a ajuda de Cristo”. (n. 58) 

[2] RODÉ, Frank. Simpósio sobre vida apostólica religiosa desde o Vaticano II no Stonehill College. Tradução do Corpo Editorial da Revista Arautos Evangelho. Boston: [s.e.], 2008.

[3] Gaudium et Spes, n. 30.

[4] Presbyterorum Ordinis, n. 22.

[5] JOÃO PAULO II. Discurso aos párocos e ao clero de Roma. 2 mar. 1979. Disponível em <www.vatican.va>. Acesso: 13 dez. 2009.

[6] MARIA DE LIGÓRIO, Afonso. A Selva. Tradução de MARINHO. Porto: Fonseca, 1928. p. 88.

[7] Presbyterorum Ordinis, n. 12.

[8] BENTO XVI. Audiência Geral Praça de São Pedro, quarta-feira – 1 jul. 2009. Disponível em: <http://www.annussacerdotalis.org>. Acesso 13 dez. 2009.

A história do sacerdócio no contexto bíblico

Thiago de Oliveira Geraldo, EPlivro

Antes mesmo da instituição do sacerdócio na Bíblia, outros povos exerciam esta função, formando uma hierarquia organizada e hereditária; assim descreve George (1972, p. 924) esse aspecto:

Entre os povos civilizados que cercam Israel, a função sacerdotal é muitas vezes exercida pelo rei, notadamente na Mesopotâmia e no Egito; o rei é então assistido por um clero hierarquizado, no mais das vezes hereditário, que constitui uma verdadeira casta. Não há nada disso entre os patriarcas. Não existe então nem templo, nem sacerdotes especializados do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó.[1]

No Antigo Testamento as fontes sacerdotais são de dois tipos: de forma narrativa e de leis.[2] Numa primeira visualização acerca do sacerdócio no contexto bíblico, não se encontra o aspecto sacrifical ― que depois veio a ser exercido ―, mas o serviço da adivinhação[3] e a instrução sobre a Torá.[4] Segundo Monloubou (2003, p. 704): “Tanto quanto os profetas, os sacerdotes são moralistas que ensinam o povo a se dispor ao culto e a prolongar os efeitos por uma conduta digna”.[5]Ademais, os chefes de cada família tinham o poder de sacrificar;[6] aliás, como foi o caso do próprio Jetro ― sogro de Moisés ― que ofereceu holocausto e sacrifício no Sinai, depois comeu com Aarão e os anciãos de Israel.[7]

A origem levítica provavelmente remonta a um ramo sacerdotal oriundo de Cades, com os quais Moisés mantinha relações firmes.[8] Eles alegavam possuir a origem sacerdotal exclusiva.[9] Juridicamente não possuíam terras,[10] por serem da tribo escolhida, mas zelavam pela tradição das leis sagradas dentro do povo.[11] A pessoa de Moisés era considerada levita.[12]

Sobre a origem levítica de Aarão ocorrem controvérsias. Em Ex 4, 13-16 ele é considerado levita e irmão de Moisés; no entanto, ora se torna intercessor junto a Moisés (Nm 12, 11-12), ora assume a condição de sacerdote de um bezerro de ouro idolátrico (Ex 32, 1-5). Este fato ligado à contenda entre Roboão e Jeroboão faz com que Aarão seja uma espécie de precursor do sacerdócio em Betel, pois Jeroboão também construiu um bezerro de ouro em Betel e outro em Dã e estabeleceu sacerdotes do meio do povo que não eram levitas.[13]

Num período pré-monárquico em que ainda não havia rei, cada qual fazia o que lhe parecia melhor; foi assim que Mica, da montanha de Efraim, convidou um levita para tornar-se seu sacerdote, após a fundição de um ídolo com 200 moedas de prata encomendado por sua mãe.[14] A imagem fundida com as 200 moedas e o sacerdote levita foram mais tarde sequestrados pela tribo de Dã, que queria estabelecer-se na cidade de Laís. O levita alegrou-se por se tornar como que pai e sacerdote de uma tribo em vez de uma família. Jônatas, filho de Gerson, filho de Manassés, constituiu-se, juntamente com seus filhos, sacerdote da tribo de Dã até o dia do cativeiro. O que tem como intento a legitimidade do sacerdócio, remontando-o até Moisés. Isto se passou enquanto a casa de Deus estava em Silo,[15] onde Eli desempenhava o ofício sacerdotal por meio de sacrifícios e holocaustos.[16] Após o declínio da família de Eli, tem-se notícia de uma cidade sacerdotal em Nobe. O chefe desta família, o sacerdote Aquimelec, dá alimento a Davi e seus companheiros. Por esse motivo, Saul determina que toda sua família seja exterminada, exceto Abiatar que se refugia com Davi.[17]

Entrando no período monárquico, o sacerdócio ganha estruturação e a partir daí o culto no Templo torna-se vigoroso.[18] Salomão organiza a estrutura de seu reino e com isso o culto fica centralizado no Templo em Jerusalém.[19] No entanto, com o cisma samaritano os cultos locais ganham novamente realce.[20] Nessa época o sacerdócio e a monarquia tinham uma firme aliança, como mostra o massacre dos filhos de Acab, no qual Jeú extermina a todos, inclusive os sacerdotes que serviam o rei.[21] Isto não se passava somente em Israel, mas também em Judá, como o caso do refugiado Joás, que ficou seis anos escondido no Templo e depois, com a conspiração do sacerdote Jojada, torna-se rei.[22]

As classes sacerdotais formadas em comunhão com a monarquia foram respectivamente deportadas pelos conquistadores de seus reinos. Israel caiu com a invasão assíria e colonos se estabeleceram na Samaria.[23] Algum tempo depois, sacerdotes são trazidos da deportação para ensinar a religião aos colonos,[24] Judá é conquistada por Nabucodonosor e Sedecias, deportado para a Babilônia.[25] Inclusive o sumo sacerdote Saraías e Sofonias, segundo sacerdote, são levados para o cativeiro.[26]

Um passo importante para o sacerdócio de Judá, ocorrido antes da deportação para a Babilônia, deu-se com a descoberta do livro da aliança no Templo, pelo sumo sacerdote Helcias. Após as palavras da profetisa Holda, o rei Josias promoveu uma reforma geral no culto: renovando a aliança com Deus, ele ordenou a Helcias, aos sacerdotes de segunda ordem e aos porteiros que limpassem o Templo de todos os objetos idolátricos que lá havia; despediu os sacerdotes idólatras e os que adoravam os astros do céu e mandou profanar os lugares que tinham sido objeto de culto idolátrico, unificando, dessa forma, o culto ao Deus verdadeiro no templo de Jerusalém.[27]

Na época exílica, com a condensação da lei sacerdotal levítica, ficou assegurado que a tribo sacerdotal por excelência seria a de Levi,[28] e mesmo assim nem todos os levitas seriam sacerdotes.[29] A Aarão e seus filhos ficou reservada a função de sumo sacerdote.[30] No entanto, Ezequiel, ao divisar o “novo Israel” (capítulos 40-48) recorda que os levitas abandonaram o culto verdadeiro para seguir a ídolos, por isso, apenas teriam funções menores dentro do Templo.[31] Os cargos mais importantes, inclusive o de sumo sacerdote, estão reservados aos levitas descendentes de Sadoc, que permaneceram fiéis ao santuário enquanto os israelitas se afastavam.[32] Sadoc foi sacerdote pré-davídico da linhagem de Eleazar, filho de Aarão.[33] Segundo Born (2004, p. 1352):

Sob Davi aparece uma nova família, a de Sadoc, de origem obscura, mas na tradição sacerdotal ligada com Eleazar, filho mais velho de Aarão. Essa família suplantou a de Eli (1 Sm 2, 27-36) e outras que eram consideradas como descendentes do terceiro e do quarto filhos de Aarão, Nadab e Abiu, e obteve afinal a hegemonia em Jerusalém.

A reconstrução pós-exílica levou em conta esta declaração de Ezequiel, o que tornou os sadoquitas sacerdotes principais, enquanto à descendência de Arão coube a parte do sacerdócio comum e os genitores levitas ficaram sendo os servos do Templo.[34] Além da restauração e centralização do culto no Templo, a leitura e explicação da lei passou a ter um realce cada vez maior. Agora não só o aspecto sacrifical era preponderante, mas a especialização legalista das Escrituras Sagradas se torna cada vez mais relevante.[35] Essa concepção legalista mais tarde ultrapassa a própria dignidade sacerdotal.

À época do Messias, os sacerdotes já estavam categorizados segundo normas anteriores. Para os sacerdotes comuns havia 24 divisões de serviços,[36] os quais poderiam exercer outras funções no tempo vago.[37] Geralmente faziam as leituras e explicações da Torá nas sinagogas e eram encarregados das questões de pureza ritual.[38] A hierarquia estabelecida funcionava de forma hereditária. Portanto, a separação entre os sacerdotes principais e os sacerdotes comuns era bem acentuada. Os levitas dessa época que deveriam viver em cidades levíticas,[39] tinham como funções a de cantores[40] e demais serviços do Templo.[41]

4. O sacerdócio no Novo Testamento

No Novo Testamento o substantivo hiereus (sacerdote) é empregado 31 vezes, das quais 14 na carta aos Hebreus. Marcos a emprega duas vezes, Mateus três e Lucas oito vezes (cinco no Evangelho e três em Atos). No Evangelho de João encontra-se apenas uma vez (1, 19) e três no Apocalipse. Note-se que nas cartas do Novo Testamento a única que leva esse termo é em Hebreus, as demais não o utilizam. Quando se fala em sacerdote no Novo Testamento, pode-se estar referindo aos pagãos (At 14, 13) ou aos sacerdotes judeus.[42]

Os contatos de Jesus com sacerdotes não eram frequentes; ocorriam quando mandava aqueles a quem havia curado mostrarem-se a eles,[43] devido aos conceitos de purificação ritual, os quais declaravam a pessoa isenta de impurezas e apta a frequentar novamente a sociedade. Ao mesmo tempo isto servia para a afirmação da autoridade de Jesus.[44]

A parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37) apresenta uma crítica aos sacerdotes (v. 31) que promoviam simplesmente um culto externo. O evangelho de Mateus (12, 4), com seu paralelo em Marcos 2, 26 e Lucas 6, 4, mostra como o rei David comeu os pães da proposição ― que lhes era proibido ― e Mateus aproveita para afirmar o senhorio de Jesus sobre o sábado e o Templo, alegando que os sacerdotes também rompem o sábado para exercer suas funções. Para essa afirmação de Jesus é dado como argumento a própria Sagrada Escritura.[45] A relação positiva de Jesus com os sacerdotes e levitas em relação ao acontecimento da salvação somente se verifica em Lucas (1, 5.8) e Atos (6, 7).[46]

Nos Evangelhos sinóticos Jesus nunca atribui a Si mesmo o título de sacerdote, preferindo utilizar a expressão “Filho” ou “Filho do Homem”; desta forma, faz uma distinção clara entre Sua missão e a dos sacerdotes aarônico e levítico. No entanto, Sua missão está envolta de conceitos sacerdotais.[47]

O fato mais esclarecedor da ação sacerdotal implícita e figurada de Jesus encontra-se na Sua morte. Segundo George (1972, p. 928-929):

 Para seus inimigos, esta é o castigo dum blasfemo; para seus discípulos, um fracasso escandaloso. Para ele, ela é um sacrifício que ele descreve com as figuras do Antigo Testamento: compara-a ora com o sacrifício expiatório do Servo de Deus (Mc 10, 45; 14, 24; cf. Is 53), ora com o sacrifício de Aliança de Moisés ao pé do Sinai (Mc 14, 24; cf. Ex 24, 8); e o sangue que ele dá no tempo da Páscoa evoca o do cordeiro pascal (Mc 14, 24; cf. Ex 12, 7.13.22s). Essa morte que lhe infligem é por ele aceita; ele próprio a oferece como o sacerdote oferece a vítima; e é por isso que ele dela espera a expiação dos pecados, a instauração da nova Aliança, a salvação de seu povo. Numa palavra, ele é o sacerdote de seu próprio sacrifício.

Acerca da segunda função sacerdotal do Antigo Testamento, o serviço da Torá; Jesus não veio bani-la, mas aperfeiçoá-la (Mt 5, 17s). Ele supera a letra, mostrando no primeiro e segundo mandamentos seu valor mais profundo (Mt 22, 34-40). Com isso, manifesta o prolongamento do sacerdócio do Antigo Testamento ao mesmo tempo em que torna evidente sua superação pela definitiva revelação do Evangelho da salvação e realização da Lei.[48]

Em João, no capítulo 17, destaca-se a chamada “oração sacerdotal”, em que Jesus pede por Si (v. 1-5), pelos discípulos (v. 6-19) e pela unidade dos futuros cristãos (v. 20-26). Esse capítulo não traz o termo “sacerdote”, mas pode ser comparado ao dia da Expiação (Lv 16, 17), pelo fato de Jesus estar se preparando para a morte.

Ao falar sobre a morte de Jesus, São Paulo evoca as figuras do cordeiro pascal (1 Cor 5, 7), da humilhação do Servo (Fl 2, 6-11), do dia da Expiação (Rm 3, 24ss). A morte de Cristo significa para o Apóstolo o sacrifício supremo, que Ele mesmo ofereceu; assim se encontram termos como a comunhão do sangue de Cristo (1 Cor 10, 16-22) e da redenção por meio dele (Rm 5, 9; Cl 1, 20; Ef 1, 7). Também em Romanos 3, 25, outra expressão do culto sacrifical é utilizada por São Paulo: “Deus o destinou para ser, pelo seu sangue, vítima de propiciação mediante a fé”. Acerca da oblação sacrifical de Cristo, o Apóstolo a descreve em Ef 5, 2 e Gl 2, 20. Da mesma forma como o próprio Jesus não Se intitulou sacerdote, São Paulo também não o faz.[49] Somente na carta aos Hebreus é que isto ocorre.

Em Hebreus 4, 14, Cristo recebe o título de Sumo Sacerdote. O pontífice é escolhido não para si mesmo, mas em favor dos homens (5, 1). Sendo mediador, ele não o é por escolha própria, senão por meio de um chamado, como no caso de Aarão (5, 4). “Assim também Cristo não se atribuiu a si mesmo a glória de ser pontífice. Esta lhe foi dada por aquele que lhe disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei (Sl 2, 7)” (Hb 5, 5). No entanto, Cristo não está na condição pontifical da linhagem aarônica, pois sendo o autor da salvação, “Deus o proclamou sacerdote segundo a ordem de Melquisedec” (Hb 5, 10). Melquisedec aparece na História sem uma origem definida, “sem pai, sem mãe, sem genealogia, a sua vida não tem começo nem fim; comparável sob todos os pontos ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre” (Hb 7, 3).

Abraão é posto como inferior a Melquisedec, pois “é o inferior que recebe a bênção do que é superior” (Hb 7, 7). Nessa perspectiva a mudança trazida pelo novo sacerdócio ― da ordem de Aarão para Melquisedec ― obriga o aperfeiçoamento da Lei (Hb 7, 11-12). De outra forma, a Lei já teria atingido sua plenitude na linhagem levítica.

Para São Tomás, o motivo pelo qual Cristo é da ordem de Melquisedec e não da linhagem levítica se dá por dois motivos, como explana (S. Th. III, q. 22, a. 6, resp.):

 Já foi dito que o sacerdócio da lei era a prefiguração do sacerdócio de Cristo, não de maneira adequada à verdade, mas de maneira muito deficiente. Por duas razões: quer porque o sacerdócio da lei não purificava os pecados, quer porque não era eterno, como o sacerdócio de Cristo. Ora, a superioridade do sacerdócio de Cristo, com relação ao sacerdócio levítico, estava prefigurada no sacerdócio de Melquisedec que recebeu o dízimo de Abraão, de quem, de alguma forma, o sacerdócio levítico dependia. Por causa desta superioridade do verdadeiro sacerdócio com relação ao sacerdócio prefigurativo da lei, se diz que o sacerdócio de Cristo é segundo a ordem de Melquisedec.

A aliança feita por Cristo é mais excelente e perfeita que a antiga (Hb 8, 6). Ela tem como base o próprio sangue de Cristo (Hb 9, 14); “por isso ele é mediador do novo testamento” (Hb 9, 15). A Lei antiga era apenas sombra dos bens que viriam, pois os sacrifícios eram renovados indefinidamente (Hb 10, 1), mas agora uma só oblação ― por meio de Cristo ― realizou a perfeição definitiva (Hb 10, 14).

Cristo é ao mesmo tempo a pedra viva ― rejeitada pelos homens, mas escolhida por Deus ― desse edifício espiritual (1 Pd 2, 4-5). Assim, se encontrará na carta de São Pedro a relação do sacerdócio de Cristo como um novo povo adquirido por Deus e ao qual santificou, tirando das trevas para a luz, denominado “sacerdócio régio” (1 Pd 2, 9). Esta é a expressão do pensamento contido em Êxodo 19, 6. O sacerdócio é visto aqui como acesso ao conhecimento de Deus, e o seu papel profético consiste em proclamar essa visão íntima. Agora, o sacerdócio cristão toma o lugar do judaico; no entanto, expressões fundamentais do ritual levítico, passam para a igreja primitiva e são utilizados pelos cristãos, tais como: aspergido, lavado, primogênito, altar etc.[50]

Em Apocalipse (1, 6; 5, 10; 20, 6) também está expressada a ideia do reino sacerdotal de Êxodo 19, 6. A comunidade se beneficia da dignidade sacerdotal como parte da dignidade real concedida por Deus, por meio de Seu Cristo. Esse sentido sacerdotal não se deve à relação com o Templo, pois este não existirá na Jerusalém Celeste (Ap 21,22), mas o próprio Deus e o Cordeiro irão assumir a função de Templo.[51]

No Novo Testamento Jesus nunca denomina qualquer de seus seguidores com o título de sacerdote, mas da mesma forma que no Antigo Testamento, somente são Seus ministros aqueles a quem Deus chama. O chamamento dos doze, a transmissão de poderes (Mt 10, 8.40; 18, 18) e a entrega da Eucaristia (Lc 22, 19) já se torna uma participação específica do sacerdócio.[52]

As explicações ulteriores da tradição tomam como base a compreensão dos apóstolos acerca do ministério sagrado, que ao mesmo tempo não prejudica o sacerdócio de Cristo nem o dos fiéis.[53] Assim descreve este pensamento George (1972, p. 931):

Os Apóstolos o compreendem. Eles estabelecem por sua vez responsáveis para prolongar sua própria ação. Alguns destes últimos trazem o título de Anciãos, que é a origem do nome atual dos sacerdotes (presbíteros: At 14, 23; 20, 17; Tt 1, 5). A reflexão de Paulo sobre o apostolado e os carismas já se orienta para o sacerdócio dos ministros da Igreja. Aos responsáveis pelas comunidades ele dá títulos sacerdotais: “administradores dos mistérios de Deus” (1 Cor 4, 1s), “ministros da nova Aliança” (2 Cor 3, 6); ele define a pregação apostólica como um serviço litúrgico (Rm 1, 9; 15, 15s). Aí está o ponto de partida das ulteriores explicações da tradição sobre o sacerdócio ministerial. Este não constitui, portanto, uma casta de privilegiados. Não significa prejuízo nem para o sacerdócio único de Cristo nem para o sacerdócio dos fiéis. Mas, a serviço dum e de outro, ele é uma das mediações que garantem o serviço do povo de Deus.

No Novo Testamento tem-se, portanto, uma inter-relação do sacerdócio instituído com o sacerdócio de Cristo (expressão da plenitude sacerdotal) e com o sacerdócio régio da comunidade. Essa relação constante e efetiva entre o divino e o humano é o resultado da mediação sacerdotal levada à perfeição.

GERALDO, Thiago de Oliveira. O sacerdócio levítico no contexto histórico-bíblico. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 9, Out-Dez 2009. p. 71-80.


[1] DUFOUR, Xavier Leon S. J. Vocabulário de teologia bíblica. Tradução de Frei Simão Voigt O.F.M. Petrópolis: Vozes, 1972.

[2] Cf. BORN, op. cit., p. 1351.

[3] Cf. Jz 17,5; 18,5-6; 1 Sm 14,36-42.

[4] Cf. Dt 27,9-10; 31,10-13.

[5] MONLOUBOU, L.; DU BUIT, F. M. Dicionário Bíblico Universal.. Tradução de Gentil TITTON et al. 2. ed. Petrópolis: Santuário, 2003.

[6] Cf. Gn 8, 20; 31,54.

[7] Cf. Ex 18,12.

[8] Cf. BROWN, op. cit., p. 287-288.

[9] Cf. Ex 32, 25-28; Dt 33, 8-11.

[10] Cf. Dt 10, 9.

[11] Cf. Dt 27, 14-26; 31, 24-28.

[12] Cf. Ex 2, 1-2.

[13] Cf. 1 Rs 12, 28-33.

[14] Cf. Jz 17.

[15] Cf. Jz 18.

[16] Cf. 1 Sm 1, 3.

[17] Cf. 1 Sm 22, 6-23.

[18] Cf. BROWN, op. cit., p. 288.

[19] Cf. 1 Rs 4, 1-6.

[20] Cf. 1 Rs 12, 25-33.

[21] Cf. 2 Rs 10, 11.

[22] Cf. 2 Rs 11.

[23] Cf. 2 Rs 17, 23.

[24] Cf. 2 Rs 17, 27-28.

[25] Cf. 2 Rs 25, 7.

[26] Cf. 2 Rs 25, 18.

[27] Cf. 2 Rs 22;23, 1-28.

[28] Cf. Nm 18, 1-7.

[29] Cf. 1Cr 23 ,2.

[30] Cf. Ex 29, 29-30.

[31] Cf. Ez 44, 10-14.

[32] Cf. Ez 44, 15-16.

[33] Cf. 1 Cr 24, 1-3.

[34] Cf. BROWN, op. cit. p. 288.

[35] Cf. Ne 8.

[36] Cf. 1 Cr 24.

[37] Segundo SÁNCHEZ (1997, p. 185): “Todos eles viviam do templo e constituíam o partido saduceu”.

[38] Cf. Lv 11-15.

[39] Cf. Lv 21.

[40] Cf. 1 Cr 6, 16-17.

[41] Cf. 1 Cr 6, 33-34.

[42] Cf. BALZ, Horst e SCHNEIDER, Gerhard. Diccionario Exegético del nuevo testamento. 3 ed. Vol. I. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2002. p. 1953.

[43] Cf. Mt 8,4 paralelo com Mc 1, 14; Lc 5, 14; 17, 14.

[44] Cf. BROWN, op. cit. p. 291.

[45] Cf. Os 6,6.

[46] Cf. BALZ e SCHNEIDER, op. cit. p. 1954.

[47] Cf. TERRA, op. cit. p. 64.

[48] Cf. DUFOUR, op. cit. p. 929.

[49] Cf. TERRA, op. cit. p. 65.

[50] Cf. BROWN, op. cit. p. 292.

[51] Cf. BALZ e SCHNEIDER, op. cit. p. 1955.

[52] Cf. DUFOUR, op. cit. p. 931.

[53] No sentido explicado acima (sacerdócio régio).