Qumram: As misteriosas cavernas de Israel

QumranEspírito audaz e muita perspicácia: eis os predicados exigidos tanto dos componentes da equipe do Pe. Roland de Vaux quanto posteriormente, dos estudiosos que decifrariam os enigmas dos objetos encontrados nas cavernas e ruínas próximas ao Mar Morto.

Thiago de Oliveira Geraldo

Ele a procura por todos os lados, mas não encontra. Onde estará a ovelha de Mohammed ed-Dib (“o Lobo”)? Pertencente à tribo beduína dos Ta’âmireh, o jovem pastor tenta localizar o animal desgarrado entre as reentrâncias da falésia que se estende a centenas de metros do nível do Mar Morto. Os nativos da região sabiam da existência de ruínas a pouco mais de dez quilômetros da cidade de Jericó, esse lugar era denominado Qirbet Qumran. Suas ruínas se situam cerca de um quilômetro da margem do “Mar Salgado”. Para Mohammed o que lhe interessava naquele início de 1947 era encontrar seu animal que havia se desgarrado a 1.300 metros ao norte da Qirbet. Enquanto procurava a ovelhinha, entrou em uma das cavernas e ali observou que havia jarros de argila, porém não quis permanecer sozinho naquele lugar; mais tarde voltou com um companheiro e acharam, dentro dos jarros, rolos de pele manuscritos envoltos em pano de linho e levaram sete que estavam em melhor estado. Parece lenda, mas foi assim que em pleno século XX, um jovem de uma tribo nômade descobre a primeira gruta de Qumran, suscitando o interesse e esforço de estudiosos do mundo inteiro para cuidadosas pesquisas. Inicialmente quatro destes rolos foram vendidos ao bispo do mosteiro sírio (São Marcos de Jerusalém) e depois transportados para os Estados Unidos. Voltaram a Israel mediante pagamento de 250.000 dólares, em 1954. Os outros três foram adquiridos pelo Pe. E. L. Sukenik (em nome da Universidade Hebraica). Por meio de negociações, a Universidade Hebraica de Jerusalém, acabou possuindo os sete rolos desta primeira descoberta.

O reconhecimento inicial

O conflito árabe-israelense (1948-1949) impediu qualquer reconhecimento arqueológico. Somente após seu término foi possível a uma comissão iniciar as pesquisas arqueológicas na gruta. A expedição comandada pelo Pe. de Vaux (diretor da Escola Bíblica e Arqueológica Francesa e presidente do Comitê Internacional para a Gestão do Museu Arqueológico Palestino), tinha a colaboração do inglês Gerald Lankester Harding, diretor do Serviço de Antiguidades da Jordânia, e do Capitão belga, Philipper Lippens, um observador da ONU. No início de 1949, esta comissão explorou a gruta que só permitia acesso por uma estreita janela ou rastejando por uma abertura rente ao chão; posteriormente as escavações ampliaram essas fendas. Com oito metros de comprimento e dois de largura, a gruta continha – além dos sete manuscritos extraídos pelos beduínos − dois candeeiros de argila, cerca de cinquenta jarros e 600 fragmentos de pele, correspondendo a setenta manuscritos. Encontraram também quarenta papiros muito deteriorados e alguns pedaços de tecido de linho (provavelmente utilizados para envolver os escritos).

Onze grutas, onze mistérios

As grutas de Qumran foram classificadas de acordo com os manuscritos nelas encontrados. Levam o número cronológico de sua descoberta, mais a letra representativa do local (a primeira gruta de Qumran = 1Q, etc.). Em março 1952, a mesma tribo beduína encontrou mais duas grutas (2Q e 3Q). Na primeira delas – ao sul da 1Q e de acesso muito difícil – foram extraídos 185 fragmentos, o que representa cerca de quarenta manuscritos. A dois quilômetros ao norte da Qirbet encontra-se a 3Q, com dificuldade de ingresso devido a um desmoronamento do teto. Aqui 274 fragmentos são encontrados, mas apenas 90 aproveitáveis; ademais de 30 rolos de peles muito deteriorados pelo clima e animais roedores. A grande riqueza encontrada na 3Q são alguns rolos de cobre, com textos em caracteres hebraicos, alguns destacados em relevo. Com estas descobertas o Pe. de Vaux iniciou uma campanha visando explorar oito quilômetros de extensão na falésia, a fim de localizar novas cavernas. Das áreas pesquisadas (entre cavidades e gretas), 40 apresentaram restos de materiais, inclusive cerâmica e 230 não deram nenhum resultado positivo. Mais tarde, a família dos Ta’âmireh encontra mais duas grutas (4Q e 5Q), baseados na narração de uma caçada feita por um velho beduíno, que dizia ter encontrado cerâmica antiga ao perseguir uma perdiz ferida no terraço da falésia (os exploradores não tinham dado grande importância a estas cavidades). Avisados, a equipe de pesquisadores comandados pelo Pe. de Vaux e pelo abade Milik exploram a região lateral daquele rochedo íngreme durante uma semana, até que localizam a caverna indicada pelos beduínos. Cerca de 400 manuscritos foram encontrados na 4Q. A 5Q abrigava alguns poucos escritos em estado de fragilidade extrema. Próximo desse local, os pesquisadores encontram um orifício na falésia que continha 718 fragmentos de papiro e 57 de pele. Calcula-se que seu número era de 30 manuscritos. Esta passou a ser a 6Q. Possuía sinais de pessoas – provavelmente beduínos – que tinham passado há pouco pelo local. Uma expedição realizada de fevereiro a abril de 1955 conduziu os exploradores a encontrarem mais quatro grutas. Essas foram escavadas por homens, mas a erosão fez com que houvesse um desmoronamento nas bordas do terraço. Pouco se extraiu dessas grutas “artificiais”. No início de 1956, os beduínos localizaram a última gruta (11Q) cerca de dois quilômetros do Qirbet Qumran. Depois disso, não se encontrou mais nenhuma gruta com manuscritos. No entanto, um objeto descoberto na gruta onze levantou polêmica. Trata-se de uma ferramenta ao mesmo tempo parecida com uma machadinha e uma espécie de picareta que poderia fazer alusão a um instrumento usado pelos essênios.

Quem eram os essênios?

Na época de Jesus havia três grandes facções religiosas: os saduceus, os fariseus e os essênios. Posteriormente surgiram outras. Essas divisões se fizeram sentir na época da resistência dos Macabeus (século II a.C.). Os saduceus (referência ao sacerdócio de Sadoc) eram constituídos pelos sacerdotes, os quais cuidavam do Templo de Jerusalém e tinham sido influenciados pela mentalidade helênica. Os fariseus (palavra que significa “separados”) era uma corrente de leigos que não queria compartilhar da influência estrangeira e, por isso, se aprofundaram no estudo da Torá (Lei). Os essênios eram conhecidos pelo seu modo de vida austero, pela sua crença na imortalidade da alma e pela continência que praticavam. Atraíam muito a admiração de seus compatriotas, bem como de estrangeiros. Os relatos sobre sua conduta estão contidos, de maneira especial, em escritores antigos, como: Fílon de Alexandria, Flávio Josefo, Hipólito de Roma e Plínio, o Antigo. As descobertas do Mar Morto trazem informações mais precisas sobre a comunidade essênica, a provável moradora de Qumran.

Qirbet Qumran: uma história por trás de ruínas

Após a descoberta da 11Q, fizeram-se explorações ao sul do Qirbet Qumran. Encontraram uma habitação, na qual a parte ocidental constituía a moradia dos vivos e a oriental o descanso dos mortos. Os túmulos localizados chegaram a 1.200, e uma grande quantidade deles era constituído por homens entre vinte a quarenta anos, que provavelmente foram mortos numa resistência militar e sepultados após a retirada do inimigo vencedor. Dentre as descobertas realizadas ali, chama a atenção uma oficina de cerâmica (cujos formatos assemelhavam-se às encontradas nas grutas) e um scriptorium (escritório). Apesar de não se encontrarem manuscritos no local, estes dois ambientes indicam que seus moradores escreviam e faziam jarros de cerâmica para guardar os escritos. Portanto, havia uma atividade de escribas (copistas) em Qumran. Apesar de não se ter notícia de moedas nas onze grutas exploradas, nas ruínas de Qumran foram encontradas 1.250 peças (segundo o Pe. de Vaux), das quais a maioria podia ser reconhecida. Através do tipo de moeda pode-se prever os períodos de ocupação de Qumran. Restos de muros e cacos de cerâmica encontrados a nordeste da edificação principal faz remontá-la ao século VIII-VII a.C. Esta habitação pode estar fazendo menção à “Cidade do Sal” (Jos 15,62), mas da qual não se tem mais informações. Provavelmente o primeiro período de ocupação em Qumran (segundo as moedas ali localizadas) se deu por volta do ano 100 a.C., terminando com um tremor de terra assolador no ano 31 a.C. O segundo período que se iniciou cerca de 30 anos depois da tragédia, vai até o ano 68 d.C., onde um destacamento do general romano, Vespasiano, conquistou Qumran durante a ocupação de Jericó. As moedas encontradas na segunda camada arqueológica (dos anos 67-68 d.C.) correspondem ao período da Primeira Revolta dos Judeus contra Roma (anos 66 a 70 d.C.). A partir de então, o terceiro período de ocupação limita-se à manutenção do edifício por parte de um posto romano, até o domínio completo da revolta (com a queda da fortaleza de Massada no ano 73 d.C). As moedas resgatadas pelos arqueólogos – correspondentes a este período – datam dos anos 69-70 a 72-73. Possivelmente os ocupantes de Qumran nesta época seriam a 10ª legião romana (comandada pelo general Trajano – pai do futuro imperador Trajano). Das peças descobertas, sete moedas referem-se ao Período da Segunda Revolta dos Judeus contra Roma (anos 132-135 d.C.); isso mostra que um destacamento de judeus resistiu na Qirbet durante esse período. Com este contexto histórico, a colocação dos manuscritos nas grutas do Mar Morto deu-se no mais tardar em junho do ano 68 d.C., por causa dos conflitos. O que contêm esses manuscritos? Os fragmentos encontrados nas onze grutas correspondem a cerca de 600 manuscritos. Neles estão contidos livros bíblicos e obras até então desconhecidas, como: comentários bíblicos (Targum) de cunho polêmico, regulamentos para a admissão de adeptos e modo de vida para uma comunidade, tática militar, etc. Apenas 11 destes manuscritos se apresentam quase íntegros (sete da 1Q e quatro da 11Q). Os conservados na gruta 11 continham um manuscrito do Levítico, uma compilação de Salmos, um Targum de Jó e um texto litúrgico de caráter apocalíptico. Os localizados na 1Q correspondem aos seguintes temas: duas cópias do livro de Isaías, um comentário de Habacuc (estes são os bíblicos), regulamento da Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas, Apócrifo do Gêneses, Regra de disciplina e Hinos. O rolo do Regulamento da Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas é o que está em melhor conservação e o Apócrifo do Gêneses é o único que apresenta o texto em aramaico. Da lista geral dos 600 manuscritos, praticamente um quarto deles refere-se a textos bíblicos, inclusive com livros deuterocanônicos. Também chamam a atenção alguns textos de códigos disciplinares (Regra de disciplina e sobre a Guerra) que apresentam semelhanças com textos encontrados por Salomon Schechter na genizá (sacristia) de uma sinagoga do Cairo (1896-1897), conhecidos como Documento (ou Escrito) de Damasco. Isto indica que provavelmente tinham várias comunidades essênicas espalhadas. Testes científicos começaram a realizar-se, a fim de comprovar a veracidade dos documentos. O Prof. Willard F. Libby efetuou uma pesquisa nuclear (teste carbono 14) no Instituto de Física Nuclear de Chicago. Este comprovou que um pedaço de linho retirado de um rolo do Profeta Isaías era do tempo de Jesus. A publicação das descobertas de Qumran não tardou. Por volta da década de 50 começou a divulgação das pesquisas; no entanto, só o tempo e o trabalho apurado de especialistas poderão desvendar todo o valor contido nestes documentos.

Três tradições textuais da Bíblia

Quando nos dias de hoje se toma uma Bíblia na mão, talvez nem se imagine que ela teve mais de uma versão na antiguidade. Três são as principais versões (tradições) da Bíblia: a Samaritana, o Cânon de Jâmnia e a Tradução dos Setenta. Na tradição Samaritana está presente apenas o Pentateuco (cinco primeiros livros da Bíblia: Torá – Lei). Não modificaram seu cânon mesmo depois de novas edições da Bíblia Hebraica. O Cânon de Jâmnia se fez necessário depois da dispersão dos judeus com a tomada de Jerusalém pelas tropas de Tito no ano 70 d.C., a fim de resguardar a integridade religiosa da nação naquela emergência. Este trabalho foi realizado pelos fariseus em Jâmnia (Yabnéh) onde sua escola rabínica se tornou próspera. O Cânon de Jâmnia excluiu de sua Bíblia sete livros sagrados (conhecidos como deuterocanônicos: Tobias, Judite, Baruc, Eclesiástico, Sabedoria, 1 e 2 Macabeus); além de fragmentos de Daniel (3,24-90; 13-14) e Ester (10,4-16,24). Este texto de Jâmnia não continha vogais, por isso, foi realizado um exaustivo trabalho – iniciado no século VI d.C. e terminado no século X – com a finalidade de colocar sinais que indicassem as vogais das palavras, evitando equívocos de interpretação. Estes sinais são pontos vocálicos que não modificam a estrutura da palavra hebraica. O texto tornou-se conhecido como Massorá e os compositores destes sinais como massoretas (“testemunhas da Tradição”). Uma terceira tradição, mais antiga que a massoreta é a de Alexandria. Esta é a versão grega da Escritura Hebraica. A primeira referência a esta versão dá-se por volta do ano 200 a.C. na chamada “Carta de Aristéias”. Segundo esta correspondência, o rei do Egito, Ptolomeu II Filadelfo (287-247 a.C.) encomendou, a pedido do responsável da – recém fundada – biblioteca de Alexandria, Demétrio de Fálaro, uma cópia dos livros sagrados dos judeus. Foi enviada uma embaixada judaica ao Egito composta por seis membros de cada tribo de Israel, somando 72 sábios. Daí provém o nome de “Tradução dos Setenta” ou “Septuaginta” (LXX). Durante sete dias foram submetidos a 72 perguntas das quais responderam com toda sabedoria. Em 72 dias sua missão estava terminada; a tradução dos livros sagrados do hebraico para o grego chegava a seu curso. Desde então a obra passou a fazer parte do acervo daquela biblioteca. As descobertas de Qumran traziam manuscritos correspondentes a estas três tradições. Isso significa um importante acervo para comparações e estudos das versões vigentes até aquele momento (como, por exemplo, o texto em hebraico, onde o mais antigo manuscrito conhecido datava do século IX d.C.). Como sublinha o Pe. Dupont-Sommer, esta descoberta não invalida os estudos já realizados referentes à crítica, mas fornece material que possibilitará uma pesquisa mais sólida.

O mapa do tesouro O que faríamos se nos fosse entregue um mapa de um tesouro? Acreditaríamos ter em mãos um guia para encontrar riquezas incalculáveis? Ou pensaríamos ser isto uma fraude qualquer? Na gruta 3Q foram encontrados rolos de cobre. Após averiguar o estado dos rolos e tê-los preparado, o Pe. H. Wright Baker (da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Manchester) resolveu cortá-los em 23 tiras, a fim de ler o que neles estava escrito. Primitivamente estes rolos pareciam estar unidos por rebites. Tudo indica que são três folhas de cobre, medindo trinta centímetros por oitenta. Os caracteres gravados nos rolos estão em hebraico. E o que estava escrito neles? Uma relação de tesouros! Na lista, 63 desses tesouros estavam descritos e sua localização indicada. Inclusive constava haver uma segunda lista mais detalhada. A soma destas preciosidades (ouro, prata, objetos sagrados para o culto, vestimentas, substâncias odoríferas, etc.) somava 4.632 talentos, o que equivale mais ou menos de 150 a 160 toneladas de material valioso. Tudo no território da Palestina. A lista será verdadeira? Pode-se, pelo contrário, perguntar o que teria levado à confecção de tais rolos, com a preocupação de escondê-los numa gruta, se tudo fosse mera lenda… Há indícios históricos (documentais) de valores semelhantes ou superiores a esse, como o caso narrado por Flávio Josefo, quando Pompeu exigiu cerca de 10.000 talentos por ocasião da tomada de Jerusalém; ou quando Crasso – mais tarde – se apoderou de 2.000 talentos do Templo nos quais Pompeu não havia tocado, além de 8.000 talentos dos tesouros do Templo. No entanto, não é provável que este tesouro ao qual se referem os rolos de cobre, fosse do Templo, pois este havia sido saqueado pelos romanos na tomada de Jerusalém no ano 70 d.C. Uma hipótese é a de que o tesouro pertencera a um grupo de judeus insurrectos da Segunda Revolta contra Roma (132-135 d.C.), comandados por Bar-Kokheba (chamado de “filho da estrela” por Justino e Eusébio) mas, devido à aproximação das legiões romanas, teriam julgado mais prudente espalhar o tesouro e alguns, refugiados em Qumran, ali guardaram os rolos de cobre. Outra hipótese é que o tesouro pertencera à Comunidade de Qumran, pois havia um encarregado de administrar as riquezas pertencentes aos membros da comunidade.

O fragmento 7Q5

“De fato, não tinham compreendido nada a respeito dos pães. O coração deles continuava endurecido. Tendo atravessado o lago, foram para Genesaré e atracaram” (Mc 6,52-53). Talvez o texto acima já tenha sido lido em várias ocasiões ou contemplado na liturgia, mas ele traz uma grande mudança para os estudos bíblicos. Nas descobertas de Qumran acreditava-se que todos os textos pertenciam ao Antigo Testamento, mas o Pe. José O’Callaghan S.J. (professor de papirologia grega no Instituto Pontifício Bíblico – Roma) publicou um estudo em março de 1972 intitulado “Papiros do Novo Testamento dentro da gruta 7 de Qumran?”, onde estudos de papirologia indicavam que alguns textos de Qumran faziam parte do Novo Testamento. Em especial o Evangelho de Marcos 6,52-53, fragmento denominado como 7Q5 (a gruta 7 de Qumran e o número 5 é para identificá-lo entre os demais papiros ali encontrados). Com o achado dos versículos 52 e 53 do Evangelho de S. Marcos, o tempo de “tradição oral” que se supunha ser de quarenta anos depois da morte de Jesus Cristo, para a redação final do Evangelho, se reduziria para vinte, contradizendo o que a crítica pensava até então. Acerca desta hipótese, comenta o Pe. Martini – hoje cardeal – (em maio do mesmo ano de 1972, enquanto Reitor do Instituto Bíblico de Roma) que era uma hipótese baseada em considerações graves e dignas de atenção, que precisava ser estudada sob o ponto de vista paleográfico, papirológico e arqueológico. Ainda comenta que algumas oportunidades novas e interessantes estavam se abrindo para avaliar a origem dos Evangelhos. Conclui dizendo que era prematuro se ocupar desses problemas antes que tenham sido examinados com mais cuidado os papiros e o contexto em que foram descobertos. Da mesma forma, o vice-reitor do Instituto Bíblico de Roma, o Pe. Schökel, dizia que a ciência ainda não teve tempo de se pronunciar. Mas que concretamente – naquele momento – era uma hipótese séria e sólida. O Pe. O’Callaghan encontra respaldo na ciência – como ele mesmo o atesta – por meio da professora de Papirologia, Montevecchi, que foi presidente da Associação Internacional de Papirólogos, e do Catedrático de Matemáticas, o Dr. Albert Dou. Ambos são afins com a hipótese do Pe. O’Callaghan. Outros, porém, são de tese contrária, como o Pe. Pierre Grelot (biblista do Instituto Católico de Paris e membro da Comissão Pontifícia Bíblica). Numa entrevista para 30 giorni em junho de 1991, acusava O’Callaghan de ter feito uma conjectura completamente absurda, que tem um fim apologético. A suposição do Pe. O’Callaghan é uma hipótese em estudo. Vale ressaltar que na sétima gruta, ao contrário das demais (que continham a escrita hebraica ou aramaica sobre pergaminho), os escritos estavam em grego sobre papiro.

Uma realidade atual

As descobertas realizadas nas grutas e ruínas de Qumran não caíram no esquecimento e ainda continuam fascinando o mundo. A Dra. Pnina Shor, chefe da Seção de Conservação de Artefatos do Departamento de Antiguidades de Israel, foi a encarregada de uma exposição de 17 artigos ocorrida em Toronto, no Royal Ontario Museum, encerrada em 3 de janeiro deste ano. O maior descobrimento arqueológico do século XX fez com que uma geração inteira de estudiosos – para não dizer o mundo − dedicasse suas vidas para analisá-las. O tema ainda desperta interesse em estudiosos e muitos debates se fazem a propósito desta descoberta. No entanto, a Providência somente permitiu que estes manuscritos fossem encontrados quase vinte séculos depois de sua inclusão nas grutas. Por que tanto tempo? Será que não havia reservado esta descoberta para uma época em que a fé se tornou “passível de dúvida”, para assim despertar novamente o senso religioso nos corações humanos?

Bibliografia:

BIBLICA: Commentarii editi cura pontificii institute Biblici. Vol. 44. Fasc. 2, 1963, p. 231-233.

CARMIGNAC, J. – GUILBERT, P. Les Textes de Qumran traduits et annotés. La Règle de la Guerre, Les Hymnes. (Autour de la Bible). Paris, Letouzey et Ané 1961. 284.

(M. DAHOOD). CAVALLETTI, S. Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs; organizado por Angelo Di Berardino. Petrópolis: Vozes, 2002.

DAHLER, Etienne. Lugares Bíblicos. Aparecida: Editora Santuário, 1997.

JEREMIAS, Joachim. Estudos no Novo Testamento. Trad. Itamir Neves de Souza. São Paulo: Ed. Academia Cristã Ltda, 2006.

JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas, Trad. Vicente Pedroso, 14ª ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2008.

KELLER, Werner. … e a Bíblia tinha razão. São Paulo: Círculo do Livro, 1978.

La Documentation Catholique: “A-t-on découvert des manuscrits du Nouveau Testament dans les documents de Qumran?”. 21 mai 1972 – n. 1609, p. 487-489.

LAPERROUSAZ, E.-M. Os manuscritos do mar Morto. São Paulo: Cultrix, 1961. LIMA. Alessandro Ricardo. O Cânon Bíblico: A Origem da Lista dos Livros Sagrados. São José dos Campos: Editora ComDeus, 2007.

MASSORI, Vittorio. Qumrán, séptima gruta. Publicado no n. 16 da revista Atlántida: Edição autorizada de arvo.net.

MONFORTE, Josemaría. Conhecer a Bíblia. Lisboa: DIEL-L, 1998.

O`CALLAGHAN, José. Confirmaciones científicas sobre el fragmento de San Marcos en Qumrán: 30 giorni, 8 (nº 82/83), 1994, pp 55-57; Los primeros testimonios del Nuevo Testamento. Papirología neo-testamentaria. Córdoba: El Almedro, 1995, p. 116-139.

Revista Arautos do Evangelho: “Palavras que mudaram o mundo”. n. 93, setembro de 2009. p. 48-51.

SCHEIFLER, J. R. Asi nacieron los Evangelios. Bilbao: Mensajero, 1967, p. 231-316.

A história do sacerdócio no contexto bíblico

Thiago de Oliveira Geraldo, EPlivro

Antes mesmo da instituição do sacerdócio na Bíblia, outros povos exerciam esta função, formando uma hierarquia organizada e hereditária; assim descreve George (1972, p. 924) esse aspecto:

Entre os povos civilizados que cercam Israel, a função sacerdotal é muitas vezes exercida pelo rei, notadamente na Mesopotâmia e no Egito; o rei é então assistido por um clero hierarquizado, no mais das vezes hereditário, que constitui uma verdadeira casta. Não há nada disso entre os patriarcas. Não existe então nem templo, nem sacerdotes especializados do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó.[1]

No Antigo Testamento as fontes sacerdotais são de dois tipos: de forma narrativa e de leis.[2] Numa primeira visualização acerca do sacerdócio no contexto bíblico, não se encontra o aspecto sacrifical ― que depois veio a ser exercido ―, mas o serviço da adivinhação[3] e a instrução sobre a Torá.[4] Segundo Monloubou (2003, p. 704): “Tanto quanto os profetas, os sacerdotes são moralistas que ensinam o povo a se dispor ao culto e a prolongar os efeitos por uma conduta digna”.[5]Ademais, os chefes de cada família tinham o poder de sacrificar;[6] aliás, como foi o caso do próprio Jetro ― sogro de Moisés ― que ofereceu holocausto e sacrifício no Sinai, depois comeu com Aarão e os anciãos de Israel.[7]

A origem levítica provavelmente remonta a um ramo sacerdotal oriundo de Cades, com os quais Moisés mantinha relações firmes.[8] Eles alegavam possuir a origem sacerdotal exclusiva.[9] Juridicamente não possuíam terras,[10] por serem da tribo escolhida, mas zelavam pela tradição das leis sagradas dentro do povo.[11] A pessoa de Moisés era considerada levita.[12]

Sobre a origem levítica de Aarão ocorrem controvérsias. Em Ex 4, 13-16 ele é considerado levita e irmão de Moisés; no entanto, ora se torna intercessor junto a Moisés (Nm 12, 11-12), ora assume a condição de sacerdote de um bezerro de ouro idolátrico (Ex 32, 1-5). Este fato ligado à contenda entre Roboão e Jeroboão faz com que Aarão seja uma espécie de precursor do sacerdócio em Betel, pois Jeroboão também construiu um bezerro de ouro em Betel e outro em Dã e estabeleceu sacerdotes do meio do povo que não eram levitas.[13]

Num período pré-monárquico em que ainda não havia rei, cada qual fazia o que lhe parecia melhor; foi assim que Mica, da montanha de Efraim, convidou um levita para tornar-se seu sacerdote, após a fundição de um ídolo com 200 moedas de prata encomendado por sua mãe.[14] A imagem fundida com as 200 moedas e o sacerdote levita foram mais tarde sequestrados pela tribo de Dã, que queria estabelecer-se na cidade de Laís. O levita alegrou-se por se tornar como que pai e sacerdote de uma tribo em vez de uma família. Jônatas, filho de Gerson, filho de Manassés, constituiu-se, juntamente com seus filhos, sacerdote da tribo de Dã até o dia do cativeiro. O que tem como intento a legitimidade do sacerdócio, remontando-o até Moisés. Isto se passou enquanto a casa de Deus estava em Silo,[15] onde Eli desempenhava o ofício sacerdotal por meio de sacrifícios e holocaustos.[16] Após o declínio da família de Eli, tem-se notícia de uma cidade sacerdotal em Nobe. O chefe desta família, o sacerdote Aquimelec, dá alimento a Davi e seus companheiros. Por esse motivo, Saul determina que toda sua família seja exterminada, exceto Abiatar que se refugia com Davi.[17]

Entrando no período monárquico, o sacerdócio ganha estruturação e a partir daí o culto no Templo torna-se vigoroso.[18] Salomão organiza a estrutura de seu reino e com isso o culto fica centralizado no Templo em Jerusalém.[19] No entanto, com o cisma samaritano os cultos locais ganham novamente realce.[20] Nessa época o sacerdócio e a monarquia tinham uma firme aliança, como mostra o massacre dos filhos de Acab, no qual Jeú extermina a todos, inclusive os sacerdotes que serviam o rei.[21] Isto não se passava somente em Israel, mas também em Judá, como o caso do refugiado Joás, que ficou seis anos escondido no Templo e depois, com a conspiração do sacerdote Jojada, torna-se rei.[22]

As classes sacerdotais formadas em comunhão com a monarquia foram respectivamente deportadas pelos conquistadores de seus reinos. Israel caiu com a invasão assíria e colonos se estabeleceram na Samaria.[23] Algum tempo depois, sacerdotes são trazidos da deportação para ensinar a religião aos colonos,[24] Judá é conquistada por Nabucodonosor e Sedecias, deportado para a Babilônia.[25] Inclusive o sumo sacerdote Saraías e Sofonias, segundo sacerdote, são levados para o cativeiro.[26]

Um passo importante para o sacerdócio de Judá, ocorrido antes da deportação para a Babilônia, deu-se com a descoberta do livro da aliança no Templo, pelo sumo sacerdote Helcias. Após as palavras da profetisa Holda, o rei Josias promoveu uma reforma geral no culto: renovando a aliança com Deus, ele ordenou a Helcias, aos sacerdotes de segunda ordem e aos porteiros que limpassem o Templo de todos os objetos idolátricos que lá havia; despediu os sacerdotes idólatras e os que adoravam os astros do céu e mandou profanar os lugares que tinham sido objeto de culto idolátrico, unificando, dessa forma, o culto ao Deus verdadeiro no templo de Jerusalém.[27]

Na época exílica, com a condensação da lei sacerdotal levítica, ficou assegurado que a tribo sacerdotal por excelência seria a de Levi,[28] e mesmo assim nem todos os levitas seriam sacerdotes.[29] A Aarão e seus filhos ficou reservada a função de sumo sacerdote.[30] No entanto, Ezequiel, ao divisar o “novo Israel” (capítulos 40-48) recorda que os levitas abandonaram o culto verdadeiro para seguir a ídolos, por isso, apenas teriam funções menores dentro do Templo.[31] Os cargos mais importantes, inclusive o de sumo sacerdote, estão reservados aos levitas descendentes de Sadoc, que permaneceram fiéis ao santuário enquanto os israelitas se afastavam.[32] Sadoc foi sacerdote pré-davídico da linhagem de Eleazar, filho de Aarão.[33] Segundo Born (2004, p. 1352):

Sob Davi aparece uma nova família, a de Sadoc, de origem obscura, mas na tradição sacerdotal ligada com Eleazar, filho mais velho de Aarão. Essa família suplantou a de Eli (1 Sm 2, 27-36) e outras que eram consideradas como descendentes do terceiro e do quarto filhos de Aarão, Nadab e Abiu, e obteve afinal a hegemonia em Jerusalém.

A reconstrução pós-exílica levou em conta esta declaração de Ezequiel, o que tornou os sadoquitas sacerdotes principais, enquanto à descendência de Arão coube a parte do sacerdócio comum e os genitores levitas ficaram sendo os servos do Templo.[34] Além da restauração e centralização do culto no Templo, a leitura e explicação da lei passou a ter um realce cada vez maior. Agora não só o aspecto sacrifical era preponderante, mas a especialização legalista das Escrituras Sagradas se torna cada vez mais relevante.[35] Essa concepção legalista mais tarde ultrapassa a própria dignidade sacerdotal.

À época do Messias, os sacerdotes já estavam categorizados segundo normas anteriores. Para os sacerdotes comuns havia 24 divisões de serviços,[36] os quais poderiam exercer outras funções no tempo vago.[37] Geralmente faziam as leituras e explicações da Torá nas sinagogas e eram encarregados das questões de pureza ritual.[38] A hierarquia estabelecida funcionava de forma hereditária. Portanto, a separação entre os sacerdotes principais e os sacerdotes comuns era bem acentuada. Os levitas dessa época que deveriam viver em cidades levíticas,[39] tinham como funções a de cantores[40] e demais serviços do Templo.[41]

4. O sacerdócio no Novo Testamento

No Novo Testamento o substantivo hiereus (sacerdote) é empregado 31 vezes, das quais 14 na carta aos Hebreus. Marcos a emprega duas vezes, Mateus três e Lucas oito vezes (cinco no Evangelho e três em Atos). No Evangelho de João encontra-se apenas uma vez (1, 19) e três no Apocalipse. Note-se que nas cartas do Novo Testamento a única que leva esse termo é em Hebreus, as demais não o utilizam. Quando se fala em sacerdote no Novo Testamento, pode-se estar referindo aos pagãos (At 14, 13) ou aos sacerdotes judeus.[42]

Os contatos de Jesus com sacerdotes não eram frequentes; ocorriam quando mandava aqueles a quem havia curado mostrarem-se a eles,[43] devido aos conceitos de purificação ritual, os quais declaravam a pessoa isenta de impurezas e apta a frequentar novamente a sociedade. Ao mesmo tempo isto servia para a afirmação da autoridade de Jesus.[44]

A parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37) apresenta uma crítica aos sacerdotes (v. 31) que promoviam simplesmente um culto externo. O evangelho de Mateus (12, 4), com seu paralelo em Marcos 2, 26 e Lucas 6, 4, mostra como o rei David comeu os pães da proposição ― que lhes era proibido ― e Mateus aproveita para afirmar o senhorio de Jesus sobre o sábado e o Templo, alegando que os sacerdotes também rompem o sábado para exercer suas funções. Para essa afirmação de Jesus é dado como argumento a própria Sagrada Escritura.[45] A relação positiva de Jesus com os sacerdotes e levitas em relação ao acontecimento da salvação somente se verifica em Lucas (1, 5.8) e Atos (6, 7).[46]

Nos Evangelhos sinóticos Jesus nunca atribui a Si mesmo o título de sacerdote, preferindo utilizar a expressão “Filho” ou “Filho do Homem”; desta forma, faz uma distinção clara entre Sua missão e a dos sacerdotes aarônico e levítico. No entanto, Sua missão está envolta de conceitos sacerdotais.[47]

O fato mais esclarecedor da ação sacerdotal implícita e figurada de Jesus encontra-se na Sua morte. Segundo George (1972, p. 928-929):

 Para seus inimigos, esta é o castigo dum blasfemo; para seus discípulos, um fracasso escandaloso. Para ele, ela é um sacrifício que ele descreve com as figuras do Antigo Testamento: compara-a ora com o sacrifício expiatório do Servo de Deus (Mc 10, 45; 14, 24; cf. Is 53), ora com o sacrifício de Aliança de Moisés ao pé do Sinai (Mc 14, 24; cf. Ex 24, 8); e o sangue que ele dá no tempo da Páscoa evoca o do cordeiro pascal (Mc 14, 24; cf. Ex 12, 7.13.22s). Essa morte que lhe infligem é por ele aceita; ele próprio a oferece como o sacerdote oferece a vítima; e é por isso que ele dela espera a expiação dos pecados, a instauração da nova Aliança, a salvação de seu povo. Numa palavra, ele é o sacerdote de seu próprio sacrifício.

Acerca da segunda função sacerdotal do Antigo Testamento, o serviço da Torá; Jesus não veio bani-la, mas aperfeiçoá-la (Mt 5, 17s). Ele supera a letra, mostrando no primeiro e segundo mandamentos seu valor mais profundo (Mt 22, 34-40). Com isso, manifesta o prolongamento do sacerdócio do Antigo Testamento ao mesmo tempo em que torna evidente sua superação pela definitiva revelação do Evangelho da salvação e realização da Lei.[48]

Em João, no capítulo 17, destaca-se a chamada “oração sacerdotal”, em que Jesus pede por Si (v. 1-5), pelos discípulos (v. 6-19) e pela unidade dos futuros cristãos (v. 20-26). Esse capítulo não traz o termo “sacerdote”, mas pode ser comparado ao dia da Expiação (Lv 16, 17), pelo fato de Jesus estar se preparando para a morte.

Ao falar sobre a morte de Jesus, São Paulo evoca as figuras do cordeiro pascal (1 Cor 5, 7), da humilhação do Servo (Fl 2, 6-11), do dia da Expiação (Rm 3, 24ss). A morte de Cristo significa para o Apóstolo o sacrifício supremo, que Ele mesmo ofereceu; assim se encontram termos como a comunhão do sangue de Cristo (1 Cor 10, 16-22) e da redenção por meio dele (Rm 5, 9; Cl 1, 20; Ef 1, 7). Também em Romanos 3, 25, outra expressão do culto sacrifical é utilizada por São Paulo: “Deus o destinou para ser, pelo seu sangue, vítima de propiciação mediante a fé”. Acerca da oblação sacrifical de Cristo, o Apóstolo a descreve em Ef 5, 2 e Gl 2, 20. Da mesma forma como o próprio Jesus não Se intitulou sacerdote, São Paulo também não o faz.[49] Somente na carta aos Hebreus é que isto ocorre.

Em Hebreus 4, 14, Cristo recebe o título de Sumo Sacerdote. O pontífice é escolhido não para si mesmo, mas em favor dos homens (5, 1). Sendo mediador, ele não o é por escolha própria, senão por meio de um chamado, como no caso de Aarão (5, 4). “Assim também Cristo não se atribuiu a si mesmo a glória de ser pontífice. Esta lhe foi dada por aquele que lhe disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei (Sl 2, 7)” (Hb 5, 5). No entanto, Cristo não está na condição pontifical da linhagem aarônica, pois sendo o autor da salvação, “Deus o proclamou sacerdote segundo a ordem de Melquisedec” (Hb 5, 10). Melquisedec aparece na História sem uma origem definida, “sem pai, sem mãe, sem genealogia, a sua vida não tem começo nem fim; comparável sob todos os pontos ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre” (Hb 7, 3).

Abraão é posto como inferior a Melquisedec, pois “é o inferior que recebe a bênção do que é superior” (Hb 7, 7). Nessa perspectiva a mudança trazida pelo novo sacerdócio ― da ordem de Aarão para Melquisedec ― obriga o aperfeiçoamento da Lei (Hb 7, 11-12). De outra forma, a Lei já teria atingido sua plenitude na linhagem levítica.

Para São Tomás, o motivo pelo qual Cristo é da ordem de Melquisedec e não da linhagem levítica se dá por dois motivos, como explana (S. Th. III, q. 22, a. 6, resp.):

 Já foi dito que o sacerdócio da lei era a prefiguração do sacerdócio de Cristo, não de maneira adequada à verdade, mas de maneira muito deficiente. Por duas razões: quer porque o sacerdócio da lei não purificava os pecados, quer porque não era eterno, como o sacerdócio de Cristo. Ora, a superioridade do sacerdócio de Cristo, com relação ao sacerdócio levítico, estava prefigurada no sacerdócio de Melquisedec que recebeu o dízimo de Abraão, de quem, de alguma forma, o sacerdócio levítico dependia. Por causa desta superioridade do verdadeiro sacerdócio com relação ao sacerdócio prefigurativo da lei, se diz que o sacerdócio de Cristo é segundo a ordem de Melquisedec.

A aliança feita por Cristo é mais excelente e perfeita que a antiga (Hb 8, 6). Ela tem como base o próprio sangue de Cristo (Hb 9, 14); “por isso ele é mediador do novo testamento” (Hb 9, 15). A Lei antiga era apenas sombra dos bens que viriam, pois os sacrifícios eram renovados indefinidamente (Hb 10, 1), mas agora uma só oblação ― por meio de Cristo ― realizou a perfeição definitiva (Hb 10, 14).

Cristo é ao mesmo tempo a pedra viva ― rejeitada pelos homens, mas escolhida por Deus ― desse edifício espiritual (1 Pd 2, 4-5). Assim, se encontrará na carta de São Pedro a relação do sacerdócio de Cristo como um novo povo adquirido por Deus e ao qual santificou, tirando das trevas para a luz, denominado “sacerdócio régio” (1 Pd 2, 9). Esta é a expressão do pensamento contido em Êxodo 19, 6. O sacerdócio é visto aqui como acesso ao conhecimento de Deus, e o seu papel profético consiste em proclamar essa visão íntima. Agora, o sacerdócio cristão toma o lugar do judaico; no entanto, expressões fundamentais do ritual levítico, passam para a igreja primitiva e são utilizados pelos cristãos, tais como: aspergido, lavado, primogênito, altar etc.[50]

Em Apocalipse (1, 6; 5, 10; 20, 6) também está expressada a ideia do reino sacerdotal de Êxodo 19, 6. A comunidade se beneficia da dignidade sacerdotal como parte da dignidade real concedida por Deus, por meio de Seu Cristo. Esse sentido sacerdotal não se deve à relação com o Templo, pois este não existirá na Jerusalém Celeste (Ap 21,22), mas o próprio Deus e o Cordeiro irão assumir a função de Templo.[51]

No Novo Testamento Jesus nunca denomina qualquer de seus seguidores com o título de sacerdote, mas da mesma forma que no Antigo Testamento, somente são Seus ministros aqueles a quem Deus chama. O chamamento dos doze, a transmissão de poderes (Mt 10, 8.40; 18, 18) e a entrega da Eucaristia (Lc 22, 19) já se torna uma participação específica do sacerdócio.[52]

As explicações ulteriores da tradição tomam como base a compreensão dos apóstolos acerca do ministério sagrado, que ao mesmo tempo não prejudica o sacerdócio de Cristo nem o dos fiéis.[53] Assim descreve este pensamento George (1972, p. 931):

Os Apóstolos o compreendem. Eles estabelecem por sua vez responsáveis para prolongar sua própria ação. Alguns destes últimos trazem o título de Anciãos, que é a origem do nome atual dos sacerdotes (presbíteros: At 14, 23; 20, 17; Tt 1, 5). A reflexão de Paulo sobre o apostolado e os carismas já se orienta para o sacerdócio dos ministros da Igreja. Aos responsáveis pelas comunidades ele dá títulos sacerdotais: “administradores dos mistérios de Deus” (1 Cor 4, 1s), “ministros da nova Aliança” (2 Cor 3, 6); ele define a pregação apostólica como um serviço litúrgico (Rm 1, 9; 15, 15s). Aí está o ponto de partida das ulteriores explicações da tradição sobre o sacerdócio ministerial. Este não constitui, portanto, uma casta de privilegiados. Não significa prejuízo nem para o sacerdócio único de Cristo nem para o sacerdócio dos fiéis. Mas, a serviço dum e de outro, ele é uma das mediações que garantem o serviço do povo de Deus.

No Novo Testamento tem-se, portanto, uma inter-relação do sacerdócio instituído com o sacerdócio de Cristo (expressão da plenitude sacerdotal) e com o sacerdócio régio da comunidade. Essa relação constante e efetiva entre o divino e o humano é o resultado da mediação sacerdotal levada à perfeição.

GERALDO, Thiago de Oliveira. O sacerdócio levítico no contexto histórico-bíblico. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 9, Out-Dez 2009. p. 71-80.


[1] DUFOUR, Xavier Leon S. J. Vocabulário de teologia bíblica. Tradução de Frei Simão Voigt O.F.M. Petrópolis: Vozes, 1972.

[2] Cf. BORN, op. cit., p. 1351.

[3] Cf. Jz 17,5; 18,5-6; 1 Sm 14,36-42.

[4] Cf. Dt 27,9-10; 31,10-13.

[5] MONLOUBOU, L.; DU BUIT, F. M. Dicionário Bíblico Universal.. Tradução de Gentil TITTON et al. 2. ed. Petrópolis: Santuário, 2003.

[6] Cf. Gn 8, 20; 31,54.

[7] Cf. Ex 18,12.

[8] Cf. BROWN, op. cit., p. 287-288.

[9] Cf. Ex 32, 25-28; Dt 33, 8-11.

[10] Cf. Dt 10, 9.

[11] Cf. Dt 27, 14-26; 31, 24-28.

[12] Cf. Ex 2, 1-2.

[13] Cf. 1 Rs 12, 28-33.

[14] Cf. Jz 17.

[15] Cf. Jz 18.

[16] Cf. 1 Sm 1, 3.

[17] Cf. 1 Sm 22, 6-23.

[18] Cf. BROWN, op. cit., p. 288.

[19] Cf. 1 Rs 4, 1-6.

[20] Cf. 1 Rs 12, 25-33.

[21] Cf. 2 Rs 10, 11.

[22] Cf. 2 Rs 11.

[23] Cf. 2 Rs 17, 23.

[24] Cf. 2 Rs 17, 27-28.

[25] Cf. 2 Rs 25, 7.

[26] Cf. 2 Rs 25, 18.

[27] Cf. 2 Rs 22;23, 1-28.

[28] Cf. Nm 18, 1-7.

[29] Cf. 1Cr 23 ,2.

[30] Cf. Ex 29, 29-30.

[31] Cf. Ez 44, 10-14.

[32] Cf. Ez 44, 15-16.

[33] Cf. 1 Cr 24, 1-3.

[34] Cf. BROWN, op. cit. p. 288.

[35] Cf. Ne 8.

[36] Cf. 1 Cr 24.

[37] Segundo SÁNCHEZ (1997, p. 185): “Todos eles viviam do templo e constituíam o partido saduceu”.

[38] Cf. Lv 11-15.

[39] Cf. Lv 21.

[40] Cf. 1 Cr 6, 16-17.

[41] Cf. 1 Cr 6, 33-34.

[42] Cf. BALZ, Horst e SCHNEIDER, Gerhard. Diccionario Exegético del nuevo testamento. 3 ed. Vol. I. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2002. p. 1953.

[43] Cf. Mt 8,4 paralelo com Mc 1, 14; Lc 5, 14; 17, 14.

[44] Cf. BROWN, op. cit. p. 291.

[45] Cf. Os 6,6.

[46] Cf. BALZ e SCHNEIDER, op. cit. p. 1954.

[47] Cf. TERRA, op. cit. p. 64.

[48] Cf. DUFOUR, op. cit. p. 929.

[49] Cf. TERRA, op. cit. p. 65.

[50] Cf. BROWN, op. cit. p. 292.

[51] Cf. BALZ e SCHNEIDER, op. cit. p. 1955.

[52] Cf. DUFOUR, op. cit. p. 931.

[53] No sentido explicado acima (sacerdócio régio).