Diác. Leopoldo Werner, EP
Existem normas de caráter universal
Já na Antiguidade, Cícero escreveu de modo preciso e conciso:
A razão reta, conforme a natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo senado; não há que procurar para ela outro comentador nem intérprete; não é uma lei em Roma e outra em Atenas, uma antes e outra depois, mas una, sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os tempos; uno será sempre o seu imperador e mestre, que é Deus, seu inventor, sancionador e publicador; não podendo o homem desconhecê-la sem renegar-se a si mesmo, sem despojar-se do seu caráter humano e sem atrair sobre si a mais cruel expiação, embora tenha conseguido evitar todos os outros suplícios. (CÍCERO, 2009: 53).
Nesta definição de Cícero devemos reter as seguintes noções: há uma lei que é conforme com a razão, gravada no coração humano, imutável, que prescreve o bem e proíbe o mal. Esta lei vale para todos os povos e em todos os lugares. Não varia com o passar do tempo, nem pode ser derrogada ou anulada pela vontade do povo e pelo arbítrio da autoridade.
Há, portanto, uma lei que provém da própria natureza do homem, dirigindo-o para seu fim, que é o bem. Chega-se a ela pela razão natural. Esta lei chama-se lei natural, para distinguir-se da lei sobrenatural, que é atingível pela fé. E por esta chega-se ao conhecimento de Deus e das coisas divinas. Há ainda a lei positiva, que é promulgada pela autoridade competente e obriga em razão da sua promulgação.
Santo Agostinho, Bispo de Hipona, defende a existência de normas de caráter universal. Utiliza a expressão “lei eterna” para se referir à lei moral natural que se encontra gravada no coração de todos os homens. A lei eterna manda conservar a ordem natural e proíbe perturbá-la. As leis temporais, ou civis, devem fundar-se nas leis eternas, respeitando-as.
Emana da Lei Eterna
São Tomás de Aquino, conhecido também como o Doutor Angélico, advoga a existência de uma lei universal que regula o comportamento de todos os seres, incluindo o comportamento humano.
Entre as demais, a criatura racional está sujeita à providência divina de um modo mais excelente, enquanto a mesma se torna participante da providência, provendo a si mesma e aos outros. Portanto, nela mesma é participada a razão eterna, por meio da qual tem a inclinação natural ao devido ato e fim. E tal participação da lei eterna na criatura racional se chama lei natural. (AQUINO, 2005, Vol. IV: 531).
Enquanto ordenador da conduta humana, a Lei Natural está em harmonia com toda ordem do universo, baseada, em última instância, na Lei Eterna ou Divina — um reflexo da sabedoria divina que dispôs todas as coisas para um fim determinado, que é a sua própria glória. É por isso que São Tomás afirma:
Portanto, como a lei eterna é a razão de governo no governo supremo, é necessário que todas as razões de governo que estão nos governantes inferiores derivem da lei eterna. (AQUINO, 2005, Vol. IV: 551).
Uma lei inscrita no íntimo dos corações, imagem da Sabedoria de Deus, é o que o papa João Paulo II ministra a respeito da lei natural ensinada pela Igreja:
A Igreja referiu-se frequentemente à doutrina tomista da lei natural, assumindo-a no próprio ensinamento moral. Assim, o meu venerado predecessor Leão XIII sublinhou a essencial subordinação da razão e da lei humana à Sabedoria de Deus e à Sua lei. Depois de dizer que “a lei natural está inscrita e esculpida no coração de todos e de cada um dos homens, visto que esta não é mais do que a mesma razão humana enquanto nos ordena fazer o bem e intima a não pecar”. Leão XIII remete para a “razão mais elevada” do divino Legislador: “Mas esta prescrição da razão humana não poderia ter força de lei, se não fosse a voz e a intérprete de uma razão mais alta, à qual o nosso espírito e a nossa liberdade devem estar submetidos”. De fato, a força da lei reside na sua autoridade de impor deveres, conferir direitos e aplicar a sanção a certos comportamentos: “Ora, nada disso poderia existir no homem, se fosse ele mesmo a estipular, como legislador supremo, a norma das suas ações”.
E conclui: “Daí decorre que a lei natural é a mesma lei eterna, inscrita nos seres dotados de razão, que os inclina para o ato e o fim que lhes convém; ela é a própria razão eterna do Criador e governador do universo”. (JOÃO PAULO II, 1993: 44).
Se não houvesse essa luz infundida em nossa alma por Deus, quais seriam as relações dos homens entre si, ou mesmo a relação consigo mesmo? É urgente reacender essa luz nos homens para encontrar o farol que é o guia dos homens e a luz das nações. É o ensinamento de São Tomás de Aquino, assumido e relembrado pelo Papa João Paulo II:
[A lei natural] não é mais do que a luz da inteligência infundida por Deus em nós. Graças a ela, conhecemos o que se deve cumprir e o que se deve evitar. Esta luz e esta lei, Deus as concedeu na criação. (apud JOÃO PAULO II, 1993: 44).
Estas verdades parecem tão claras e evidentes que foram sempre aceitas como balizas para o pensamento humano. Leão XIII (1888) ensinou mais de uma vez essa doutrina tão própria a solidificar os fundamentos da sociedade humana em seu relacionamento mútuo. A razão humana é intérprete e voz de uma razão muito mais alta, que é a do próprio Deus, ao qual devem estar submetidos nosso entendimento e nossa vontade. A lei é reflexo de uma lei eterna que existe na mente da primeira Causa, o Criador e mantenedor do universo e de tudo que nele existe.
Tal é, acima de todas, a lei natural que está escrita e gravada no coração de cada homem, porque é a razão mesma do homem que lhe ordena a prática do bem e lhe interdiz o pecado. Mas esta prescrição da razão humana não poderia ter força de lei, se ela não fosse órgão e intérprete duma razão mais alta à qual o nosso espírito e a nossa liberdade devem obediência. Sendo, na verdade, a missão da lei impor deveres e atribuir direitos, a lei assenta completamente sobre a autoridade, isto é, sobre um poder verdadeiramente capaz de estabelecer esses deveres e definir esses direitos, capaz também de sancionar as suas ordens por castigos e recompensas; coisas todas que não poderiam evidentemente existir no homem, se ele desse a si próprio, como legislador supremo, a regra dos seus próprios atos. Disto se conclui, pois, que a lei natural outra coisa não é senão a lei eterna gravada nos seres dotados de razão, inclinando-os para o ato e o fim que lhes convenha; e este não é senão a razão eterna de Deus, Criador e Governador do mundo. (Leão XIII, 1888: 6).
Base moral para a construção da sociedade
O Catecismo da Igreja Católica ensina que:
A lei natural exprime o sentido moral original, que permite ao homem discernir, pela razão, o que é o bem e o mal, a verdade e a mentira. A lei “divina e natural” mostra ao homem o caminho a seguir para praticar o bem e atingir seu fim. (CIC, 2001: 516).
É por isso que o papa João Paulo II insistiu sobre a necessidade da recuperação da doutrina da Lei Natural, como a fonte de certeza moral para toda a humanidade. Por isso, ele afirma que a lei natural:
Pertence ao grande patrimônio da sabedoria humana, que a Revelação, com sua luz, tem contribuído para purificar e desenvolver ulteriormente. A lei natural, acessível por isso mesma a toda criatura racional, indica as normas primeiras e essenciais que regulam a vida moral. (JOÃO PAULO II, 2004: 5).
A lei natural é o fundamento sólido do edifício das regras morais e a base moral para construção da sociedade. É o que ensina o Catecismo da Igreja Católica a este respeito:
Obra excelente do Criador, a lei natural fornece os fundamentos sólidos sobre os quais pode o homem construir o edifício das regras morais que orientarão suas opções. Ela assenta igualmente a base moral indispensável para a construção da comunidade dos homens. Proporciona, enfim, a base necessária à lei civil que se relaciona com ela, seja por uma reflexão que tira as conclusões de seus princípios, seja por adições de natureza positiva e jurídica. (CIC, 2001: 518).
A natureza da pessoa humana fica assim atendida quando atinge seu fim; seus deveres e seus direitos são reconhecidos plenamente. E ela se sente dignificada na sua pessoa, como um ente racional, dotada de todas as prerrogativas que lhe garantem uma estabilidade de vida que condiz com a sua condição humana. A este respeito, corroboram as palavras de João Paulo II ao discorrer sobre tema tão importante:
Pode-se agora compreender o verdadeiro significado da lei natural: ela refere-se à natureza própria e original do homem, à “natureza da pessoa humana”, que é a pessoa mesma na unidade de alma e corpo, na unidade das suas inclinações tanto de ordem espiritual como biológica, e de todas as outras características específicas, necessárias para a obtenção do seu fim. “A lei moral natural exprime e prescreve as finalidades, os direitos e os deveres que se fundamentam sobre a natureza corporal e espiritual da pessoa humana. Portanto, não pode ser concebida como uma tendência normativa meramente biológica, mas deve ser definida como a ordem racional segundo a qual o homem é chamado pelo Criador a dirigir e regular a sua vida e os seus atos e, particularmente, a usar e dispor do próprio corpo.” (JOÃO PAULO II, 1993: 50)
Tende a unir todos os homens
É necessário, pois, contribuirmos para solidificação de princípios estáveis, imutáveis, de conduta de todos os seres humanos entre si, para haver a fecunda e duradoura prosperidade e a paz entre os homens, tanto no nível de suas próprias comunidades como também da convivência fraterna universal:
Convido-vos a promover iniciativas oportunas com a finalidade de contribuir para uma renovação construtiva da doutrina da lei moral natural, buscando também convergências com representantes das diversas confissões, religiões e culturas. (JOÃO PAULO II, 2004: 5)
A lei natural se estende além das fronteiras da própria personalidade humana e tende, pela sua unidade e universalidade, a unir todos os povos em busca de um bem comum, que é a felicidade e a prosperidade de todas as nações. Esta lei é a certeza da amizade entre as nações e um pacto de aliança entre os indivíduos que procuram um alicerce firme para uma convivência pacífica, duradoura e próspera. Por isso, a lei natural deve ser o fundamento para as relações pacíficas entre as diversas nações.
Embora o gênero humano, por disposição de ordem natural estabelecida por Deus, esteja dividido em grupos sociais, nações ou Estados, independentes uns dos outros, no que respeita ao modo de organizar e dirigir a sua vida interna, acha-se, contudo, ligado por recíprocos vínculos morais e jurídicos, numa grande comunidade, organizada para o bem de todos os povos e regulada por leis especiais que tutelam a sua unidade e promovem a sua prosperidade.
Ora, não há quem não perceba que a autonomia absoluta do Estado põe-se em aberto contraste com esta lei imanente e natural, ou melhor, nega-a radicalmente, deixando à mercê da vontade dos governantes a estabilidade das relações internacionais e tirando a possibilidade de uma verdadeira união e fecunda colaboração no que respeita ao interesse geral. Porque, veneráveis irmãos, para a existência de contatos harmônicos e duradouros e de relações frutuosas, é indispensável que os povos reconheçam e observem aqueles princípios de direito natural internacional, que regulam o seu normal funcionamento e desenvolvimento. Tais princípios exigem o respeito dos relativos direitos à independência, à vida e à possibilidade de um desenvolvimento progressivo no caminho da civilização; exigem, além disso, a fidelidade aos pactos estipulados e ratificados segundo as normas do direito das gentes. (PIO XII, 1939: 54)
A lei natural, inserida na sua natureza, atende aos anseios mais internos do coração humano e delineia claramente as relações com seus semelhantes, tornando o convívio humano digno de ser vivido em todos os níveis da sociedade humana, e lança uma base firme para um diálogo fecundo com todos os homens de boa vontade. Sobre isso, no seu discurso aos membros da Comissão Teológica Internacional, assim se expressou o papa Bento XVI a respeito da Lei Natural:
Com esta doutrina, alcançam-se duas finalidades essenciais: por um lado, compreende-se que o conteúdo ético da fé cristã não constitui um delineamento ditado à consciência do homem a partir de fora, mas uma norma que encontra o seu fundamento na própria natureza humana; por outro, partindo da lei natural por si mesma acessível a todas as criaturas racionais, lança-se com ela a base para entrar em diálogo com todos os homens de boa vontade e, de modo mais geral, com a sociedade civil e secular. (BENTO XVI, 2007a)
A mesma idéia é repetida com outras palavras pelo Papa:
A lei natural, escrita por Deus na consciência humana, é um denominador comum a todos os homens e a todos os povos; é um guia universal que todos podem conhecer e em cuja base todos se podem compreender. (BENTO XVI, 2008: 1)
Antes de prosseguirmos com nosso estudo, é interessante ver como os conceitos de ordem, paz e harmonia são conexos com o tema do direito natural que estamos desenvolvendo. Vejamos o que o iminente pensador católico Plinio Corrêa de Oliveira escreveu sobre este interessante assunto.
Em artigo publicado no Catolicismo, o catedrático brasileiro começa por mostrar quanto a ordem, a paz e a harmonia são noções que têm relação direta com a pessoa humana bem formada, são valores que devem ser procurados numa sociedade bem constituída. A partir desses conceitos universais, pode-se ter uma ideia da perfeição de uma organização social baseada na lei natural, reflexo de sua natureza e fim.
A ordem, a paz, a harmonia, são características essenciais de toda a alma bem formada, de toda a sociedade humana bem constituída. Em certo sentido, são valores que se confundem com a própria noção de perfeição.
Todo o ser tem um fim próprio, e uma natureza adequada à obtenção deste fim. Assim, uma peça de relógio tem fim próprio, e, por sua forma e composição, é adequada à realização deste fim. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1951: 1)
Para que uma sociedade esteja em ordem, é necessário que seus componentes ajam de acordo com a natureza mais profunda do seu ser e o fim da mesma sociedade, que é a vida em comum, harmonizados todos em ordem à felicidade geral. Neste sentido, o autor continua:
A ordem é a disposição das coisas, segundo sua natureza. Assim, um relógio está em ordem quando todas as suas peças estão ordenadas segundo a natureza e o fim que lhes é próprio. Diz-se que há ordem no universo sideral porque todos os corpos celestes estão ordenados segundo sua natureza e fim.
Existe harmonia quando as relações entre dois seres são conformes à natureza e o fim de cada qual. A harmonia é o operar das coisas umas em relação às outras, segundo a ordem. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1951: 1)
Dessa harmonia em torno de um objetivo comum, segundo a ordem posta por Deus na natureza humana, gera a tranquilidade social e paz entre os indivíduos e as comunidades. Comunidades essas que projetam e se expandem, desde as mais próximas de cada um até os mais vastos agrupamentos nacionais e internacionais.
A ordem engendra a tranquilidade. A tranquilidade da ordem é a paz. Não é qualquer tranquilidade que merece ser chamada paz mas apenas a que resulta da ordem. A paz de consciência é a tranquilidade da consciência reta: não pode confundir-se com o letargo da consciência embotada. O bem estar orgânico produz uma sensação de paz que não pode ser confundida com a inércia do estado de coma. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1951: 1)
A lei natural deve ser compreendida na sua natureza e fim. Pois dessa compreensão é que se entenderá a profundidade e sabedoria de Deus que não deixou o homem a mercê dos vagalhões de suas paixões, mas lhe deu os meios necessários para atingir seu fim e alcançar a perfeição e a paz.
E, logo a seguir, no mesmo estudo, mostra como a posse da verdade religiosa é a condição essencial da ordem, da harmonia, da paz e da perfeição:
Quando um ser está inteiramente disposto segundo sua natureza, está em estado de perfeição. Assim, uma pessoa com grande capacidade de estudo, grande desejo de estudar, posta em uma Universidade em que haja todos os meios para fazer os estudos que deseja, está posta, do ponto de vista dos estudos, em condições perfeitas.
Quando as atividades de um ser são inteiramente conformes à sua natureza, e tendem inteiramente para seu fim, estas atividades são, de algum modo, perfeitas. Assim, a trajetória dos astros é perfeita, porque corresponde inteiramente à natureza e ao fim de cada qual.
Quando as condições em que um ser se encontra são perfeitas, suas operações o são também, e ele tenderá necessariamente para o seu fim, com o máximo da constância, do vigor e do acerto. Assim, se um homem está em condições perfeitas para andar, isto é, sabe, quer e pode andar, andará de modo irrepreensível.
O verdadeiro conhecimento do que seja a perfeição do homem e das sociedades depende de uma noção exata sobre a natureza e fim do homem.
O acerto, a fecundidade, o esplendor das ações humanas, quer individuais, quer sociais, também está na dependência do conhecimento de nossa natureza e fim.
Em outros termos, a posse da verdade religiosa é a condição essencial da ordem, da harmonia, da paz e da perfeição. (CORREA DE OLIVEIRA, 1951: 1)