O conceito de pecado original e suas consequências

Pe. Ricardo Basso, EPview

No livro do Gênesis 1, 27 vem descrita a criação do homem por Deus (Cf. Bíblia Sagrada, 2008: 16), constituído em um estado de santidade e de justiça original, que era uma participação da vida divina (Cf. Catecismo da Igreja Católica – doravante indicado por CIC –, 1999: 107, §375); e sua posterior queda e expulsão do Paraíso, com a perda do estado de graça e dos dons preternaturais com que Deus o cumulou, como o de integridade, desfrutando assim de impassibilidade e de imortalidade (Bíblia Sagrada, 2008: 17-18). Gozava, portanto, de felicidade plena. Fora criado não apenas bom, mas em “amizade com o Criador e em total harmonia consigo mesmo e com a criação que o rodeava que só serão superadas pela glória da nova criação em Cristo” (CIC, 1999: 107, §374).

Uma proibição apenas lhe fora imposta: não comer do fruto da árvore do bem e do mal, que havia no centro do Éden (Bíblia Sagrada, 2008: 16). Surpreendentemente, o primeiro homem sucumbe à prova, aparentemente tão simples, com graves consequências para si e para todos os seus descendentes. Perdeu ele, assim, o estado de inocência.

“O gênero humano inteiro é em Adão “sicut unum corpus unius hominis – como um só corpo de um só homem”. Em virtude desta “unidade do gênero humano”, todos os homens estão implicados na justiça de Cristo. […] Sabemos, porém, pela Revelação, que Adão havia recebido a santidade e a justiça originais não exclusivamente para si, mas para toda a natureza humana: ao ceder ao Tentador, Adão e Eva cometem um pecado pessoal, mas este pecado afeta a natureza humana, que vão transmitir em um estado decaído. É um pecado que será transmitido por propagação à humanidade inteira, isto é, pela transmissão de uma natureza humana privada da santidade e da justiça originais. E é por isso que o pecado original é denominado “pecado” de maneira analógica: é um pecado “contraído” e não “cometido”, um estado e não um ato. […] E a privação da santidade e da justiça originais, mas a natureza humana não é totalmente corrompida: ela é lesada em suas próprias forças naturais, submetida à ignorância, ao sofrimento e ao império da morte, e inclinada ao pecado (esta propensão ao mal é chamada ‘concupiscência’)” (CIC, 1999: 115).

E nas potências da alma humana, que originalmente estavam ordenadas, com as potências intelectivas governando e comandando as sensitivas, foi introduzida a desordem.

“O ‘domínio’ do mundo que Deus havia outorgado ao homem desde o início realizava-se antes de tudo no próprio homem como domínio de si mesmo. O homem estava intacto e ordenado em todo o seu ser, porque livre da tríplice concupiscência que o submete aos prazeres dos sentidos, à cobiça dos bens terrestres e à auto-afirmação contra os imperativos da razão. […] É toda esta harmonia da justiça original, prevista para o homem pelo desígnio de Deus, que será perdida pelo pecado de nossos primeiros pais” (Id.: 108).

Para atingir a perfeição, necessita o homem doravante vencer a natureza enfraquecida e inclinada ao mal.

No homem, a inteligência iluminada pela Fé deve orientar a vontade, e esta governar a sensibilidade. Todo o homem agiria assim ordenado em função da razão e da Fé. Ocorre que depois do pecado original, a sensibilidade humana tende sempre a revoltar-se contra o jugo da vontade, e esta, a não seguir os ditames da razão, a qual, por sua vez, tende a se dissociar da Fé. Portanto, a primeira tendência da humanidade decaída é para o domínio dos instintos desordenados. “Somente à luz do desígnio de Deus sobre o homem compreende-se que o pecado é um abuso da liberdade que Deus dá às pessoas criadas para que possam amá-Lo e amar-se mutuamente” (Id.: 110). “É preciso conhecer a Cristo como fonte da graça para conhecer Adão como fonte do pecado” (Id.: 110).

“O relato da queda (Gn 3) utiliza uma linguagem feita de imagens, mas afirma um acontecimento primordial, um fato que ocorreu no início da história do homem. A Revelação dá-nos a certeza de fé de que toda a história humana está marcada pelo pecado original cometido livremente por nossos primeiros pais” (Id.:110-111).

Por ser inteligente, tem o homem o livre arbítrio para, com o auxílio da graça divina e uma boa formação moral, vencer essas más tendências, caminhando para a perfeição. “Faz parte da perfeição do bem moral ou humano que as paixões sejam reguladas pela razão” (CIC, 1999: 479).

Tendo havido o pecado original, a natureza humana ficou tendente ao mal.

71. Assim pois, os filhos de Adão nascem privados da justiça original, isto é, da graça santificante e do dom de integridade. A privação desta graça constitui o que se chama o pecado original, pecado em sentido lato, que não implica ato algum culpável da nossa parte, senão um estado de decadência, e, tendo em conta o fim sobrenatural a que persistimos destinados, uma privação, a falta duma qualidade essencial que deveríamos possuir, e, por conseguinte, uma nódoa, ou mácula moral, que nos afasta do reino dos céus.

72. E, como o dom de integridade ficou igualmente perdido, arde em nós a concupiscência, a qual, se lhe não resistimos corajosamente, nos arrasta ao pecado atual. Somos, pois, relativamente ao estado primitivo, diminuídos e feridos, sujeitos à ignorância, inclinados ao mal, fracos para resistir às tentações. […]

74. Conclusão. O que se pode dizer é que, pela queda original, o homem perdeu esse belo equilíbrio que Deus lhe tinha dado [grifo nosso]; que é, relativamente ao estado primitivo, um ferido e um desequilibrado, como bem o mostra o estado presente das nossas faculdades. […] as paixões precipitam-se com ardor, com violência até, para o bem sensível ou sensual, sem se inquietarem com o lado moral, procurando arrastar ao consentimento a vontade. […]75. B) As faculdades intelectuais, que constituem o homem propriamente dito, a inteligência e a vontade, foram atingidas também pelo pecado original. […] 1) [A nossa inteligência] Em lugar de subir espontaneamente para Deus e para as coisas divinas, em vez de se elevar das criaturas ao Criador, como o houvera feito no estado primitivo, tende a absorver-se no estudo das coisas criadas sem remontar à sua causa […]. b) A nossa mesma vontade em lugar de se submeter a Deus, tem pretensões à independência; custa-lhe sujeitar-se a Deus e sobretudo aos seus representantes na terra. […] E quantas vezes se não deixa ela arrastar pelo sentimento e pelas paixões!( TANQUEREY, 1961: 36-38)

Portanto, especialmente a sensibilidade, os instintos do homem ficaram desordenados, em contínua revolta contra a inteligência e a vontade.

E Tanquerey (1961: 379-380) completa, sobre a perda da harmonia interna no homem:

789. Efeitos das paixões desordenadas.

Chamam-se desordenadas as paixões que tendem para um bem sensível proibido, ou até mesmo para um bem permitido, mas com demasiada sofreguidão e sem o referir a Deus. Ora, estas paixões desordenadas:

Cegam a alma, lançando-se para o seu objeto com impetuosidade, sem consultar a razão, deixando-se guiar pelo instinto ou pelo prazer. Ora, nisto há um elemento perturbador que tende a falsear o juízo e a obscurecer a reta razão. Como o apetite sensitivo é cego, por natureza, se a alma se deixa guiar por ele, cega-se a si mesma: em vez de se deixar conduzir pelo dever, deixa-se fascinar pelo prazer do momento. É como uma nuvem que a impede de ver a verdade; obcecada pela poeira que as paixões levantam, a alma já não vê  claramente a vontade divina nem o dever que se lhe impõe e deixa de ser apta para julgar retamente das coisas.

Fatigam a alma e fazem sofrer. […]

2) Daqui um sofrimento tanto mais intenso quanto mais vivas são as paixões: porque elas atormentam a pobre alma, até serem contentadas, e, como o apetite vem com o comer, reclamam as paixões cada vez mais; se a consciência protesta, impacientam-se, agitam-se, solicitam a vontade para que ceda aos seus caprichos que incessantemente renascem: é uma tortura inexprimível.

c) Enfraquecem a vontade. Solicitada em sentidos diversos por essas paixões rebeldes, vê-se forçada a vontade a dispersar as próprias forças, que por isso mesmo vão enfraquecendo. Tudo o que cede às paixões, aumenta nelas as exigências e diminui em si as energias. […] E não tardará o momento em que a alma enfraquecida caia no relaxamento e na tibieza, disposta a todas as capitulações.

d) Maculam a alma. Quando esta, cedendo às paixões, se une às criaturas, abate-se ao nível delas e contrai a sua malícia e as suas manchas; em vez de ser imagem fiel de Deus, torna-se imagem das coisas a que se apega; grãos de pó, manchas de lodo vêm embaciar-lhe a beleza e opor-se à união perfeita com Deus.

E o que resta ao homem fazer para vencer essa “lei do pecado”?

A luta contra a desordem das paixões. “Do ponto de vista psicológico, não cabe dúvida de que o remédio capital contra as paixões desordenadas será sempre uma vontade firme e decidida de vencer” (MARIN, 2001: 369-370, §252).

Portanto, o segredo do bom êxito no grande embate espiritual que o homem trava na vida está na boa formação da vontade, para que esta queira o que deve querer segundo a Lei de Deus e não atendendo a “lei do pecado”.

Desafios da Igreja no terceiro milênio da Era Cristã

bentoMons. João Clá Dias, EP

Um dos grandes desafios da Igreja no início deste terceiro milênio da Era Cristã é a recondução daqueles de seus filhos que deixaram de praticar os deveres religiosos e se desligaram da plena comunhão eclesial. É o que em linguagem corrente se denomina de “católicos à sua maneira”. No entanto, convém ressaltar que para atrair esse tipo de católicos seria mais eficaz apresentar a religião sob uma perspectiva inovadora, uma vez que os métodos e práticas convencionais, para eles, de certa forma se desgastaram, deixando de ter significado. O Pontifício Conselho para a Cultura, no já mencionado Documento Final (2006), oferece uma proposta para atrair os descrentes e os indiferentes, que podemos também aplicar frutuosamente aos católicos não praticantes: 

Devant les défis historiques, sociaux, culturels et religieux relevés dans les deux précédentes Assemblées plénières, quels aspects de la pastorale l’Église est-elle appelée à privilégier dans son dialogue apostolique avec les hommes et les femmes de notre temps, notamment les non-croyants et les indifférents? (…)Dans cette perspective, la Via pulchritudinis se présente comme un itinéraire privilégié pour rejoindre beaucoup de celles et ceux qui éprouvent de grandes difficultés à recevoir l’enseignement, en particulier moral, de l’Église.

Essa impostação de alma — de amor aos aspectos mais sublimes da ordem do Universo —, não se trata tão só de uma operação da razão natural, pela qual se busca entender o simbolismo das criaturas e discernir nelas um espelho das qualidades de Deus.

Com efeito, para adquirir uma penetrante e vasta visão da beleza do criado e sua relação com o Criador, não se pode deixar de considerar a ação do Espírito Santo nas almas, conduzindo-as pelas mais diversas vias. O exemplo da conversão do conhecido escritor francês Paul Claudel (1878-1955) ilustra bem o que se pretende afirmar. Foi durante o canto do Magnificat, na celebração de Vésperas na Catedral de Notre-Dame de Paris, que ele se converteu, deslumbrado com o esplendor e a beleza da liturgia.

A descrição desse momento, por suas próprias palavras, é mais eloqüente que qualquer explicação teórica:

C’est alors que se produisit l’événement qui domine toute ma vie. En un instant, mon cœur fut touché et je crus. Je crus, d’une telle force d’adhésion, d’un tel soulèvement de tout mon être, d’une conviction si puissante, d’une telle certitude ne laissant place à aucune espèce de doute que, depuis, tous les livres, tous les raisonnements, tous les hasards d’une vie agitée, n’ont pu ébranler ma foi, ni, à vrai dire, la toucher.[1]

Essa iluminação súbita do entendimento e afervoramento do coração, tal como se um “flash” se acendesse na alma, é uma das formas características de atuação do Espírito Santo. Trata-se de uma experiência de Deus, sem que Ele se faça perceptível aos sentidos externos, como explica Tanquerey, “S. Bernard l’appelle la connaissance savoureuse des choses divines[2]

DIAS, João Scognamiglio Clá. Considerações sobre a gênese e o desenvolvimento do movimento dos Arautos do Evangelho e seu enquadramento jurídico, 2008. Tese de Mestrado em Direito Canônico — Pontifício Instituto de Direito Canônico do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. p. 93-94.


[1][1] Cf. P. Claudel, Ma conversion, dans Contacts et circonstances, Gallimard, 1940, p. 11 sq ; repris dans Ecclesia, Lectures chrétiennes, Paris, No 1, avril 1949, p. 98-100.

[2][2] Cfr. TANQUEREY, A. Précis de Théologie Ascétique et Mystique, n.1348.