Haverá esperança para uma cultura centrada na mera ciência?

Pe. François Bandet, EPtibidabo

A fim de melhorar o entendimento da ciência quotidiana, é necessário tomar em conta duas características da ciência que influenciam tremendamente: a sua refletividade e a sua tecnicalidade.

Por refletividade, entendemos o meio de integração da dimensão da consciência no campo da ciência e, a partir daí, atingindo uma dimensão filosófica.

Pela sua tecnicalidade, a ciência distancia-se de toda a teoria e torna-se exclusivamente a técnica. Os dados tornam-se o mais importante e no seu caminho tentam “possuir” as leis da natureza.

Como a ciência sempre desejou “transformar” o mundo, está ligada à humanidade no seu ato de ser, no seu corpo e no seu espírito, tocando atualmente em problemas políticos, éticos e colocando em questão a própria humanidade.

Surge então um dilema para a humanidade: seguir a mentalidade lógica e técnica da ciência, olhando por cima de todas as considerações éticas, criando tensões e conflitos e concentrando-se na expansão e no desenvolvimento da “transformação” do mundo; ou encontrar (ou inventar) uma nova moralidade ética para justificar as novas conquistas.

Através da sua capacidade de transformar o mundo, a ciência criou novos problemas para a humanidade. Considerada, formalmente, um elemento de unificação, tornou-se hoje muito controversa devido aos excessos que produziu. Pense-se, por exemplo, nos atuais problemas e desastres ecológicos.

O futuro do homem e a sua existência parecem encontrar-se totalmente e irreparavelmente ligados à ciência e à tecnologia de amanhã. Por isso se deve desenvolver uma nova relação com a Fé, que deve ser respeitada e encorajada.

O conflito que surge pode ser encontrado ao nível do homem, da sua existência e da urgência de submeter a ciência aos valores morais humanos. Por outro lado, a Fé não deve mostrar um completo desinteresse em relação à ciência; poderá até tornar-se uma forte fonte de inspiração para ajudar a encontrar um senso de moralidade que irá fazer com que se produzam abundantes frutos de diálogo e unidade no mundo.

A ambiguidade da ciência moderna reside no fato de ter contribuído para o progresso da humanidade, mas que também está na origem de várias tensões, aberrações e desastres.

Cada vez se torna mais evidente que não é possível lidar com o problema do significado da vida, com questões éticas, e com um sistema de valores, no contexto de uma cultura centrada apenas na ciência.

BANDET. François. Estará a ciência oposta à Fé?  in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 6, jan-mar 2009. p. 78-79. Traduzido do original inglês pelo Editorial de Lumen Veritatis, com autorização e revisão do autor.

Pulchrum e mundo hodierno

bruxelasDartagnan Alves de Oliveria Souza, EP

Vemos que o homem pode iniciar sua ascensão tendo como ponto de partida suas próprias obras (Belas Artes)[1], ou a partir da contemplação das criaturas sentir-se atraído a Deus.[2] Isso ocorre pelo fato de ele possuir uma sede de absoluto infundida pelo próprio Absoluto.[3] Essa sede verdadeiramente existe e o convida, por vias naturais, a conhecer o Criador.

No mundo hodierno pode parecer que essa sede tenha desaparecido em todos os homens, mas isso não é real, ela se conserva nos que mantiveram em sua alma a inocência. Certo está de que em alguns ela praticamente não se manifesta, ou melhor, eles não mais sentem suas manifestações, mas isso se dá pelo fato de os homens terem deixado esmaecer em si o reflexo de Deus.[4] Por mais que vivamos cercados de edifícios de concreto que toldam nossas vistas em relação à sublimidade existente na natureza e nos prendam a uma visão materialista e mecanicista das coisas, podemos ainda ter um gáudio de alma contemplando, por exemplo, um pôr-do-sol que atrai nossa atenção e faz com que nos perguntemos a respeito de sua causa e de seu significado.

Vemos, assim, que essa sede de conhecimento, mesmo nos dias atuais, apesar de estar muitas vezes amortecida, não desapareceu, mas, constantemente, leva o homem a transcender as aparências materiais das criaturas para chegar à Causa.[5] Diz o Livro da Sabedoria: “… a grandeza e a beleza das criaturas fazem, por analogia, contemplar seu Autor”,[6] “pois foi a própria fonte da beleza que as criou”.[7]

OLIVEIRA SOUZA, Dartagnan.  Pulchrum: Caminho para o Absoluto? in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 8, jul-set 2009. p. 100-101.

[1] JOLIVET, Tratado de Filosofia III: Metafísica, Op. Cit., p. 264.

[2] S. Th. I, q. 39. a. 8.

[3] CLÁ DIAS, João Scognamiglio. La fidelidad a la Primera Mirada: Un periplo desde la aprehensión del ser hasta la contemplación de lo Absoluto. São Paulo, 2008. p. 137. Trabalho de pós-graduação (Humanidades). PUCMM. Facultad de Ciencias y Humanidades.

[4] Ibid., p. 5.

[5] Ibid., p. 135.

[6] Sb 13,5.

[7] Sb 13,3.

Gênese do conceito de contemplação

Inácio Almeida, EP

capela-subiacoA palavra contemplação tem sua origem etimológica na raiz latina templum (do grego temnein: para cortar ou dividir). É formada de cum, com, e templum, templo. Significa também examinar e considerar profunda e atentamente uma coisa, já espiritual, já visível e material, olhar com determinação ou complacência a uma pessoa.

Na filosofia grega a palavra contemplação era denominada teoria, por oposição a práxis, ou ação. Por isso, os gregos designavam a vida contemplativa como vida teórica, por oposição à vida ativa, ou vida prática. Alguns autores afirmam que a etimologia da palavra “teoria” deriva de um verbo grego que significa ver; deste verbo é que se origina também o nome Deus, que em grego se diz Teos, ou “Aquele que vê”. Com o tempo, essa nomenclatura veio também a ser utilizada na língua latina, resultando dizer que a vida teórica seria a vida contemplativa e a práxis, a vida ativa.

Porém, contemplar no sentido teológico, e é deste que trataremos, é segundo São Tomás (S. The. II, II, qq, 179-182) “a aplicação voluntária do entendimento aos dogmas sobre a divindade com o desejo vivo de gozar das grandes verdades nelas contidas” ou de acordo com Tanquerey (1955, p. 44) “uma intuição ou vista simples e afetuosa de Deus ou das coisas divinas.” Pode ser chamada também de contemplação adquirida quando “é fruto da nossa atividade auxiliada pela graça; infusa, quando, ultrapassando essa atividade, é operada por Deus com o nosso consentimento”.

Quanto ao uso da palavra “contemplação” nas Sagradas Escrituras, ele propriamente não acontece. No entanto, “se a expressão não existe, a realidade é claramente descrita”, especialmente no Capítulo X do Evangelho de São Lucas:

Indo eles de viagem, entrou Jesus em uma povoação; e uma mulher, de nome Marta, recebeu-O em sua casa. Tinha esta uma irmã chamada Maria, a qual, sentando-se aos pés do Senhor, ouvia a sua palavra. Marta, pelo contrário, andava atarefada com muito serviço. Deteve-se, então, e disse: “Senhor, não te importas que minha irmã me tenha deixado só a servir? Diz-lhe, pois, que me ajude”. Mas o Senhor respondeu-lhe: “Marta, Marta, inquietas-te e te confundes com muitas coisas; mas uma só coisa é necessária, e Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada” (Lc 10, 38-42).

 

Entretanto, cumpre recordar que as primeiras referências sobre a importância da contemplação são anteriores ao cristianismo. Sabe-se que Platão tratou desse tema, bem como Aristóteles e Plotino. Mas, sobretudo no século V com o início do monaquismo cristão, é que a primazia da contemplação sobre a ação foi mais defendida, e teve como um dos seus principais expoentes um monge chamado João de Cassiano, o qual publicou uma série de 24 conferências, que são um relato das conversas tidas entre ele e os monges que habitavam o deserto do Egito a respeito de diversos temas da vida espiritual.

Essas conferências foram elogiadas por São Bento[1] em sua regra. São Domingos, o fundador da Ordem dos Pregadores, à qual pertencia São Tomás, dedicou-se com especial empenho ao estudo desses textos[2]. Tocco (2007) nos recorda que o próprio Aquinate, à imitação de seu fundador, lia com frequência algumas páginas das 24 Conferências[3].

ALMEIDA, Inácio. A contemplação no ensino de São Tomás. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho, n. 5, out-dez 2008. p. 60-62.


[1] In: Regra de São Bento, C. 73.

[2] Conf. Beato Jordão de Saxônia: Origem da Ordem dos Pregadores, C.8. In: Santo Domingo de Guzman, su vida, su orden, sus escritos; Madrid, BAC, 1947; p. 170.

[3] Conf. In Guillelmus de Tocco: Vita Sancti Thomae Aquinatis, C. 21.

São Tomás e as “substâncias separadas”

anjosPe. Arnobio José Glavam, EP

Não foi por acaso que São Tomás de Aquino recebeu o título de Doctor Angelicus, atribuído na segunda metade do século XV pelo papa São Pio V.[1] De fato, a maestria com que o Aquinate tratou os temas metafísicos, a arte com que decantou e purificou as obras filosóficas da antiguidade — especialmente de Aristóteles — e a teodicéia por ele empreendida, fizeram dele um dos maiores autores medievais e, porque não, de toda a cristandade, tendo revelado uma inteligência incomum para dissertar os temas mais complexos e delicados. Porém, além dos dons naturais indiscutivelmente presentes nele, vivia de tal forma em contemplação e absorto em suas altas cogitações, que lhe chegaram a chamar de “bos mutus”,[2] por sua grandeza de espírito e de corpo e sua constante elevação de alma. Junto com seu exemplo e santidade de vida, parecia pertencer a uma natureza mais próxima do Céu do que da terra.

Também ao analisarmos a extensa obra legada pelo santo dominicano, encontramos uma intensa alusão aos anjos, quer na sua Suma Teológica, em que lhes dedica mais de dez artigos, quer nos numerosos escritos a ele atribuídos. Considerada a sua opera omnia, uma referência a estes seres está presentes em mais de 30 obras que a nós chegaram, sem contar com aquelas cuja incerteza de terem sido escritas sob a sua pena persiste.

Um dos expoentes máximos da metafísica medieval é o seu tratado acerca das Substâncias Separadas — Tratactus de Substantiis Separatis — escrito entre 1272 e 1273 e não terminado devido ao seu falecimento.           

Remando contra a corrente da época que afirmava serem os anjos portadores de matéria e de forma, São Tomás de Aquino discorre as idéias da antiguidade mostrando as semelhanças e dessemelhanças entre Platão e Aristóteles, expõe e refuta algumas idéias de Avicebrão e salienta a doutrina do Pseudo-Dionísio Areopagita a fim de salientar o que lhe parece mais ortodoxo de acordo com Igreja Católica. Não se poupa a críticas aos maniqueus, a certas doutrinas dos platônicos e, mesmo a Orígenes. Dessa forma, prova pela argumentação, por argumentos tirados da Sagrada Escritura e pelo raciocínio lógico haverem substâncias separadas da matéria, postas no pináculo da criação, que se relacionam enquanto essência com o ser, o que explica a sua pura espiritualidade, que foram tiradas por Deus “ex nihilo” e são distintas entre si, havendo mesmo aqueles que se podem chamar de “bons” — os anjos — e de “maus”, não por natureza mas por corrupção, e que são os demônios.

 

GLAVAN. Arnobio José. De substantiis separatis. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho, n. 5, out-dez 2008. p. 127-128.

[1] Cf. Discurso do Papa João Paulo II na Visita ao Pontifício Ateneu Internacional. “Angelicum”, 17 de Novembro de 1979.

[2] Ver NASCIMENTO, Carlos Arthur R. Santo Tomás de Aquino – o boi mudo da Sicília. São Paulo: EDUC. 1992.


As associações privadas de fiéis

Mons. João Clá Dias, EPassociacao

O Código atual traz a auspiciosa novidade das associações privadas de fiéis. Os cânones 298 a 329 tratam das associações de fiéis, dividindo os textos legislativos em quatro capítulos. No primeiro, expõe as “normas comuns” (cân. 298-311); no segundo, prescreve normas sobre associações públicas de fiéis (cân. 312-320); o terceiro (cân. 321-326) trata das associações privadas de fiéis; por fim, no quarto (cân. 327-329), introduz algumas “normas especiais para as associações de leigos”.

As associações de fiéis — sejam elas integradas por clérigos e leigos, ou só por clérigos, ou só por leigos — são distintas dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica. Sua finalidade é, mediante o esforço em conjunto de seus membros, fomentar uma vida mais perfeita, promover o culto público, ensinar a doutrina cristã, além de outras obras de apostolado, isto é, iniciativas de evangelização, exercício de obras de piedade e caridade, e animação da ordem temporal com o espírito cristão (cf. cân. 298). As associações privadas não podem, obviamente, incluir entre suas finalidades o exercício de atividades que, por sua natureza, são exclusivas da autoridade eclesiástica (cf. cân. 301). Essa restrição, porém, não empana sua natureza eclesial.[1]

O cânone 215 garante a todos os fiéis o direito de fundar e dirigir associações. O cânone 299, § 1, reitera esse direito, especificando: “Por acordo privado, os fiéis têm o direito de constituir associações, para obtenção dos fins mencionados no cân. 298, § 1, salva a prescrição do cân. 301, § 1”. E acrescenta no § 2: “Essas associações, mesmo se louvadas ou recomendadas pela autoridade eclesiástica, denominam-se privadas”. E o cânone 321 garante aos fiéis o direito de dirigir e governar as associações privadas, nos termos de seus estatutos.

Em seu Dicionário de Direito Canônico, Salvador (1997, p. 65) designa as finalidades das associações como sendo “as mesmas da missão de Cristo e da Igreja”, da qual todo fiel participa em virtude do Batismo. Têm elas, portanto, fins religiosos.

Chiapetta (1994, p. 67) corrobora essa opinião, afirmando que do cân. 298, § 1 resulta claramente que as associações de fiéis “tendem a fins religiosos, correspondentes ou conexos com a missão da Igreja”. E acrescenta: “As associações cujos objetivos são profanos e temporais (econômicos, sindicais, políticos, profissionais, culturais etc.) não se enquadram nesse dispositivo e, como tais, são estranhas ao ordenamento canônico. Delas se ocupa a legislação civil”.

Em razão do ato fundacional algumas distinções e características se apresentam. Assim, dependendo de quem promova e efetive a fundação, a associação, esta será pública, se foi erigida por a autoridade eclesiástica competente, e privada, se por iniciativa dos fiéis.

Ainda com relação à iniciativa fundacional, cabe destacar que, segundo o cânone 301, § 1, somente a “autoridade eclesiástica competente” pode erigir associações que tenham por objetivo promover o culto público, ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou alguma outra finalidade cuja obtenção esteja reservada, por sua natureza, à autoridade eclesiástica.

Outro tipo de associação é o caracterizado pelo cânone 302, o qual denomina “clericais” aquelas que satisfazem três condições: “São dirigidas por clérigos, assumem o exercício de ordem sagrada e são reconhecidas como tais pela autoridade competente”. Segundo Ferrer Ortiz (1991, p. 210), essas associações são sempre públicas e o termo “clerical” refere-se não só aos clérigos que as dirigem e ao fato de o ato constitutivo emanar da autoridade eclesiástica, mas também “a uma modalidade de exercício do ministério sagrado por seus membros”.[2]

Ghirlanda (2007, p. 269) chega a uma definição sintética de associação privada nos seguintes termos:

Associação privada é a que, surgida por iniciativa dos fiéis, leigos, clérigos ou religiosos, governada por eles segundo os estatutos próprios, estando sempre em relação com a autoridade eclesiástica que pode também erigi-la em pessoa jurídica privada, se propõe finalidades religiosas ou caritativas, exceto aquelas cuja obtenção é reservada somente à autoridade eclesiástica. A natureza privada da associação não diminui de nenhum modo sua eclesialidade.

O cânone 304 prescreve que todas as associações de fiéis — públicas ou privadas — precisam ter seus estatutos nos quais se determinem sua finalidade, sede, governo, regras para admissão de sócios etc. Os estatutos das associações privadas devem ter pelo menos o reconhecimento, recognitio, da autoridade eclesiástica.

Sem embargo, autores como Chiapetta entendem como legítima a existência de entidades privadas com fins religiosos, sem o reconhecimento dos estatutos. Navarro (2002, p. 431-432) opina no mesmo sentido, mencionando diversos doutrinadores, e afirma ser essa a posição adotada por “algumas Conferências Episcopais”. Entre estas, a Conferência Episcopal Italiana e a Francesa, as quais tratam do assunto em documentos por ele colecionados.

Não só isso: segundo ele, as referidas Conferências Episcopais tomam em consideração até associações que não têm estatutos, ou nem cheguem a ter propriamente estrutura e organização, mas cuja existência seria legítima, em decorrência dos direitos de associação e de reunião.

Consignemos também que as associações privadas podem possuir ou não personalidade jurídica na Igreja. Esta se adquire por um decreto formal da autoridade eclesiástica competente, à qual compete aprovar previamente os estatutos. Em síntese, pode-se dizer que existem três espécies de associações privadas distintas na atual legislação canônica:

– Associações de fato, baseadas exclusivamente na livre vontade dos seus componentes e sem qualquer reconhecimento, aprovação ou ereção por parte da autoridade eclesiástica.

– Associações com estatutos apenas reconhecidos, isto é, sem um decreto formal de aprovação.

– Associações com personalidade jurídica e estatutos aprovados, por meio de decreto formal da autoridade competente.

No que se refere aos efeitos do reconhecimento, só podem ser sujeitos de obrigações e de direitos as associações dotadas de personalidade jurídica (cf. cân. 310).

CLÁ DIAS, João. Os novos movimentos: Quando espírito e jurisprudência se encontram…

in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 6, jan-mar 2009. p. 24-26.


[1] Fuentes (2002, p. 514) trata de uma delicada distinção entre as associações civis, que tendam a fins “que afetam mais ou menos diretamente à Igreja”, e as associações eclesiais. Para não alongar demasiadamente o presente estudo e desviar o foco que são propriamente as associações privadas de fiéis, deixamos de tratar do interessante assunto aqui e recomendamos a quem nele deseje se aprofundar que consulte o próprio texto de Fuentes.

[2] Diz o autor: “[O Código de Direito Canônico] denomina clericais àquelas associações de fiéis que estão sob a direção de clérigos, fazem seu o exercício da ordem sagrada e são reconhecidas como tais pela autoridade competente (cân. 302). Emprega o termo clerical em sentido técnico-jurídico, fazendo referência não só a quem dirige a associação e ao ato constitutivo da mesma pela autoridade eclesiástica — que lhe confere o caráter de pública — senão também a uma modalidade no exercício do ministério sagrado por parte de seus membros. Por esta razão, uma associação formada exclusivamente por clérigos e destinada a fomentar entre seus sócios uma forma concreta de espiritualidade sacerdotal, no exercício do ministério e sob a dependência do próprio Ordinário, não terá a condição de clerical, será uma associação comum de fiéis e poderá ser tanto pública como privada (Gutiérrez)” (FERRER ORTIZ, 1991, p. 210).

A santidade do sacerdote, uma exigência

Mons. João Clá Dias, EPcura-dars

Desde a Antiga Lei, a pessoa do sacerdote é cercada de uma dignidade que requer vida exemplar. Assim, no Livro do Levítico, encontramos duplo apelo à santidade. De um lado, a mando de Deus, Moisés exorta o povo de Israel a buscar a perfeição: “Fala a toda a comunidade dos israelitas e dize-lhes: Sede santos, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19, 1). Mas aos sacerdotes a santidade é exigida com mais razão, porque são eles a oferecer os sacrifícios, fazendo o papel de intermediários entre Deus e o povo. Apresentar-se manchado pelo pecado diante do Altíssimo, para exercer o múnus sacerdotal, seria uma afronta ao Criador. “Os sacerdotes […] serão santos para o seu Deus e não profanarão o seu nome, porque oferecem ao Senhor os sacrifícios consumidos pelo fogo, o pão de seu Deus. Serão santos” (Lv 21, 5-6).

E dado que o Antigo Testamento é figura do Novo, compreende-se a necessidade de, na Nova Aliança, a santidade atingir um grau muito maior. Isto transparece da teologia tomista, a qual nos apresenta o ministro ordenado como tendo sido elevado a uma dignidade régia, no meio dos outros fiéis de Cristo, pois O representa e, em diversas ocasiões, age in persona Christi. Impossível, portanto, imaginar-se título superior. E como ele é chamado a ser mediador entre Deus e os homens, além de guia destes para as coisas divinas, deve necessariamente ser-lhes superior em santidade, embora todos os batizados sejam também chamados à perfeição.

Santo Afonso de Ligório, em sua obra A Selva, fundamentando-se na autoridade de São Tomás, esboça a figura do sacerdote como aquele que, por seu ministério, supera em dignidade os próprios Anjos, e por isso está obrigado a uma maior santidade, dado o seu poder sobre o Corpo de Cristo. De onde, conclui o fundador dos Redentoristas, a necessidade de uma dedicação integral do sacerdote à glória de Deus, de tal sorte que brilhe aos olhos do Senhor em razão da sua boa consciência e aos olhos do povo por sua boa reputação.[1]

Sobre isso ainda, recorda a doutrina tomista a necessidade de os ministros do Senhor terem uma vida santa: “In omnibus ordinibus requiritur sanctitas vitæ”.[2] Devem, portanto, sobretudo eles, ser o mais possível semelhantes ao próprio Deus: “Sede perfeitos assim como o vosso Pai Celeste é perfeito” (Mt 5, 48). E prossegue:

Diz Dionísio: “Assim como as mais sutis e mais puras essências, penetradas pelo influxo dos esplendores solares, derramam sobre os outros corpos, à semelhança do Sol, sua luz supereminente, assim também, em todo ministério divino, ninguém pretenda ser guia dos outros sem ser, em toda a sua maneira de comportar-se, muito semelhante a Deus”. […] Por isso, a santidade de vida é requerida na Ordem como necessidade de preceito. Mas não para a validade do sacramento.[3]

 

São conhecidas as invectivas de Nosso Senhor contra os escribas e fariseus. O que Jesus recriminava a estes homens, tão conhecedores da Lei, era justamente o fato de não viverem aquilo que ensinavam. Pretendendo aparecer aos olhos dos outros como exímios cumpridores dos preceitos mosaicos, não tinham reta intenção, nem verdadeiro amor a Deus. Seus ritos externos não eram acompanhados pela compunção de coração. Para que os sacerdotes da Nova Aliança não caiam no mesmo desvio, convém lembrar o comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, em que São Tomás afirma: “Aqueles que se entregam aos ministérios divinos obtêm uma dignidade régia e devem ser perfeitos na virtude, conforme se lê no Pontifical”.[4]

Daí que na homilia sugerida no rito de ordenação presbiteral esteja incluída esta tocante exortação:

Tomai consciência do que fazeis, e ponde em prática o que celebrais, de modo que, ao celebrar o mistério da morte e ressurreição do Senhor, vos esforceis por mortificar o vosso corpo, fugindo aos vícios, para viver uma vida nova.[5]

 

A caridade de Cristo O levou a oferecer a vida em holocausto no patíbulo da Cruz, pela redenção da humanidade. Também aqueles que são chamados a ser mediadores entre Deus e os homens, devem exercer o seu ministério por amor, como ensina o Aquinate:

Compete aos prelados da Igreja desejar, no governo dos seus subalternos, servir somente a Cristo, por cujo amor apascentam Suas ovelhas, como diz São João (21, 15): “Se me amas, apascenta as minhas ovelhas”. Cabe-lhes também dispensar ao povo as coisas divinas, conforme lê-se em 1 Cor 9, 17: “É uma missão que me foi imposta”; sob este ponto de vista, são mediadores entre Cristo e o povo.[6]

 

O sacerdote, portanto, é chamado a um grau de santidade especial: “Pela Ordem sacra, o clérigo é consagrado aos ministérios mais dignos que existem, nos quais ele serve o Cristo no Sacramento do altar, o que exige uma santidade interior muito maior do que a exigida no estado religioso”.[7]

Também no Concílio Vaticano II se adverte que os sacerdotes, “imitando as realidades com que lidam, longe de serem impedidos pelos cuidados, perigos e tribulações do apostolado, devem antes por eles elevar-se a uma santidade mais alta”.[8] O exercício de seu múnus sacerdotal será, pois, o melhor instrumento de santificação: “Cresçam no amor de Deus e do próximo com o exercício do seu dever cotidiano”.[9]

Para a santificação e eficácia do sacerdote, a graça sacramental tem um papel determinante, pois dá-lhe oportunidade de receber auxílios sobrenaturais mais intensos para cumprir sua função de santificar as almas e, ao mesmo tempo, unir-se de forma mais íntima a Cristo Sacerdote, não só instrumentalmente, em decorrência do caráter sacramental, mas configurando-se a Cristo pela caridade, de modo a poder dizer com São Paulo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20).

 

CLÁ DIAS, João. A Santidade do sacerdote à luz de São Tomás de Aquino. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 8, jul-set 2009. p. 11-14.


[1] Cf. LIGÓRIO, Santo Afonso Maria de. A Selva. Porto: Fonseca, 1928, p. 6. O Autor remete aos seguintes pontos das obras de São Tomás: S Th III, q. 22, a. 1, ad 1; Super Heb. cap. 5, lec. 1; S Th II-II, q. 184, a. 8; S Th Supl. q. 36, a. 1.

[2] S Th Supl. q. 36, a. 1.

[3] Idem.

[4] IV Sent. d. 24, q. 2.

[5] Pontifical Romano. Rito de Ordenação de Diáconos, Presbíteros e Bispos, n. 123. São Paulo: Paulus, 2004.

[6] Super I Cor. cap. 4, lec. 1.

[7] S Th II-II, q. 184, a. 8., Resp.

[8] LG, n. 41.

[9] Idem.

A eficácia do ministério sacerdotal

hostiaMons. João Clá Dias, EP

Ressalta Dom Chautard que a um sacerdote santo corresponde um povo fervoroso; a um sacerdote fervoroso, um povo piedoso; a um sacerdote piedoso, um povo honesto; a um sacerdote honesto, um povo ímpio.[1] Grande é, pois, o papel da virtude do ministro, para o êxito de seu ministério.

No que respeita à aplicação do valor da Santa Missa, com finalidade propiciatória, é que se pode falar de sua eficácia subjetiva, dependente das disposições de quem a celebra e daqueles aos quais ela é aplicada, como explica São Tomás:

Na satisfação atende-se mais à disposição de quem oferece do que à quantidade da oferenda. Por isso, o Senhor observou, a respeito da viúva que oferecia duas moedinhas, que ela “depositou mais que todos os outros”. Ainda que a oferenda da Eucaristia, quanto à sua quantidade, seja suficiente para satisfazer por toda a pena, contudo ela tem valor de satisfação para quem ela é oferecida ou para quem a oferece, conforme a medida de sua devoção, e não pela pena inteira.[2]

A respeito deste trecho do Doutor Angélico, Robert Raulin faz o seguinte comentário: “Seria perniciosa ilusão acreditar que o ofertante está dispensado do fervor, sob pretexto de que Cristo, oferecendo-Se na Missa, satisfez plenamente por todos os pecados do mundo”.[3]

Outro argumento, ainda, apresenta o Aquinate, para vincular a eficácia da Eucaristia à devoção dos que se beneficiam do valor infinito deste augusto Sacramento:

A Paixão de Cristo traz proveito a todos para a remissão da culpa, a obtenção da graça e da glória, mas o efeito só é produzido naqueles que se unem à Paixão de Cristo pela fé e caridade. Assim, também este Sacrifício, que é o memorial da Paixão do Senhor, só produz efeito naqueles que se unem a este Sacramento pela fé e caridade. […] Aproveitam, no entanto, mais ou menos, segundo a medida de sua devoção.[4]

 

A especial obrigação dos sacerdotes em trilhar o caminho da santidade é reafirmada no decreto Presbyterorum ordinis: “Estão, porém, obrigados por especial razão, a buscar essa mesma perfeição visto que, consagrados de modo particular a Deus pela recepção da Ordem, se tornaram instrumentos vivos do sacerdócio eterno de Cristo”.[5] E de seu aperfeiçoamento pessoal, ensina o mencionado documento conciliar, decorrerá maior ou menor abundância de frutos de sua ação pastoral:

A santidade dos presbíteros muito concorre para o desempenho frutuoso do seu ministério; ainda que a graça de Deus possa realizar a obra da salvação por ministros indignos, todavia, por lei ordinária, prefere Deus manifestar as suas maravilhas por meio daqueles que, dóceis ao impulso e direção do Espírito Santo, pela sua íntima união com Cristo e santidade de vida, podem dizer com o Apóstolo: “Se vivo, já não sou eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20).[6]

 

Ante esta realidade, o sacerdote tem dois grandes deveres. Um para consigo mesmo e outro para com o povo, pois ambos se beneficiam dos frutos da Santa Missa, especialmente o celebrante, conforme o grau de fervor ou devoção.[7]

Segundo alguns teólogos, este fruto especialíssimo da Santa Missa, destinado ao sacerdote, é maior do que o destinado aos demais participantes do Sacrifício Eucarístico, ou àqueles aos quais se aplica o seu valor. É neste manancial inesgotável da misericórdia de Deus que cada ministro ordenado deve ir buscar as melhores graças para a sua santificação, assim como a daqueles que lhe estão confiados:

Por causa do poder do Espírito Santo, que pela unidade da caridade comunica os bens dos membros de Cristo entre si, acontece que o bem particular presente na Missa de um bom sacerdote se torna frutuoso para outras pessoas.[8]

 

Dessa maneira, corresponderá ele à altíssima dignidade de seu ministério, segundo dizia o Santo Cura d’Ars:

Sem o sacramento da Ordem, não teríamos o Senhor. Quem O colocou ali naquele sacrário? O sacerdote. Quem acolheu a vossa alma no primeiro momento do ingresso na vida? O sacerdote. Quem a alimenta para lhe dar a força de realizar a sua peregrinação? O sacerdote. Quem há de prepará-la para comparecer diante de Deus, lavando-a pela última vez no sangue de Jesus Cristo? O sacerdote, sempre o sacerdote. E se esta alma chega a morrer [pelo pecado], quem a ressuscitará, quem lhe restituirá a serenidade e a paz? Ainda o sacerdote. […] Depois de Deus, o sacerdote é tudo! […] Ele próprio não se entenderá bem a si mesmo, senão no Céu.[9]

CLÁ DIAS, João. A Santidade do sacerdote à luz de São Tomás de Aquino. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 8, jul-set 2009. p. 19-21.


[1] Cf. CHAUTARD, OCSO, Jean-Baptiste. A Alma de todo o apostolado. Porto: Civilização, 2001, p. 34-35.

[2] S Th III, q. 79, a. 5, Resp.

[3] In: AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2006, v. 9, p. 358.

[4] S Th III q. 79, a. 7, ad 2.

[5] PO, n. 12.

[6] Idem.

[7] Cf. ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología Moral para Seglares. Madrid: BAC, 1994, v. 2, p. 158.

[8] S Th III q. 82, a. 6, ad 3.

[9] Palavras de São João Maria Vianney, citadas pelo Papa Bento XVI na Carta para Proclamação do Ano Sacerdotal, 16 jun. 2009.

O desejo de conhecer no homem

alianca

Dartagnan Alves de Oliveira Souza, EP 

O desejo de conhecer o que está além das aparências materiais leva o homem, enquanto todo, com todas as suas capacidades e inclinações, à procura de um Ser Superior capaz de criar e sustentar todas as coisas, sendo, portanto, Causa e explicação de tudo.

 

 

Desejo do Absoluto

Ao investigar a natureza pela simples razão natural, o homem é levado a encontrar a verdade,[1] esse é o seu objetivo quando busca as razões e causas das coisas. Entretanto, essa busca recai sobre um Ordenador universal — não um demiurgo simplesmente —, mas um Provedor e Sustentador de todas as coisas, no qual se encontra o modelo de bondade e beleza em seu máximo grau.

Jolivet,[2] ao tratar da religião natural, diz que, como efeito das inclinações naturais, o ser humano tende a procurar a verdade no Ser que a possui em grau absoluto. Assim, seguindo essa tendência, ele sente no íntimo de seu ser uma atração para o bem e para o belo que o conduz a encontrar em Deus o exemplo e fonte da Bondade e da Beleza.

Corrêa de Oliveira afirma que o homem inocente, por meio do maravilhamento com a natureza criada, sente em si uma tendência que o arrasta a contemplar o Absoluto: “À medida que vai procurando o maravilhoso, de etapa em etapa, o inocente afina as exigências de sua alma até chegar ao Ser que é o píncaro, a cúpula de toda a ordem do ser, autor da Criação, perfeitíssimo, infinito, absoluto, eterno”.[3]

Vias para conhecer o Criador

A busca sedenta de uma causa primeira para a origem do Universo, presente em todos os tempos, converge para determinadas vias pelas quais o homem, analisando e argumentando, pode encontrar o ponto de partida da Criação. Esse Universo pode ser considerado materialmente em duas partes essenciais: seres irracionais e seres racionais. A primeira serve como via de acesso para que a segunda a utilize nas cogitações transcendentes acerca do Universo.

As vias para se ascender ao conhecimento do Criador têm seu ponto de partida na Criação, no mundo material, captável pelos sentidos externos. Dessa maneira, os seres racionais podem, por meio de argumentos convincentes, chegar a ortodoxas certezas que afirmam a existência de um Ser Superior a todos os demais, pelo fato de ser necessário, enquanto os demais são contingentes,[4] pois necessitam de uma sustentação que não emana da essência de seus próprios seres,[5] mas dAquele que possui em si a causa de seu próprio existir.[6]

Detendo-se o homem por alguns instantes, breves que sejam, na contemplação, por exemplo, de um panorama montanhoso banhado pelos últimos raios do sol que declina no horizonte, no qual o céu parece oscular a terra, normalmente tenderia a maravilhar-se diante do espetáculo. Vendo cores e formas feéricas, ele se sentiria atraído e, poderíamos dizer, quase que arrastado a refletir sobre o que aquele ambiente paradisíaco transmite ao intelecto ou ao sentimento humano. É a ocasião onde o homem, vendo e admirando os efeitos, procura a Causa.[7]

Da beleza à Beleza

As belezas contidas no Universo nos falam de uma Beleza maior, não mutável, mas da qual emanam todas as demais belezas (relativas), sujeitas à mudança.[8] Essas belezas mutáveis são apenas reflexos de uma matriz de Beleza de onde se origina esse transcendental.[9]

Santo Agostinho em um de seus sermões, tratando sobre a beleza, diz:

Interroga pulchritudinem terrae, interroga pulchritudinem maris, interroga pulchritudinem dilatati et diffusi aeris, interroga pulchritudinem coeli, interroga ordinem siderum, interroga solem fulgore suo diem clarificantem, interroga lunam splendore subsequentis noctis tenebras temperantem, interroga animalia quae moventur in aquis, quae morantur in terris, quae volitant in aere [] interroga ista, Respondent tibi omnia: Ecce vide, pulchra sumus. Pulchritudo eorum, confessio eorum. Ista pulchra mutabilia quis fecit, nisi incommutabilis pulcher?[10]

 

Por meio dos atrativos bons, belos e verdadeiros encontrados na natureza material que nos rodeia a todo momento, podemos nos elevar Àquele que é propriamente o Bem, o Belo e a Verdade por excelência.

A respeito da beleza Platão já falara em seu tempo. Para ele, o princípio de uma ascensão à ideia divina de Beleza tem como ponto de partida o amor. É por meio do amor que o homem poderá contemplar as criaturas corpóreas e dar um passo rumo à beleza moral. Atingindo essa beleza posta nos costumes, o homem poderá ascender aos belos ensinamentos — que outra coisa não é, senão a beleza intelectual — para assim chegar à consideração da ideia de Beleza em si mesma — a Beleza enquanto tal — da qual as demais belezas particulares não são senão mera participação.[11] Assim sendo, segundo esse filósofo, o homem ascende como que a graus que o levam a encontrar e a conhecer, paulatinamente, belezas superiores, até chegar à Beleza em si mesma, que é incriada.[12]

Essa ideia, exposta no Banquete, nos mostra de forma claríssima o que Platão pensava sobre a beleza. Encontramos nesse pensamento a conceitualização da ideia do amor vinculada com a ideia de beleza; para ele, é por meio do amor que o filósofo chegará a uma ciência verdadeira (a contemplação da Beleza em si mesma). Platão atribuirá à ideia de Beleza qualificativos “divinos”. O próprio ser humano, ao entrar em contato com ela, poderá haurir essa “divinização”. Ele chega a afirmar que toda participação de beleza contida no Universo tem como modelo essa Beleza “inmutable, que no nace ni perece, autosuficiente, simple, incorpórea, divina y que diviniza al hombre que la posee…”.[13]

Esse pensamento platônico é uma primeira ideia, ainda não nítida, a respeito da relação da beleza por participação com a Beleza subsistente. Claro está que o pensamento em torno da beleza, em todos os seus graus e formas, foi-se desenvolvendo à medida que o próprio ser humano a foi contemplando.

 

 

OLIVEIRA SOUZA, Dartagnan.  Pulchrum: Caminho para o Absoluto? in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 8, jul-set 2009. p. 84 – 87.

 

 

 

 


[1] STORK, Ricardo Yepes; ECHEVARRÍA, Javier Aranguren. Fundamentos de antropologia: um ideal da excelência humana. Tradução de Patrícia Carol Dwyer. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2005. p. 151.

[2] JOLIVET, Régis. Tratado de Filosofia II: Psicologia. 2. ed. Tradução de Gerardo Dantas Barretto. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editôra, 1967. p. 328.

[3] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Primeiro olhar e inocência. Obra póstuma, em preparação. Parte II, cap. 3, 6.

[4] G. P. Manuel de Filosofia: Resumido e adaptado do “Cours de Philosophie” de C. Lahr. 4. ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1948. p. 742.

[5] MOLINARO, Aniceto. Metafísica: curso sistemático. Tradução de João Paixão Netto e Roque Frangiotti. São Paulo: Paulus, 2002. p. 62.

[6] JOLIVET, Régis. Tratado de Filosofia III: Metafísica. 2. ed. Tradução de Maria da Glória Pereira Pinto Alcure. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1972. p. 362.

[7] S. Th. I, q.2, a.1.

[8] JOLIVET, Tratado de Filosofia III: Metafísica, Op. Cit., p. 260.

[9] BRUYNE, Edgar de. L’Esthétique du Moyen Age. Louvain: Éditions de L’Institut Supérieur de Philosophie, 1947. p. 10.

[10] SANCTUS AUGUSTINUS, Sermo 241, 2. “Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar, interroga a beleza do ar dilatado e difuso, interroga a beleza do céu, interroga o ritmo ordenado dos astros; interroga ao sol, que ilumina o dia com fulgor; interroga a lua, que suaviza com seu resplendor a obscuridade da noite que segue ao dia; interroga aos animais que se movem nas águas, que habitam a terra e que voam no ar […] Interroga todas essas realidades. Todas elas te responderão: Olha-nos, somos belas. Sua beleza é um hino (confissão) de louvor. Quem fez essas coisas belas, ainda que mutáveis, senão a própria Beleza imutável?” (Tradução pessoal).

[11] PLATÃO. Fédon, XLIX, 100. Citado por MANDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo: História da Filosofia Greco-Romana I. 2. ed. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1966. p. 13.

[12] PLATÃO. O banquete. Citado por FRAILE, Guillermo, O. P. Historia de la filosofía I: Grecia y Roma. 5. ed. Madrid: La Editorial Catolica, S. A., 1982. p. 354-355.

[13] Ibid., p. 326-327. “…imutável, que não nasce e nem morre, auto-suficiente, simples, incorpórea, divina e que diviniza ao homem que a possui…” (Tradução pessoal).

A Via Pulchritudinis, o caminho da Verdade e da Bondade

Tradução do original em italiano de l’Assemblea plenaria del Pontificio Consiglio della Cultura – 27 al 28 marzo 2006 –  La Via pulchritudinis – Cammino privilegiato di evangelizzazione e di dialogo.

altarPropondo uma estética teológica, Hans Urs von Balthasar pretendia abrir os horizontes do pensamento à meditação e à contemplação da beleza de Deus, do seu mistério e de Cristo no qual Ele se revela. Na introdução ao primeiro volume da sua obra magistral, Glória, o teólogo cita a palavra beleza “que para nós será a primeira” e não exprime a levada em relação ao bem que “também perdeu a sua força de atração” e na qual “os argumentos a favor da verdade exauriram a sua força de conclusão lógica”.

A nossa palavra inicial se chama beleza… A beleza é a última palavra que o intelecto pensante pode ousar pronunciar, porque essa não faz senão coroar, qual auréola de esplendor inefável, o dúplice astro da verdade e do bem e a sua relação indissolúvel. Essa é a beleza desinteressada sem a qual o velho mundo era incapaz de se entender, mas a qual se colocou na ponta dos pés do moderno mundo de interesses, para abandoná-lo à sua cupidez e à sua tristeza. Essa é a beleza que não é mais amada e protegida nem mesmo pela religião e que, todavia, salta como uma máscara do próprio rosto, coloca a nu os tratos que ameaçam tornar incompreensíveis aos homens… Os quais, em seu nome, ondulam o sorriso nos lábios, julgando-a como uma bagatela exótica de um passado burguês, do qual pode estar seguro de que — secretamente ou abertamente — não é mais capaz de rezar e, logo, não é mais capaz de amar…

Num mundo sem beleza — mesmo se os homens não se arriscam a ficar sem esta palavra e a têm continuamente nos lábios, equivocando o sentido — num modo que não está forçosamente provado, mas que não é mais capaz de vê-la, de se relacionar com ela, e mesmo o bem perdeu a sua força de atração, a evidencia de seu dever-ser-preenchido… Num mundo que não se crê mais capaz de afirmar o belo, os argumentos a favor da verdade esgotaram a sua força de conclusão lógica.[1]

 

Paralelamente, com outras preocupações, Aleksandr I. Solženicyn nota com acento profético, no seu discurso pela atribuição do Prêmio Nobel da Literatura:

Esta antiga trindade da Verdade, do Bem e da Beleza não é simplesmente uma caduca fórmula da parada, como era assinalado nos tempos da nossa presunçosa juventude materialista. Se, como diziam os sábios, o cume destes três arbustos se reúnem, enquanto os rebentos da Verdade e do Bem, muito precoces e indefesos são esmagados, desfeitos e não chegam à maturidade, talvez estranhos, imprevistos, inesperados serão os rebentos da Beleza a despontar e a crescer no mesmo lugar e serão eles de tal modo que cumprem o trabalho dos três.[2]

 

Então, bem longe de renunciar a propor a Verdade e o Bem, que estão no coração do Evangelho, é necessário seguir uma via que permita para esses juntar o coração do homem e da cultura. Padre Turoldo, cantor da beleza, reporta esta significativa afirmação de D. Barsotti:

O mistério da beleza! Até a verdade e o bem tornaram-se beleza, a verdade e o bem parecem permanecer de alguma forma estranhas ao homem, impõem-se-lhe do exterior; ele lhes adere, mas não os possui; exigem-lhe uma obediência que de alguma forma os mortifica.[3]

 

O mundo nascente tem uma urgente necessidade, como sublinhava Paulo VI na sua vibrante mensagem aos Artistas de 8 de Dezembro 1965, no encerramento do Concílio Ecumênico Vaticano II:

O mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para não cair no desespero. A beleza, como a verdade, é a que traz alegria ao coração dos homens, é este fruto precioso que resiste ao passar do tempo, que une as gerações e as faz comungar na admiração.[4]

 

Contemplada com ânimo puro, a beleza fala diretamente ao coração, eleva interiormente da estupefação ao maravilhamento, da admiração à gratidão, da felicidade à contemplação. Portanto, cria um terreno fértil para a escuta e o diálogo com o homem e para aferrá-lo inteiramente de mente e coração, inteligência e razão, capacidade criadora e imaginação. Essa, de fato, dificilmente deixa indiferença: suscita emoções, coloca num certo dinamismo de profundas transformações interiores que geram alegria, sentimento de leveza, desejo de participar gratuitamente nesta mesma beleza, de se apropriar dela interiorizando-a e inserindo-a na própria existência concreta.

A Via da Beleza responde ao íntimo desejo de felicidade que está albergado no coração de todos os homens. Ela abre horizontes infinitos, que levam o ser humano a sair de si próprio, da rotina e do efêmero instante que passa, para se abrir ao Transcendente e ao Mistério, a desejar, como fim último do seu desejo de felicidade e da sua nostalgia de absoluto, esta Beleza original que é o próprio Deus, Criador de toda a beleza criada. Muitos Padres fizeram referência a isto no Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia, em Outubro de 2005. O homem, no seu íntimo desejo de felicidade, pode encontrar-se colocado de frente para o mal do sofrimento e da morte. Do mesmo modo, as culturas são de tal maneira postas diante de fenômenos análogos aos malefícios, que poderão conduzir até ao seu eclipse. A voz da beleza ajuda a abrir-se à luz da verdade, e ilumina, de tal forma, a condição humana, ajudando-a a colher o significado da dor. Desse modo, favorece a sanar os males.

A Via Pulchritudinis. Tradução de VICTORINO DE ANDRADE, José. in: Lumen Veritatis. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho, n. 6, jan-mar 2009.   p. 126-128.


[1] H. Urs von Balthasar, Gloria. Gli aspetti estetici della Rivelazione. I, Milano 1975, 10-11.

[2] Lezione per il Premio Nobel, in Opere, t. IX, YMCA Press, Vermont-Paris 1981, p. 9.

[3] “Bellezza” in Nuovo Dizionario di Mariologia, Ed. Paoline, 1985, p. 222-223.

[4] O Papa João Paulo II retomou esta afirmação essencial na sua Lettera agli Artisti, n. 11.

O conflito entre ciência e Fé

confPe. François Bandet

No começo o século XIX existiu um sério conflito entre a ciência e a Fé. Foi o período do iluminismo, no qual a razão foi honrada como a única intérprete do conhecimento. Naquele período, o movimento contrário à religião apelidado de positivismo defendeu que a dimensão metafísica da vida era contrária ao senso comum. Hoje, essa mentalidade reducionista reemergiu como uma nova forma de cientificismo,[1] no qual valores e a noção do ser são descartados como um mero produto das emoções e da imaginação. As questões básicas da vida: o que eu posso saber? O que devo eu fazer? O que devo esperar?[2] são consideradas por uma tal mentalidade científica como um lamentável fruto da irracionalidade e da fantasia.

Entretanto, o conflito entre Fé, religião e ciência ainda existe hoje apesar do fato de essas matérias não se oporem, pelo contrário, complementarem-se harmoniosamente. Até Galileu explicitamente declarou que a Fé e a ciência, como duas fontes de verdade, não se podem opor uma à outra.[3] O que é necessário para uma harmonia apropriada entre os dois é que cada uma permaneça no seu respectivo campo. O conflito começa quando uma ou outra, arbitrariamente, estende o seu campo de ação, projetando-se no campo específico ou na matéria do outro.

A harmonia, a paz e a coexistência são favorecidas quando cada disciplina tem uma ideia clara da sua própria natureza e objetivo.[4] Um cientificismo militante e positivo, onde as disciplinas de teologia e filosofia são absorvidas pela ciência, é por certo uma fonte de tensão e conflito. Por exemplo, o cosmologista Stephen Hawking é renomado por extrapolar da sua disciplina científica para teorias filosóficas, a fim de defender suas cosmológicas conclusões sob o pretexto da “estética”. Por basear as suas teorias numa tal evidência não científica, Hawking tenta excluir Deus do seu cosmos, tornando-o um “Deus de vácuo” numa dimensão deística.

Assim como o universo teve um começo, nós podemos supor que teve um criador. Mas se o universo está realmente autocontido, não tendo limite ou borda, sem qualquer princípio ou fim: existindo simplesmente, que lugar teria então um criador?[5]

 

Diante de tal atitude, a teologia não se deve afastar da ciência, e, pior ainda, da razão. Deve continuar o diálogo através da filosofia, como um tipo de moderador já sugerido por João Paulo II:

Como em épocas precedentes, também hoje — e talvez mais ainda — os teólogos e todos os homens de ciência na Igreja são chamados a unirem a Fé com a ciência e a sapiência, a fim de contribuírem para uma recíproca compenetração das mesmas […].[6]

 

A ciência física, entretanto, deve ser pragmática e baseada em reais observações. A teologia deve continuar comunicante e provocando transcendência, a fim de não perder o seu alvo específico.[7] Uma espécie de atitude de “regresso ao essencial” é necessária, para evitar cair no erro de sobrepor ou, pior ainda, isolar-se sob a forma de “fideísmo”.

BANDET. François. Estará a ciência oposta à Fé?  in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 6, jan-mar 2009. p. 71-73. Traduzido do original inglês pelo Editorial de Lumen Veritatis, com autorização e revisão do autor.

[1] Cf. Pope John Paul II, Fides et Ratio, 88.

[2] Cf. Kant, Critique of Pure Reason, Bohn, London, 1855, 488.

[3] «Sacred Scripture and the natural world proceeding equally from the divine Word, the first as dictated by the Holy Spirit, the second as a very faithful executor of the commands of God» wrote Galileo in his letter to Father Benedetto Castelli on 21 December 1613. Pope John Paul II, Fides et Ratio, footnote 29.

[4] Cf. P. Haffner, Creazione e scienze, Millstream Productions, Rome, 2008, 125.

[5] S. W. Hawking, A Brief History of Time, Bantam Press, London, 1988, 140-141; cit. in P. Haffner, The Mystery of Reason, Gracewing, Herefordshire, 2001, 162.

[6] Pope John Paul II, Redemptor Hominis, 19.

[7] Cf. L. Oviedo, Whom to blame for the charge of secularization?, in Zygon, 2005, vol. 40, no. 2, 360.