Ele é o “Príncipe da Paz” – Meditação de Natal

presepio-01Mons. João S. Clá Dias, EP

I – Divina solução para os problemas atuais

“O presépio de Belém nos mostra o Homem perfeito que, unindo numa só pessoa a natureza divina e a natureza humana, restitui a esta a melhor parte de seus privilégios, perdidos pelo pecado, e a plenitude dos benefícios daí decorrentes. Donde se segue que não temos outro meio de sermos homens – tanto do ponto de vista espiritual quanto do social – senão o de nos aproximarmos do Homem perfeito, da plena estatura da vita de Cristo: ‘donec occurramus in virum perfectum, in mensuram ætatis plenitudinis Christi’”. 1

O caminho para obter a harmonia, a concórdia e a paz

Por essa razão, ajoelhando-nos diante do Menino Deus – como o fizeram os Sagrados Esposos, os pastores, os Reis Magos e tantos outros -, estaremos contemplando os mais altos ensinamentos para ordenar toda a nossa vida cristã e social. Naquela Manjedoura se encontra “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6).

Naquele Menino vemos o Redentor, iniciando a Aula Magna do Seu Magistério, não ainda por meio de palavras, mas ensinando-nos, com não menor eloqüência, através do exemplo, o único e excelente meio para o restabelecimento da antiga atmosfera de nosso éden perdido: o espírito de sacrifício, de pobreza e de resignação no sofrimento.

Inúteis são as grandes assembléias para discutir de forma acalorada os dramas que, hoje em dia, atravessam as nações. Basta-nos essa belíssima lição posta diante de nossos olhos para recuperarmos nossa dignidade, nossa justiça original e até mesmo para a humanidade viver na harmonia, a concórdia e a paz que em tão alto grau existia no Paraíso Terrestre.

Nem a ciência com todo o seu progresso, nem a política com sua multissecular experiência, nem sequer o auxílio de todas as riquezas, são eficazes para solucionar os inúmeros problemas atuais. Se a sociedade resolvesse enveredar pelas vias que o Salvador nos oferece na simples recordação de Seu Santo Natal, viveria feliz, em meio à tranqüilidade universal.

Ele quis ser tudo para todos, e os seus não O receberam

Quão maravilhosa não teria sido a história de uma família que, por piedade e compaixão, tivesse aberto suas portas, na mais bela de todas as noites, para dar hospitalidade àqueles predestinados e bem-aventurados pais? Porém, narra-nos São Lucas que não houve lugar para eles em nenhuma hospedagem (cf. Lc 2, 7). Diz-nos São João: “Ele veio aos seus, e os seus não O receberam” (Jo 1, 11).

Mais terrível ainda é a conduta dos povos, nações, e da própria humanidade dos presentes dias, que não só não querem ver nascer em seu meio esse Menino Deus e Sua Santa Igreja, mas, pior ainda, dão- Lhes as costas, e além de caluniá-Los e persegui-Los, põem-Lhes toda espécie de obstáculos para o exercício de Sua missão.

O Menino-Mestre não poderia ter escolhido melhor meio para colocar- Se à disposição de todos, manifestando um caráter de universalidade em Seu nascimento. Realizou-o em lugar público de livre acesso, sem que ninguém pudesse ser impedido de aproximar- se. Quis nascer pobre para facilitar a todos irem até Ele e, por outro lado, quis descender de sangue real para que os nobres não se sentissem inclinados a desprezá-Lo. Portanto, não chamou uma única classe social, mas quis ser tudo para todos.

Entretanto, os seus não só não O receberam, como, depois de Ele ter devolvido a vista aos cegos, a fala aos mudos, a audição aos surdos, a deambulação aos paralíticos, a saúde aos leprosos, a vida aos mortos, crucificaram- No. Triste e incompreensível acontecimento que se renova até os dias de hoje.

Porém, é por cima de todas as infidelidades que, na noite de Natal, ainda nos dias atuais, recordamos aquele canto: “Gloria in altis simis Deo et in terra pax hominibus bonæ voluntatis” – Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens objeto da Boa Vontade de Deus (Lc 2, 14).

II – A paz cantada e oferecida pelos anjos

“E subitamente apareceu com o Anjo uma multidão da milícia celeste louvando a Deus e dizendo: ‘Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens objeto da Boa Vontade de Deus’” (Lc 2, 13-14).

Trata-se de um fato de grandeza incomensurável. O Unigênito gerado desde toda a eternidade é idêntico ao Pai e desejou encarnar-Se para, de dentro de uma natureza criada, poder louvá-Lo com toda submissão. O Divino Infante, ao nascer, oferece ao Pai um culto perfeito, além de reconciliar com Deus a humanidade, tornando-a, assim, apta para glorificá- Lo.

Essa é a causa da grande glória que Lhe prestam os puros e celestiais espíritos, pois exaltam a maior obra de Deus, na qual Ele manifesta ao universo Sua sabedoria, Sua misericórdia, Seu poder e tantas outras perfeições absolutas. Cumpre, desse modo, com superabundância e fidelidade, Suas mais antigas promessas.

Os Anjos, no Céu, cantam em ação de graças pelo mais extraordinário benefício realizado por Deus ao homem. Eles mesmos, puros espíritos, obtiveram frutos de tão grande obra, e até mesmo a própria perseverança deles teve a Redenção como fonte.

Nasceu o “Príncipe da Paz”

Nascemos sob a ira de Deus, devido ao pecado de nossos primeiros pais, mas podemos ser reconciliados com Ele por esse Divino Nascimento que, ademais, nos traz a tranqüilidade da consciência, a paz da alma e a harmonia entre os homens (cf. Ef 2, 14; Cl 1, 20).

“Quando a paz começava a reinar, os Anjos diziam: ‘Glória nas alturas e paz na terra’ (Lc 2, 14). Quando, porém, os de baixo receberam a paz dos de cima, eles proclamaram: ‘Glória na terra e paz nos Céus’ (Lc 19, 38). Quando a Divindade desceu à terra e se revestiu de humanidade, os Anjos proclamavam: ‘Paz na terra’. E quando a humanidade subiu e foi elevada, imergiu na Divindade e sentou-se à sua direita, os meninos clamavam diante dela: ‘Paz nos Céus, hosana nas alturas!’ (Mt 21, 9). Assim, o Apóstolo pôde dizer: ‘Por intermédio dAquele que, ao preço do próprio sangue na cruz, restabeleceu a paz a tudo quanto existe na terra e nos céus’ (Cl 1, 20).

“Os Anjos diziam: ‘Glória nas alturas e paz na terra’; e os meninos: ‘Paz nos Céus e glória na terra’ (Lc 19, 38). Aparece assim com clareza que, como a graça da misericórdia de Cristo alegra os pecadores na terra, assim também seu arrependimento atinge os Anjos do Céu” (cf. Lc 15, 7-10).2

O Menino louvado pelos Anjos é o “Príncipe da Paz” anunciado sete séculos antes por Isaías (9, 5) e que, anos mais tarde, afirmará serem bem-aventurados os pacíficos – aqueles que sabem estabelecer em si mesmos e nas almas dos outros o reino da paz – dando-lhes o título de Filhos de Deus.

Precioso dom que não nos será retirado

O beata nox! Sim, bendita noite que assiste ao nascimento de um Menino a inaugurar uma nova era histórica. Naquela noite foi oferecido à humanidade um precioso dom que não lhe seria retirado nem mes mo quando aquele Menino retornasse à eternidade: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração nem se atemorize” (Jo 14, 27).

Qual é o sentido destas palavras? Eis: Eu não vo-la dou como dão os homens que amam o mundo. Estes, com efeito, oferecem a paz, a fim de – livres de preocupações, de processos e de guerras – poderem gozar, não de Deus, mas do mundo, ao qual entregaram o seu afeto. E quando eles oferecem a paz aos justos, cessando de persegui-los, não é uma paz verdadeira, porque não há verdadeiro acordo onde os corações estão desunidos. Chamamos consortes àqueles que unem sua sorte. Aqueles que unem seus corações, do mesmo modo, devem se chamar concordes. Para nós, meus caríssimos irmãos, Jesus Cristo nos deixa a paz e nos dá sua paz, não como a dá o mundo, mas como a dá Aquele por quem foi criado o mundo. Ele no-la dá para que todos estejamos de acordo, para que estejamos unidos de coração e, tendo um só coração, o elevemos ao alto, não nos deixando corromper na terra”.3

A pseudo-paz que o mundo nos oferece

Todas as palavras de Jesus são de vida eterna e misteriosamente atraentes, mas, sendo recordadas bem junto ao Presépio, levam-nos a querer penetrar a fundo em seu significado, sobretudo, as que se referem à paz trazida a nós naquela noite. Qual será sua natureza? É ela que toda criatura humana com sofreguidão deseja, mas quão freqüentemente a busca onde ela não se encontra e, mais ainda, se equivoca quanto ao seu verdadeiro conteúdo e substância!

Não consistirá nesse equívoco a causa principal de o mundo estar quase sempre pervadido por guerras e catástrofes ao longo de vários milênios? Tudo fruto da pseudopaz que o mundo nos oferece, bem diferente da que os Anjos cantaram aos pastores, naquela bendita noite de Natal.

A esse propósito, comenta Orígenes: “Onde não está Jesus, há disputas e guerras, mas onde Ele está presente tudo é serenidade e paz”.4 Santo Agostinho afirma que a paz consiste em um “bem tão nobre que, mesmo entre coisas mortais e terrenas, nada há de mais grato ao ouvido, nem mais doce ao desejo, nem superior em excelência”.5 E São Beda acrescenta: “A verdadeira, a única paz das almas neste mundo consiste em estar cheias de amor de Deus e animadas da esperança do Céu, a ponto de considerar pouca coisa os êxitos ou reveses deste mundo. […] Engana-se quem imagina que poderá encontrar a paz no gozo dos bens deste mundo e nas suas riquezas. As freqüentes perturbações nesta terra e o fim deste mundo deveriam convencer o homem de que ele construiu sobre areia os fundamentos de sua paz”. 6

Paz e pecado não podem viver juntos

A paz cantada e oferecida pelos Anjos encontra-se na santidade para a qual todos nós somos chamados. Fomos criados por Deus e para Ele; enquanto a suma Verdade não ilumine nossa inteligência, enquanto o Bem supremo não ocupe um lugar primordial em nosso coração, serão frustrados nossos esforços em busca da paz. Num mesmo coração não podem viver juntos a paz e o pecado. “Não há paz no coração do homem carnal, nem no do homem entregue às coisas exteriores, mas somente no daquele que é fervoroso e espiritual”. 7 Por isso, quanto mais procuro a paz nos gozos deste mundo, mais me acusará minha consciência pelo fato de me colocar fora da ordem do universo, e sobretudo se, por desgraça, venha eu a abraçar as vias do pecado. Neste caso, serei objeto do ódio de Deus e dos raios de Sua santa cólera. Pior ainda será minha situação se eu conseguir abafar a voz de minha consciência; aí, no silêncio profundo de meu inveterado e pérfido coração, se evanescerão os remorsos, angústias e temores pela virtude perdida. E neste caso, a morte ocupará o lugar deixado em minha alma pela antiga paz.

Em realidade, o que é a verdadeira paz?

Diz-nos São Tomás de Aquino: “Quem tem um desejo, deseja também a paz, uma vez que ele almeja obter tranqüilamente e sem impedimentos o objeto desejado. E nisso consiste a paz, que Santo Agostinho define como ‘a tranqüilidade da ordem’”. 8 Portanto, nossos anseios sempre são acoplados a uma busca de paz. E a única capaz de satisfazer o coração humano é aquela oferecida pelos Anjos a toda a humanidade, na pessoa dos pastores.

Tranqüilidade e ordem são os elementos constitutivos dessa paz. Pode vir a existir tranqüilidade sem ordem, e vice-versa: em nenhum desses casos haverá verdadeira paz, ainda que desta possam existir aparências.

Não é por mera expansividade que os Anjos cantam em primeiro lugar: “Glória a Deus no mais alto dos Céus…” (Lc 2, 14), pois a verdadeira paz procede do Espírito Santo, como as plantas nascem das sementes ou das raízes, tal qual ressalta São Paulo: a paz é “fruto do Espírito Santo” (Gl 5, 22) e “está acima de todo entendimento” (Fl 4, 7). O Doutor Angélico afirma, e torna-se óbvio, que vive em perfeita ordem quem está unido a Deus, pois Ele ordena as potências da alma, com seus sentidos e faculdades, por ser Ele mesmo o primeiro princípio e último fim de toda a criação. Daí produzir essa união o repouso interior. Ademais, quando nossa união com Deus é plena, não pode haver perturbação porque tudo o que não é Deus, reputamos como sendo nada, conforme proclama São Paulo: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós?” (Rm 8, 31).

É-nos fácil compreender como o homem que está em paz com Deus também o estará consigo mesmo, assim como com os demais, pois o fundamento da verdadeira paz é viver em paz com Deus Nosso Senhor. Por isso nos diz São Cirilo: “Envergonhemonos de prescindir do dom da paz, que o Senhor nos deixou quando ia sair do mundo. A paz é um nome e uma coisa saborosa, a qual sabemos que provém de Deus, como diz o Apóstolo aos filipenses: a paz de Deus. E que ela é de Deus, mostra-o também quando diz aos efésios: Ele é nossa paz. A paz é um bem recomendado a todos, mas observado por poucos. Qual é a causa disso? Talvez a ambição de poder, a inveja, o ódio ao próximo, ou algo do gênero, que vemos naqueles que desconhecem o Senhor. A paz procede de Deus, o qual é quem une tudo […] Transmitea aos Anjos […] e se estende também a todas as criaturas que verdadeiramente a desejam”.9

Principal razão pela qual os homens de hoje não acham a paz

Se, como acima dissemos a paz é fruto do Espírito Santo, a base dela se encontra fixa na vida da graça e da caridade. Ora, o Autor da graça é Jesus Cristo: “A graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1, 17). E, portanto, é Ele também o autor da paz: “Cristo é a nossa paz” (Ef 2, 14).

Essa é a principal razão de não encontrarem os homens de hoje a verdadeira paz. Claro! Pois ela não surge dos tratados. Quando muito, aordem externa das nações consegue reparar os estragos materiais do pósguerra, mas somente a tranqüilidade e ordem da alma é que – enquantoelementos essenciais – trazem a autêntica paz. Esta se evanesceu do concerto das nações e nem sequer no interior das mesmas nós a podemos desfrutar.

E o que dizer das dissensões no seio das famílias, instituição que a cada passo ainda mais se deteriora pela agressão de vários fatores adversos conjugados: corrupção moral progressiva, desfazimento da autoridade paterna, generalizada violação da fidelidade conjugal, desprezo da Lei de Deus e até mesmo do bem social no cumprimento dos sagrados deveres para com os filhos?

Todas essas desordens têm sua causa no próprio homem atual, penetrado de descontentamento em seu coração, irmão siamês do fastio, acidez e inquietação. Quase toda criatura humana, hoje em dia, é possuída por um espírito de insubordinação a qualquer tipo de autoridade, seja ela eclesiástica, religiosa, política, familiar, etc. Sem falar da processiva perda do pudor, que constitui hoje o mal de todos os povos…

Magistério dos Papas

Sábias, a esse propósito, foram as palavras do Beato João XXIII em sua famosa Encíclica Pacem in Terris:

“A paz na terra, anseio profundo de todos os homens de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus. […] Contrasta clamorosamente com essa perfeita ordem universal, a desordem que reina entre indivíduos e povos, como se as suas mútuas relações não pudessem ser reguladas senão pela força. […]”

Em última análise, só haverá paz na sociedade humana, se essa estiver presente em cada um dos membros, se em cada um se instaurar a ordem querida por Deus. Assim interroga Santo Agostinho ao homem: ‘Quer a tua alma vencer tuas paixões? Submeta-se a quem está no alto e vencerá o que está em baixo. E haverá paz em ti, paz verdadeira, segura, ordenadíssima. Qual é a ordem dessa paz? Deus comandando a alma, a alma comandando o corpo. Nada mais ordenado’”.10

E em recente pronunciamento, Bento XVI, nosso Pontífice felizmente reinante, assim se exprimiu sobre o mesmo tema: “Em primeiro lugar, a paz deve ser construída nos corações.

De fato é neles que se desenvolvem sentimentos que podem alimentá-la ou, ao contrário, ameaçá-la, enfraquecê-la, sufocá-la. Aliás, o coração do homem é o lugar das intervenções de Deus. Portanto, ao lado da dimensão ‘horizontal’ das relações com os outros homens, revela- se de importância fundamental, nesta matéria, a dimensão ‘vertical’ da relação de cada um com Deus, no qual tudo tem o seu fundamento”.11

Glória no Céu e paz na terra

Por isso, neste Natal, em meio aos múltiplos dramas atuais, ecoam mais do que nunca para nós os cânticos dos Anjos, como outrora para os pastores. Eles nos oferecem a verdadeira paz, a cada um de nós em particular, convidando-nos a subordinarmos nossas paixões à razão, e esta, à Fé. Oferecem- nos também o término da luta civil, da luta de classes e das próprias guerras entre as nações, com a condição de observarmos cuidadosamente as exigências impostas pela hierarquia e pela justiça. Em síntese, é-nos indispensável, para recebermos dos Anjos essa oferta tão ansiada por nós, estarmos em ordem com Deus, reconhecendo nEle o nosso Legislador e Senhor, e amando-O com todo entusiasmo.

É o que, com tanta lógica e unção, comenta São Cirilo: “Não O olhes simplesmente como um menino depositado num presépio, mas em nossa pobreza devemos vê-Lo rico como Deus, e por isso é glorificado inclusive pelos Anjos: ‘Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade’. Pois os Anjos e todas as potências superiores conservam a ordem que lhes foi dispensada e estão em paz com Deus. De modo algum se opõem ao que Lhe agrada, mas estão firmemente estabelecidos na justiça e na santidade. Nós somos desgraçados ao colocar nossos próprios desejos em oposição à vontade do Senhor, e nos colocamos nas fileiras de seus inimigos. Isso foi abolido por Cristo, pois Ele mesmo é a nossa paz (cf. Ef 2, 14) e nos une por sua mediação com Deus Pai, tirando o pecado, causa de nossa inimizade, justificando-nos pela fé e aproximando os que estão distantes. Além disso, modelou os dois povos em um homem novo, fazendo a paz e reconciliando ambos em um só corpo com o Pai (cf. Ef 2, 15-16). Com efeito, agradou a Deus Pai reunir nEle todas as coisas, e unir os de cima com os de baixo, os do Céu e os da terra, e dizer que há um só rebanho. Cristo tem sido para nós paz e boa vontade”.12 E com não menor espiritualidade, acrescenta São Jerônimo: “Glória no Céu, onde não há dissensão alguma, e paz na terra, onde há guerras diariamente. ‘E paz na terra’. E em quem essa paz? Nos homens. […] ‘Paz aos homens de boa vontade’, isto é, àqueles que recebem Cristo recém-nascido”. 13(Revista Arautos do Evangelho, Dez/2008, n. 84, p. 10 à 19)

1 PIO X, São. Discurso de 23/12/1903 apud Lettres Apostoliques de S. S. Pie X. Paris: Maison de la Bonne Presse, v. I, p. 210.

2 EPHREM DE NISIBE, Saint. Commentaire de l’Évanglile Concordant ou Diatessaron, Lc 2, 14. Paris: Éditions du Cerf, 1966, p. 73.

3 AUGUSTINUS HIPPONENSIS, Sanctus. In Evangelium Ioannis, t. 77.

4 Apud: AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea, in Mt. c. 27, l. 4.

5 AUGUSTINUS HIPPONENSIS, Sanctus. De Civitate Dei. L. XIX, 11

6 BEDA VENERABILIS, Sanctus. Homilia XI in Vigilia Pentecostes.

7 KEMPIS, Tomás de. Imitación de Cristo, Libro I, cap. 6, 2.

8 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica II-II, q. 29, a. 2.

9 Apud: AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea, in Lc 24, vv. 36-40.

10 JOÃO XXIII, Carta Encíclica Pacem in Terris, 11/4/1963, nn. 1, 4 e 164.

11 BENTO XVI, Mensagem no XX aniversário do Encontro Inter-Religioso de Oração pela Paz, 2/9/2006.

12 CIRILLUS ALEXANDRINUS, Sanctus. Commentarii in Lucam, 2, 14.

13 HIERONYMUS PRESBYTERUS, Sanctus. Homilia de Nativitate Domini, n. 65 (Morin n. 394).

A Santa Missa, fonte da santidade sacerdotal

Mons. João S. Clá Dias, EP

“Se conhecêssemos o valor da Missa, morreríamos. Para celebrá-la dignamente, o sacerdote deveria ser santo. Quando estivermos no Céu, então veremos o que é a Missa, e como tantas vezes a celebramos sem a devida reverência, adoração, recolhimento”.[1]

No decreto Presbyterorum ordinis, o Concílio Vaticano II, em perfeita harmonia com a doutrina tomista, resume de forma admirável a centralidade da Eucaristia na vida espiritual do sacerdote, como seu principal meio de santificação. Logo no início, afirma que a Ordem dos presbíteros foi constituída por Deus “para oferecer o Sacrifício, perdoar os pecados e exercer oficialmente o ofício sacerdotal em nome de Cristo a favor dos homens”.[2]

Recorda, em seguida, que é por meio do ministério ordenado que o sacrifício espiritual dos fiéis se consuma em união com o sacrifício de Cristo, oferecido na Eucaristia de modo incruento e sacramental. E afirma que “para isto tende e nisto se consuma o ministério dos presbíteros. Com efeito, o seu ministério, que começa pela pregação evangélica, tira do sacrifício de Cristo a sua força e a sua virtude”.[3] O que equivale a dizer que o sacerdote vive para a Celebração Eucarística e é dela que deve haurir a força para progredir na prática da virtude.

Prosseguindo, ressalta o decreto conciliar: “Os restantes sacramentos, porém, assim como todos os ministérios eclesiásticos e obras de apostolado, estão vinculados com a sagrada Eucaristia e a ela se ordenam.[4] Com efeito, na santíssima Eucaristia está contido todo o tesouro espiritual da Igreja,[5] isto é, o próprio Cristo”.[6] E mesmo quem é chamado a uma vocação missionária, não pode esquecer que a própria evangelização deve ter como meta o Sacramento do altar e dele nutrir-se: “A Eucaristia aparece como fonte e coroa de toda a evangelização”.[7] Pois no Sacrifício Eucarístico se exerce a própria obra da Redenção.[8]

Garrigou-Lagrange sintetiza com precisão esta doutrina:

“O sacerdote deve considerar-se ordenado principalmente para oferecer o Sacrifício da Missa. Em sua vida, este Sacrifício é mais importante que o estudo e as obras exteriores de apostolado. Com efeito, o seu estudo deve ordenar-se ao conhecimento cada vez mais profundo do mistério de Cristo, supremo Sacerdote, e o seu apostolado deve derivar da união com Cristo, Sacerdote principal”.[9]

Royo Marín, ao comentar a exortação do Pontifical Romano, feita pelo Bispo aos ordenandos, afirma com ênfase que a Santa Missa é “a função mais alta e augusta do sacerdote de Cristo”.[10] E, conhecedor das múltiplas ocupações pastorais de um sacerdote, que podem facilmente desviá-lo do cerne da sua vocação de mediador entre Deus e os homens, reforça a mesma ideia, logo em seguida, com inflamadas palavras de zelo sacerdotal:

“Esta é a função sacerdotal por excelência, a primeira e mais sublime de todas, a mais essencial e indispensável para toda a Igreja, e ao mesmo tempo fonte e manancial mais puro de sua própria santidade sacerdotal. É-se sacerdote, antes de tudo e sobretudo, para glorificar a Deus mediante o oferecimento do Santo Sacrifício da Missa”.[11]

Talvez receoso de que suas palavras não penetrem suficientemente o espírito de seus leitores, irmãos no sacerdócio, Royo Marín enumera algumas ocupações legítimas que poderiam servir de pretexto a uma diminuição do zelo eucarístico, insistindo de novo na centralidade do Sacrifício da Missa:

“Por cima de todas as demais atividades sacerdotais, por cima inclusive de seu trabalho pastoral voltado para as almas, deverá colocar sempre em primeiro plano a digna e fervorosa celebração do Santo Sacrifício do Altar. Tudo quanto o distraia e estorve nesta função augusta deverá ser afastado pelo sacerdote com energia, lançando-o para longe de si. Sua função primária, ante a qual devem ceder todas as demais atividades, consiste — repetimos — na celebração do Santo Sacrifício da Missa, através do qual recebe Deus uma glorificação infinita”.[12]

Cabe salientar ainda que a Eucaristia não só confere a graça, como também a aumenta naquele que a recebe com as devidas disposições:

“O Sacramento da Eucaristia tem por si mesmo o poder de conferir a graça. […] A graça cresce e a vida espiritual aumenta, toda vez que se recebe realmente este Sacramento […] para que o homem seja perfeito em si mesmo pela união com Deus”.[13]

Bento XVI, ao tratar da vocação e espiritualidade sacerdotais, sob uma perspectiva pastoral, afirma que é por meio da oração que o sacerdote apascenta suas ovelhas. Os presbíteros, diz ele, têm “uma vocação particular para a oração, em sentido fortemente cristocêntrico: isto é, somos chamados a ‘permanecer’ em Cristo”. E, continua:

“O nosso ministério é totalmente ligado a este “permanecer” que equivale a rezar, e deriva dele a sua eficiência. […] A Celebração Eucarística é o maior e mais nobre ato de oração, e constitui o centro e a fonte da qual também as outras formas recebem a “linfa”: a Liturgia das Horas, a adoração eucarística, a lectio divina, o santo Rosário, a meditação”.[14]

Novamente, encontramos a Eucaristia no centro da vida sacerdotal.

CLÁ DIAS, João. A Santidade do sacerdote à luz de São Tomás de Aquino. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 8, jul-set 2009. p. 16-18.

[1]BENTO XVI. Carta para Proclamação do Ano Sacerdotal, 16 jun. 2009.

[2] PO, n. 2.

[3] Idem.

[4]Nota do texto original: “A Eucaristia é como que a consumação da vida espiritual, e o fim de todos os sacramentos” (S Th III, q. 73. a. 3 c); cf. S Th III, q. 65, a. 3.

[5] Nota do texto original: Cf. São Tomás, S Th III, q. 65, a. 3, ad 1; q. 79, a. 1 c. e ad 1.

[6] PO, n. 5

[7] Idem.

[8] Cf. idem, n. 13.

[9] GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. Op. cit., p. 38.

[10] ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la Perfección Cristiana. Madrid: BAC, 2001. p. 848.

[11] Idem, ibidem.

[12] Idem, p. 849.

[13]S Th III, q. 79, a. 1, ad 1.

[14] BENTO XVI. Homilia no Dia Mundial de Oração pelas Vocações, 3/5/2009.

A polémica com o progredir da história e a solução paulina

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Existe um debate em torno da existência ou não de um progresso linear na História. Alguns defendem uma evolução cíclica, outros, porém, consideram haver uma progressão, um trajeto rumo a um auge, tais como Hegel, Fichte, Schelling, ou Spencer.[1] Mistura-se muitas vezes esta ideia com um conceito de evolucionismo adaptado de Darwin e aplicado à sociologia e mesmo à História.

Alguns visaram uma alternativa, como Marx e Engels no materialismo histórico. Segundo eles, “a História não é um progresso linear e contínuo, uma seqüência de causas e efeitos, mas um processo de transformações sociais determinadas pelas contradições entre os meios de produção (a forma da propriedade) e as forças produtivas (o trabalho, seus instrumentos, as técnicas)”.[2] Spengler, na sua obra sobre A Decadência do Ocidente, apresenta as civilizações “como ciclos cerrados, onde a experiência humana surge, desenvolve-se, atinge o apogeu, entra em crepúsculo, definha e morre”.[3]

Nos nossos dias, estas perspectivas acabaram por fenecer e reconhecem-se pressupostos axiológicos geradores das civilizações, impossíveis de isolar, entre os quais se encontram as fontes espirituais[4]. Ratzinger, na sua obra Introdução ao Cristianismo, defendia que na perspectiva cristã “existe uma única história completa do mundo, a qual mantém um rumo geral e vai “adiante” com seus altos e baixos, nos progressos e regressos que a assinalem”[5]. E afirma: “O cristão tem certeza de que a história avança; ora, avanço, progresso exige o definitivo da direção – eis o que distingue o cristão do movimento em círculo, que não leva a meta nenhuma”[6].

Em 2006, já como Pontífice, ao comentar a passagem: “todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele” (Col 1, 16), Bento XVI salientou que, com estas palavras, São Paulo “indica uma verdade muito importante: a história tem uma meta, tem uma direção. A história caminha para a humanidade unida em Cristo, vai assim para o homem perfeito, para o humanismo perfeito. Com outras palavras São Paulo nos diz: sim, há um progresso na história. Há – se quisermos – uma evolução da história”[7].


[1] A este respeito ver o 12º capítulo de ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. Lisboa: Presença, 2002. Vol. 11.

[2] CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000. p. 537.

[3] REALE, Miguel. Filosofia do fireito. 19a. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 232.

[4] Loc. Cit.

[5] RATZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo. São Paulo: Herder, 1970. p. 154.

[6] Ibíd., p. 124.

[7] “[…] indica una verità molto importante: la storia ha una meta, ha una direzione. La storia va verso l’umanità unita in Cristo, va così verso l’uomo perfetto, verso l’umanesimo perfetto. Con altre parole san Paolo ci dice: sì, c’è progresso nella storia. C’è – se vogliamo – una evoluzione della storia”. (BENEDETTO XVI. Udienza generale: Mercoledì, 4/1/2006. In: Insegnamenti, II, 1 (2006). p. 11. Tradução minha).

Confiança no futuro da Igreja

Sem dúvida, o governo de Bento XVI se caracterizou, do ponto de vista humano, por uma atitude discreta e despretensiosa muito bem expressa nas palavras iniciais do seu Pontificado: “Os Senhores Cardeais elegeram-me, simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor. Consola-me saber que o Senhor sabe trabalhar e agir também com instrumentos insuficientes. E, sobretudo, recomendo-me às vossas orações”. Esses quase oito anos de Papado foram marcados também pelo temperamento reflexivo, lógico e coerente de Joseph Ratzinger, sempre propício a uma análise serena e profunda dos acontecimentos, sem fugir dos problemas mais complexos da realidade contemporânea. Esse modo de ser aliou-se, desde o seu tempo de professor na Universidade de Tubinga, com uma admirável ciência teológica e uma cultura humanística que o levaram a ser considerado como um dos principais intelectuais de nossa época.

Sobre estas inegáveis qualidades humanas, unidas a um espírito sempre voltado para o sobrenatural, paira, porém, algo mais elevado e decisivo: a assistência do Espírito Santo, que se derrama em abundância sobre o sucessor de Pedro. Todas estas circunstâncias são fundamentais para se interpretar a renúncia de Bento XVI ao Papado e não podem, de modo algum, ser postas de lado ao analisá-la, sob pena de se incorrer em comentários frívolos, injustos ou fantasiosos. Além do mais, as razões desse ato não são segredo. Elas foram claramente expressas no Consistório Público do dia 11 de fevereiro e repetidas em ocasiões sucessivas. Bento XVI renuncia, explicou no início da Audiência Geral de 13 de fevereiro, “para o bem da Igreja”.

Haverá outros motivos que Bento XVI tenha considerado prudente não revelar?

Terá influído nessa decisão alguma preocupação concreta sobre o rumo que poderia tomar doravante o seu pontificado? Querer dar uma resposta a tais perguntas é, a nosso juízo, uma temeridade, pois nossas cogitações podem não corresponder hoje à realidade dos fatos. Enquanto isso, cabe-nos manifestar com ênfase um entranhado amor pelo Sucessor de Pedro e pensar, como ele, unicamente no bem da Igreja. Eram esses, sem dúvida, os sentimentos dos fiéis que acolheram com longas e calorosas ovações suas palavras na mencionada Audiência Geral, e durante a Santa Missa desse mesmo dia. Igual reação tiveram os sacerdotes da diocese de Roma ao serem recebidos pelo Papa no dia seguinte, na Sala Paulo VI. “Tanto quanto o Céu domina a Terra, tanto a minha conduta é superior à vossa e meus pensamentos ultrapassam os vossos” (Is 55, 9), diz o Senhor pela voz do Profeta. Bem poderia fazer suas essas palavras o Vigário de Cristo, na presente conjuntura.

O fato é que, para além do operar dos homens, devemos considerar com toda a confiança o futuro da Igreja. Ela é “a árvore de Deus que vive para sempre, a portadora da eternidade e da verdadeira herança: a vida eterna” (Lectio Divina no Pontifício Seminário Romano Maior, 8/2/2013).

Editorial, Revista Arautos do Evangelho, n. 135.

Quando a lei se corrompe

 Pe. José Victorino de Andrade, EP

A mentalidade contemporânea ao desprezar a natureza humana e a lei revelada, nega a existência de uma verdade absoluta e relativiza a moral, insistindo numa legislação desprovida de valores eternos que gera consequências funestas para a pessoa, a família e a sociedade. No seu discurso aos membros da Comissão Teológica Internacional em 5 de Outubro de 2007, Bento XVI consciencializou os presentes sobre esta matéria de modo magistral:

Hoje, em não poucos pensadores parece predominar uma concepção positivista do direito. Segundo eles, a humanidade ou a sociedade, ou de fato a maioria dos cidadãos, torna-se a fonte derradeira da lei civil. […] Na raiz desta tendência está o relativismo ético, no qual alguns vêem uma das principais condições da democracia, porque o relativismo garantiria a tolerância e o respeito recíproco das pessoas. Mas se fosse assim, a maioria de um momento tornar-se-ia a última fonte do direito. A história demonstra com grande clareza que as maiorias podem errar. […] Quando estão em jogo as exigências fundamentais da dignidade da pessoa humana, da sua vida, da instituição familiar, da equidade do ordenamento social, isto é, os direitos fundamentais do homem, nenhuma lei feita pelos homens pode subverter a norma escrita pelo Criador no coração humano, sem que a própria sociedade seja dramaticamente golpeada naquilo que constitui a sua base irrenunciável.[1]

Importa-nos dissertar sobre alguns aspectos dos elementos que validam a lei, os quais são enumerados por São Tomás de Aquino ao citar Santo Isidoro. [2] Assim sendo, é requisito necessário que a lei positiva humana seja honesta, justa e possível:

1. Deve ser honesta, isto é, não pode ser contrária a outra lei superior, natural ou positiva;

2. Deve ser justa em relação ao fim, que deve ser o bem da comunidade; em relação ao autor, que deve ser o superior legítimo e em relação à forma, de modo que a divisão dos deveres seja proporcionada às condições de cada um;

3. Deve ser possível na medida em que não pode ser demasiadamente difícil ou gravosa.

Sem estes elementos pode redundar ao homem a impossibilidade ou a não obrigatoriedade do cumprimento da lei e a sua objeção de consciência quando agride a moral, ou mesmo os sãos valores da ética. A discriminação em relação às minorias ou a todo um povo, a agressão de valores exponenciais como a vida, a perseguição à Fé e à Religião, constituem uma grave transgressão das competências legais de um Estado e da instância legisladora humana. Infelizmente, a História está coalhada de exemplos de Estados que extravasaram suas competências invadindo um campo que não lhes pertence e entrando em conflito com a lei emanada pelo próprio Deus, e de regimes que nos trazem à memória um profundo desrespeito pela liberdade e dignidade humana.

O Papa João Paulo II, na sua Evangelium Vitæ, relembrava a atualidade da encíclica Pacem in Terris de João XXIII, ao citá-la abundantemente e elucidar a respeito da validade das leis:

Se a autoridade não reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser como também as suas disposições estão privadas de qualquer valor jurídico. […] A autoridade é exigência da ordem moral e promana de Deus. Por isso, se os governantes legislarem ou prescreverem algo contra essa ordem e, portanto, contra a vontade de Deus, essas leis e essas prescrições não podem obrigar a consciência dos cidadãos. Neste caso, a própria autoridade deixa de existir, degenerando em abuso do poder. O mesmo ensinamento aparece claramente em São Tomás de Aquino, que escreve: ‘A lei humana tem valor de lei enquanto está de acordo com a reta razão, derivando, portanto, da lei eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor, mas é um ato de violência’. E ainda: ‘Toda a lei constituída pelos homens tem força de lei só na medida em que deriva da lei natural. Se, ao contrário, em alguma coisa está em contraste com a lei natural, então não é lei, mas sim corrupção da lei’ (n. 71-72).[3]

É preciso ter em conta que a lei eterna e natural é anterior a qualquer lei positiva criada pelo homem e pela sua inviolabilidade, universalidade e imutabilidade necessitam reconhecimento e respeito. Os próprios direitos humanos perdem o seu sentido mais profundo se se ignora que eles pertencem à natureza humana e são inerentes à pessoa por força do ato criador do qual ela se origina.[4]


[1] Presso non pochi pensatori sembra oggi dominare una concezione positivista del diritto. Secondo costoro, l’umanità, o la società, o di fatto la maggioranza dei cittadini, diventa la fonte ultima della legge civile. […] Alla radice di questa tendenza vi è il relativismo etico, in cui alcuni vedono addirittura una delle condizioni principali della democrazia, perché il relativismo garantirebbe la tolleranza e il rispetto reciproco delle persone. Ma se fosse così, la maggioranza di un momento diventerebbe l’ultima fonte del diritto. La storia dimostra con grande chiarezza che le maggioranze possono sbagliare. […] Quando sono in gioco le esigenze fondamentali della dignità della persona umana, della sua vita, dell’istituzione familiare, dell’equità dell’ordinamento sociale, cioè i diritti fondamentali dell’uomo, nessuna legge fatta dagli uomini può sovvertire la norma scritta dal Creatore nel cuore dell’uomo, senza che la società stessa venga drammaticamente colpita in ciò che costituisce la sua base irrinunciabile”. (Insegnamenti, III, 2 (2007). p. 420-421. Tradução minha).

[2] Cf. S. Th. I-II, q. 6 a. 3.

[3] In: AAS 87 (1995) 5.

[4]Cf. BENEDETTO XVI. Ai membri della Commissione Teologica Internazionale, Giovedì 1º dicembre. In: Insegnamenti, I (2005). p. 914.

Fundamento bíblico do primado petrino

Pe. Eduardo Caballero Baza, EP

São Pedro ocupa posição preeminente no Novo Testamento, onde é mencionado 114 vezes nos Evangelhos e 57 vezes nos Atos dos Apóstolos.

Fala em nome de todos os Apóstolos (Lc 12, 41, Mt 19, 27, Mc 10, 28, Lc 18, 28), responde por eles (Jo 6, 68, Mt 16, 16, Mc 8, 29) e age por todos (Mt 14, 28, Mc  8, 32, Mt 16, 22, Lc 22, 8, Jo 18, 10). Outras vezes  os evangelistas referem- se aos Apóstolos dizendo  “Pedro e os seus” (Mc 1, 36, Lc 8, 45; 9, 32, Mc 16, 7,  At 2, 14. 37). Jesus o elege depois de fazer um  grande milagre (Lc 5, 1-11); serve-Se de sua barca  para pregar às multidões (Lc 5, 3); hospeda-Se em  sua casa (Mc 1, 29); associa-o a Si no pagamento do tributo (Mt 17, 23-26); escolhe-o, com Tiago e João,  para assistir à ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,  37), à transfiguração (Mc 9, 2) e à agonia no  Getsêmani (Mc 14, 33); é o primeiro a quem aparece  ressuscitado (Lc 24, 34). É o único dos Doze que o  anjo nomeia para ser-lhe comunicada a mensagem  da Páscoa (Mc 16, 7). São João espera a chegada  de São Pedro, para deixá-lo entrar primeiro no  Sepulcro de Jesus (Jo 20, 2-8).

Depois da Ascensão e de Pentecostes, vemos São  Pedro exercendo a autoridade máxima na Igreja.  Completa o Colégio Apostólico com a eleição de São  Matias (At 1, 5ss); fala em nome dos Apóstolos  no dia de Pentecostes (At 2, 14ss); defende perante  as autoridades judaicas o direito dos Apóstolos, de  pregar a Fé em Cristo (At 4, 8-12); condena Ananias  e Safira (At 5, 1-11); é inspirado a abrir as portas da   Igreja também aos pagãos, com a conversão do  centurião Cornélio (At 10, 47); preside o Concílio de  Jerusalém (At 15, 6ss); toda a Igreja orava por sua  libertação, quando foi encarcerado por ordem de  Herodes (At 12, 5).

Por outro lado, São Paulo assinala de modo preeminente a importância de São Pedro como  cabeça da Igreja. Depois de sua estada na Arábia,  dirige-se a Jerusalém para vê-lo (Gal 1, 18);  reconhece nele uma das colunas da Igreja (Gal 2, 9);  coloca-o como o primeiro entre as testemunhas das aparições de Cristo ressuscitado (Cor 15, 5); e mesmo quando lhe resiste “em face” em Antioquia,  age como quem reconhece sua autoridade e, portanto, confirma de algum modo seu primado (Gal  2, 11-14).

Cristo, novo Adão

Nas suas conferência quaresmais de 1981, quando era arcebispo em Munique, Joseph Ratzinger fez belas considerações cuja tradução transcrevemos a seguir:

 Cristo se converte num novo Adão com o qual o ser humano começa novamente.   Ele que, desde o fundamento, é nosso ponto de referência, o filho, restabelece corretamente de novo as relações.  Seus braços estendidos são a referência aberta, que continua a estar aberta para nós.  A cruz, o lugar da sua obediência, se converte na verdadeira árvore da vida.  Cristo se converte na imagem oposta da serpente como diz João em seu evangelho  (Jo 3, 14).

Desta árvore vem, não a palavra da tentação, mas a palavra do amor salvador, a palavra da obediência, na qual Deus se fez obediente para oferecer-nos sua obediência como espaço da liberdade. A cruz é a árvore da vida novamente acessível.  Com a Paixão, Cristo fez obedecer o som, por assim dizer, inflamado da espada, atravessou o fogo e levantou a cruz como o verdadeiro eixo do universo sobre o qual este de novo ficou reto.  Por isso, a Eucaristia, como presença da cruz, é a verdadeira árvore da vida que está sempre em nosso centro e nos convida a receber o fruto da verdadeira vida.  Isto significa que a Eucaristia nunca poderá ser uma simples purificação comunitária.  Recebê-la, comer da árvore da vida significa, por isso, receber o Senhor Crucificado, isto é, aceitar sua forma de vida, sua obediência, seu Sim, à medida de nosso ser criatura.  Significa aceitar o amor de Deus que é nossa verdade, aquela dependência de Deus que não significa para nós uma determinação estranha, como tão pouco para o filho, é a filiação uma resolução estranha.  Precisamente esta dependência é liberdade porque é Verdade e Amor.

Que este tempo da Quaresma nos ajude a sair das nossas negativas, do receio da aliança de Deus, da falta de medidas e da mentira da nossa “auto-determinação”, para ir em busca da árvore da vida que é nossa medida e nossa esperança.

E que nos encontremos de novo com as palavras completas de Jesus: o Reino de Deus está próximo.  Convertei-vos e crede no evangelho (Mc 1, 15).

Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim deve ser levantado o Filho do Homem, para que todo homem que n’Ele crer tenha a vida eterna (Jo 3, 14 –15)

(RATZINGER, Joseph. Creación y pecado. (Navarra): Ediciones Universidad de Navarra, 2005. p. 103-104 ).

A proposta de santidade impele à perfeição na caridade

Pe. José Victorino de Andrade, EP

“Sede perfeitos como vosso Pai do Céu é perfeito” (Mt 5, 48). Para São Tomás de Aquino, esta proposta que Nosso Senhor nos faz na sequência do Sermão das Bem-Aventuranças não pode ser inatingível pelo homem, pois neste caso jamais lhe poderia ser prescrito.[1] Portanto, tem de ser possível chegar à perfeição nesta vida, e esta consiste, de acordo com Santo Agostinho, na ausência dos desejos desordenados que se opõem à caridade. O Aquinense acrescenta a esta doutrina tudo quanto possa impedir que o afecto da mente se dirija totalmente a Deus, sem o que não poderá haver caridade, que é a perfeição da vida cristã.[2]

O Catecismo da Igreja Católica aclara esta questão:

O exercício de todas as virtudes é animado e inspirado pela caridade, que é o ‘vínculo da perfeição’ (Cl 3,14); é a forma das virtudes, articulando-as e ordenando-as entre si; é fonte e termo de sua prática cristã. A caridade assegura e purifica nossa capacidade humana de amar, elevando-a à perfeição sobrenatural do amor divino (n. 1827).

Embora alguns autores prefiram distinguir o convite à perfeição da vocação relativamente à santidade, os termos se interpenetram na medida em que a perfeição pode e deve ser um notável caminho para a santificação.[3] De acordo com São Paulo (Cl 1, 28), é a perfeição em Cristo que os homens devem almejar para se apresentar diante de Deus e dos demais. A Lumen Gentium recorda que “todos os fiéis, seja qual for o seu estado ou classe, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade” (n. 40), ou seja, à santidade.

Esta comum vocação de todos os homens à santidade, seja qual for o seu estado, é atestada pelo Catecismo da Igreja Católica[4] e por numerosos documentos do Concílio Vaticano II.[5] Conforme Bento XVI: “No contexto da vocação universal à santidade (I Ts 4, 3) encontra-se a vocação especial para a qual Deus exorta todos os indivíduos”.[6]

A Constituição Dogmática Lumen Gentium dedica-lhe um capítulo inteiro,[7] exortando o cristão a ser exemplo para todo o próximo na medida em que, praticando os conselhos evangélicos, edifica toda a sociedade:

A prática destes conselhos, abraçada sob a moção do Espírito Santo por muitos cristãos, quer privadamente quer nas condições ou estados aprovados pela Igreja, leva e deve levar ao mundo um admirável testemunho e exemplo desta santidade (n. 39).

E que maior caridade poderá haver do que aquela que se manifesta na santidade? Esta é a verdadeira caridade, que permanecerá sempre, conforme nos explica o Papa Bento XVI na sua encíclica, caridade na verdade. Por isso afirmava já São Tomás: “Quem vive na caridade, participa em todo o bem que se faz no mundo”,[8] e ainda: “O ato de um realiza-se mediante a caridade do outro, daquela caridade por meio da qual todos nós somos um só em Cristo”.[9]


[1] Cf. S. Th. II-II Q. 184, a. 2.

[2] Loc. Cit.

[3] Ver a este respeito NETTO DE OLIVEIRA, José. Perfeição ou Santidade e outros textos espirituais. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2002.

[4] Ver, por exemplo, n. 941, 1533, 2013.

[5] Entre outros: Lumen Gentium, n. 32; Gaudium et Spes, n. 34 ; Gravissimum Educationis, n. 2; Presbyterorum Ordinis, n. 2.

[6] Visita Ad Limina Apostolorum dos Bispos do Canadá – Atlântico. 20 mai. 2006. Disponível em : <www.vatican.va>.

[7] Capítulo V: A Vocação de todos à santidade na Igreja.

[8] Symb. Apost.

[9] IV Sent. d. 20, a. 2; q. 3 ad 1.

Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição

jesus2Pe. Carlos Werner Benjumea, EP

RATZINGER, J. / BENTO XVI. Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. São Paulo: Planeta, 2011. 272p. ISBN: 9788576656180.

O segundo volume do livro “Jesus de Nazaré”, do Papa Bento XVI, veio a lume recentemente, confirmando a grande expectativa causada pelo anúncio de sua iminente publicação. Foram já vendidos cerca de um milhão de exemplares da obra, editada em sete línguas. A versão em português do Brasil chegou às livrarias em maio de 2011, por meio da editoria Planeta.

O autor, com a fineza de pensamento e o acurado rigor científico que o caracterizam, apresenta uma Cristologia viva, profunda e enriquecedora a partir dos mistérios da vida de Jesus, desde “a entrada em Jerusalém até a Ressurreição”. A obra, porém, não adoece da frieza acadêmica de um estudo técnico e exaustivo. O propósito de Bento XVI é claro: partindo da exegese histórico-crítica e de seus resultados, vai mais longe, de modo a chegar à interpretação teológica. Este passo é decisivo, pois, se a árvore da exegese não dá bons frutos na área da Cristologia, corre o risco de tornar-se teologicamente estéril.

Trata-se, portanto, de procurar ressaltar o autêntico valor de uma exegese verdadeiramente católica, inspirada pelo sincero desejo de aprofundar à luz da Fé a verdade contida no texto sagrado (cf. Dei Verbum, n. 12), sem descuidar o auxílio da investigação histórica, semântica e arqueológica.

O estilo do livro é habitualmente um reflexo da disposição de espírito do autor. Assim, singeleza e sabedoria inspiram a pena do Papa, sempre aberto ao diálogo crítico e construtivo com a exegese histórica, mesmo quando se apresenta impregnada de positivismo, mostrando seus limites e explorando seus contributos ao estudo das Escrituras.

O livro, com efeito, é convidativo e atraente. Lê-se com paixão e amenidade, sendo difícil deter a leitura. Não se destina exclusivamente ao estudo de técnicos e especialistas. Nas suas páginas encontra-se uma mensagem acessível ao público católico e cristão em geral. O Cardeal Marc Ouellet, por ocasião da apresentação da obra na Sala Stampa do Vaticano, em doze de março deste ano, definiu “Jesus de Nazaré” como “um testemunho comovente, fascinante, libertador”.1

Pelo prestígio do autor e sua capacidade de comunicação, a obra pressagia uma nova aurora na exegese bíblica, por sua acertada aproximação científica e teológica à Pessoa de Jesus.

O conteúdo do livro é substancioso e muito rico, pois aborda os acontecimentos-chave narrados pelos Evangelistas, a fim de tornar possível conhecer melhor a figura e a mensagem de Jesus. A partir desses episódios trágicos e gloriosos — paixão, morte e ressurreição — é possível aprofundar muito especialmente o mistério da filiação divina e da missão redentora de Jesus, nas quais se manifesta o rosto amoroso de Deus.

A obra está estruturada em nove capítulos. Abarca o período que vai desde a entrada em Jerusalém e a expulsão dos vendilhões do Templo até a Ascensão de Jesus aos céus. O Autor põe em foco temas muito debatidos e de vivo interesse nos meios exegéticos e teológicos. À guisa de síntese, enunciamo-los em seguida: A análise do discurso escatológico de Jesus e seu conhecimento a respeito dos acontecimentos futuros; a mensagem de amor ao lavar os pés dos discípulos; a oração sacerdotal de Jesus no Evangelho de São João e sua profunda ligação com a Eucaristia e com a Páscoa; a Última Ceia e a atualidade do caráter expiatório da missão de Cristo; a agonia no Horto das Oliveiras como o grandioso embate da luz contra as trevas; o processo de Jesus com a descrição, em minuciosos detalhes, dos acontecimentos e das personagens envolvidas; a crucifixão e morte de Jesus vistas em seu mais profundo sentido bíblico-salvífico; a Ressurreição de Jesus de entre os mortos; e, por fim, a Ascensão aos céus.

O fio condutor de toda a obra, em continuidade com o primeiro volume, é o fundamento histórico do cristianismo e da própria Escritura. Para Joseph Ratzinger, a mensagem do Novo Testamento não é tão só um conjunto de verdades metahistóricas baseadas em narrações simbólicas. Isso seria transformar em fábula, ou em mito, acontecimentos reais. Pelo contrário, pertence à essência da Revelação o fato de estar fundada na história que aconteceu sobre a face da terra.

Ratzinger exemplifica a este respeito com a Eucaristia: se Jesus não tivesse dado a seus discípulos seu corpo e seu sangue sob as espécies do pão e do vinho, a celebração eucarística perderia seu conteúdo, seria uma “ficção piedosa” e não “uma realidade que estabelece a comunhão com Deus”.

No livro, aborda-se com seriedade o tema do caráter sacrifical da missão messiânica de Jesus, pedra de escândalo de alguns teólogos influenciados pela sensibilidade moderna, avessa à ideia de expiação. Embora a historicidade dos textos eucarísticos do Novo Testamento seja incontestada pelos exegetas, paira a dúvida e continua-se discutindo a respeito do verdadeiro sentido do “sangue derramado” e do “corpo entregue”. Para Ratzinger, estes textos evocam o sacrifício de expiação da Antiga Lei e o levam, ao mesmo tempo, a seu pleno cumprimento.

Depois de explicar a necessidade de deixar-se guiar pela Escritura, abandonando a atitude de querer confrontá-la de forma presunsuosa e racionalista com os critérios humanos, o Santo Padre desvenda primorosamente a força vencedora do sacrifício de Cristo sobre o pecado, a morte e o mal. Na paixão de Jesus, a imundície do mundo entra em contato com O imensamente puro, mas desta vez o mal não vence. Em Jesus, o bem é infinitamente mais forte, com poder para anular e transformar a sordície do pecado.

É o “extremo sim” ao Pai, após o combate interior travado no Horto das Oliveiras, que, por assim dizer, consagra a Cristo Sacerdote, no sentido mais pleno do termo, “segundo o rito de Melquisedec”. Sua doação voluntária leva a humanidade até o alto, até Deus, configurando-o como o Sacerdote perfeito. Ele, tal como o apresenta a epístola aos Hebreus, oferece-Se a Si mesmo: “Tu não queres sacrifícios e oferendas, mas me preparastes um corpo” (Hb 10, 5). São as palavras dirigidas ao Pai pelo Filho como sinal de total obediência e submissão, em atitude diametralmente oposta à soberba de Adão, que quis ser como Deus (cf. Gn 3, 5).

Ressalta-se na obra a diferença existente entre o Salmo que inspira esta passagem e a adaptação dele feita na Epístola aos Hebreus. Com efeito, o ato de “abrir o ouvido” (Sl 39, 7) é substituído pelo de “preparar um corpo” (Heb 10, 5). Eis apontado com clareza o caráter sacrifical e expiatório do sacerdócio de Cristo. Era necessário que o Filho de Deus reparasse com seu holocausto o pecado da humanidade. Mas não se trata só disso: a reparação é ao mesmo tempo triunfo sobre os males decorrentes da soberba e da revolta. A morte é vencida pela Vida Eterna.

Para Ratzinger, esta realidade é expressa de forma simbólica no Evangelho de São João, o qual situa a Ressurreição de Jesus e, portanto, a vitória definitiva sobre a morte, num horto onde havia um sepulcro ainda não utilizado, evocando por contraposição o jardim do Éden, lugar do primeiro pecado.

O Santo Padre, ao tratar da Ressurreição, afronta vários temas candentes. Em primeiro lugar, pergunta-se a respeito da essência da Ressurreição, o que sucedeu com Jesus e se teria Ele simplesmente voltado à vida como Lázaro. Estuda também os dois tipos de testemunhas do evento: a tradição em forma de confissão e a tradição em forma de narração. Em seguida oferece uma síntese conclusiva a respeito da natureza e da significação histórica da ressurreição. Usando a linguagem analógica, o autor explica a Ressurreição como um “salto qualitativo radical”, pois Jesus com seu mesmo corpo “pertence agora totalmente à esfera do divino e do eterno”.

A obra termina com uma perspectiva de índole escatológica, fundada na Ascensão do Senhor aos Céus. Com efeito, a alegria experimentada pelos Apóstolos ao testemunharem o fato indica a nova forma de presença de Jesus no meio deles. Cristo não partiu para uma zona longínqua do universo, mas entrou para sempre na comunhão de vida e de poder com o Deus vivente.

Nessa perspectiva, adquire pleno sentido a promessa de Jesus no Evangelho de João: “Não vos deixarei órfãos. Voltarei a vós” (Jo 14, 18). Ao subir ao Céu, Jesus “foi”, mas ao mesmo tempo “veio”, e sua presença fortalece os discípulos de maneira especial. Com isso, esclarece-se o mistério a respeito da cruz, da ressurreição e da ascensão.

Após oferecer a síntese da mensagem nuclear e central da obra e em razão da impossibilidade de esgotar a sua riqueza, serão destacados outros temas importantes nela tratados.

Ratzinger oferece um contributo à ética cristã definindo sua essência. Para ele, a Lei de Moisés oferecia ao homem um caminho de verdadeira perfeição, mas com a Encarnação do Filho, na Kenosis misericordiosa, manifesta-se o perfil do verdadeiro cristão. Amar como Cristo amou, eis a nota fundamental da moral cristã. E só mediante a participação pessoal na vida de Jesus é-nos comunicada sua ardentíssima caridade.

As reflexões teológicas da obra iluminam de forma especial a vida espiritual cristã. O verdadeiro teólogo deve ser um homem de Fé vivida e, em consequência, pode oferecer reflexões de alto teor espiritual. Ao estudar, por exemplo, a figura de Judas, o traidor desesperado, incentiva a prática da virtude da Esperança na misericórdia do bom Mestre, focalizando o arrependimento de São Pedro, o traidor arrependido.

Não menos oportunas são as reflexões — a propósito da oração de Jesus em Getsêmani e da sonolência dos discípulos — sobre a virtude da vigilância, tão esquecida nestes tempos de individualismo imprevidente: “A sonolência dos discípulos continua sendo uma ocasião propícia para o poder do mal”.

Reflexiona também sobre a surpreendente combinação entre a douta erudição e a profunda ignorância dos estudiosos apoiados sobre um saber que se pretende autossuficiente, incapaz de transformar o homem. Desta forma, interpela o leitor com agudeza, indagando-o acerca da verdade e daquilo que muitas vezes a ela se opõe: nós, o nosso saber, e a fuga à dolorosa verdade.

Desde o ângulo da exegese histórica, a obra traz contributos muito interessantes, como por exemplo, a datação da última ceia de Jesus. Os sinóticos afirmam que a última ceia foi a ceia de Páscoa; São João a situa na parasceve, véspera da Páscoa. Como resolver a aparente contradição? Depois de um acurado estudo, Ratzinger mostra a idoneidade cronológica da narração joanina e aponta para a concordância de fundo entre as duas tradições. Jesus no cenáculo não teria celebrado a páscoa judaica, mas a sua própria Páscoa.

Em síntese, o Santo Padre trata com maestria e par cœur daquilo que conheceu e amou na Pessoa de Jesus, com uma ciência — como ele mesmo explica — que cria comunhão com o conhecido. A mensagem de seu trabalho é, sem dúvida, a mesma de Jesus: “Que Te conheçam a Ti, o único Deus verdadeiro, e Aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17, 3).

Resenha In: Lumen Veritatis, n. 15 Abr./Jun. 2011

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1 In: www.radiovaticana.org. Último acesso a 2 jun. 2011.

Bento XVI afirma que formação acadêmica de padres deve ser acompanhada por crescimento na fé

Papa2Cidade do Vaticano (Segunda-feira, 21-02-2011, Gaudium Press) Não é apenas a formação acadêmica que é necessária na preparação para o sacerdócio, mas também a espiritual, recordou o Papa para a comunidade do Pontifício Colégio Filipino em Roma. Membros da instituição de ensino foram recebidos em audiência neste sábado pelo Santo Padre por conta do 50º aniversário da fundação do Colégio, pelo Papa João XXIII.

Bento XVI encorajou os sacerdotes filipinos a viver seu período no Pontifício Colégio como uma oportunidade para “adquirir maturidade espiritual e teológica” para a futura missão. Segundo o Papa, uma “completa formação sacerdotal incluiu não apenas a acadêmica, acima e sobretudo o componente intelectual oferecido a eles aqui; mas os estudantes do Colégio são também formados espiritualmente através da história viva da Igreja de Roma, e do exemplo luminosos dos seus mártires”, observou o Papa.

O pontífice também recordou a necessidade de levar o cuidado pastoral à grande comunidade filipina que vive em Roma. Ele pediu aos presentes que “sempre procurassem um equilíbrio saudável entre cuidados pastorais locais e as exigências acadêmicas”.

O Pontifício Colégio Filipino recebe sacerdotes diocesanos filipinos enviados por seus bispos para estudos superiores nas universidades pontifícias romanas.