O que os anjos vêem: natureza e graça

Pe. Colombo Pires, EPanjos Tradução do Original Pe. Romanus Cessario, O.P.

Apesar da inteligência humana e angélica possuírem uma performance diferente, a distinção clássica entre a visão matutina e vespertina dos anjos sugere uma verdade importante acerca do conhecimento disponível a todos que vivem na Fé de Jesus Cristo. A noção que os anjos possuem dois tipos de visão aparece inicialmente nos comentários de Santo Agostinho acerca da criação na Bíblia, o De Genesi ad litteram, Book IV, chapters 22-31 onde o Doutor da Graça fala de um amanhecer e de um anoitecer no conhecimento dos Anjos. A tradição teológica subsequente alargou essa distinção, pois, como Hugo de São Vítor observa, “ há muitas questões acerca da natureza angélica, as quais a curiosidade da mente humana não foi capaz de descobrir”.1 Então, na sua Summa theologiae, não surpreende descobrir que São Tomás de Aquino estende a intuição do conhecimento angélico de Agostinho.

O Santo de Hipona inventou as expressões conhecimento “matutino” e “vespertino” como parte da sua interpretação dos seis dias da criação presentes no Gênesis… (Ele) chamou “matutino” ao conhecimento angélico das coisas no seu primordial começo, precisamente como existem no Mundo; e “vespertino” ao seu conhecimento da realidade criada enquanto existindo na sua própria natureza.2

Porque a “escuridão da noite” caracteriza, mais propriamente, o conhecimento dos anjos decaídos que se fixaram na realidade criada, o Aquinate rejeita esse ponto de vista. Ele defende que como o amanhecer e o anoitecer estão conotadas com a luz do dia, “ambos os tipos de conhecimento expressados por estes termos pertencem aos anjos que estão na luz”.3

Nenhum teólogo contestaria que o que os anjos vêem na manhã, nomeadamente, tudo como existe no divino mundo da criação, forma a única base para a genuína reflexão teológica. O próprio São Paulo testemunha a centralidade desse tipo de conhecimento quando ele lembra aos Colossenses que Cristo “é a imagem de Deus invisível, o primogênito de toda a criação; Por Ele todas as coisas foram criadas, no céu e na terra, visíveis e invisíveis” (Col 1, 15-16).

Enquanto nós frequentemente associamos a teologia com a realidade de Deus e os Seus feitos, com mistérios como a Trindade, a Ressurreição de Cristo, e a Imaculada Conceição da Virgem Maria, a reflexão teológica estende-a apropriadamente ao que os homens e as mulheres fazem. Por outras palavras, a fé do cristão determina a questão ética. Também as virtudes da vida cristã estão entre aquelas realidades visíveis que encontram a sua realização em Cristo. De fato, Orígenes, autor do II século, afirma esta verdade quando escreve: “Não se surpreendam ao falarmos das virtudes do amado Cristo, porque em outros casos nós estamos afeitos a olhar o próprio Cristo como a substância daquelas muitas virtudes”.4

Pelo fato de Cristo permanecer a fonte de todo o bem moral para a pessoa que aceita a mensagem do Evangelho, a Igreja afirma que o ensino da moral cristã possui uma distinta especificidade. Numa variedade de maneiras, os teólogos contemporâneos enfatizam a importante ligação entre a reta conduta Cristã e a autêntica crença cristã.

Hans Urs von Balthasar, por exemplo, identifica Cristo como a “norma pessoal e concreta”5 da vida moral. Isto quer dizer, entre outros, que sem uma efetiva união com Cristo, nenhuma pessoa humana pode, na prática, atingir a perfeição da vida moral que conduz à beatífica companhia com a Trindade, os anjos e os santos. Para mais, “é Cristo, o novo Adão, que plenamente desvenda a própria humanidade e desdobra o Seu nobre chamado revelando o mistério do Pai e do amor do Pai”.6

Por outras palavras, apenas a pessoa que abraça uma vida cristã de virtudes vive inteiramente de acordo com a norma da verdade moral que Cristo, a “imagem do Deus invisível,” comunica ao mundo, e em Cristo realiza a perfeição da natureza humana.

Por um lado, devido à sua inteligência superior, os anjos conhecem os divinos mistérios do mundo com grande clareza. Nós, por outro lado, conhecemos as verdades da fé sombriamente, isto é, apenas pela crença na Palavra de Deus, Primeira Verdade.7 E por causa da escuridão moral que caracteriza o pecado no mundo, as verdades da fé acerca da conduta humana parecem por vezes obscuras para a pessoa que ainda deve aprender a apreciar a medida espiritual que Cristo estabelece para vida humana. Certamente, uma ponderação contemplativa mais profunda da verdade revelada — um esforço na fé para ver mais claramente o que os anjos bons vêem na “manhã” quando tudo aparece na “imagem perfeita” — forma a característica básica do dinamismo da vida Cristã. Significa isto, então, que o conhecimento da fé apenas pode fornecer instrução moral para o crente Cristão? Tradicionalmente, a Igreja dá uma resposta negativa a essa questão. A razão humana — a que está inerente a capacidade e o objeto próprio — não está abrogada pelo dom da fé. O ser humano, alumiado pela fé em Cristo continua a englobar o mundo com a sua capacidade racional de inteligência. E para que se possa compreender plenamente o esplendor da vida Cristã, é importante conhecer as razões porque o conhecimento humano autêntico ajuda a crença Cristã, especialmente em matérias que concernem a própria conduta da vida humana.

O fato de a razão preservar todo o seu vigor no contexto da vida cristã indica um papel genuíno para a filosofia dentro de uma compreensão cristã do mundo e da pessoa humana. Nas suas Gifford Lectures (1931-32), Étienne Gilson levantou a questão da filosofia Cristã: “Eu chamo Cristã a toda a filosofia que, apesar de manter as duas ordens formalmente distintas, considera a revelação Cristã um auxiliar indispensável para a razão”.8 Quer nós aceitemos ou não esta proposta especifica, Gilson deixa ao menos uma noção de como a crença Cristã pode considerar o esse rerum, o ser das coisas, de um ponto de vista formalmente distinto daquele da fé divina. E se essa procura pessoal por sabedoria se desenvolve num inquérito intelectual, nós podemos justamente chamar à pessoa que o pratica um filósofo Cristão. O conhecimento filosófico demanda esse rerum quod in propria natura habent, isto é, busca desvendar as naturezas próprias que as coisas têm nelas mesmas. Apesar da filosofia poder apenas conseguir um conhecimento limitado da natureza das coisas, o ensinamento filosófico ainda representa um esforço discursivo da parte da pessoa humana a fim de obter o que os anjos vêm ao escurecer, um “conhecimento da realidade criada enquanto existente na sua própria natureza.” A Igreja, cada vez mais, incentiva este esforço, e ela fá-lo baseada em São Paulo: “Com efeito, o que é invisível nele — o seu eterno poder e divindade — tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras” (Rm 1, 20).

O Cristão sabe que há limites para os “princípios e as causas” que os filósofos procuram. A “filosofia primordial” de Aristóteles, na realidade, convida-nos a contemplar a existência da mais alta verdade, embora os poços que alcançaram esta meta obtiveram apenas um oblíquo, inferencial conhecimento deste último princípio; isto é, um conhecimento da dependência dos seres criados de uma única, fonte que todas as pessoas chamam Deus.9 Devido a ter explorado extensivamente a diferença entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, São Tomás de Aquino oferece uma nota incaracteristicamente acabrunhada acerca daquelas pessoas que se apóiam apenas na razão para descobrir a verdade acerca da existência humana.

Porque Aristóteles viu que não há nenhum outro conhecimento humano nesta vida exceto através das ciências especulativas, ele sustentou que o homem não pode atingir uma completa, mas apenas uma relativa felicidade. Com isto fica claro o que o nobre gênio entre os filósofos experienciou no curso do seu tempo.10

Mas enquanto o Cristão escapa a esse triste estado, ele ou ela precisam experimentar alguma frustração dos filósofos. Como um teólogo aponta, “se o homem não estabelece um contato definitivo com Deus a um ponto que não é graça (no sentido teológico da palavra), então o Deus que se revela não se pode endereçar ao homem de modo significante. Daí, a solene declaração da Igreja que a existência de Deus pode ser naturalmente conhecida (Dz 3004, 3026) e que a alma humana é imortal (Dz 1440)”.11

Quando a Igreja defende a dignidade do chamado humano e restaura a esperança para aqueles desconsolados de qualquer destino mais alto, ela reconhece que a sua mensagem atingiu o mais profundo do coração humano. Ao mesmo tempo, por causa do sobrenatural senso de fé, o Povo de Deus recebe uma verdade que excede a capacidade do conhecimento humano, a verdade que os liberta (Cf. Jo 8, 32).

Retornemos à distinção que Santo Agostinho e São Tomás de Aquino fizeram entre o conhecimento matutino e vespertino dos anjos — o seu cognitio matutina e vespertina — a fim de ver que aplicação pode ter na ética teológica. O Aquinate explica a base para distinguir os dois tipos de conhecimento angélico da seguinte maneira: Para o ser das coisas deflui do Mundo como de um primeiro (ou primordial) princípio, e esta efusão termina no ser das coisas o que elas possuem em sua própria natureza.

São Tomás fala de um “defluir” que se espalha da fonte criativa de todas as coisas em Deus e termina na variedade de naturezas criadas que existem no mundo.12 A expressão da verdade divina assemelha-se a este fluir do ser. No ponto de vista do Aquinate, encontra-se a inesperada compleição da metafísica na revelação Cristã. Através da revelação divina, Deus comunica um conhecimento da realidade como ela existe no Seu Filho, mesmo apesar de os crentes ainda gozarem da capacidade de adquirir um conhecimento das coisas reais como elas existem nelas próprias.

O filósofo americano vai ainda tão longe de afirmar que “a teologia revelada promete uma visão dos princípios que o metafísico busca, e até mesmo deseja”.13

In: Lumen Veritatis, nº5.

Este texto foi publicado com a gentil permissão do corpo editorial da AMATECA series of Handbooks of Catholic Theology e foi traduzido pelo Pe. Colombo Pires E.P. da edição inglesa do Father Cessario’s Le Virtù (Milan 1994).

[Romanus Cessario, O.P. The Virtues, Or the Examined Life (London/New York: Continuum, 2002)].

1 De Sacramentis Bk 1, chap. 5, no. 19 (PL 176: 254).
2 Summa theologiae Ia q. 58, a. 6.
3 Ibidem.
4 Origen, Commentary on the Song of Songs, Bk 1, in Origen, The Song of Songs: Commentary, trans. R. P. Lawson (Ancient Christian Writers, vol. 26; Westminster, MD and London, 1957), p. 89.
5 Hans Urs von Balthasar, “Nine Theses in Christian Ethics”, in International Theological Commission: Texts and Documents 1969-1985, ed, Michael Sharkey (San Francisco, 1989), p. 108.
6 Gaudium et spes, nº. 22.
7 O Aquinate chega a especular se os anjos possuem essa claridade acerca das verdades da fé mesmo antes da sua confirmação na glória (ver Summa theologiae IIa-IIae q. 5, a. 1). Em qualquer caso, a distinção de Santo Agostinho refere-se ao que os anjos conhecem após a sua irreversível escolha de amor a Deus.
8 The Spirit of Medieval Philosophy (New York, 1940), p. 37.
9 Cf. In De Trinitate Bk 5, chap. 4.
10 Contra gentiles Bk III, c. 48.
11 Edward Schillebeeckx, Revelation and Theology, vol. 1 (New York, 1967), pp. 154, 155.
12 Porque ele afirma firmemente a total implicação da doutrina Cristã da criação ex nihilo, São Tomás reconhece que toda a natureza criada possui mas nunca extingue o seu próprio ato de ser. A grande contingência dos seres criados deriva da tênue afirmação que têm na existência, onde quer que a divina omnipotência e infinitude repousem na identidade da essência e existência que pertence unicamente a Deus. Por outras palavras, a explicação do Aquinate acerca do “defluir” permanece livre de emanacionismo ou outra conotação panteísta.

13 Mark D. Jordan, Ordering Wisdom:The Hierarchy of Philosophical Discourses in Aquinas (Notre Dame, IN, 1986), p. 178. Jordan explica mais tarde esta conexão: “Se há uma diferença metodológica entre metafísica e teologia, não haveria então uma segregação material delas nos textos (de São Tomás). O discurso da metafísica não está encerrado em algum ponto abaixo da teologia na hierarquia das ciências. O leitor passa imperceptivelmente de um discurso para outro. De fato, não é como se estivéssemos a passar ao lado da metafísica, mesmo se alguém sabe que a metafísica, enquanto ela mesma, não pode prover a necessidade de um estágio mais alto. Pelo contrário, encontra-se a inesperada compleição da metafísica na revelação” (p. 177).