Relativismo e consciência

Diác. Inácio Almeida, EP

Uma das manifestações mais evidentes do relativismo contemporâneo liga-se a uma nova compreensão do conceito de consciência, que tem acarretado profundas implicações tanto no campo gnosiológico quanto moral.

Segundo essa nova teoria, cada consciência é autônoma, infalível e independente. Ela funciona como uma espécie de tribunal de última instância, capaz de ditar por si mesma as regras de toda conduta moral e social. Ratzinger considera esta interpretação do conceito de consciência como uma espécie de deificação da subjetividade, pois o critério da verdade acaba sendo ditado pelo próprio ego interior: “Consciência, na modernidade, tornou-se a divinização da subjetividade, enquanto que na tradição cristã é exatamente contrário. A consciência é a convicção de que o homem é transparente e pode sentir em si mesmo a voz da própria razão, a razão que dá fundamento do mundo”.1

Com efeito, a tradição cristã compreende a consciência como a capacidade que o homem tem de abrir-se à verdade objetiva e universal e que constitui não somente um direito, mas também um dever de buscar aquilo que é verdadeiro. 2 Dessa forma, a consciência deve ser entendida como unidade de conhecimento e verdade, sem ser confundida com a autoconsciência, pois viver conforme a consciência não significa encerrar-se na própria convicção.

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1) Dialogo fra Ratzinger e Galli della Loggia su storia, politica e religione. In: Tosatti, Marco. Il dizionario di papa Ratzinger: Guida al pontificato. Milano, Baldini Castoldi Dalai, p. 34 (tradução nossa): “Coscienza, nella modernità, diventa la divinizzazione della soggettività, mentre nella tradizione cristiana è proprio il contrario, è la convinzione che l’uomo è trasparente e può sentire in se stesso la voce della ragione stessa, della ragione fondante del mondo”.

2) Cf. Idem. El elogio de la conciencia: la Verdad interroga al corazón. Madrid: Palabra, 2010, p. 45.

A inveja

Diác. Inácio Almeida, EP
Etimologicamente, a palavra “inveja” vem do verbo latino videre que indica a ação de ver, e da partícula in. Desta forma, invidere significa olhar com maus olhos, projetar sobre o outro um olhar malicioso.
Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1986) inveja é: 1- desgosto ou pesar pelo bem ou pela felicidade de outrem; 2- Desejo violento de possuir o bem alheio. O Dicionário Houaiss (2003), define inveja como: “sentimento em que se misturam o ódio e o desgosto, e que é provocado pela felicidade ou a prosperidade de outrem. É o desejo irrefreável de possuir ou gozar, em caráter exclusivo, o que é possuído ou gozado por outrem”.
Para Tanquerey (1955, p. 531), a inveja é ao mesmo tempo: “paixão e vício capital. Como paixão é uma espécie de tristeza profunda que se experimenta na sensibilidade à vista do bem que se observa nos outros; esta impressão é acompanhada duma constrição do coração que lhe diminui a atividade e produz um sentimento de angústia…”
Segundo a Enciclopédia Europeo-Americana (1930, p. 203) a inveja, no seu conceito filosófico, “É uma paixão que é ao mesmo tempo, filha do orgulho e da malquerença. É um profundo pesar do bem que o outro goza e que se volta contra as pessoas a quem quer mal porque possuem o que ele por inveja quisera para si”.
As definições sobre a inveja que oferecem os diversos filósofos no decorrer da História concordam notavelmente entre si. Na tradição aristotélica, ela é uma dor causada pela boa fortuna que goza alguns de nossos semelhantes. Para São Tomás de Aquino (Suma Teológica II-II, q. 36, a. 1.) a inveja é: “A tristeza do bem alheio enquanto se considera como mal próprio, porque diminui a própria glória ou excelência”.

Ciência e ideologia

Pe. François Bandet, EP
A autêntica ciência não tem a necessidade de formar uma ideologia em torno de controvérsias com outras disciplinas. Assim sendo, o conflito da ciência não é com a Fé, mas com as interpretações filosóficas da Fé. A ciência e a Fé não estão em contradição. Afirmar que são inimigas uma da outra é uma das grandes distorções culturais dos tempos modernos. A vulgarização da ciência é o problema e é, geralmente, fruto de uma questão ideológica.
Essas distorções devem-se ao fato de os pseudo-cientistas caírem em certos esquemas, promovidos muitas vezes por interesses econômicos ou políticos. A descrença não é fruto das novas descobertas e do progresso, mas de ideologias.
“Nós devemos defender a liberdade religiosa contra a caracterização de uma ideologia que se apresenta como se fosse a única expressão da razão […]”(J. RATZINGER, La Repubblica, 19 November 2004, Interview of Cardinal Ratzinger with Marco Politi).
Na verdade, hoje, para entender o homem, a humanidade volta-se para a ciência, embora esta não pareça dizer nada acerca do homem: suas preocupações, suas alegrias, seus medos etc.
A Fé e a sua experiência transcendental poderá ajudar a ciência a ultrapassar essa dimensão utilitarista do conhecimento e se abrir à verdade que é, ao mesmo tempo, esperança e fidelidade.

A beleza da verdade e a verdade da beleza

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Gostos se discutem, sim! Não é cada um com a sua verdade, pois da mesma forma que não convém à verdade ser mutável, a beleza não deveria depender de preferências ou tendências subjetivas. Se ambas fossem passíveis de volatilidade ou diversidade, não teria sentido falar em verdade ou em beleza, pois estas teriam como medida os gostos e opiniões contraditórios de cada um… Submeter os critérios de verdade e de beleza a divergências de carácter pessoal ou cronológico é próprio a uma cultura relativista com repercussões no campo da ética e da estética. A beleza e a verdade são grandes demais para ficarem sujeitas ao individualismo e ao tempo.

Antes de haver o homem, as coisas já eram belas e verdadeiras, fruto daquela bondade criadora, luz de eterna formosura, que tudo tirou do nada. Da mesma forma que o diálogo está chamado a identificar a verdade que o precede, a beleza poderá ser encontrada na criação e partilha de elementos estéticos, em busca da perfeição e do absoluto. São discutíveis, portanto, não as coisas belas e as verdades, mas as idealizações e argumentações que levem os homens a identificá-las. A verdade e a beleza não podem ser regidos pela história e pelo tempo, pelos homens e pelas ideias dominantes, mas estes é que estão chamados a sujeitarem-se e a serem regidos por aquela verdade e beleza subsistentes.

A verdade da beleza e a beleza da verdade têm a sua referência em Cristo, ao mesmo tempo Verdade (Jo 14, 6) e beleza que salva.[1] Ambas se impõem por si e não são passíveis de esconder debaixo do alqueire (Mt 5, 15) e por isso devem conduzir ao testemunho. Quem contempla e se encontra com Cristo, fato constitutivo do ser cristão (Deus Caritas Est 1), não pode senão comunicar esta experiência. A flecha da beleza que nos atinge tem sua origem no mais belo entre os filhos dos homens (Sl 45, 3).[2] Dele provém e para ele atrai.


[1] Quanto à beleza, encontra-se um excelente texto sobre o pensamento de Bento XVI em RATZINGER, Joseph. A Caminho de Jesus Cristo. Coimbra: Tenacitas, 2006.

[2] Idem.

A linguagem em São Tomás de Aquino

tomas-de-aquinoPe. António Coluço, EP

Em geral a antropologia interpreta a língua como sendo um produto histórico-social. Já na ramificação filosófica desta ciência, o homem é considerado como sendo um ser de “linguagem” e um ser “social” e ao utilizar-se da linguagem, ele se revela e revela a realidade do mundo. Numa perspectiva tomista e antropológica cristã, o homem por ser naturalmente social, não lhe basta sentir, julgar ou querer. Ele deseja comunicar as suas impressões e pensamentos aos seus semelhantes e como veremos, até mesmo com o próprio Deus.

Por isto, não podendo manifestar a idéia propriamente, ele dá sinais e fala. Desta maneira, a linguagem se fundamenta na capacidade que os homens têm para comunicar-se entre si, e isto é feito através de símbolos, entre outros os lingüísticos, fazendo com que as sensações ou impressões sejam detectadas por um ou vários dos nossos sentidos.

4.2.1 A capacidade racional do homem e a linguagem

Segundo o Doutor Angélico, os homens superam as outras criaturas devido a sua capacidade racional. No ensaio “Deus – finalidade teleológica do homem, segundo Tomás de Aquino” este conceito é assim explicado:

Esta, [capacidade racional], faz com que os homens tenham o domínio sobre os seus atos, assumindo assim um papel ativo. Some se a isso, o fato do homem caminhar para um fim, a partir de sua própria ação, quando conhece e ama a Deus.

Por motivos especiais, o Aquinense julga que as criaturas racionais estão sujeitas à providência Divina de uma forma diferente dos outros animais. Um desses motivos seria a perfeição da natureza, pois a partir desta os homens passam a ter domínio sobre todos os seus atos, podendo assim, ser considerados livres, ou seja, eles podem agir por si mesmos nas suas operações. Além disso, coloca o homem numa posição mais privilegiada: ‘a dignidade do fim’. (COSTA; ANDRADE, 2007, p.2)

Tomás de Aquino coloca o homem numa posição mais privilegiada por causa da “dignidade do fim”. [1] (AQUINO, 2006)

Continuam Costa e Andrade:

As outras criaturas são mais passivas nas suas ações e só podem atingir uma finalidade por certa semelhança de sua participação. Dito de outra forma, os animais possuem uma natureza instrumental [atuado por outro], ou seja, eles são naturalmente sujeitos à servidão. Já o homem, possui uma natureza de agente principal. [Atuado por si mesmo] (COSTA; ANDRADE, 2007, pp. 2-3)

Sobre este conceito o Magistério da Igreja Católica ensina:

De todas as criaturas visíveis, só o homem é capaz de conhecer e amar o seu Criador, é a única criatura sobre a terra que Deus quis por si mesma; só ele é chamado a partilhar, pelo conhecimento e pelo amor, a vida de Deus. Com este fim foi criado, e tal é a razão fundamental da sua dignidade. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2001, p. 103)[2]

A capacidade lingüística do ser humano faz com que ele se diferencie radicalmente do resto dos animais. Por isto, de acordo com esta escola de pensamento, que difere das outras enunciadas neste trabalho, considera que a linguagem não pode ser meramente explicada em termos de operações mecânicas de um corpo material, mas como o resultado de uma mente reacional.

Ao que se conclui, que a incapacidade que os animais têm de utilizarem de uma linguagem – como o vocábulo é empregado neste trabalho – é uma evidência de que não possuem inteligência. Somente os homens, entre os seres vivos, têm o habito de comunicar um pensamento de um para outro, e só ele, entre os seres espirituais, é capaz de expressar-los através de sons sensíveis. A linguagem não torna presente o objeto, mas sim a sua idéia, por meio de um signo que o substitui.

Na “S.C.G.” as naturezas intelectuais têm mais afinidades com o conjunto do que as outras naturezas, pois cada criatura intelectual identifica-se de certo modo com todas as coisas. Segundo Tomás de Aquino, todas as demais substâncias estão sujeitas à providência divina por causa das substâncias intelectuais.[3] (AQUINO, 2006)

Ao que Nunes Costa e Vilar Andrade fazem a seguinte avaliação sobre este postulado tomista:

A substância intelectual, a qual Aquino se refere, usa de todas as coisas por causa dela mesma e isso é uma tarefa constante, não por apenas por conveniência. O Criador do universo ordena todas as coisas para sua operação, esta operação é a ultima perfeição da coisa, ou seja, tanto o homem como os animais recebem de Deus a direção das suas ações, mas no caso do animal, essas direções são apenas por causa da espécie, no caso do homem, elas são em função da espécie do individuo. (COSTA; ANDRADE, 2007, p. 3)

Desta maneira, na linguagem a ligação que existe entre um som sensível com um sentido definido (significado) é possível porque no homem, composto de corpo e alma, não existe uma separação entre a percepção e os pensamentos espirituais, já que as idéias derivam da percepção por abstração e sempre mantêm certa relação com o esquema sensível.

Entre os homens, a compreensão recíproca entre o sujeito que fala e o receptor da mensagem, está no fato de terem uma natureza composta de corpo e alma, e que faz com que sejam capazes, numa dimensão sensível-espiritual, de identificarem intencionalmente o objeto com a idéia. (AGUILAR, 2005)

A função da linguagem é de manifestar exteriormente um pensamento, porém é necessário fazer uma precisão importante a este conceito pois ele pode ser insuficiente.

Para Tomás de Aquino o pensamento é entendido no senso conceptual, ou racional. De maneira que mesmo que alguns animais possam ter acesso a uma expressão simbólica abstrata, não são capazes, pelo menos ainda não se pode estabelecer, que sejam capazes de exprimir uma idéia ou conceito.

Por isto segundo a corrente espiritualista, apesar de que os animais possam utilizar um sistema sofisticado de comunicação para manifestar as suas necessidades (fome, sede) e emoções (desejos, medos, tristezas ou alegrias), porém ao contrário do homem, são incapazes de estabelecer um vinculo entre a exteriorização dos desejos com a transmissão de um pensamento racional.

Na visualização tomista, a linguagem é entendida como sendo um sistema de signos sensíveis pelos quais o homem transmite mensagens de caráter espiritual. Seus elementos, termos de relação e propriedades demonstram que brotam de um ser inteligente e racional, composto de corpo e alma.

4.2.2 O transcendental da linguagem

Na Antiguidade a ênfase está no ser e na natureza, no racionalismo cartesiano a linguagem é um elemento de verificação e já no existencialismo sartreano ela gira em função de uma necessidade individual sem desdobramentos e sem relação com nada de absoluto. Em Tomás de Aquino a linguagem ela está sob um prisma transcendental.

No cosmocentrismo dos antigos gregos, a “physis” é vista como uma realidade eterna e in-criada, na qual não há “alguém” transcendente que tenha criado o mundo. Já para o medieval este “alguém” existe, e é Deus e a realidade é divina e transcendente.

Ao contrário dos antigos gregos, para os medievais existe ‘alguém’ que criou o mundo ou a natureza. Esse ‘alguém’ é Deus. Dessa maneira, se para o pensamento cristão há “algo” além da natureza, então se trata de um pensamento do tempo – da história! – dirigido consoante os desígnios de um puro ser, isto é, Deus. (MEDEIROS, 2006, p.2)

E característica da cultura medieval está presente em Tomás de Aquino enquanto um paradigma.

Em “Santo Tomás de Aquino – Sobre a Diferença entre a Palavra Divina e a Humana” é analisado de como o falar é a operação própria da inteligência na qual entre a realidade descrita pela linguagem e o som da palavra existe um terceiro elemento:

Ora, entre a realidade designada pela linguagem e o som da palavra proferida, há um terceiro elemento, essencial na linguagem, que é o conceptus, o conceito, a palavra interior [verbum interius, verbum mentis, verbum cordis], que se forma no espírito de quem fala e que se exterioriza pela linguagem, que constitui seu signo audível [o conceito, por sua vez, tem sua origem na realidade]. (LAUAND, 1993, p. 6)

4.2.3 “Sumbolh”

O transcendental tomista pode ser relacionado com o “sumbolh” (símbolo) que na Grécia Antiga significava a metade de um objeto quebrado, por exemplo, uma moringa, em que as duas partes eram divididas entre dois contratantes. Para liquidar e terminar uma dívida era preciso dar provas da qualidade do contratante, sendo ele mesmo ou outro de direito, e para isto era necessário que se apresentasse uma das partes para que ao unir à outra, a moringa voltasse a ficar inteira. Para Fafián, a filosofia nasceu na Grécia Antiga ao procurarem fazer uma distinção entre a ciência com o mito e os símbolos, todavia para Platão isto acabou sendo uma constante procura de tentar colar e ligar as duas partes que estão separadas. (FAFIÁN, 2002)

O “sumbolh” em Tomás de Aquino consiste em que a criatura se reporte a Deus, não que o Criador precise de outro pedaço para se complementar, pois Ele é a unidade em essência, todavia para a Sua glória externa pede o que dEle volte para Ele, como encontramos em Isaías (55, 10-11):

Isto diz o Senhor: ‘Assim como a chuva e a neve descem do céu e para lá não voltam mais, mas vêm irrigar e fecundar a terra e fazê-la germinar e dar semente, para o plantio e alimentação, assim a palavra que sair de minha boca: não voltará para mim vazia; antes, realizará tudo que for de minha vontade e produzirá os efeitos que pretendi ao enviá-la’. (BIBLIA SAGRADA, 2000, p. 1015)

Contudo, para a criatura a “moringa” só fica inteira quando os dois pedaços estão ligados. É nessa relação entre Criador e criatura que a linguagem se manifesta, não só como um mero falar, mas atitudes e gestos que expressam o que vai ao seu coração e interior. O Magistério da Igreja interpreta esta formulação:

Os sinais e os símbolos ocupam um lugar importante na vida humana. Sendo o homem um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual, exprime e percebe as realidades espirituais através de sinais e símbolos materiais. Como ser social, o homem tem necessidade de sinais e símbolos para comunicar com o seu semelhante através da linguagem, dos gestos e das ações. O mesmo acontece nas suas relações com Deus. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2001, p. 323)[4]

Na “S.T.”, o filósofo medieval realça que para poder entender o que é Deus, é necessário utilizar-se de analogias para facilitar a compreensão dos nossos sentidos, e é principalmente pela linguagem analógica com os signos e símbolos, de que o “falar” com Deus se estabelece. Conceito com o qual João Paulo II assim se identifica:

De fato, a fé pressupõe claramente que a linguagem humana seja capaz de exprimir de modo universal — embora em termos analógicos, mas nem por isso menos significativos — a realidade divina e transcendente. Se assim não fosse, a palavra de Deus, que é sempre palavra divina em linguagem humana, não seria capaz de exprimir nada sobre Deus. (JOÃO PAULO II, 1998, art. 84)

De acordo com a concepção de Tomás de Aquino, como já descrevemos a linguagem humana é um sistema de signos sensíveis pelos quais nós transmitimos mensagens de caráter espiritual. Seus elementos, termos de relação e propriedades demonstram que brotam de um ser inteligente e racional, composto de corpo e alma.

Certamente ela tem uma função descritiva dos objetos, idéias e acontecimentos, mas não é simplesmente caracterizada por ser a manifestação e a expressão do pensamento, pois os surdos e mudos de nascença podem perfeitamente pensar o mesmo que as outras crianças, sem saber as mesmas palavras comuns e sem uma mesma linguagem articulada. Assim para Tomás de Aquino a linguagem é também uma palavra interior, enquanto um dialogo da alma com ela mesma.

Entretanto a linguagem humana é contingente, subordinada e relacionada aos atributos de um ser absoluto, e aqui temos a presença do transcendental que é o alicerce da escolástica tomista. (MEDEIROS, 2006)

4.2.4 O falar de Deus na Criação

Na concepção de Tomás de Aquino tudo tem a sua origem no Criador, seja a criatura ou a criação em geral é um produto do “falar” de Deus. Sobre este enunciado comenta Lauand:

Assim, para Tomás, a criação é também um ‘falar’ de Deus, do Verbum [razão materializada em palavra]: as criaturas são, porque são pensadas e ‘proferidas’ por Deus: e por isso são cognoscíveis pela inteligência humana.

[…] Assim como a palavra audível manifesta a palavra interior, assim também a criatura manifesta a concepção divina […], as criaturas são como palavras que manifestam o Verbo de Deus. (LAUAND, 2006, p. 23)

Macieras Fafián é participe desta idéia ao ponderar:

O primeiro autor da linguagem é Deus, que instruiu Adão na denominação das criaturas, mas é o homem quem configura a sua linguagem na medida em que se ia dando oportunidade à experiência e o uso das criaturas. (FAFIÁN, 2000, p.50, tradução nossa)

A manifestação da linguagem deve ser analisada a partir dos seus primórdios (ECO, 1993) tal como está descrita no Gênesis (1, 1-8):

No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas.

Deus disse: ‘Faça-se a luz!’ e a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas, Deus chamou à luz DIA, e às trevas NOITE. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o primeiro dia.

[…] Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam debaixo do firmamento daquelas que estavam por cima. E assim se fez. Deus chamou ao firmamento CÉUS. (BIBLIA SAGRADA, 2000, p. 49)

Para Eco a criação foi um “falar” de Deus, pois “faça-se a luz! e a luz foi feita” (Gênesis 1,3), com isto postula:

A criação se produziu por um ato da palavra, e pelo fato de dar nome as coisas na medida em que vão sendo criada, isto confere a Deus um estatuto ontológico: “E Deus chamou a luz ‘dia’ e as trevas ‘noite’… [e] chamou o firmamento ‘céu’”. (ECO, 1993, p.11, tradução nossa) [5]

Notamos aqui a relação existente entre a criação do universo, enquanto uma realização da vontade divina manifestada através da palavra. As Escrituras no Hino à Providência de Deus confirma esta interpretação quando diz que “A palavra do Senhor criou os céus” e que quando falou “toda a terra foi criada”:

A palavra do Senhor criou os céus,

e o sopro de seus lábios, as estrelas.

Como num odre junta as águas do oceano, e

Mantém no seu limite as grandes águas.

Adore ao Senhor a terra inteira,

e o respeitem os que habitam o universo!

Ele falou e toda a terra foi criada,

Ele ordenou e as coisas existiram. (LITURGIA DAS HORAS, 2000, p. 1016)[6]

Ao desenvolver a sua teoria Umberto Eco se apóia no Gênesis (2, 15-17):

O Senhor Deus tomou o homem e colocou-o no jardim do Édem para cultivá-lo e guardá-lo. Deu-lhe este preceito: ‘Podes comer do fruto de todas as arvores do jardim; mas não comas do fruto da arvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente. (BIBLIA SAGRADA, 2000, p. 50)

Ao que o pensador italiano comenta:

No 2, 16-17 [Gênesis] pela primeira vez o Senhor fala com o homem, colocando à sua disposição todos os frutos do paraíso terrestre, e advertindo-o que não coma do fruto da árvore do bem e do mal. Há um dúvida em saber em que língua Deus falou com Adão, e uma grande parte da tradição pensará numa espécie de língua de iluminação interior, em que Deus, como acontece em outras partes da Bíblia, se expressa mediante de fenômenos atmosféricos: trovões e relâmpagos. Entretanto se pode interpretar, e aqui surge a primeira possibilidade de uma língua, mesmo sendo intraduzível em termos dos idiomas conhecidos, é compreendida, não obstante, por quem a escuta, por um dom ou estado de graça especial. (ECO, 1993, p. 11. tradução nossa) [7]

Desta maneira, para Tomás de Aquino não é só Deus que fala, mas as próprias criaturas são Suas palavras. No artigo “Diferença entre a Palabra Divina e a Humana” Lauand pondera:

Dentre as muitas e variadas formas de interpretação ‘Deus fala’, há uma especialmente importante nas relações entre Deus e o homem: não é por acaso que João emprega o vocábulo grego Logos [Verbum, razão, palavra] para designar a segunda Pessoa da Ssma. Trindade que ‘se fez carne’ em Jesus Cristo: o Verbum não só é imagem do Pai, mas também princípio da Criação [cfr. Jo 1,3]. E a Criação deve ser entendida precisamente como projeto, design feito por Deus através do Verbo.

[…] Essa concepção de Criação como fala de Deus, a Criação como ato inteligente de Deus, foi muito bem expressa numa aguda sentença de Sartre, que intenta negá-la: ‘Não há natureza humana, porque não há Deus para concebê-la’. De um modo positivo, poder-se-ia enunciar o mesmo desta forma: só se pode falar em essência, em natureza, em ‘verdade das coisas’, na medida em que há um projeto divino incorporado a elas, ou melhor, constituindo-as.

A ‘natureza’, especialmente no caso da natureza humana, não é entendida pela Teologia como algo rígido, como uma camisa de força metafísica, mas como um projeto vivo, um impulso ontológico inicial, um ‘lançamento no ser’, cujas diretrizes fundamentais são dadas precisamente pelo ato criador, que, no entanto, requer a complementação pelo agir livre e responsável do homem.

Nesse sentido, Tomás fala da moral como ultimum potentiae, como um processo de auto-realização do homem; corresponde-lhe continuar, levar a cabo aquilo que principiou com o ato criador de Deus. Assim, todo o agir humano [o trabalho, a educação, o amor, etc.] constitui uma colaboração do homem com o agir divino, precisamente porque Deus quis contar com essa cooperação. (LAUAND, 1993, p. 7)

De acordo com Tomás de Aquino, Deus se revela pela linguagem universal da criação, obra da sua Palavra. Mas, como vimos na citação acima, Deus no seu ato criador pede a cooperação e a participação do homem, e por isto o Seu falar tem que se manifestar através de uma linguagem humana para ser acessível e compreensível aos homens:

Na condescendência de sua bondade, Deus, para revelar-se aos homens, fala-lhes em palavras humanas. Com efeito as palavras de Deus, expressas por línguas humanas, tal como outrora o Verbo do Pai Eterno, havendo assumido a carne da fraqueza humana, se fez semelhante aos homens. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2001, p. 39)[8]

4.2.5 A Palavra e o Verbo

Nas Sagradas Escrituras, ferramenta fundamental no pensamento de Tomás de Aquino, a palavra de Deus é o Verbo, pois:

Por meio de todas as palavras da Sagrada Escritura, Deus pronuncia uma só Palavra, seu Verbo único, no qual se expressa por inteiro.

Lembrai-vos de que o discurso de Deus que se desenvolve em todas as Escrituras é um só e um só é o Verbo que Se faz ouvir na boca de todos os escritores sagrados, o qual, sendo no princípio Deus junto de Deus, não tem necessidade de sílabas, pois não está sujeito ao tempo. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2001, p. 39)[9]

Para Tomás de Aquino “verbum” em latim, significa não só a palavra enquanto um som sensível com um sentido definido (significado), mas é também a segunda Pessoa da Ssma. Trindade, que é o Filho. Sobre esta diversidade de significados Lauand pondera:

Uma tal acumulação semântica não se dá em português e, assim, das 58 ocorrências de verbum no opúsculo de Tomás, somente numas poucas [cerca de meia dúzia] ele se refere estritamente à palavra sonora. Quando não se trata do Verbo divino, a maior parte das incidências de verbum diz respeito ao conceito e, principalmente, àquilo que há de comum entre a palavra sonora e o conceito [e o Verbo Divino também, por vezes].

Ora, dado o relevo que a linguagem ocupa no pensamento e na metodologia de Tomás, o leitor contemporâneo perderia muito de sua argumentação, se não estivesse prevenido para este fato e sua importância. Assim, sempre que depararmos com ‘palavra’, ‘conceito’ e ‘Verbo’ devemos nos lembrar que, para Tomás, estas idéias estão natural e espontaneamente identificadas em verbum. (LAUAND, 1993, p.4)

Fundamentando-se em Tomás de Aquino, Lauand pondera que a palavra é aquilo que está presente interiormente na nossa alma e que exteriormente é significado pela voz, que é caracterizado como sendo o “verbum”. (LAUAND, 1993)

O pensador tomista brasileiro salienta que existe uma diferença entre a nossa palavra “verbum” e a Palavra divina “Verbum”, é que a nossa é imperfeita, contingente e limitada, que desaparece e desvanece, enquanto que a Divina é perfeitíssima e fonte de vida eterna. (LAUAND, 1993)

Este conceito é explicado na Liturgia das Horas:

João era a voz, mas o Senhor, no princípio, era a Palavra [Jo 1,1]. João era a voz passageira, Cristo, a Palavra eterna desde o princípio.

Suprimi a palavra, o que se torna a voz? Esvaziada de sentido, é apenas um ruído. A voz sem palavras ressoa ao ouvido, mas não alimenta o coração.

Entretanto, mesmo quando se trata de alimentar nossos corações, vejamos a ordem das coisas. Se penso no que vou dizer a palavra já está em meu coração. Se quero, porém, falar contigo, procuro o modo de fazer chegar ao teu coração o que já está no meu, recorro à voz e por ela falo contigo. O som da voz te faz entender a palavra; e quando te faz entendê-la, este som desaparece, mas a palavra que ele te transmitiu permanece em teu coração, sem haver deixado o meu.

[…] Guardemos a palavra; não percamos a palavra concebida em nosso íntimo. (LITURGIA DAS HORAS, 2000, p. 223) [10]

Na concepção de Tomás de Aquino, O Verbo e a Palavra formam “um” em Nosso Senhor Jesus Cristo, dando a Palavra o aspecto cristolólico:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o verbo era Deus. Ele estava no principio junto de Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. [Jo 1, 1-3] João, muito conscientemente voltou às palavras que estão no começo da Bíblia e leu de novo o relato sobre a Criação a partir de Cristo para contar, outra vez e definitivamente, por meio de imagens que é a Palavra com que Deus quer mover os nossos corações. (RATZINGER, 1992, p. 25 tradução nossa) [11]

Para o homem o escutar e entender o falar de Deus é por onde ele se auto-realiza, como diz o Salmo:

Vossa palavra é uma luz para os meus passos, é uma lâmpada luzente em meu caminho.

Eu fiz um juramento e vou cumpri-lo: Hei de guardar os vossos justos julgamentos!

Ó Senhor, estou cansado de sofre; vossa palavra me devolva a minha vida!

Que vos agrade a oferenda dos meus lábios; ensinai-me, ó Senhor, vossa vontade!

Constantemente está em perigo a minha vida, mas não esqueço, ó Senhor, a vossa lei.

Os pecadores contra mim armaram laços; eu porém não reneguei vossos preceitos

Vossa palavra é minha herança para sempre, porque ela é que me alegra o coração!

Acostumei meu coração a obedecer-vos, a obedecer-vos para sempre, até o fim! (LITURGIA DAS HORAS, 2000, p. 1078) [12]

Assim na concepção de Tomás de Aquino, o homem é um ser naturalmente social e de linguagem: não lhe basta querer expressar o que sente e quer, pois sendo racional deseja também comunicar as suas impressões e seus pensamentos aos seus semelhantes e com Deus.

Por isto, a linguagem humana, como interpretada pela corrente espiritualista, é um sistema de signos sensíveis pelos quais o homem transmite mensagens de caráter racional como também espiritual, como uma palavra interior num dialogo da alma com ela mesma.

Através do “verbum” (razão materializada em palavra), Deus se torna cognoscível à inteligência humana, e esta só alcança o seu objetivo pleno quando se orienta para o seu fim transcendental ao se reportar a outra metade do “sumbolh”, que é Deus.

[1] Praecellunt enim alias creaturas et in perfectione naturae, et in dignitate finis. “S.C.G.” III, cap. CXI, 1. (grifo nosso)

[2] Art. 356.

[3] Ex his quidem quae supra determinata sunt, manifestum est quod divina providentia ad omnia se extendit. Oportet tamen aliquam rationem providentiae specialem observari circa intellectuales et rationales naturas, prae aliis creaturis. “S.C.G.” III, cap. CXI, 1.

[4] Art. 1146

[5] La creación se produce por un acto de habla, y sólo al nombrar las cosas a medida que las va creando les confiere Dios un estatuto ontológico: “Y Dios llamó a la luz “dia” y a las tinieblas “noche”… (y) llamó al firmamento “cielo”.

[6] Laudes, Quaresma.

[7] En 2, 16-17 el Señor habla por vez primera al hombre, poniendo a su dispo-sición todos los frutos del paraíso terrenal, y advirtiéndole que no coma el fruto del árbol del bien y del mal. Resulta dudoso saber en qué lengua habló Dios a Adán, y una gran parte de la tradición pensará en una especie de lengua de iluminación in-terior, en la que Dios, como por otra parte ocurre en otras páginas de la Biblia, se expresa mediante fenómenos atmosféricos: truenos y relámpagos. Pero si se inter-preta así, se apunta entonces la primera posibilidad de una lengua que, aun siendo intraducibie en términos de idiomas conocidos, es comprendida, no obstante, por quien la escucha, por un don o estado de gracia especial.

[8] Art. 101

[9] Art. 102

[10] Advento. Sto Agostinho. Sermo 293, 3: PL 38, 1328-1329

[11] “En el principio la Palabra existía y la Palabra estaba con Dios y la Palabra era Dios. Ella estaba en el principio con Dios. Todo se hizo por ella y sin ella no se hizo nada de cuanto existe.” (/Jn/01/01-03). Juan, muy conscientemente, ha vuelto a tomar aquí las palabras con las que comienza la Biblia y ha leído de nuevo el relato de la Creación a partir de Cristo para contar, otra vez y definitivamente, por medio de las imágenes qué es la Palabra con la que Dios quiere mover nuestro corazón.

[12] Quaresma. Salmo 118 (119), 105-112 XIV (Nun)

A Metafísica: para quê?

Diác. Felipe Ramos, EP

Metafísica é considerada por São Tomás de Aquino como a filosofia prima, porque todas as ciências tomam seus princípios como fundamento para qualquer ulterior investigação. Mas, ao mesmo tempo, é considerada o cume de todo o esforço filosófico porque trata das coisas divinas e das causas altíssimas. Não é por menos que a Congregação para a Educação Católica tenha insistido recentemente em seu Decreto de Reforma dos Estudos Eclesiásticos de Filosofia, a respeito do papel da metafísica para superação da crise atual da filosofia e buscar algo de absoluto e que serve de fundamento.

A Metafísica, ao oferecer uma visão ampla das realidades, propõe aquilo que nenhuma riqueza pode comprar: a Sabedoria, a qual “sabe e conhece todas as coisas. Ela me guiará prudentemente em minhas ações e me protegerá com a glória dela”. (Sb 9, 11). Em suma, a sabedoria tende a considerar tudo na contemplação do divino pela penetração dos mistérios mais profundos e assim poder manifestar aos demais.

Sob essa perspectiva, a Metafísica longe de ser um conjunto de elucubrações fantasiosas, é a ciência mais importante de todas porque não visa as realidades particulares, mas a totalidade. Mas então, a Metafísica para que serviria propriamente?

Decerto como fundamento para aquela busca de Verdade que brota no interior de todos os homens…

O imperativo da lei natural

Pe. Jorge Filipe Teixeira Lopes, EP

pensadoresA ordem moral do homem aplicada com liberdade, isenta de coações ou imposições, é o meio pelo qual o homem deve reger a sua vida pessoal. Para tal, essa liberdade deve ser orientada por uma consciência do dever. Por isso, pode-se afirmar que é pela lei moral, que provém do seu interior, que deve brotar a consciência moral de cada acto seu, a aplicação pessoal da regra objectiva na orientação dos seus actos individuais. Portanto, não há uma heteronomia entre o sujeito racional e os seus actos; uma vez que Deus imprimiu um ordo praeceptorum na mente humana, os actos humanos regulam-se admiravelmente, sem se lhe impor, pois brotam naturalmente do seu próprio interior. Há, assim, um perfeito acordo entre a lei natural e o sujeito moral, pois aquilo que obriga ao homem é por ele desejado no mais íntimo da sua natureza. A lei natural obriga àquilo que é desejado pelo homem, ela impele-o ao bem, aquilo que o fará feliz. Obedecendo ao imperativo da lei natural, o homem obedece a si mesmo e à sua razão; o dever, a obrigação constitui-se como tal, porque surge do bem humano, do seu fim último, havendo certos actos que têm uma relação necessária com ele e que lhe são indicados pela lei natural; desde a inclinação de conservar a vida, da qual decorre o preceito de a respeitar e a tudo o que permite o seu pleno desenvolvimento, à inclinação ao amor conjugal, à procriação, aos deveres referentes à geração e educação dos filhos, e assim sucessivamente[1]. Afirmava por isso João XXIII que para uma convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre, pelo que possui em si mesmo direitos e deveres universais, invioláveis, e inalienáveis que emanam directa e simultaneamente de sua própria natureza[2]. Tal é o imperativo da lei natural.

TEIXEIRA LOPES, Jorge Filipe. Fundamentação dos direitos humanos na Lei Natural. Universidad Pontificia Bolivariana – Escuela de Teologia, Filosofia y Humanidades. Licenciatura Canónica em Filosofia. Medellin, 2009. p. 66-67.
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[1] FORMENT, Op. Cit., p. 65-66.

[2] JOÂO XXIII. Carta encíclica Pacem in Terris. [Em linha]. <Disponível em: http://www. Vaticanva/holyfather/john_xxiii/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacempohtml [Consulta: 19 Jun., 2009]

A polémica com o progredir da história e a solução paulina

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Existe um debate em torno da existência ou não de um progresso linear na História. Alguns defendem uma evolução cíclica, outros, porém, consideram haver uma progressão, um trajeto rumo a um auge, tais como Hegel, Fichte, Schelling, ou Spencer.[1] Mistura-se muitas vezes esta ideia com um conceito de evolucionismo adaptado de Darwin e aplicado à sociologia e mesmo à História.

Alguns visaram uma alternativa, como Marx e Engels no materialismo histórico. Segundo eles, “a História não é um progresso linear e contínuo, uma seqüência de causas e efeitos, mas um processo de transformações sociais determinadas pelas contradições entre os meios de produção (a forma da propriedade) e as forças produtivas (o trabalho, seus instrumentos, as técnicas)”.[2] Spengler, na sua obra sobre A Decadência do Ocidente, apresenta as civilizações “como ciclos cerrados, onde a experiência humana surge, desenvolve-se, atinge o apogeu, entra em crepúsculo, definha e morre”.[3]

Nos nossos dias, estas perspectivas acabaram por fenecer e reconhecem-se pressupostos axiológicos geradores das civilizações, impossíveis de isolar, entre os quais se encontram as fontes espirituais[4]. Ratzinger, na sua obra Introdução ao Cristianismo, defendia que na perspectiva cristã “existe uma única história completa do mundo, a qual mantém um rumo geral e vai “adiante” com seus altos e baixos, nos progressos e regressos que a assinalem”[5]. E afirma: “O cristão tem certeza de que a história avança; ora, avanço, progresso exige o definitivo da direção – eis o que distingue o cristão do movimento em círculo, que não leva a meta nenhuma”[6].

Em 2006, já como Pontífice, ao comentar a passagem: “todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele” (Col 1, 16), Bento XVI salientou que, com estas palavras, São Paulo “indica uma verdade muito importante: a história tem uma meta, tem uma direção. A história caminha para a humanidade unida em Cristo, vai assim para o homem perfeito, para o humanismo perfeito. Com outras palavras São Paulo nos diz: sim, há um progresso na história. Há – se quisermos – uma evolução da história”[7].


[1] A este respeito ver o 12º capítulo de ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. Lisboa: Presença, 2002. Vol. 11.

[2] CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000. p. 537.

[3] REALE, Miguel. Filosofia do fireito. 19a. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 232.

[4] Loc. Cit.

[5] RATZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo. São Paulo: Herder, 1970. p. 154.

[6] Ibíd., p. 124.

[7] “[…] indica una verità molto importante: la storia ha una meta, ha una direzione. La storia va verso l’umanità unita in Cristo, va così verso l’uomo perfetto, verso l’umanesimo perfetto. Con altre parole san Paolo ci dice: sì, c’è progresso nella storia. C’è – se vogliamo – una evoluzione della storia”. (BENEDETTO XVI. Udienza generale: Mercoledì, 4/1/2006. In: Insegnamenti, II, 1 (2006). p. 11. Tradução minha).

Origem nominalista do jusnaturalismo moderno

Pe. Jorge Filipe Teixeira Lopes, EPnouvelle1

Se olharmos através da história podemos ver que na iminência de grandes acontecimentos, há sempre uma preparação longínqua; nemo sumo fit repenter, diz o velho adágio. Nos albores da Revolução Francesa vemos o resultado de um pensamento que não terá nada de imediato. O jusnaturalismo de setecentos tomará inicialmente ares bastante moderados. É no seio da própria contra-reforma, na época do siglo de oro espanhol, que se pressagiarão as novas correntes através do nominalismo de Francisco Suárez[1]. Suárez será precursor de Hugo Grotius, pai do direito moderno, pois há nele, de um lado a natureza como objecto conhecido pela razão; de outro a vontade de Deus; ou seja, o que define um acto humano de acordo com a razão e a natureza, e de acordo com aquilo que a razão decifrou da natureza é a vontade de Deus[2]. Suárez afirmará que a lei natural é uma verdadeira e autêntica lei divina e o seu autor é Deus[3], o que o fará antecipar-se aos modernos, no sentido em que afirma que a natureza, por si, não engendra a lei.

De qualquer forma, Maritain vê como bastante evidente a génese da modernidade em Hugo Grotius. Primeiro, porque a qualificação moral depende exclusivamente da natureza, ou seja, da sua conformidade à natureza apreendida pela recta razão. Segundo, porque se em S. Tomás a conformidade à razão constitui a qualidade moral de um acto, para Grotius, entretanto, a razão apenas constata que um acto está ou não conforme à natureza racional do homem, tendo em si mesmo a qualidade de ser moralmente ilícito ou moralmente necessário. Começa-se então a conceber como princípio, aquilo que na realidade seria uma conclusão: que um acto é conforme à natureza segundo a concepção da razão É o passo para se constituir a razão e a natureza humana como forças reguladoras, suficientemente coerentes e consistentes para estabelecer a lei[4]. Entretanto, se a lei natural se “racionaliza” ela não perde o seu carácter de universalidade. Segundo Maritain, “a lei natural torna-se um objecto construído a priori pelos filósofos de maneira a mais arbitrária, conforme as exigências e interesses sociais e políticos dos mesmos”[5].

TEIXEIRA LOPES, Jorge Filipe. Fundamentação dos direitos humanos na Lei Natural. Universidad Pontificia Bolivariana – Escuela de Teologia, Filosofia y Humanidades. Licenciatura Canónica em Filosofia. Medellin, 2009.  p. 34-37.


[1]BEUCHOT, Mauricio. La ley natural en Suarez. Em: Francisco Suárez: Tradição e Modernidade. Lisboa: Colibri, 1999. p. 282.

[2] MARITAIN, La loi naturelle ou la loi non écrite, Op. Cit., p. 111. Esse pensamento levaria, mais tarde, a proclamar que de Deus só se pode conhecer a voluntas ordinata e, consequentemente, o próprio Deus poderia ter feito tudo de forma diferente do que fez. (Cfr. Bento XVI. Fé, Razão e Universidade: Recordações e reflexões. Discurso na Universidade de Regensburg. [Em linha]. <Disponível em: http:// www.Vatic an.va/holy_f ather/benedict _xvi/speeches /200 6/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20060912_university-regensburg_po.html> [Consulta: 19 Jun., 2009]).

[3] SUAREZ, Francisco. Las leyes. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1967. p. 124. Este pensamento de recurso à vontade do legislador divino para a apreensão da lei natural e de carácter nominalista, é contrário ao que afirma S. Tomás quando diz haver na natureza uma normatividade germinal na natureza que se explicita na lei. (Cfr. BEUCHOT, Op. Cit., p. 281-282).

[4] MARITAIN, La loi naturelle ou la loi non écrite, Op. Cit., p. 112-113. Por isso Maritain afirma que é em Grotius que se inicia, ainda que de forma velada, o processo de secularização da lei natural. É a razão que opera, determinando e estabelecendo a lei, pelo que se pode dizer assim: “este acto não é somente moralmente ilícito ou necessário, mas visto que Deus é o supremo sustentador da ordem universal, um acto moralmente ilícito é garantido por Deus, um acto moralmente necessário é ordenado por ele e, assim, encontramos, como em Suárez, natureza e vontade de Deus”.

[5] Ibid., p. 114.

A abertura a Deus como problema do senso e senso do problema em Juan Alfaro

Pe. François Bandet, EP

Na sua reflexão, Alfaro parte da experiência real do homem no próprio ato de existir. O que sou eu? Coisa que o homem se interroga a si mesmo e em cujo ato ele deve também tomar posição a seu respeito, enfrentando um problema que o estimula a procurar uma resposta. Não se trata de uma pergunta meramente teórica, mas conseqüentemente prática porque coloca em questão a sua liberdade.

No indagar a possível resposta a tal questão, qualquer um rende-se à evidência de não ser plenamente ele próprio, que é chamado a construir-se, a ser mais ele próprio através do liame com os outros. O paradoxo do homem de ser ele próprio, não podendo ao mesmo tempo ser plenamente ele próprio, faz do homem um mistério somente a ele próprio.

O homem toma também conta de não existir desde sempre e para sempre. De onde a revelação da limitação da experiência humana. A experiência de não vir ao mundo por ele próprio e de ter recebido uma existência não optada, resulta necessariamente na dúvida: “De onde venho? Porque vivo?”.[1] A morte faz que o momento transitório da nossa existência seja irreversível e irrepetível. Inicialmente é melhor formular a pergunta de um modo mais simples: “Vale a pena viver? A vida merece ser tomada a sério?”

Neste sentido, a fórmula de Kant permanece sempre muito atual: “O que posso saber, o que devo fazer, o que me é permitido esperar?”.[2] Trata-se de três aspectos de uma mesma questão: “O que é o homem?”.[3]

O homem é permanentemente projetado ao porvir esperado, mesmo posta qualquer outra meta em acréscimo.

O homem é livre e empenha a própria liberdade na decisão concreta que não pode realizar e levar ao fim sem interrogar-se o porquê disto. O porquê de toda a opção leva a que observe por si a questão do sentido último da existência humana. Em tal perspectiva, a questão do sentido último da vida toma um caráter transcendental. O homem poderá tomar o sentido da própria vida em apenas um ato que envolve toda a sua pessoa. Não basta o puramente contemplativo “conhece-te a ti mesmo”; é preciso o “constrói-te” a ti mesmo na autenticidade.[4] O homem pode ser definido como o criador da linguagem, da técnica, da cultura, da história etc. Porém, a característica mais evidente do ser humano é o fato que ele tem como destino procurar o sentido último da sua vida: “O homem foi posto no mundo à procura de si mesmo e do seu fim”.[5]

Segundo Alfaro, o problema do sentido último da vida transcende o campo do empiricamente verificável e, portanto, supera a competência da ciência. Isto quer dizer que o problema do sentido último implica que a resposta não possa ser evidente. Se fosse evidente, de fato, o homem não seria livre. Uma demonstração evidente do sentido último da vida permanece, por enquanto, excluída. Pode-se, em vez disso, fazer não tanto uma demonstração mas uma exposição, isto é, uma compreensão dos motivos, suficiente para justificar a opção, pois uma demonstração da evidência não deixaria a possibilidade da opção.

Posto isto, agora, onde se pode chegar, de onde se deve partir e como se deve proceder? Alfaro diz que se pode chegar à compreensão da resposta a dar ao problema do sentido da vida humana.[6] Por esse motivo, precisa saber de onde se deve partir; o ponto de partida será a esperança, e em concreto, a experiência essencial que é a experiência que o homem vive no ato de existir: a experiência do mundo, da morte e da história. Partir da experiência humana total é de importância decisiva para a reflexão sobre o problema do sentido da vida.

Uma vez assumido como ponto de partida a experiência humana total, o passo seguinte terá caráter fenomenológico: A realidade “aparece” no fenômeno, que é o apontamento do seu “mostrar-se” originário. O Homem, desta forma, não pode contentar-se a viver e experimentar, renunciando a entender a realidade. Então, após a análise formal do problema do sentido da vida humana, será necessário entrar na discussão sobre se a vida tem ou não sentido.

O método que Alfaro segue é o seguinte:

a) Existencial: o ponto de partida é a realidade do homem;

b) Fenomenológico: Faz que a pergunta nasça da realidade completa e parte de um método que leva em consideração o ser numa situação concreta;

c) Transcendental: Procura a razão profunda que transcende o fenômeno e a existência.[7]

Dado que o homem não tem uma experiência imediata de Deus, deve aceitar que o problema de Deus será possível apenas enquanto experiência da qual nasce o problema do homem que culmina pela sua natureza em qualquer coisa que é outro homem, o mundo e a história. Para Alfaro isto significa então que o problema de Deus poderá surgir apenas enquanto conexo ao problema do homem.

É preciso dizer que se o homem não fosse constitutivamente aberto ao transcendente, não se poderia sequer se aproximar de Deus. O problema de Deus é correlato ao problema do homem.

Se não é possível dar ao problema do homem uma resposta “demonstrativa”, mas apenas “mostrativa”, analogamente seria impossível dar uma resposta “demonstrativa” ao problema de Deus.[8]


[1] Idem, ibidem, p. 12-13.

[2] Cf. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft).

[3] ALFARO, Juan. Dal problema dell’uomo al problema di Dio (1988), Queriniana, Brescia, 1991, p. 26.

[4] Idem, ibidem, p. 17.

[5] Idem, ibidem.

[6] Cf. Idem, ibidem, p. 19.

[7] Idem, ibidem, p. 21.

[8] Idem, ibidem., p. 23.