Documentos basilares para o estudo da formação dos seminaristas

Pe. Carlos Adriano, EP

Para se estabelecer um estudo a respeito da formação seminarística nos dias de hoje e sobre os diversos elementos que a compõem, é preciso delimitar onde se encontram as principais diretrizes que tenham servido de fonte para a elaboração da atual legislação do Código, ou para a interpretação da mesma.

Primeiramente, deve-se atentar para o decreto Optatam Totius sobre a formação sacerdotal, do Concílio Vaticano II:

[…] o Concílio Vaticano II, que teve como objetivo último a renovação de toda a Igreja, advertiu também a estreita relação entre essa desejada renovação e o ministério dos sacerdotes. Fruto deste convencimento dos Padres conciliares é o decreto Optatam Totius, em que se proclama a transcendental importância da formação sacerdotal e se expõem os princípios fundamentais que devem inspirá-la, conservando e confirmando o já provado pelos séculos de experiência, e inovando ao mesmo tempo com o que as novas circunstâncias podem exigir (RINCÓN-PEREZ, 1991, p. 178 — tradução minha).

Como se poderá observar, o documento não descarta a experiência da Igreja na formação dos sacerdotes, muito pelo contrário, valoriza-a, mas exorta a que, nas leis eclesiásticas dirigidas para a formação sacerdotal, sejam introduzidas inovações que correspondam à evolução dos tempos.

 O sagrado Concílio reconhece que a desejada renovação de toda a Igreja depende, em grande parte, do ministério sacerdotal, animado do espírito de Cristo; proclama, por isso, a gravíssima importância da formação dos sacerdotes e declara alguns dos seus princípios fundamentais, pelos quais sejam confirmadas as leis já aprovadas pela experiência dos séculos e se introduzam nelas as inovações que correspondam às suas constituições e decretos e à evolução dos tempos. Esta formação sacerdotal, por causa da unidade do mesmo sacerdócio, é necessária aos dois cleros e de qualquer rito. Portanto, estas prescrições, que se referem diretamente ao clero diocesano, devem ser acomodadas na devida proporção a todos os sacerdotes (OT, proêmio).

O decreto conciliar trata sobre diversos temas atinentes à formação sacerdotal: desde a promoção das vocações, organização dos seminários maiores, formação espiritual e ainda outros assuntos de exclusiva relevância.

Além desse documento, o presente estudo deve ter como base a Ratio Fundamentalis Institutiones Sacerdotalis, e a Exortação Apostólica Pastores dabo vobis:

O Concílio Vaticano II dedicou um decreto (Optatam Totius) à formação para o sacerdócio. A disciplina do CIC responde às suas orientações, que recolhem uma tradição multissecular, com as adaptações necessárias às circunstâncias atuais. Ademais, existe para a Igreja universal, um plano de formação (Ratio Fundamentalis Institutiones Sacerdotalis), cujas linhas básicas devem ser seguidas pelas Conferências Episcopais e pelos regulamentos dos seminários (cf. cc. 242-243). Em 25.III.1992, João Paulo II publicou a Exortação Apostólica Pastores dabo vobis, que trata da formação dos sacerdotes na situação atual (CENALMOR E MIRAS, 2004, p. 178).

A Ratio Fundamentalis Institutiones Sacerdotalis, que consiste em normas fundamentais para a formação sacerdotal, foi elaborada pela Congregação para a Educação Católica, e publicada primeiramente em 6 de janeiro de 1970, deixando de vigorar com a promulgação do Código de Direito Canônico de 1983.

Adaptando-se à necessidade de se criar uma nova Ratio, a Congregação para a Educação Católica publicou novas diretrizes em 10 de março de 1985, acrescentando, na verdade, muito poucas mudanças em relação ao documento anterior (cf. Enchiridium, p. 326).

Todos esses documentos têm uma particular influência na legislação atual em relação aos responsáveis pela formação dos seminaristas.

Sem a dimensão jurídica, não seria compreensível a Igreja tal como foi fundada por Cristo

Pe. José Manuel de Andrade, EP

Há uma tendência de querer ver na Igreja apenas um lado carismático, pretendendo dispensá-la do aspecto jurídico, sendo que este não é desprovido de um significado e uma missão. Ele existe para que, havendo uma sociedade eclesial de instituição definida, se crie de forma acabada e com os devidos contornos, em seu tempo e em seu lugar, uma ordem baseada nos valores evangélicos e participa do fim a que se propõe a Igreja: a salvação das almas.

São Paulo ensina que a justificação não se realiza pelas obras da lei, mas por meio da fé (cf. Rm 3, 28; cf. Gl 2, 16), porém, não exclui a obrigatoriedade do Decálogo (cf. Rm 13, 8-10; cf. Gl 5, 13-25; 6, 2), nem nega a importância da disciplina na Igreja de Deus (cf. 1 Cor 5-6). Já o primeiro Concílio, de Jerusalém, presidido por Pedro, compreendia uma parte dogmática e moral e outra disciplinar.[1]

Assim sendo, a necessidade do direito na Igreja não deve traduzir-se por uma simples conveniência, por muito intensa que seja. Esta dimensão jurídica é fundamental, porque sem ela não é compreensível a Igreja tal como foi fundada por Cristo.[2] Conforme João Paulo II:

“Como principal documento legislativo da Igreja, baseado na herança jurídico-legislativa da Revelação e da Tradição, o Código deve ser considerado instrumento indispensável para assegurar a devida ordem tanto na vida individual e social como na própria atividade da Igreja. Por isso, além dos elementos fundamentais da estrutura hierárquica e orgânica da Igreja, estabelecidos por seu Divino Fundador ou fundamentados na tradição apostólica ou em tradições antiquíssimas, e além das principais normas referentes ao exercício do tríplice múnus confiado à Igreja, é necessário que o Código defina também certas regras e normas de ação”.[3]

Assim sendo, o Direito dentro do Povo de Deus não é só uma ordenação de condutas, mas também uma estrutura da sociedade; ele ordena e organiza o grupo social criando vínculos, estabelecendo situações jurídicas, delimitando âmbitos de competência e autonomia, outorgando poderes e direitos, etc.[4] Conforme afirmava Paulo VI: “A vida da Igreja não pode existir sem um ordenamento jurídico”.[5]


[1] Cf. BÍBLIA SAGRADA (anotada pela Faculdade de Teologia da Universidade de Navarra) Braga: Edições Theologica, 1990. Vol. II. p. 257.

[2] Ver Mt 16, 19 e Jo 21, 17.

[3] JOÃO PAULO II. Constituição Apostólica Sacrae Disciplinae Leges. In: Communicationes, XV (1983).

[4] Cf. INSTITUTO MARTÍN DE AZPILCUETA. Comentário Exegético al Código de Derecho Canónico. 3. ed. Pamplona: EUNSA, 2002. Vol. I.  p. 40-41.

[5] “Vita ecclesialis sine ordinatione iuridica nequit exsistere”. (Apud Herranz, J. Il Dirito Canonico, Perché? Lezione all’Università Cattolica di Milano. 29 aprile 2002 tradução minha).

O carisma dos fundadores

Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

A Teologia a respeito dos fundadores é relativamente recente, pois só a partir do Concílio Vaticano II prestou-se, com maior empenho, atenção nessas manifestações surgidas às vezes até mesmo no laicato, reconhecendo sua legitimidade de uma forma genérica[1].

E deve-se ao Papa Paulo VI a menção textual a esse carisma em documento do Magistério Pontifício, no qual, ademais, confirma a presença da inspiração divina na missão dos fundadores: “Só assim podereis despertar de novo os corações para a Verdade e para o amor divino, segundo o carisma dos vossos fundadores, suscitados por Deus na sua Igreja”[2].

Posteriormente, João Paulo II usou essa expressão em diversos documentos, como, por exemplo, na Mensagem à XIV assembleia geral da Conferência dos religiosos do Brasil: “Anima-vos aquilo que é o sentido ínsito à vida consagrada: crescer no conhecimento e no amor, para serdes testemunhas e profetas de Cristo no mundo de hoje, em fidelidade dinâmica à vocação religiosa e ao carisma dos vossos fundadores”[3].

Esse carisma que anima o fundador tem a peculiaridade de poder abarcar todas as categorias de fiéis, sem distinção, quanto aos ministérios ou estados de vida, constituindo um anúncio forte da fé, o qual dá origem também a um impulso missionário[4].

Essa “inspiração fundamental” dos fundadores — Ratzinger no-la explica de forma muito clara[5] — é a identidade deles com Cristo e com o Evangelho. Fazendo um paralelismo entre a história da conversão de Santo Antão e a de São Francisco de Assis, o Pontífice afirma serem idênticos os impulsos que encontramos num e noutro: tomar o Evangelho séria e rigorosamente ao pé da letra, seguir Cristo em pobreza total e conformar toda a sua vida à dEle.

Outros autores, nas últimas décadas, aprofundaram o estudo da matéria. Trata-se de pesquisar e auscultar a presença santificante do Espírito na Igreja, Sua forma de agir e o modo de transmitir esse verdadeiro tesouro espiritual, de um movimento ou família religiosa, que é o carisma fundacional.

Tanto mais que esse dom é difícil de ser expresso na sua totalidade, em termos humanos, em doutrinas e regras. Como definir e diferenciar, por exemplo, o carisma franciscano do dominicano? Ambos são mendicantes, ambos dedicam-se à evangelização. No entanto, apesar de semelhantes, bem se pode aplicar a eles o dito de São Paulo: “uma é a claridade do sol, outra a claridade da lua e outra a claridade das estrelas, e ainda uma estrela difere da outra na claridade”[6].

A fundação, pois, baseia-se numa forma radical e peculiar de viver o Evangelho em sua totalidade, com uma sólida e profunda formação cristã, que se transmite por um método pedagógico específico, segundo o carisma de cada movimento.


[1] Cf AA, n. 3.

[2] Paulo VI, Exortação Apostólica Evangelica Testificatio, n. 11, 29/6/1971. “Solum hoc modo animos hominum ad veritatem amoremque divinum amplectendum erigere poteritis secundum charisma Fundatorum vestrorum, quos Deus in Ecclesia sua excitavit”.

[3] João Paulo II, Mensagem aos participantes da XIV Assembleia Geral da Conferência dos religiosos do Brasil, 11/7/1986. “Il vostro scopo è di crescere nella conoscenza e nell’amore per essere testimoni e profeti di Cristo nel mondo d’oggi, in fedeltà dinamica alla vocazione religiosa e al carisma dei vostri fondatori”.

[4] Cf Id., Mensagem aos participantes do Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais, 27/5/1998.

[5] Cf J. Ratzinger, Os Movimentos na Igreja, presença do Espírito e esperança para os homens. São João de Estoril 2007, p. 45.

[6] I Cor 15, 41.

Missão de Arautos do Evangelho no Direito Canônico

Pe. Antônio Guerra, EP

Em relação ao CIC17 e ao modo de pensar anterior, encontramos uma novidade fundamental relativa às missões no atual CIC 83. Até o início do século XX consideravam-se na Igreja dois tipos de territórios. De um lado se encontravam os “territórios da cristandade” onde a Igreja estava estabelecida com dioceses e todos os seus organismos de governo. De outro lado haviam as chamadas “terras de missão”, onde a maioria da população não era católica. Nos “territórios da cristandade”, a maioria da população era constituída por católicos ― mais ou menos praticantes ― e isto fazia com que o surgimento de vocações ao sacerdócio e à vida consagrada fossem suficientes para atender aos fiéis desses territórios e, inclusive, proporcionava a possibilidade de que alguns saíssem a outros povos para levar a “Boa Nova do Evangelho.

Nas “terras de missão” não existia propriamente uma hierarquia estabelecida de modo completo, ou então esta era constituída por clérigos vindos de outros países. O pequeno número de vocações locais fazia necessário que se recebessem missionários para pregarem o Reino de Cristo.

Esses missionários ad gentes eram o que Pio XII denominou “arautos do Evangelho” em sua Encíclica de 1951[1]. Nela pedia “aos veneráveis irmãos patriarcas, primazes, arcebispos, bispos e outros ordinários locais em paz e comunhão com a Sé Apostólica […] para que a ação dos missionários se torne cada vez mais eficaz e para que não se perca em vão nem uma só gota do seu suor e do seu sangue[2]. E justificava a necessidade de um novo impulso missionário

É sumamente oportuno nestes tempos procelosos e ameaçadores, em que muitos povos se sentem divididos por interesses opostos, recomendar de novo a causa das missões, pois os arautos do evangelho são mensageiros da bondade humana e cristã, e a todos exortam à fraternidade e compreensão mútua, capaz de superar os conflitos dos povos e as fronteiras das nações[3].

O Papa Pacelli via na pregação e na aceitação do Evangelho a superação de muitos conflitos entre povos, e a instauração de um período de “bondade humana e cristã[4] contraposto aos “tempos procelosos e ameaçadores[5] em que vivia.

O Concílio julgou um dever chamar novamente a atenção dos católicos para a missão. Agora não somente ad gentes, mas também ad intra. Lembrou que, por meio do batismo, todos somos missionários por vocação divina.

Não apenas aqueles que, por especial chamado, podem ser denominados “Arautos do Evangelho”, pois deixam os “territórios da cristandade” para irem às “terras de missão”. Toda a Igreja é missionária. Nesse sentido, a missão ad gentes faz parte de sua constituição divina. Assim o comenta García Martín[6]

O Concílio Ecumênico Vaticano II afirmou claramente e proclamou solenemente que a Igreja por sua natureza é missionária[7]. O código de direito canônico recebeu esta doutrina determinando que o povo de Deus seja a Igreja à qual Deus confiou uma missão para ser cumprida no mundo […] [8]. A legislação eclesiástica no curso dos séculos foi reformada para responder fielmente à sua missão. Portanto, a novidade da legislação atual se refere, seja à natureza da Igreja como povo de Deus, seja à sua missão[9].

O CIC também explicita essa mesma doutrina de modo claro

c. 781 − Sendo que a Igreja toda é missionária por sua natureza e que a obra de evangelização é dever fundamental do povo de Deus, todos os fiéis conscientes da própria responsabilidade, assumam cada um a sua parte na obra missionária[10].

Toda a Igreja é missionária por natureza. Ora, esta missão foi dada por Deus quando a fundou, no momento em que o Sangue preciosíssimo de Cristo mesclado com a linfa saiu do seu costado aberto pela lança. E este primeiro ato foi eminentemente missionário; a linfa, caindo nos olhos do centurião cego deu-lhe a vista do corpo e da alma.

[1] Pio XII, Carta Encíclica Evangelii Praecones sobre o fomento das Missões, 2/6/1951, 19. AAS 43 (1951), 497-528.

[2] Evangelii Praecones, 19. AAS 43 (1951), 497-528.

[3] Ibidem, 2. 19.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] Martin, Garcia. L’Azione missionaria nel Codex Iuris canonici, Ediurcla, Roma, 2005, 2º ed., p. 47.

[7] Nota do texto original: Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Dogm. Lumen gentium, 17; decr. Ad Gentes, 2, 35. La suddetta espressione tottavia non è molto frequente, cfr. Ochoa, X., Index verborum cum documentis concilii Vaticani II, Romae 1966.

[8] Nota do texto original: Can 204, § 1. Il can. 781 riprende gli stessi principi.

[9] “Il concilio ecumenico Vaticano II ha affermato chiaramente e proclamato solennemente che la Chiesa per sua natura è missionaria. Il Codice di canonico ha recepito questa dottrina determinando che il popolo di Dio è la Chiesa cui Dio ha affidato una missione da compiere nel mondo… La legislazione ecclesiastica nel corso dei secoli è stata riformata per rispondere fedelmente alla sua missione. Pertanto la novità della legislazione attuale riguarda sia ecclesiastica nel corso dei secoli è stata riformata per rispondere fedelmente alla sua missione. Pertanto la novità della legislazione attuale riguarda sia la natura della Chiesa come popoli di Dio sia la sua missione” (Tradução minha).

[10] c. 781  Cum tota Ecclesia natura sua sit missionaria et opus evangelizationis ha­bendum sit fundamentale officium populi Dei, christifideles omnes, propriae res­ponsabilitatis conscii, partem suam in opere missionali assumant.

A frequência à comunhão eucarística na História da Igreja

Pe. Alex Barbosa de Brito, EP

O costume da comunhão era tão frequente nos primeiros séculos que Jungmann atesta: até o séc. IV, além da comunhão em cada missa assistida, em geral aos Domingos, podia-se, depois de receber a hóstia consagrada, levar uma porção para casa, onde as pessoas guardavam cuidadosamente e, dia após dia, consumiam antes de qualquer outro alimento. Contudo, “de modo geral, porém, o recebimento de sacramento é reservado à missa que se tornou, normalmente, mais frequente desde que a Igreja tinha conquistado a paz”. (Cf. 2009, p. 802-803).

Considerando que o aspecto “banquete” é o que se percebe em primeiro lugar na celebração, não é de admirar que a Patrística, nos primeiros séculos, apresente a Eucaristia dando ênfase à “comida e bebida espiritual de vida eterna” (Didaqué 10); ao “pão e remédio de imortalidade, antídoto que afasta a morte e dá a vida em Cristo” (Inácio, Efes. 20); ao “alimento que nutre com o corpo e o sangue do Senhor” (Irineu, Adv. Haeres, 4,18,5); “a fim de que por eles também a alma seja alimentada” (Tertuliano, De Resurr. 8:PL 2,806); como “alimento que nutre as almas… como bebida que inebria o coração”. (Orígenes, in Matth. Comment., séries 85: PG 13,1734).

Por isso mesmo, os Padres da Igreja[2] apontam nos Evangelhos os primeiros indícios da comunhão frequente. Por exemplo, Santo Agostinho[3], falando do capítulo VI de São João, recorda no sermão 28, incluído no livro De Verbi Domini: Iste panis quotidianus est: accipe quotidie quod quotidie tibi prosit. (“Este pão é diário: toma cada dia o que cada dia te aperfeiçoa”, tradução nossa.)

Praticamente o mesmo conselho é dado por Santo Ambrósio (340-397), mestre de S. Agostinho (354-430), quando afirma: “Si quotidianus est panis, cur post annum illum sumis, (quemadmodum Graeci in Oriente facere consuerunt)?. Accipe quotidie, quod quotidie tibi prosit.”[4]

Tertuliano (De idolatria, c. VII) fala “das mãos que tocam diariamente o corpo do Senhor[5]”. São Cipriano (De oratione Dominica, XVIII) exorta com particular insistência à comunhão diária, e o Bispo de Hipona (Epist. LIV, n. 2) recomenda que, além do Domingo, seja recebida em certos dias.

Nesses tempos felizes, é incompreensível assistir à missa sem a comunhão, porque a comunhão é “essencialmente e no sentido mais profundo, o rito de participação do convívio sacrifical” (VAGAGGINI, 2009, p. 258). E àqueles que não estivessem presentes, por justa razão, era-lhes enviada a Eucaristia, recorda São Justino (Apologia I, n. 65).

Contudo, comenta Jungmann (2009, p. 803): “a alta frequência do recebimento da eucaristia diminui com surpreendente rapidez, pelo menos em alguns países”. Tal ruptura deste convívio diário, parece ter se iniciado ainda nos tempos de Santo Ambrósio[6], uma vez que, sem meias palavras, dizia: “Se o pão é cotidiano, por que esperais um ano para recebê-lo, como fazem os gregos?”[7]. (De Sacramentis, V, 25)

São João Crisóstomo comprova a ruptura com os tempos apostólicos, ao se queixar de que “em Constantinopla muitos só comungarem uma vez por ano” (in Hebraeos 17,4); e não sem certa melancolia finaliza: “em vão se celebra o sacrifício todos os dias; em vão estamos todos os dias no altar, ninguém vem comungar”. (In Ephesios, h. 3,4).

Já no século V, Santo Agostinho fazia o seguinte reparo: “Em alguns lugares não se transcorre um dia sem que se ofereça o sacrifício, enquanto em outros ele é oferecido somente aos sábados e domingos, e em outros só aos domingos”. (Epistola ad Ianuarium 54, II, 2).

A normativa se pressentia necessária. Na Gália, por exemplo, o Sínodo de Agde (506), prescreveu o mínimo de três comunhões anuais: no Natal, na Páscoa e em Pentecostes;[8] decretou também a comunhão dominical, sobretudo nos Domingos da Quaresma, mas com resultados tênues e passageiros. (Cf. JUNGMANN, 2009, p. 803).

Três terão sido, talvez, as principais causas da diminuição da frequência à comunhão eucarística dos fiéis: O arianismo, o purismo ritual ou legal e a pureza de consciência mal entendida. Esta última razão fortemente influenciada pelo arianismo e muito semelhante ao que se veria muitos e muitos anos mais tarde no movimento jansenista (séc. XVIII).

As invasões bárbaras (entre 300 a 800) trouxeram em seu bojo o arianismo. Após a queda do Império Romano, quando os missionários católicos entraram em contato com eles, muitos já eram arianos, sobretudo os povos oriundos do Norte da Europa que sofreram a pseudoevangelização de Wulfila, monge-bispo ariano do clero de Bizâncio. Onde a influência da heresia foi menos perniciosa, “a comunhão frequente e vinculada naturalmente com a celebração do sacrifício permanecia em vigor por mais tempo.”[9] (JUNGMANN, 2009, p. 804).

Quanto à pureza ritual, encontramos no Antigo Testamento uma série de regras que lhe diziam respeito (Cf. Lv 15,1-30; 12,1-8). Anacronismos à parte, esta concepção de modo misterioso reapareceu entre os cristãos dos séculos IV e V, colaborando fortemente para o afastamento da Comunhão Eucarística. Proibições da ordem da pureza ritual são encontradas nas fontes desde o século III. (Cf. JUNGMANN, 2009, p. 805). São Jerônimo sugere abstinência aos casados nos dias de receber a Eucaristia (Epistola 49,15; Contra Jovinianum 1,20) e o Doutor de Hipona, Santo Agostinho, recomenda que se deve receber a Eucaristia nos dias em que se vive maior pureza e continência (Epistola LIV, II).

No que diz respeito à pureza de consciência, em I Cor 11,28 o Apóstolo prescreve que o homem se examine antes de comungar, probet se ipsum homo. Na baixa Idade Média, não faltou quem entendesse esta norma como se todos estivessem obrigados à confissão sacramental antes de cada Comunhão. Ora, tornava-se muito difícil atender em confissão toda a comunidade de fiéis, antes de cada Missa, tanto mais que não era permitido aos católicos receberem os sacramentos fora do território paroquial. Outro fator digno de nota foi o pio costume das chamadas missas privadas, que desde o século VII se generalizou. Até então, costumava-se celebrar a Eucaristia de modo solene, com a presença do clero e do povo. Com a multiplicação das missas, bastaria a representação de um fiel que ajudasse à Missa. Multiplicaram-se as missas, multiplicou-se número dos altares, menos o número de comunhões, a maioria dos fiéis comungava apenas na Pascoa, “por mais que se recomendasse o costume antigo de comungar todos os Domingos”. (GARCIA-VILLOSLADA, MMIII, p. 227; Tradução e grifo do autor).

A situação ficou tão calamitosa que no século XI, o IV Concílio Lateranense (1215), em seu famoso capítulo 21 Omnis utriusque sexus, estabeleceu o preceito da confissão anual e da comunhão pascal:

Cada fiel, de um e de outro sexo, chegando à idade da razão, confesse lealmente, sozinho, todos os seus pecados a seu próprio sacerdote, ao menos uma vez ao ano, e se aplique a cumprir, segundo suas forças, a penitência que lhe foi imposta; receba com reverência ao menos pela Páscoa o sacramento da Eucaristia. (Denz. 812).

O preceito conciliar remediou a situação, mas ainda estava longe a solução definitiva do problema. Exemplo característico desse tempo foi o de S. Luís IX, rei de França (1214-1270). O mítico e piedoso monarca comungava cerca de seis vezes ao ano. (Cf. ROPS, 1993, p. 72). A literatura canônica insistia na obrigação do jejum eucarístico com severidade tal, que alguns autores chegavam a exigir implacáveis sacrifícios. Em 1237, o Sínodo de Coventry (Inglaterra) prescrevia jejum preparatório de meia semana. Outros afirmavam que o fato de não se frequentar o sacramento aumentaria a reverência para com o mesmo. (Cf. JUNGMANN, 2009, p. 805). O Doutor Universal, que conviveu de perto com esta mentalidade formada ao longo de séculos, foi grande defensor da comunhão frequente. Citando Santo Agostinho teceu esta belíssima consideração sobre o temor reverencial e o temor filial:

Deve-se dizer que o respeito devido a este sacramento deve unir o temor ao amor. Pois o temor reverencial a Deus é chamado temor filial. O desejo de comungar é provocado pelo amor; do temor, porém, nasce a humildade do respeito. Desta sorte, ambos pertencem ao respeito devido a este sacramento, seja quando se comunga todos os dias, seja quando, às vezes, se abstém dele. (Suma III, q. 80, a. 10, quanto ao 3º).

Como fossem raras as comunhões sacramentais, incentivavam-se as espirituais. Mas, o desequilíbrio levou não poucos a desenvolverem uma controversa devoção: a comunhão vicária, ou seja, o sacerdote comungava em substituição à comunhão dos fiéis[10].

Era desejo dos Padres no Concílio de Trento que os fiéis comungassem todos os dias. Com o objetivo de facilitar o acesso dos fiéis à comunhão eucarística, a partir deste Concílio introduziu-se o costume de ministrar a comunhão sem relação com a celebração do sacrifício, ou seja, extra missam. (Cf. SARAIVA MARTINS, 2005, p. 239). A luta contra os pseudo reformistas, que negavam a presença real e o caráter sacrifical da Missa, fez com que a Igreja concentrasse seus esforços em desenvolver a teologia nesses dois campos, ademais de normatizar, tendo em vista os aspectos que eram especialmente atacados. Ao longo de quase toda a Idade Média estabeleceu-se a devoção à Santa Missa enquanto sacrifício eucarístico. Ne declines ad dexteram neque ad sinistram, averte pedem tuum a malo[11] (Pv 4,27), nos ensina o livro dos Provérbios. Na busca constante do equilíbrio, a Igreja no Concílio de Trento voltou a incentivar a participação dos fiéis na comunhão eucarística.


[1] Cipriano Vagaggini, monge beneditino camaldulense (+1999), foi um dos principais artífices da Constituição Sacrosantum Concilium e um dos animadores da reforma litúrgica, com contribuições originais na redação das novas Orações Eucarísticas II e IV (2009, contracapa).

[2] Tertuliano, além do valor histórico e literário de seus escritos, merece destaque particular pelas informações mais particularizadas que nos fornece. Ademais, foi o primeiro dos escritores latinos a apresentar o termo grego de Paulo pelo latino “coena Dei” (De spect. 13, loc. cit.) e “convivium dominicum” (Ad uxor, 2,4). Faz-nos ele ainda ver o corpo de Cristo no “pão cotidiano” que pedimos na oração do Pai nosso (De orat, 6: PL 1,1263); além de atestar que o “sacramento da Eucaristia” era “recebido” habitualmente na celebração que se realizava “antes do amanhecer, somente da mão do presidente” (De cor. 3: PL 2,79).

[3] Serm. 84, inter Opp. Aug., al de Verbis Domini., serm. 28, n. 3; ML 39, 1908

[4] Sancti Ambrosii Mediolanensis Episcopi. De Sacramentis. Libri Sex. (C. G. S.). Liber quintus. Caput IV. PL. Vol. 16, col. 452b.

[5] Além de incentivar a comunhão eucarística, Tertuliano chama atenção a respeito de algumas normas a ser observadas: “ante omnem cibum gustes”, ou seja, que os fiéis tivessem o cuidado de tomar a Eucaristia antes de qualquer outro alimento; e que não comesse dela quem não fosse cristão. (Tertuliano, Ad. Uxor, 2,5, PL 1408).

[6] Crisóstomo, In Eph. Hom. 3,4 (PG 62,29), cf. In I Tim hom. 5,3 (PG 62,529s.); In Hebr. Hom 17,4 (PG 63,131s.).

[7] Quemadmodum Graeci in Oriente facere consuerunt. Tradução nossa.

[8] Can. 18 (Mansi VIII, 327).

[9] Isso atestam para o séc. VII-VIII os ordinários romanos que são voltados primeiramente para a missa estacional. Esta, porém, acontecia na Quaresma quase diariamente. […] Também segundo Beda (+ 735), Ep. 2 ad Egbertum (PL 94, 666A), naquela época cristãos de todas as idades comungavam em Roma em cada Domingo. Em 88, o papa Nicolau I, Ep. 97, n. 9 (PL 119, 983) dá uma resposta afirmativa à pergunta dos búlgaros se devem comungar diariamente na Quaresma, desde que estejam na atitude certa. (JUNGMAN, 2009, nota n. 32 da p. 804).

[10] À primeira vista, o que poderia ser um belo gesto de piedade, foi se tornando um meio a mais para que as pessoas deixassem de comungar. Havia mesmo quem dissesse que, quando o sacerdote comunga, “alimenta a si mesmo na alma, e a todos nós”. Combatendo-o, o Sínodo de Tréveris (1227) proibiu que o sacerdote recebesse o corpo de Cristo em lugar dos enfermos. (Cf. JUNGMANNM, 2009, p. 806-807 e notas).

[11] Não te desvies nem para a direita, nem para a esquerda e afasta os teus pés do mal.

Referências

GARCIA-VILLOSLADA, Ricardo. Historia de la Iglesia Católica: Edad Media (800-303), La cristiandad en el mundo europeo y feudal. 6. ed. Madrid: BAC, MMIII.

JUNGMANN, J. A. Missarum Sollemnia: Origens, Liturgia, História e Teologia da Missa Romana. Tradução de Monika Ottermann. São Paulo: Paulus, 2009, 961 p.

VAGAGGINI, Cipriano. O Sentido Teológico da Liturgia. Trad. Francisco Figueiro de Moraes. São Paulo: Edições Loyola. 2009, 843 p.

SARAIVA MARTINS, Cardeal José. Eucaristia. Lisboa: Universidade Católica Editora. 2005.

A verdade deve ser buscada na Igreja de Cristo

Pe. Antônio Guerra, EP

A Verdade que o homem procura por conaturalidade ― e também por obrigação moral ― não pode ser procurada em qualquer lugar, pois não a encontraria. A verdade deve ser procurada onde ela se encontra. Ela é única, insubstituível, e deve corresponder aos anseios mais profundos do ser humano. Depois da Encarnação do Verbo, a verdade deve ser buscada na Igreja fundada por Jesus Cristo Nosso Senhor. Ele que é a Verdade, deixou-nos a Igreja como sacramento de santificação, a qual, como mãe amorosa e paciente, ensina o homem a chegar até a Verdade íntegra e incomensurável, Jesus, filho de Maria.

Conhecida a Verdade em sua Igreja, o homem tem o direito e a obrigação de abraçá-la e segui-la. Entretanto, deve-se recordar as dificuldades decorrentes da natureza limitada do homem e dos desfiguramentos oriundos do pecado original. Já antes da queda de nossos primeiros pais, o homem não conseguiria chegar totalmente a esse conhecimento da verdade a não ser com a ajuda divina. São Tomás é muito claro ao tratar da hipótese de o homem ter sido criado em estado de pura natureza, sem a graça

O homem em estado de integridade ordenava o amor de si mesmo ao amor de Deus como seu fim, e outro tanto com o amor que tinha às demais coisas. E assim amava a Deus mais que a si mesmo e por cima de tudo. Mas no estado de natureza decaída o homem fraqueja neste terreno, porque o apetite da vontade racional, devido à corrupção da natureza, se inclina ao bem privado, enquanto não seja curado pela graça divina. Devemos, pois, concluir que o homem, em estado de integridade, não necessitava de um dom gratuito acrescido aos bens de sua natureza para amar a Deus sobre todas as coisas, ainda que necessitasse do impulso da moção divina. Mas no estado de corrupção necessita o homem, inclusive para lograr este amor, do auxílio da graça que cure sua natureza[1].

Nessa hipótese que o homem tivesse sido criado sem a graça ― a qual lhe tivesse sido concedida depois ― “em estado de natureza íntegra” não precisava da graça para amar a Deus mais do que a si mesmo, pois esse amor, já o vimos, é conatural ao homem.

Ele precisava, porém, do impulso da moção divina”[2] para chegar a amar ao Criador mais do que a si mesmo. Esse amor a Deus sobre todas as coisas o homem o praticava sem o auxílio da graça. Bastava a ele certo auxílio de Deus.

Porém, no estado de natureza corrompida pelo pecado original, o homem, para ter esse amor a Deus mais do que a si mesmo, precisa do auxílio da graça, que: “cure sua natureza[3]. Sem a divina graça o homem (batizado ou não) muito dificilmente (quiçá seja impossível) encontrará em si forças para procurar a Verdade e amar inteiramente o Bem.


[1] Suma Teológica I-II q. 109, a. 3 co.

[2] Suma Teológica I-II q. 109, a.3 co.

[3] Ibidem.

O sigilo na confissão

Pe. Caio Newton de Assis Fonseca, EP

Sigilo vem do latim sigillum, selo, lacre. Como em tempos já bem idos, se fechavam as cartas ou documentos contendo coisas reservadas com um selo ou lacre, a palavra metaforicamente passou a designar segredo.

Na Teologia da Penitência, chama-se sigilo a obrigação absoluta, perpétua e inviolável que tem o confessor de guardar segredo sobre a matéria da confissão. Ou, mais laconicamente, sigillum est debitum confessionem celandi: obrigação de ocultar a confissão (AQUINO, Tomás de. Suplemento de la Suma, q. 11, a. 3, ad resp.).

Porém, não é só sobre o sacerdote que pende a obrigação do segredo da matéria da confissão. Ela pende também sobre o intérprete, se houver, e sobre todos aqueles a quem, por qualquer motivo, tenha chegado o conhecimento de pecados por meio de confissão. Mas, neste caso, tal obrigação se chama segredo de confissão.

Esta distinção entre sigilo para o confessor e segredo de confissão para todos os outros a estabeleceu o CIC de 1983, atualmente vigente (c. 983). Antes dele, o CIC de1917 não fazia semelhante distinção, como se vê:

889 § 1. O sigilo sacramental é inviolável; guarde-se, pois, muito bem o confessor de revelar no mais mínimo o pecador nem por palavra, nem por algum sinal, nem de qualquer outro modo e por nenhuma causa.

§ 2. Estão do mesmo modo obrigados a guardar o sigilo sacramental o intérprete e todos aqueles a quem de um modo ou de outro tivesse chegado a notícia da confissão.

O lugar do batismo conforme o Código de Direito Canônico

batizadoPe. Antônio Carlos Coluço, EP

Não há alterações no vigente CIC no que tange ao lugar habitual do batismo. Isto é, a igreja – paroquial ou não – com pia batismal. Porém, em caso de necessidade, sempre foi permitido o ato do batismo em qualquer lugar (c. 773 no CIC’17; c. 857, c. 687 § 1 no CIC’83). Contudo há variações de certos detalhes, seja no CIC’83, em relação ao CIC’17, como no CCEO, em paralelo com a normativa latina. Analisar-se-á, em primeiro lugar, as diferenças entre o CIC’83 e o CIC’17.

Um aspecto a destacar está relacionado com a mudança operada nos conceitos das diversas categorias de templos [hoje reduzidas no CIC a “igreja” (ecclesiae) – c. 1214; “oratório” (oratorii) – c. 1223; e “capela privada” (sacelli privati) – c. 1226], fato que leva à reconsideração dos lugares onde há pia batismal.

Conserva-se, porém, a normativa (c. 858 § 1): “toda igreja paroquial tenha sua pia baptismal”, (quaevis ecclesia paroecialis baptismalem fontem habeat) (cf. c. 774 § 1, no CIC’17).

Permanece sob a autoridade do Ordinário do lugar a capacidade de autorizar, ou mandar, que sejam colocadas pias batismais em outras igrejas (c. 858 § 2, no CIC’83; cf. c. 774 § 2, no CIC’17).

É mantida a normativa de que, “por causa da distância”, “propter locorum distantiam”, ou outra causa que provoque grave incômodo, o batismo possa ser administrado em qualquer igreja ou oratório. Porém, acrescenta a legislação atual: “ou mesmo em outro lugar conveniente” (aut etiam alio in loco decenti) (c. 859 § 2; cf. c. 775, no CIC’17).

A legislação atual relativa às casas particulares é diferente, tanto no rito latino como no oriental; e ainda diverso do antigo CIC. Com efeito, neste (CIC’17) proibia: “in domibus privatis… administrari non debet”, exceto para os filhos ou herdeiros do trono; ou para os casos em que o Ordinário do lugar “pro suo prudenti arbitrio et conscientia, iusta ac rationabili de causa, in casu aliquo extraordinario”. Assim, vemos que era concedida uma liberdade muito estreita ao Ordinário para autorizar tais sacramentos em casas particulares. E ainda o mesmo CIC’17, no c. 776 § 2, acrescentava que o rito deveria ser realizado “in sacello domus aut saltem in alio decenti loco” – no oratório da casa (supõe-se devidamente autorizado) ou em outro lugar digno.

A normativa atual apenas autoriza “salvo permissão do Ordinário local, por justa causa” (c. 860 § 1) “nisi loci Ordinarius gravi de causa id permiserit”. Assim, a liberdade do Ordinário é estendida.

Pelo contrário, o § 2 do mesmo c. 860 introduz uma interdição inexistente no CIC’17:

não se celebre o batismo em hospitais (In valetudinariis (…) baptismus ne celebretur): Exceto em caso de necessidade ou por outra razão pastoral que o imponha (nisi in casu necessitatis vel alia ratione pastorali cogente); [ou] salvo determinação contrária do Bispo diocesano” (nisi aliter Episcopus dioecesanus statuerit).

Portanto, se por um lado concedem-se certas licenças, por outro se impedem certos lugares para a realização do ato batismal.

Os professores do seminário conforme o Código de Direito Canônico

Pe. Carlos Adriano, EP

Entre os que devem compor o seminário, encontram-se os que se destinam a ministrar a formação doutrinal aos seminaristas, de acordo com a prescrição do cânon 239 § 1:

 Cân. 239 § 1. Em cada seminário haja o reitor que o presida, e, se for o caso o vice-reitor, o ecônomo e, se os alunos fazem os estudos no próprio seminário, também professores que ensinem as diversas disciplinas coordenando-as entre si.

Segundo o que nos explica Davide Cito (2002, p. 232 – tradução minha) a respeito dessa prescrição, “o cânon descreve os principais ofícios destinados a dirigir a vida do seminário. Os titulares destes ofícios se apresentam como os colaboradores mais diretos do bispo na tarefa de formar o clero de sua diocese”. É verdade que o cânon menciona os professores que desenvolvem seu ofício dentro dos próprios seminários. O que não quer dizer que os demais não atuem também como longa manus do bispo no que tange à formação doutrinal. Ao menos, é o que se pode concluir de um dos trechos da Pastores dabo vobis, 67:

“Todos quantos introduzem e acompanham os futuros sacerdotes na sacra doutrina, por meio do ensino da teologia, assumem uma particular responsabilidade educativa, que a experiência demonstra ser muitas vezes mais decisiva, no desenvolvimento da personalidade presbiteral, que a dos outros educadores”.

É tal a importância que se deve dar ao cargo de professores das disciplinas filosóficas, teológicas e jurídicas em um seminário, que cabe aos bispos interessados a nomeação deles. Ademais, todos eles devem ser doutores, ou ao menos licenciados em alguma universidade, ou faculdade, aprovada pela Santa Sé:

Cân. 253 § 1. Para o encargo de professor nas disciplinas filosóficas, teológicas e jurídicas, sejam nomeados pelo bispo ou pelos bispos interessados somente os que, eminentes em virtudes, tenham conseguido doutorado ou licença numa universidade ou faculdade reconhecida pela Santa Sé.

Nas explicitações que a esse respeito desenvolve Gianfranco Ghirlanda (2007), afirma-se a necessidade de consulta ao reitor e ao colégio de professores já existente, para a nomeação dos professores de um seminário, bem como a possibilidade de proposta de candidatos por parte desses. E ainda acrescenta:

“O código não diz nada se esses professores devem ser só clérigos, ou se podem ser também leigos, mas a RFIS 33 determina que para o ensino das disciplinas sagradas estes sejam normalmente sacerdotes. Portanto, excepcionalmente para ensinar essas matérias, podem ser nomeados leigos”.

As normativas atuais se distinguem inteiramente do que definia o cânon 1360 § 1 do Código de 1917, que preceituava a obrigatoriedade da condição sacerdotal para os professores. Entretanto, os professores leigos não deixam de estar submetidos à autoridade eclesiástica.

Para delimitar o alcance do cânon [253] é preciso observar com caráter preliminar que, ao ser o seminário uma estrutura pública própria da organização eclesiástica, ainda que o cânon contemple diretamente os professores de disciplinas filosóficas, teológicas ou jurídicas, coloca também os professores de outras matérias em uma situação de particular dependência da autoridade eclesiástica e, portanto, a eles se aplica analogamente a normativa prevista para os docentes das disciplinas sagradas.

É preciso dizer, em segundo lugar, que o fato de os alunos do seminário realizarem em outro lugar os estudos filosófico-teológicos não míngua a responsabilidade de vigilância que tem o bispo e os superiores sobre a qualidade do ensino ministrada aos seus próprios seminaristas, e ainda que não possuam o poder de remoção indicado no § 3, têm o dever de informar as autoridades acadêmicas sobre as eventuais irregularidades que se verifiquem nos professores (CITO, 2002, p. 271).

Outro requisito que aparece no cânon 253 para a nomeação dos professores de um seminário, é que estes sejam eminentes em virtudes:

“Em particular, a especificidade e o êxito formativo dos professores de teologia mede-se pelo fato de eles serem, antes de mais, homens de fé e cheios de amor pela Igreja, convencidos de que o sujeito adequado do conhecimento do mistério cristão continua a ser a Igreja enquanto tal, persuadindo-se, portanto, de que a sua tarefa de ensinar é um autêntico ministério eclesial, serem ricos de sentido pastoral para discernir não só os conteúdos mas também as formas adequadas para o exercício deste ministério. Particularmente se requer dos professores a fidelidade plena ao Magistério. De fato, ensinam em nome da Igreja e por isso são testemunhas da fé” (PDV 67).

Por isso, os professores devem estar compenetrados da grande responsabilidade a eles distinguida, de serem formadores, nada mais, nada menos, de futuros ministros sagrados.

 Essa consciência deve ser mostrada em seu sensus Eclesiae e no obséquio para com o magistério. É verdade que os professores devem ter a peito o progresso doutrinal, gozando da devida liberdade de pesquisa. Mas, levando em conta os diversos graus de certeza teológica, devem claramente ensinar aquilo que deve ser aceito como doutrina de fé, e distinguir disso o que é opinião de outros autores ou até pessoais (GHIRLANDA, 2007, p.138).

Podemos encontrar sólidas sustentações para essas explicitações de Ghirlanda na Instrução publicada pela Congregação para a doutrina da fé, Donun Veritatis:

 “A vontade de apresentar fielmente os ensinamentos do Magistério sobre as questões de per si irreformáveis deve ser a regra. No entanto, um teólogo pode, conforme a situação, levantar questões sobre a atualidade, a forma, ou até mesmo o conteúdo das intervenções magisteriais. Neste caso, o teólogo vai precisar, em primeiro lugar, avaliar com precisão a autoridade dos ensinamentos expressos, de acordo com a natureza dos documentos, a insistência com que a doutrina é repetida, e a maneira como foi expressa” (Donun Veritatis, 24 de maio de 1990, n. 24, in AAS 82, 1990, 1550-1570 − tradução minha).

Concluindo, podemos sintetizar os requisitos de caráter pessoal que devem constar nos professores dos seminários basicamente em três: reta doutrina, testemunho de vida cristã e capacidade pedagógica (CITO, 2002). Desta maneira, torna-se mais clara a prescrição do cânon 833, 6º, de que os professores de filosofia e teologia estejam obrigados a emitir a profissão de fé e juramento de fidelidade na presença do Ordinário do lugar ou um representante seu. Também se pode compreender melhor o § 3 do cânon 253, que, em consonância com o cânon 810, § 1, prescreve a remoção do ofício de professor pela autoridade competente, para aqueles que faltem gravemente ao seu dever: “Can, 253 § 3. Magister qui a munere suo graviter deficiat, ab auctoritate, de qua in § 1, amoveatur.[1]

A respeito do quadro de professores que deve compor a formação dos seminaristas, o § 2 do mesmo cânon parece reforçar as determinações do Código anterior, cânon 1366, pois também prescrevia distintos professores para cada uma das disciplinas fundamentais.

Cân. 253 § 2. Cuide-se que sejam nomeados professores distintos para o ensino da Sagrada Escritura, teologia dogmática, teologia moral, liturgia, filosofia, direito canônico, história eclesiástica e de outras disciplinas que devem ser dadas segundo método próprio.

Por fim, convém ressaltar o quanto todos os componentes da equipe de formação dos seminários, incluindo os professores, são solidariamente responsáveis para que se observem fielmente as normativas prescritas para tal finalidade.

O professor de teologia, como qualquer outro educador, deve permanecer em comunhão e colaborar cordialmente com todas as outras pessoas empenhadas na formação dos futuros sacerdotes e apresentar com rigor científico, generosidade, humildade e paixão, o seu contributo original e qualificado, que não é apenas a simples comunicação de uma doutrina — mesmo sendo a sacra doctrina —, mas é sobretudo a oferta da perspectiva que unifica no desígnio de Deus, os diversos conhecimentos humanos e as várias expressões de vida (PDV 61).

É o que se depreende do cânon 261 § 1:

“O reitor do seminário e também, sob sua autoridade os moderadores e professores, na parte que lhes compete, cuidem que os alunos observem fielmente as normas prescritas pelas Diretrizes básicas da formação sacerdotal e pelo regulamento do seminário”.


[1] Tradução: Cân. 253 § 3. O professor que faltar gravemente em seu ofício, seja destituído pela autoridade mencionada no § 1.

As associações privadas de fiéis

Mons. João S. Clá Dias, EP

O Código atual traz a auspiciosa novidade das associações privadas de fiéis. Os cânones 298 a 329 tratam das associações de fiéis, dividindo os textos legislativos em quatro capítulos. No primeiro, expõe as “normas comuns” (cân. 298-311); no segundo, prescreve normas sobre associações públicas de fiéis (cân. 312-320); o terceiro (cân. 321-326) trata das associações privadas de fiéis; por fim, no quarto (cân. 327-329), introduz algumas “normas especiais para as associações de leigos”.

As associações de fiéis — sejam elas integradas por clérigos e leigos, ou só por clérigos, ou só por leigos — são distintas dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica. Sua finalidade é, mediante o esforço em conjunto de seus membros, fomentar uma vida mais perfeita, promover o culto público, ensinar a doutrina cristã, além de outras obras de apostolado, isto é, iniciativas de evangelização, exercício de obras de piedade e caridade, e animação da ordem temporal com o espírito cristão (cf. cân. 298). As associações privadas não podem, obviamente, incluir entre suas finalidades o exercício de atividades que, por sua natureza, são exclusivas da autoridade eclesiástica (cf. cân. 301). Essa restrição, porém, não empana sua natureza eclesial.[1]

Como já foi referido, o cânone 215 garante a todos os fiéis o direito de fundar e dirigir associações. O cânone 299, § 1, reitera esse direito, especificando: “Por acordo privado, os fiéis têm o direito de constituir associações, para obtenção dos fins mencionados no cân. 298, § 1, salva a prescrição do cân. 301, § 1”. E acrescenta no § 2: “Essas associações, mesmo se louvadas ou recomendadas pela autoridade eclesiástica, denominam-se privadas”. E o cânone 321 garante aos fiéis o direito de dirigir e governar as associações privadas, nos termos de seus estatutos.

Em seu Dicionário de Direito Canônico, Salvador (1997, p. 65) designa as finalidades das associações como sendo “as mesmas da missão de Cristo e da Igreja”, da qual todo fiel participa em virtude do Batismo. Têm elas, portanto, fins religiosos.

Chiapetta (1994, p. 67) corrobora essa opinião, afirmando que do cân. 298, § 1 resulta claramente que as associações de fiéis “tendem a fins religiosos, correspondentes ou conexos com a missão da Igreja”. E acrescenta: “As associações cujos objetivos são profanos e temporais (econômicos, sindicais, políticos, profissionais, culturais etc.) não se enquadram nesse dispositivo e, como tais, são estranhas ao ordenamento canônico. Delas se ocupa a legislação civil”.

Em razão do ato fundacional algumas distinções e características se apresentam. Assim, dependendo de quem promova e efetive a fundação, a associação, esta será pública, se foi erigida por a autoridade eclesiástica competente, e privada, se por iniciativa dos fiéis.

Ainda com relação à iniciativa fundacional, cabe destacar que, segundo o cânone 301, § 1, somente a “autoridade eclesiástica competente” pode erigir associações que tenham por objetivo promover o culto público, ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou alguma outra finalidade cuja obtenção esteja reservada, por sua natureza, à autoridade eclesiástica.

Outro tipo de associação é o caracterizado pelo cânone 302, o qual denomina “clericais” aquelas que satisfazem três condições: “São dirigidas por clérigos, assumem o exercício de ordem sagrada e são reconhecidas como tais pela autoridade competente”. Segundo Ferrer Ortiz (1991, p. 210), essas associações são sempre públicas e o termo “clerical” refere-se não só aos clérigos que as dirigem e ao fato de o ato constitutivo emanar da autoridade eclesiástica, mas também “a uma modalidade de exercício do ministério sagrado por seus membros”.[2]

Ghirlanda (2007, p. 269) chega a uma definição sintética de associação privada nos seguintes termos:

Associação privada é a que, surgida por iniciativa dos fiéis, leigos, clérigos ou religiosos, governada por eles segundo os estatutos próprios, estando sempre em relação com a autoridade eclesiástica que pode também erigi-la em pessoa jurídica privada, se propõe finalidades religiosas ou caritativas, exceto aquelas cuja obtenção é reservada somente à autoridade eclesiástica. A natureza privada da associação não diminui de nenhum modo sua eclesialidade.

O cânone 304 prescreve que todas as associações de fiéis — públicas ou privadas — precisam ter seus estatutos nos quais se determinem sua finalidade, sede, governo, regras para admissão de sócios etc. Os estatutos das associações privadas devem ter pelo menos o reconhecimento, recognitio, da autoridade eclesiástica.

Sem embargo, autores como Chiapetta entendem como legítima a existência de entidades privadas com fins religiosos, sem o reconhecimento dos estatutos. Navarro (2002, p. 431-432) opina no mesmo sentido, mencionando diversos doutrinadores, e afirma ser essa a posição adotada por “algumas Conferências Episcopais”. Entre estas, a Conferência Episcopal Italiana e a Francesa, as quais tratam do assunto em documentos por ele colecionados.

Não só isso: segundo ele, as referidas Conferências Episcopais tomam em consideração até associações que não têm estatutos, ou nem cheguem a ter propriamente estrutura e organização, mas cuja existência seria legítima, em decorrência dos direitos de associação e de reunião.

Consignemos também que as associações privadas podem possuir ou não personalidade jurídica na Igreja. Esta se adquire por um decreto formal da autoridade eclesiástica competente, à qual compete aprovar previamente os estatutos. Em síntese, pode-se dizer que existem três espécies de associações privadas distintas na atual legislação canônica:

– Associações de fato, baseadas exclusivamente na livre vontade dos seus componentes e sem qualquer reconhecimento, aprovação ou ereção por parte da autoridade eclesiástica.

– Associações com estatutos apenas reconhecidos, isto é, sem um decreto formal de aprovação.

– Associações com personalidade jurídica e estatutos aprovados, por meio de decreto formal da autoridade competente.

No que se refere aos efeitos do reconhecimento, só podem ser sujeitos de obrigações e de direitos as associações dotadas de personalidade jurídica (cf. cân. 310).

In: Lumen Veritatis, n. 6.



[1] Fuentes (2002, p. 514) trata de uma delicada distinção entre as associações civis, que tendam a fins “que afetam mais ou menos diretamente à Igreja”, e as associações eclesiais. Para não alongar demasiadamente o presente estudo e desviar o foco que são propriamente as associações privadas de fiéis, deixamos de tratar do interessante assunto aqui e recomendamos a quem nele deseje se aprofundar que consulte o próprio texto de Fuentes.

[2] Diz o autor: “[O Código de Direito Canônico] denomina clericais àquelas associações de fiéis que estão sob a direção de clérigos, fazem seu o exercício da ordem sagrada e são reconhecidas como tais pela autoridade competente (cân. 302). Emprega o termo clerical em sentido técnico-jurídico, fazendo referência não só a quem dirige a associação e ao ato constitutivo da mesma pela autoridade eclesiástica — que lhe confere o caráter de pública — senão também a uma modalidade no exercício do ministério sagrado por parte de seus membros. Por esta razão, uma associação formada exclusivamente por clérigos e destinada a fomentar entre seus sócios uma forma concreta de espiritualidade sacerdotal, no exercício do ministério e sob a dependência do próprio Ordinário, não terá a condição de clerical, será uma associação comum de fiéis e poderá ser tanto pública como privada (Gutiérrez)” (FERRER ORTIZ, 1991, p. 210).