Amor e holocausto

Mons. João S. Clá Dias, EP

Para São Tomás, a essência do oferecimento de Jesus, como vítima na Cruz, encontra seu verdadeiro valor espiritual não só na paciência com que suportou a Paixão, ou no auge da dor moral e física a que foi submetido. Ele chama a atenção para a obediência suprema da Divina Vítima, disposta a sofrer o auge de humilhação e dor, até à morte. Com efeito, abdicando de Sua vontade humana — “não seja feito como Eu quero, mas como Tu queres”(Mt 26, 39) — contradiz a soberba do homem pecador (cf. Rm 5, 19), conferindo assim méritos infinitos a Seus sofrimentos e morte.[1]

É notória, como ressalta o próprio Doutor Angélico, a ligação íntima entre a obediência de Cristo e Sua ardente caridade. Sua obediência exímia “procedia da dileção que possuía pelo Pai e por nós”.[2] Ao mesmo tempo, por atingir o extremo de submissão e humilhação, mostrou-nos “a largura, o comprimento, a altura e a profundidade” de Seu amor “que ultrapassa todo o conhecimento” (Ef 3, 18-19).

Ao provar no artigo 2 da questão 22 que Cristo foi sacerdote e vítima ao mesmo tempo, São Tomás dá como principal argumento as palavras do Apóstolo: “Cristo nos amou e Se entregou a Deus por nós em oblação, como vítima agradável” (Ef 5, 2). Parece depreender-se daí que o amor de Jesus por nós foi a causa de Sua total entrega em holocausto.[3]


[1] Cf. Super Philip. cap. 2, lec. 2.
[2]Super Rom. cap. 1, lec. 5.
[3] Cf. Super Eph. cap. 3, lec. 5.

A Solenidade de Pentecostes

espirito

Mons. João S. Clá Dias, EP

Chegada a tarde daquele mesmo dia, que era o primeiro da semana, e estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam juntos, por medo dos judeus, foi Jesus, colocou-Se no meio deles e disse-lhes: “A paz esteja convosco!”

A prova pela qual haviam passado os Apóstolos excedia as forças da frágil natureza humana e, apesar do testemunho entusiasmado de Maria Madalena, não lhes era fácil crer na Ressurreição; talvez seu abatimento fosse o resultado de não se julgarem dignos de receber uma aparição do Senhor, segundo pondera São João Crisóstomo, devido ao horroroso abandono no qual deixaram o Mestre em sua agonia.

Na sua bondade infinita, Jesus não deixou transcorrer muito tempo para se manifestar também a eles. Escolheu uma excelente oportunidade para tal: no entardecer e estando as portas fechadas, para tornar ainda mais patente a grandeza do milagre de sua Ressurreição.

A chegada da noite é o momento em que a apreensão cresce no interior de todos os temerosos. Por outro lado, penetrar num recinto com portas e janelas fechadas, só mesmo em corpo glorioso poderia alguém realizar tamanho prodígio.

Qual seria o lugar onde estavam reunidos, não se sabe com exatidão. A hipótese mais provável recai sobre o Cenáculo.

Outro particular interessante é a posição escolhida por Cristo para lhes dirigir a palavra. Ele poderia ter preferido saudá-los logo à entrada, entretanto caminhou entre eles e foi colocar-Se bem ao centro. Esse deve ser sempre o posto de Jesus em todas as nossas atividades, preocupações e necessidades. O deixá-Lo de lado, além de ser falta de respeito e consideração, é condenar ao fracasso qualquer iniciativa, por melhor que seja.

Sua saudação também nos chama especialmente a atenção: “A paz esteja convosco”.

À primeira vista seríamos levados a julgar compreensível que Ele desejasse acalmá-los das perturbações que os acometiam desde a prisão no Horto das Oliveiras. E de fato, esse bem poderia ser um de seus intentos, mas o significado mais profundo não reside nessa interpretação. Para melhor o entendermos, perguntemo-nos o que é paz.

“Paz é a tranqüilidade da ordem”, diz Santo Agostinho (4), ou seja, uma ordem permanentemente tranqüila. E São Tomás demonstra ser a paz efeito próprio e específico da caridade, pois todo aquele que está em união com Deus vive na perfeita ordem, ao harmonizar todas as suas potências, sentidos e faculdades à sua causa eficiente e final (5). Essa união faz brotar na alma que a possui um profundo repouso interior e nem sequer os inimigos externos a perturbam, porque nada lhe interessa a não ser Deus: “Se Deus está conosco, quem será contra nós?” (Rom. 8, 31).

Ora, sabemos pela Teologia que o Espírito Santo é a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade e procede do Pai e do Filho por via do Amor. N’Ele está a raiz, ou semente, da qual nasce o fruto da caridade. Ao amarmos a Deus e ao próximo, a alegria e o consolo penetram em nosso interior. Desse amor e gozo, procede a paz (6).

Jesus, desejando-lhes a paz, oferecia-lhes um dos principais frutos desse Amor infinito que é o Espírito Santo.

20 Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos alegraram-se muito ao ver o Senhor.

Por esta atitude do Senhor podemos bem avaliar o quanto o pavor havia penetrado na alma de todos, apesar de ouvirem a voz do Divino Mestre desejando-lhes a paz.

Por isso tornou-se indispensável mostrar-lhes aquelas mãos que tanto haviam curado cegos, surdos, leprosos e inúmeras outras enfermidades, mãos que talvez eles mesmos tivessem, a seu tempo, osculado. Sim aquelas mãos que, havia pouco, tinham sido transpassadas por terríveis cravos. Era preciso comprovarem tratar-se do Redentor, vendo seu lado perfurado pela lança de Longinus.

Naquele momento sentiram a alegria pervadir suas almas, pois constataram não estar diante deles um fantasma, mas sim o próprio Jesus em Corpo, Sangue, Alma e Divindade. Cumpria-se assim sua promessa: “Hei de ver-vos de novo, e o vosso coração se alegrará, e ninguém vos tirará a vossa alegria” (Jo 16, 22).

Transparece nessa atitude seu profundo intuito apologético, ao fazê-los ver suas santas chagas, ao contrário de como procedera com Santa Maria Madalena, ou até mesmo com os discípulos de Emaús.

Outra nota de bondade consiste no fato de Ele ter velado o esplendor de seu Corpo glorioso, caso contrário a natureza humana dos Apóstolos não teria suportado o fulgor da majestade do Homem-Deus ressurrecto.

21 Ele disse-lhes novamente: “A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também vos envio a vós”.

Novamente Jesus lhes deseja a paz, e deixa assim entrever quão importante é a tranqüilidade da ordem. Como objetivo imediato, visava Jesus proporcionar-lhes a indispensável serenidade de espírito face às desavenças e mortais perseguições que lhes moveriam os judeus. Por outro lado, Jesus se dirige aos séculos futuros e, portanto, à própria era na qual vivemos. Também a nós Ele nos repete o mesmo desejo de paz formulado aos Apóstolos naquele momento. Sim, especialmente à nossa civilização que tem suas raízes em Cristo — Rei, Profeta e Sacerdote — cuja entrada neste mundo fez-se sob o belo cântico dos Anjos: “Paz na terra” (Lc 2, 14). Não foi outro o dom por Ele oferecido antes de morrer na Cruz, ao despedir-se: “Dou-vos a paz, deixo-vos minha paz” (Jo 14, 27). Entretanto, a humanidade hoje se suicida em guerras, terrorismos e revoluções. E qual a causa? Não queremos aceitar a paz de Cristo.

Tal qual a caridade, a paz começa na própria casa. Antes de tudo, é preciso construí-la dentro de nós mesmos, dando à razão iluminada pela Fé o governo de nossas paixões. Sem essa disciplina, entramos na desordem. Ora, vai se tornando cada vez mais raro encontrar-se um ser humano no qual esse equilíbrio é procurado com base no esforço e na graça. O espontaneísmo domina despoticamente em todos os rincões. Vivemos os axiomas da Sorbonne de 1968: “É proibido proibir” — “A imaginação tomou conta do poder” — “Nada reivindicar, nada pedir, mas tomar, invadir”. Eles pareciam ser para a humanidade uma pedra filosofal de felicidade, sucesso e prazer… Que desilusão!

A paz deve ser a condição normal e corrente para o bom relacionamento social, sobretudo na célula mater da sociedade, a família. Eis um dos grandes males de nossos dias: a autoridade paterna se auto-destruiu, a sujeição amorosa da mãe se evanesceu e a obediência dos filhos foi carcomida pelo capricho, desrespeito e revolta. Essas enfermidades morais, transpostas para a vida da sociedade, redundam em luta civil, de classes e até mesmo entre os povos.

A humanidade sofre essas e muitas outras conseqüências do pecado de ter repudiado a paz de Cristo e abraçado a paz do mundo, ou seja, o consumismo, o igualitarismo, o laicismo, a adoração da máquina, etc.

Sentencia a Escritura: “Não há paz — diz Javé — não há paz para os ímpios” (Is 57, 20). “Curavam as chagas da filha do meu povo com ignomínia, dizendo: Paz, paz; quando não havia paz” (Jer 6,14). Os milênios transcorreram e nos encontramos novamente na mesma perspectiva de outrora, com uma agravante: corruptio optimi pessima (a corrupção do ótimo resulta no péssimo). Sim, a rejeição da paz verdadeira trazida pelo Verbo Encarnado é muito pior do que a impiedade antiga, e de conseqüências ainda mais drásticas.

A ordem fundamental do edifício da paz deriva essencialmente do Evangelho e do Decálogo, ou seja, do amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por amor a Ele (7). Daí floresce a paz interior do homem e a harmonia com todos os outros, amados por ele com real caridade. Esse é o melhor remédio para todos os males atuais, desde a “epidemia” das depressões — enfermidade paradigmática de nosso século — até o terrorismo. É indispensável reconhecermos em Deus nosso Legislador e Senhor, pois, se ao longo da vida não existir a moral individual nem a familiar, haverá menos ainda o verdadeiro equilíbrio social e internacional. O caos de nossos dias no-lo demonstra em demasia.

Sendo a paz fruto do Espírito Santo, fora do estado de graça, e da prática da caridade, não nos é dado encontrá-la. Por isso quem se torna empedernido no pecado não pode gozar da paz: “Mas os malvados são um mar proceloso que não pode aquietar-se e cujas ondas revolvem lodo e lama. Não há paz — diz Javé — para os ímpios” (Is 57, 20).

O mesmo Isaías nos proclama a prodigalidade e a grandeza da bondade de Deus para com os justos: “Porque assim diz Javé: Vou derramar sobre ela (Jerusalém) a paz como um rio, e a glória das nações como torrentes transbordantes” (Is 66, 12).

Essa é a razão mais específica do fato de Jesus ter desejado uma segunda vez a paz a seus discípulos. É Ele o autor da graça e, portanto, o autor da paz: “Cristo é a nossa paz” (Ef 2, 14). “A graça e a verdade foram trazidas por Jesus Cristo” (Jo 1, 17).

Após esse segundo voto de paz, Jesus envia seus discípulos à ação, tornando claro o quanto é necessário jamais se deixar tomar pelo afã dos afazeres, perdendo a serenidade. Um dos elementos essenciais para o apostolado bem sucedido é a paz de alma de quem o faz.

Outro importante aspecto a considerar neste versículo é a afirmação do princípio da mediação tão do agrado de Deus. Jesus se apresenta aqui como o Mediador Supremo junto ao Pai e, ao mesmo tempo, constitui os Apóstolos como mediadores entre o povo e Ele. Aqui podemos medir quanto são enganosas as máximas igualitárias ao procurarem destruir o senso de hierarquia.

22 Tendo dito estas palavras, soprou sobre eles e disse-lhes: “Recebei o Espírito Santo”.

Na festa de hoje se comemora a descida do Espírito Santo sobre Maria e os Apóstolos a qual se encontra tão bem narrada na primeira leitura (At 2, 1-11). Esse acontecimento deu-se depois da subida de Jesus ao Céu e talvez daí decorre o fato de alguns negarem a realidade do grande mistério operado por Ele na ocasião, narrada no versículo em análise. Esse erro, mais explícito no começo do séc. VI, foi solenemente condenado pela Igreja no V Concílio Ecumênico de Constantinopla, em 552: “Se alguém defende o ímpio Teodoro de Mopsuestia, que disse (…) que depois da Ressurreição, quando o Senhor insuflou sobre os discípulos e lhes disse ‘Recebei o Espírito Santo’ (Jo 20, 22), não lhes deu o Espírito Santo, senão que tão-só o deu figurativamente (…), seja anátema” (8).

O Espírito Santo não procede somente do Pai, mas também do Filho. Ele é o Amor entre ambos. E como definir o amor? É muito mais fácil senti-lo do que defini-lo. Dois amigos que muito se querem, ao se encontrarem depois de longo período de separação, se abraçam fortemente e cheios de alegria. O que significa esse gesto tão espontâneo e efusivo, senão a manifestação de um amor recíproco? Os dois quase desejam, nessa hora, uma fusão de seus seres. O interior das mães se desfaz, suas entranhas parecem estar sendo arrancadas ao verem seus filhos partirem. Os que se amam querem estar juntos e se olhar. E quanto mais robusto é o amor, maior será a inclinação de se unirem.

Ora, quando os dois seres que se amam são infinitos e eternos, jamais esse impulso de união poderá manter-se dentro dos estreitos limites de uma mera tendência emocional, como muitas vezes se passa entre nós homens. Entre o Pai e o Filho, esse Amor é tão vigoroso que faz proceder uma Terceira Pessoa, o Espírito Santo.

Nossos amores, em não raras circunstâncias, são volúveis. Deus, muito pelo contrário, porque se contempla a Si próprio, Bom, Verdadeiro e Belo, eterna e irresistivelmente, Se ama desde todo o sempre e para sempre, e, tal qual assevera Santo Agostinho, desse amor faz proceder uma Terceira Pessoa infinita, santa e eterna, o Divino Espírito Santo. O amor é eminentemente difusivo e por isso tende a comunicar-se, a entregar-se.

Curiosa é a diferença de forma empregada por uma e outra Pessoa para se comunicar com os homens.

O Filho veio a este mundo assumindo nossa natureza em humildade e apagamento. Pelo contrário, o Espírito Santo, sem assumir outra natureza, marca sua presença com símbolos de estrépito e majestade. A face da terra será renovada por Ele, daí a manifestação do esplendor, força e rapidez dos fenômenos físicos que acompanharam sua infusão de graças nos que se encontravam reunidos no Cenáculo (conforme a 1ª leitura de hoje, At 2, 1-11), porque eles deveriam ser Apóstolos e testemunhas. Era preciso que fossem iluminados e protegidos, e soubessem ensinar.

No Evangelho de João, essa doação do Espírito Santo tem em vista a faculdade de perdoar os pecados:

23 “Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados, àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos.”

Que grande dom concedido aos mortais por meio dos sacerdotes: o perdão dos pecados! Por outro lado, que imensa responsabilidade a de um Ministro de Deus! Dele diz São João Crisóstomo: “Se o sacerdote tiver conduzido bem sua própria vida, mas não tiver cuidado com diligência da dos outros, condenar-se-á com os réprobos” (9).

4 ) De civitate Dei XIX 13: PL 41, 640 – 5 ) Cf. Suma Teológica II-II, q 29. – 6 ) cf. Santo Tomas de Aquino, Suma Teológica, I-II, q 70, a 3c. – 7 ) Cf. São Tomás de Aquino, Suma Teológica II-II, q 29, a 3. – 8 ) Cânon 12 in Denzinger, Ench. Symbol. nº 224 – 9 ) São Tomás de Aquino, Catena Áurea, in Jo., c 20, l 3.

In: Arautos do Evangelho, nº 41

Papel da espera, até a vinda do Espírito Santo

Ascenção

Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

Antes de subir aos Céus, o Redentor não dá nenhuma recomendação política e muito menos insinua algo na linha de uma reconquista do poder de Israel. Pelo contrário, suas palavras visam uma atuação estritamente moral, religiosa e penitencial em nome de Deus.

Essa conversão, a qual na sua essência é a mudança de mentalidade (metanóia), já havia sido intensamente estimulada pelo Precursor. João Batista se apresentara como a voz que clama no deserto, a fim de que todos endireitassem os caminhos para a chegada do Senhor. Esse é também o legado do Redentor aos seus, antes da Ascensão. A substituição dos critérios equivocados pelos verdadeiros é indispensável para a real conversão. Saulo, em um só instante a realizou, logo ao cair do cavalo, e assim mesmo passou por um retiro de três anos no deserto para torná-la irreversível, como também profunda e eficaz. Comumente, ela se faz de maneira lenta, após os fulgores de um primeiro como que “flash”, mediante o qual, pela graça do Espírito Santo, a alma se dá conta das belezas das vias sobrenaturais e por elas resolve trilhar com decidida firmeza. Sem essa conversão, é-nos praticamente inútil o Mistério da Redenção e de nada nos adianta o Evangelho. De forma explícita ou implícita – dada nossa natureza racional – a atuação de nossa inteligência e vontade se faz com base em princípios e máximas que norteiam as potências de nossa alma. É sobre essa fonte que se concentra o esforço da conversão. Em síntese, trata-se de substituir o amor próprio, o qual se manifesta no apego às criaturas, pelo amor a Deus.

É de dentro da visualização perfeita a respeito da retidão da prática da Lei de Deus e de sua santidade que brota o eficaz pedido de perdão dos pecados. É nesse contraste que o penitente tem plena consciência da grande misericórdia anunciada por Jesus, antes de sua partida para os Céus. Nem os anjos revoltosos e nem os homens que morreram em pecado receberam essa dádiva incomensurável. E, nesse momento, ela nos foi oferecida pelo próprio Filho de Deus.

Iniciando-se em Jerusalém, do Sagrado Costado de Cristo nasce a Igreja a pregar ali, e depois pelo mundo afora, a Boa Nova do Evangelho. Assim havia profetizado o Antigo Testamento, assim ordenou naquela ocasião o próprio Jesus Cristo.

“Eu vou mandar sobre vós o Prometido por meu Pai. Entretanto, permanecei na cidade até que sejais revestidos da força do Alto” (Lc 24, 49). Trata-se da Terceira Pessoa da Trindade, que Jesus enviaria, segundo a promessa feita pelo Pai, ou seja, “a força do Alto”. É o Espírito Santo, que procede do amor entre o Pai e o Filho, que descerá sobre eles, a fim de serem n’Ele submersos, penetrados e revestidos por Ele, para, assim transformados, realizarem sua missão de testemunhas. Os Apóstolos “serão preparados com a grande força renovadora e fortalecedora de Pentecostes. Receberão o Espírito Santo, de cujo envio tanto falou o Evangelista João nos discursos da Última Ceia” (1).

A ordem de não saírem de Jerusalém sob qualquer pretexto tinha por objetivo a espera de Pentecostes para começarem a pregar. Entenderam eles que, esse período, deveriam passá- lo em recolhimento, pois é nessas circunstâncias que mais profundamente Ele age.

São João Crisóstomo comenta a esse propósito: “Para não se poder dizer que tinha abandonado os seus para ir manifestar-Se – mais ainda, ostentar- Se – aos estranhos, ordenou-lhes Jesus apresentar as provas de sua Ressurreição primeiramente àqueles mesmos que O tinham matado, na cidade onde foi cometido o temerário atentado, pois, se os que haviam crucificado o Senhor davam mostras de crer, ter-se-ia uma grande prova da Ressurreição” (2).

Por outro lado, continua São João Crisóstomo: “Assim como, num exército que se alinha para atacar o inimigo, o general não permite a ninguém sair antes de estarem todos preparados, da mesma forma Jesus não permite a seus Apóstolos saírem a pelejar enquanto não estejam preparados pela vinda do Espírito Santo” (3).

E por qual razão o Espírito Santo não desceu sobre os Apóstolos, de imediato? “Convinha que nossa natureza se apresentasse no Céu e fossem realizadas as alianças, e depois então viesse o Espírito Santo e se celebrassem os eternos júbilos”, opina Teofilacto (4).

In: (Revista Arautos do Evangelho, Maio/2007, n. 65).

A alma assistida pelo dom de sabedoria

Mons. João S. Clá Dias, EP

A alma assistida pelo dom de sabedoria conhece e julga através de critérios divinos, porque age por um especial instinto do Espírito Santo. Por isso, não será difícil para um justo, penetrado por um alto grau do dom de sabedoria, solucionar questões do mundo do pensamento, da esfera da ação concreta, ou da contemplação divina.1

O raciocínio lhe será necessário para construir uma exposição didática com vistas a instruir a terceiros, mas, para si, esse instinto do divino lhe bastará em profusa generosidade. 2 Sua atenção, além disso, não se deterá nas causas segundas; seu espírito voará diretamente à causa primeira, ou seja, o próprio Deus. A ordem da criação se lhe apresentará com uma luz especial. E, enquanto para outros essa ordem poderá estar na sombra, ou, quiçá, constituirá um mistério, para quem é movido pelo instinto do divino, o Espírito Santo faz incidir sobre sua alma uma luz pela qual tudo se lhe torna claro e assimilável.

Assim, o universo será para ele objeto de contemplação e análise. E até a História e os acontecimentos humanos poderão ser contemplados e julgados a partir do mirante da eternidade. 3 Desse mais alto patamar, todo o resto lhe ficará claro e compreensível.

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1) Philipon pondera, acertadamente, que alguma intuição está presente em todos os procedimentos da inteligência humana, da qual Deus pode fazer uso conforme seu beneplácito, tal qual um artista faz uso de seus dotes e instrumentos. Diz ele: “Au lieu de raisonner lentement, péniblement, à partir des réalités sensibles, à travers le long dédale des jugements successifs et discursifs, l’esprit de l’homme, sous l’action directe et illuminatrice de l’Esprit-Saint, pénètre d’un seul coup au fond des choses. Il juge de la connexion des causes secondes à la manière d’un Dieu vivant sur la terre. Il apprécie tout à la manière de Dieu, contemplant l’univers, dans la lumière de Celui qui en est la Cause suprême, selon un mode supra-discursif, supra-humain, quasi intuitif, déiforme, participation éminente de la Sagesse incréée, parvenant ainsi à la plus haute vie intellectuelle ici-bas” (PHILIPON, Marie-Michel. Les dons du Saint-Esprit, p. 227).

2) Os raciocínios habituais para compreender as coisas não são necessários à alma possuidora do dom de sabedoria, pois, segundo afirma Díaz-Caneja, é “característica propia de este don el procedimento por el que llega el alma a este profundo saber de una manera rápida, sin comprobaciones, sin datos. El hombre bajo este don siente que las cosas son así y no de otra manera, y aunque no lo pueda comprobar ni demostrar, está seguro de ello más aún que si lo viera, no con su entendimiento, sino con sus ojos. Siente a Dios en sí y con más seguridad que el sabio que, a fuerza de raciocinios llegara a convencerse de esa misma verdad. La fe de muchas almas descansa en este don” (DÍAZ-CANEJA, Moisés, p. 415).

3) Royo Marín, a esse respeito, é categórico ao afirmar: “Su juicio [del don de sabiduría] se extiende también a las cosas creadas, descubriendo en ellas sus últimas causas y razones, que las entroncan y relacionan con Dios en el conjunto maravilloso de la creación. Es como una visión desde la eternidad que abarca todo lo creado con una mirada escrutadora, relacionándolo con Dios, en su más alta y profunda significación, por sus razones divinas” (ROYO MARÍN, Antonio. Teología de la perfección cristiana, p. 529).

A Ressurreição do Senhor

Mons. João S. Clá Dias, EPjesus2

Quia surrexit sicut dicit… Tal como havia anunciado aos seus (Mt 16, 21; 17,9; 17, 22; 20, 19; Jo 2, 19, 20 e 21; Mt 12, 40), Jesus ressuscitou. Esse supremo fato já havia sido previsto por David (Sl 15, 10) e por Isaías (Is 11, 10).

São Paulo ressaltará o valor desse grandioso acontecimento: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1 Cor 15, 14). Daí a importância capital da Páscoa da Ressurrei­ção, a magna festa da Cristandade, a mais antiga, e centro de todas as outras, solene, majestosa e pervadida de júbilo: “Haec est dies quam fecit Dominus. Exultemus et laetemur in ea” — esse é o dia que o Senhor fez, seja para nós dia de alegria e felicidade (Sl 117, 24).

Na liturgia, essa alegria é prolongada pela repetição da palavra “aleluia”, pelo branco dos paramentos e pelos cânticos de exultação. Com razão dizia Tertuliano: “Somai todas as solenidades dos gentios e não chegareis aos nossos cinqüenta dias de Páscoa” (De idolatria, c 14).

Na Ressurreição do Senhor, além de contemplarmos o triunfo de Jesus Cristo, celebramos também a nossa futura vitória, sendo aplicáveis a nós as belas palavras de São Paulo: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está o teu aguilhão?” (1 Cor 15, 55).

As sete palavras de Jesus

cruz-livroMons. João S. Clá Dias, EP

Afirma São Tomás que “o último na ação é o primeiro na intenção”. Pelos derradeiros atos e disposições de alma de quem transpõe os umbrais da eternidade, chegamos a compreender bem qual foi o rumo que norteou sua existência. No caso de Jesus, não só na morte de cruz, mas também, de forma especial, em suas últimas palavras, vemos o sentido mais profundo de sua Encarnação. Nelas encontramos uma rutilante síntese de sua vida: constante e elevada oração ao Pai, apostolado através da pregação, conduta exemplar, milagres e perdão. A cruz foi o divino pedestal eleito por Jesus para proclamar suas últimas súplicas e decretos. No alto do Calvário se esclareceram todos os seus gestos, atitudes e pregações. Maria também compreendeu ali, com profundidade, sua missão de mãe. Jesus é a Caridade. A perfeição dessa virtude, nós a encontramos nas “Sete Palavras”. As três primeiras têm em vista os outros (inimigos, amigos e familiares); as demais, a Si próprio.

1ª Palavra: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34) Pai — É o mais suave título de Deus. Nessa hora extrema, Jesus bem poderia invocá-Lo chamando-O Deus. Percebe-se, entretanto, claramente a intenção do Redentor: quis afastar, dos fautores daquele crime, a divina severidade do Juiz Supremo, interpondo a misericórdia de sua paternalidade. Chega-se a entrever a força de seu argumento: se o Filho, vítima do crime, perdoa, por que não o fazeis também Vós? É a primeira “palavra” que os divinos lábios d’Ele pronunciam na cruz, e nela já encontramos o perdão. Perdão pelos que Lhe infligiram diretamente seu martírio. Perdão que abarca também todos os outros culpados: os pecadores. Nesse momento, portanto, Jesus pediu ao Pai também por mim. Embora não houvesse fundamento para escusar o desvario e ingratidão do povo, a sanha dos algozes, a inveja e ódio dos príncipes e dos sacerdotes, etc., tão infinita foi a Caridade de Jesus que Ele argumenta com o Pai: “porque não sabem o que fazem”. A ausência absoluta de ressentimento faz descer do alto da cruz a luminosidade harmoniosa e até afetuosa do amor ao próximo como a si mesmo. Ouvindo essa súplica, chegamos a entender quanta isenção de ânimo havia em Jesus, na ocasião em que expulsou os vendilhões do Templo: era, de fato, o puro zelo pela casa de seu Pai.

2ª Palavra: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43) A cena não podia ser mais pungente. Jesus se encontra entre dois ladrões. Um deles faz jus à afirmação da Escritura: “Um abismo atrai outro abismo” (Sl 41, 8). Blasfema contra Jesus, dizendo: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo, e salva-nos a nós” (Lc 23, 39). Enquanto esse ladrão ofende, o outro louva Jesus e admoesta seu companheiro, dizendo: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício? Para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez mal algum” (Lc 23, 40-41). São palavras inspiradas, nas quais transparecem a santa correção fraterna, o reconhecimento da inocência de Cristo, a confissão arrependida dos crimes come-tidos. São virtudes que lhe preparam a alma para uma ousada súplica: “Senhor, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino!” (Lc 23, 42). Ao referir-se a Jesus enquanto “Senhor”, o bom ladrão professa sua condição de escravo e reconhece-O como Redentor. O “lembra-te de mim” é afirmativo, não tem nenhum sentido condicional, pois sua confiança é plena e inabalável. Compreende a superioridade da vida eterna sobre a terrena, por isso não pede aquilo que, para o mau ladrão, constitui um delírio: o afastamento da morte, a recuperação da saúde e da integridade. O bom ladrão confessa publicamente a Nosso Senhor Jesus Cristo, ao contrário até mesmo de São Pedro, que havia três vezes negado o Senhor. Tal gesto lhe fez merecer de Jesus este prêmio: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43). Jesus torna solene a primeira canonização da história: “Em verdade…” A promessa é categórica até quanto à data: hoje. São Cipriano e Santo Agostinho chegam a afirmar ter recebido o bom ladrão a palma do martírio, pelo fato de, por livre e espontânea vontade, haver confessado publicamente a Nosso Senhor Jesus Cristo.

3ª Palavra:“Junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cleófas, e Maria Madalena. Quando Jesus viu sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: ‘Mulher, eis aí teu filho’. Depois disse ao discípulo: ‘Eis aí tua mãe’.E dessa hora em diante o discípulo a levou para a sua casa” (Jo 19, 25-27). Com essas palavras, Jesus finaliza sua comunicação oficial com os homens antes da morte (as quatro outras serão de sua intimidade com Deus). Quem as ouve são Maria Madalena, representan-do a via da penitência; Maria, mulher de Cleófas, a dos que vão progredindo na vida espiritual; Maria Santíssima e São João, a da perfeição. Consideremos um breve comentário de Santo Ambrósio sobre este trecho: “São João escreveu o que os outros calaram: [pouco depois de] conceder o reino dos céus ao bom ladrão, Jesus, cravado na cruz, considerado vencedor da morte, chamou sua Mãe e tributou a Ela a reverência de seu amor filial. E, se perdoar o ladrão é um ato de piedade, muito mais é homenagear a Mãe com tanto carinho… Cristo, do alto da cruz, fazia seu testamento, distribuindo entre sua Mãe e seu discípulo os deveres de seu carinho” (in S. Tomás de Aquino, Catena Áurea). É arrebatador constatar como Jesus, numa atitude de grandioso afeto e nobreza, encerrou oficialmente seu relacionamento com a humanidade, na qual se encarnara para redimi-la. Do auge da dor, expressou o carinho de um Deus por sua Mãe Santíssima, e concedeu o prêmio para o discípulo que abandonara seus próprios pais para segui-Lo: o cêntuplo nesta terra (Mt 19, 29). É perfeita e exemplar a presteza com que São João assume a herança deixada pelo Divino Mestre: “E dessa hora em diante, o discípulo a levou para a sua casa” (Mt 19, 27). São João desce do Calvário protegendo, mas sobretudo protegido pela Rainha do céu e da terra. É o prêmio de quem procura adorar Jesus no extremo de seu martírio.

4ª Palavra: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27, 45) Jesus clama em alta voz. Seu brado fende não somente os ares daquele instante, mas os céus da história. Nossos ouvidos são duros, era indispensável falar com força. Jesus não profere uma queixa, nem faz uma acusação. Deseja, por amor a nós, fazer-nos entender a terrível atrocidade de seus tormentos. Assim mais facilmente adquiriremos clara noção de quanto pesam nossos pecados e de quanto devemos ser agradecidos pela Redenção. Como entender esse abandono? Não rompeu-se — e é impossível — a união natural e eterna entre as pessoas do Pai e do Filho. Nem sequer separaram-se as naturezas humana e divina. Jamais se interrompeu a união entre a graça e a vontade de Jesus. Tampouco perdeu sua alma a visão beatífica. Perdeu Jesus, isto sim, e temporariamente, a união de proteção à qual Ele faz menção no Evangelho: “Aquele que me enviou está comigo; ele não me deixou sozinho” (Jô 8, 29). O Pai bem poderia protege-Lo nessa hora (cfr. Mc 14, 36; Mt 26, 53; Lc 22, 43). O próprio Filho poderia proteger seu Corpo (Jo 10, 18; 18, 6), ou conferir-lhe o dom de incorruptibilidade e de impassibilidade, uma vez que sua alma estava na visão beatífica. Mas assim determinou a Santíssima Trindade: a debilidade da natureza humana em Jesus deveria prevalecer por um certo período, a fim de que se cumprisse o que estava escrito. Por isso Jesus não se dirige ao Pai como em geral procedia, mas usa da invocação “meu Deus”. A ordem do universo criado é coesa com a ordem moral. Ambas procedem de uma mesma e única causa. Se a primeira não se levanta para se vingar daqueles que dilaceram os princípios morais por meio de seus pecados, é porque Deus lhe retém o ímpeto natural. Se assim não fosse, os céus, os mares e os ventos se ergueriam contra toda e qualquer ofensa feita a Deus. Mas como frear a natureza diante do deicídio? Por isso, na hora daquele crime supremo, “cobriu-se toda a terra de trevas”… (Mt 27, 45).

5ª Palavra: “Tenho sede.” (Jo 19, 28) Assinala o evangelista que Jesus dissera tais palavras por saber “que tudo estava consumado, para se cumprir plenamente a Escritura”. Vendo um vaso cheio de vinagre que havia por ali, os soldados embeberam uma esponja, “e fixando-a numa vara de hissopo, chegaram-lhe à boca” (Jo 19, 28-29). Cumpria-se assim o versículo 22 do salmo 68: “Puseram fel no meu alimento; na minha sede deram-me vinagre para beber”. Qual a razão mais profunda desse episódio? É um verdadeiro mistério. Jesus derramara boa quantidade de seu preciosíssimo Sangue durante a flagelação. As chagas, em via de cicatrização, foram reabertas ao longo do caminho e ainda mais quando Lhe arrancaram as roupas para crucificá-Lo. O pouco sangue que Lhe restava escorria pelo sagrado lenho. Por isso, a sede tornou-se ardentíssima. Além desse sentido físico, a sede de Jesus significava algo mais: o Divino Redentor tinha sede da glória de Deus e da salvação das almas. E o que lhe oferecem? Um soldado lhe apresenta, na ponta de uma vara, uma esponja empapada de vinagre. Era a bebida dos condenados. Podemos de alguma maneira aliviar pelo menos esse tormento de Jesus? Sim! Antes de tudo, compadecendo-nos d’Ele com amor e verdadeira piedade, e apresentando-Lhe um coração arrependido e humilhado. Devemos querer ter parte nessa sede de Cristo, almejando acima de tudo à nossa própria santificação e salvação, com redobrado esforço, de modo a não pensar, desejar ou praticar algo que a Ele não nos conduza. Para Ele será uma água fresca e cristalina nossa fuga vigilante das ocasiões próximas de pecado. Compadeçamo-nos também dos que vivem no pecado ou nele caem, e trabalhemos por sua salvação. Em suma, apliquemo-nos com ânimo na tarefa de apressar o triunfo do Imaculado Coração de Maria. O Salvador clama a nós do alto da cruz que defendamos, mais ainda que o bom ladrão, a honra de Deus, procurando conduzir a opinião pública para a verdadeira Igreja. É nosso dever buscar entusiasmadamente a glória de Cristo, “que nos amou e por nós se entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor.” (Ef 5, 2).

6ª Palavra: “Tudo está consumado.” (Jo 19, 30) A Sagrada Paixão terminara e, com ela, a pregação. Todas as profecias haviam se cumprido, conforme interpreta Santo Agostinho: a concepção virginal (Is 7, 14); o nascimento em Belém (Mq 5, 1); a adoração dos Reis (Sl 71, 10); a pregação e os milagres (Is 61, 1; 35, 5-6); a gloriosa entrada em Jerusalém no dia de Ramos (Zc 9,9) e toda a Paixão (Isaías e Jeremias). Na Cruz foi vencida a guerra contra o demônio: “Agora é o juízo deste mundo; agora será lançado fora o príncipe deste mundo” (Jo 12, 31). No paraíso terrestre, o demônio adquirira de modo fraudulento a posse deste mundo, com o pecado de nossos primeiros pais. Jesus a recuperou como legítimo herdeiro. Consumado também estava o edifício da Igreja. Este iniciou-se com o batismo no Jordão, onde foi ouvida a voz do Pai indicando seu Filho muito amado, e se concluiu na cruz, na qual Jesus comprou todas as graças que serão distribuídas até o fim do mundo através dos sacramentos. Para que o preciosíssimo Sangue do Salvador ponha fim ao império do demônio em nossas almas, é preciso que crucifiquemos nossa carne com seus caprichos e delírios, combatendo também o res-peito humano e a soberba. Jesus nos abriu um caminho que, aliás, todos os santos trilharam.

7ª Palavra: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.” (Lc 23, 46) Estabeleceu-se na Igreja, desde os primórdios, o costume de enco-mendar as almas dos fiéis defuntos, a fim de que a luz perpétua os ilumine. Jesus, porém, não tinha necessidade de encomendar sua alma ao Pai, pois ela havia sido criada no pleno gozo da visão beatífica. Desde o primeiro instante de sua existência, encontrava-se unida à natureza divina na pessoa do Verbo. Portanto, ao abandonar o corpo sagrado, sairia vitoriosa e triunfante. “Meu espírito”, e não alma, provavelmente aqui significaria a vida corporal de Jesus. Mas Jesus aguardava sua ressurreição para logo. Ao entregar ao Pai a vida que d’Ele recebera, sabia que ela Lhe seria restituída no tempo devido. Com reverência tomou o Pai Eterno em suas mãos a vida de seu Filho unigênito, e com infinito comprazimento a devol-véu, no ato da ressurreição, a um corpo imortal, impassível e glorioso. Abriu-se, assim, o caminho para a nossa ressurreição, ficando-nos a lição de que ela não pode ser atingida senão pelo calvário e pela cruz.

AVE CRUX, SPES ÚNICA.

A procura do Absoluto

pescadorMons. João Clá Dias, EP

Dentre as diversas formas do conhecimento analógico de Deus, a via eminentiae procura atribuir às coisas visíveis graus de perfeição superiores aos que possuem, como forma de elevar a alma a Deus na consideração admirativa do Universo.

Entende-se a importância primordial de uma correta impostação de espírito na consideração da criação, no sentido de favorecer os bons frutos da catequese e da formação cristã, pois ao se tomar uma pessoa, educada na escola da “procura do absoluto”,[1] para ela, acreditar nos conteúdos da Fé, torna-se algo quase conatural. Saber que aquele Deus, por ela tão almejado, revelou-Se misericordiosamente, produz-lhe um grande gáudio interior, levando-o a exclamar com Jeremias: “Bastava descobrir as tuas palavras e eu já as devorava, tuas palavras para mim são prazer e alegria do coração” (Jr 15, 16).

Quando São Tomás se pergunta — seguindo seu método clássico inspirado nas disputationes medievais — pela origem da desigualdade das coisas, defronta-se com algumas objeções, dentre as quais chamamos a atenção sobre a primeira, sobretudo pela resposta a ela dada pelo santo doutor. Com efeito, se Deus é o ótimo por essência, não pode ter criado senão coisas ótimas, as quais deveriam ser todas necessariamente iguais. Pois, a partir do momento que uma fosse melhor que a outra, a inferior deixaria de ser ótima. (cf S Th I, q. 47, a. 2)

Responde São Tomás com seu clássico estilo:

A un agente óptimo le corresponde producir todo su efecto de forma óptima. Sin embargo, no en el sentido de que cada una de las partes del todo que hace sea absolutamente óptima, sino que es óptima en cuanto proporcionada al todo. […] Así, de cada una de las criaturas se dice en el Gen 1, 4, Vio Dios que la luz era buena. Lo mismo se dice de las demás cosas. Pero de todas en conjunto dice (v.31): Vio Dios todo lo que había hecho y era muy bueno.

As perfeições de Deus, refletidas nas várias criaturas em diversos graus e modos, têm sua representação mais admirável no conjunto da Criação, a qual forma como que um imenso e magnífico mosaico que reproduz a Beleza incriada. O Universo é melhor do que cada uma das partes, por refletir com maior perfeição a grandeza e majestade de Deus.

Seguindo o divino exemplo, a alma que trilha as vias da “procura do absoluto” não deve se deter apenas na consideração de cada uma das obras de Deus isoladamente, mas é chamada a admirar a ordem do Universo no seu conjunto.

Entretanto, há uma obra na Criação que o fiel deve considerar com um amor que toca quase na adoração: é a Igreja Católica, Apostólica e Romana. Nela, se reflete de modo ainda mais perfeito a beleza infinita de Deus, pois ela é “toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível” (Ef 5, 27). O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira assim falava da Santa Igreja, como obra-prima de Deus:

Deus Se reflete, ainda, em uma obra-prima mais alta e mais perfeita do que o Cosmos. É o Corpo Místico de Cristo, a sociedade sobrenatural que veneramos com o nome da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Constitui Ela mesma, todo um universo de aspectos harmônicos e variegados, que cantam e refletem, cada qual a seu modo, a formosura santa e inefável de Deus e do Verbo Encarnado.

Na contemplação, de um lado, do Universo e, de outro lado, da Santa Igreja Católica, podemos elevar-nos à consideração da beleza santa, infinita e incriada de Deus.[2]

in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 10, Jan-Mar 2010. p. 20-22.


[1] Tendo visto como pela busca do pulchrum se tende à perfeição, com magnanimidade e senso de hierarquia, compreende-se melhor essa contemplação das criaturas rumo ao que é mais elevado, que, por herança do Prof. Corrêa de Oliveira, na instituição dos Arautos se designa por “procura do Absoluto”, e em linguagem escolástica é chamada conhecimento analógico de Deus.

[2] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. O Escapulário, a profissão e a consagração interior, in Mensageiro do Carmelo. São Paulo, 1959, ano 47, ed. especial, pp. 58-65.

Os benefícios das tentações

jesus-e-apostolos1Evangelho – 1º domingo da quaresma

No deserto, Jesus não foi tentado apenas ao fim dos quarenta dias de jejum, mas ao longo de todo esse período.

Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

Pervadidos de mistério e propícios à meditação, o batismo do Senhor e a tentação no deserto constituem o pórtico de sua vida pública. Sobre essa matéria muito tem sido escrito ao longo dos séculos, procurando esclarecer seus mais profundos significados. Fixemos hoje nossa atenção nas tentações sofridas por Jesus.

Depois da teofania no Rio Jordão, encontramos no deserto dois sumos generais, Cristo e Satanás, num enfrentamento face a face. A guerra ali travada tornou-se o paradigma da luta de todo homem, durante sua existência terrena, a qual, por sua vez, recebe a influência de um e outro general. A aceitação de uma dessas influências determina sua vitória ou derrota pessoal.

Ação de Satanás sobre as almas

Sobre o supremo chefe dos maus e seus sequazes, o próprio Jesus diria mais tarde: “Vós tendes por pai o demônio e quereis fazer os desejos do vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque a verdade não está nele. Quando ele diz a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8, 44). Características estas que tornam singular o modo de agir de Satanás. Seu governo não é exercido no interior das almas, e nem sequer infunde nos seus um influxo vital. Ele consegue, isto sim, obscurecer o entendimento do pecador e apresentar-lhe maus desejos, através de tentações que lhe sugere. O demônio não tem outra intenção a não ser afastar os homens de Deus, seu Criador, e levá-los à revolta. Deseja que todos pequem o quanto possível, para assim perderem o uso da verdadeira liberdade. Na sua ação mais direta, o demônio explora nos homens a tríplice concupiscência.

De outro lado, ele odeia a verdadeira união que deve reinar no relacionamento entre os homens, e, atuando em sentido oposto, visa obter a desagregação da sociedade.

Modo de atuar de Jesus Cristo

Por sua vez, Cristo também exerce sobre os seus súditos uma influência externa, própria a qualquer rei, mas o faz com toda a perfeição e de maneira mais eficaz. Sua doutrina é clara e lógica; não só Ele a ensina com palavras, mas apresenta-Se a Si mesmo como seu exemplo insuperável e atraente. Quem puser em prática seus preceitos chegará infalivelmente à vitória.

Sua ação sobre os fiéis é incomparavelmente mais profunda do que a de Satanás sobre os seus respectivos seguidores. Jesus é a cabeça do Corpo Místico, e d’Ele deflui para os seus membros a graça santificante. Devido à união hipostática com Deus, a humanidade de Cristo tem virtude para santificar (1). É em função dela que São Paulo afirma: “Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim. A minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé no Filho de Deus, que me amou e Se entregou por mim” (Gl 2, 20).

A vida divina do batizado

Essa vida, infundida por ocasião do Batismo, é tão necessária e superior que, sem sua seiva, nada pode realizar o cristão. “Sem Mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Por isso afirma São Paulo: “Tudo posso n’Aquele que me conforta” (Fl 4, 13).

Essa é a vida que nós, batizados, devemos buscar, na certeza da vitória, caso com ela estabeleçamos uma perfeita união. Assim como as portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja (cf. Mt 16, 18), assim também cada um de nós — desde que unido pela fé e pelas obras a Cristo Jesus, nosso sumo general, Rei, Sacerdote e Profeta — não conhecerá o fracasso, e com toda a segurança chegará ao triunfo final, pois foi Ele quem nos mereceu o amparo e auxílio contra as tentações.

Por que Cristo Se dispôs a ser tentado

Essa perspectiva nos tornará claro o Evangelho de hoje, pois “Cristo quis ser tentado” e até mesmo “voluntariamente Se apresentou ao tentador” (2). Dispôs-Se Ele a ser nosso exemplo “para nos ensinar o modo de vencer as tentações do diabo. Por isso diz Santo Agostinho que Cristo Se deixou tentar pelo diabo a fim de ser nosso mediador e nos ajudar a triunfar sobre as tentações daquele, prestando-nos não apenas seu socorro, mas dando-nos também seu exemplo” (3). Da mesma forma como Jesus, pelo fato de ter abraçado sua própria morte, pôde dizer a esta: “Onde está teu aguilhão? Onde está tua vitória?”, assim também, em relação às nossas tentações, Ele as venceu no deserto. Pois, como ensina São Gregório, é compreensível que “Nosso Salvador, o qual viera para ser morto”, quisesse também “ser tentado, de tal modo que, por suas tentações, Ele pudesse vencer as nossas, assim como, por sua morte, Ele venceu a nossa” (4).

Melhor do que ninguém, Jesus sabia os riscos pelos quais passamos em nossa existência e quis, com o exemplo de sua própria vida, advertir-nos a respeito deles — sobretudo aqueles de nós mais chamados a uma via de maior entrega e perfeição. “De tal modo que ninguém, por mais santo que seja, pense estar seguro e imune à tentação. Por isso Cristo quis ser tentado após seu batismo, como diz Santo Hilário, porque ‘as tentações do diabo assaltam principalmente quem está santificado, pois ele deseja sobretudo triunfar sobre os santos’. Daí também estar escrito: ‘Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação’ (Eclo 2, 1)” (5).

Quem poderia nos ensinar eficazmente a vencer as tentações com firmeza, senão o próprio Cristo?

Por fim — ainda segundo São Tomás de Aquino —, Jesus permitiu que o demônio O tentasse “para dar-nos confiança em sua misericórdia, pelo que se diz: ‘Porque não temos n’Ele um pontífice incapaz de compadecer-Se das nossas fraquezas. Ao contrário, passou pelas mesmas provações que nós, com exceção do pecado’ (Heb 4, 15)” (6).

ii – ensinamentos
a tirar das tentações de jesus cristo

1 Jesus, cheio do Espírito Santo, partiu do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, 2 onde esteve quarenta dias, e foi tentado pelo demônio. Não comeu nada nestes dias; passados eles, teve fome.

Este início do capítulo 4 vem envolto num insondável mistério: “Cheio do Espírito Santo…” Ademais, “foi levado pelo Espírito…”. Por que “levado”? Outro Evangelista dirá “conduzido”, e um terceiro, “impelido”. São verbos categóricos que exprimem bem o poder empregado pelo Espírito Santo para agir em nossas almas quando eleitas para uma grande missão.

O batismo deve ter-se realizado à altura de Jericó. Dali saindo, provavelmente subiu as encostas agrestes do Monte Quarentena (Djebel Qarantal), composto de rochas avermelhadas, com cinco cristas muito características, separadas por consideráveis ravinas. Ainda hoje encontram-se por aquelas pedras escavações feitas à mão, que o zelo fervoroso de contemplativos trabalhou para favorecer a solidão procurada por eles. No seu ponto mais alto, um observador pode percorrer o lindo panorama circular: ao norte, o Hermon; a oeste, a terra de Judá; ao sul, o Mar Morto; a leste, o Monte Nebo (de onde Moisés avistou a Terra Prometida pouco antes de morrer), e os planaltos da Perea. Naqueles tempos, por lá deviam vagar animais selvagens, tornando o lugar muito inóspito para qualquer homem, ainda mais na situação de solidão em que se encontrava Jesus, conforme nos relata Marcos: “Esteve em companhia dos animais selvagens” (Mc 1, 13). Hoje, no cimo do monte, ergue-se o convento de São João, ocupado por monges gregos que solicitamente acompanham os peregrinos até a gruta que teria sido freqüentada pelo Salvador e chegam a indicar, até mesmo, as marcas de seus divinos pés sobre as pedras do caminho.

Jesus foi tentado durante quarenta dias

São Lucas nos fala de tentações ao longo de quarenta dias, entretanto só menciona as três últimas delas. Como entender este fato? São Tomás assim no-lo responde: “Segundo a explicação de Beda, o Senhor foi tentado durante quarenta dias e quarenta noites. Mas não se trata daquelas tentações visíveis mencionadas por Mateus e Lucas, as quais ocorreram evidentemente após o jejum, mas de outros assaltos que Cristo pôde sofrer do diabo durante aquele tempo do jejum” (7). São Tomás de Aquino é harmônico, neste seu parecer, com muitos outros autores como, por exemplo, São Justino, Orígenes, Santo Agostinho, se bem que outros tantos — como Suárez, Lagrange, Plummer — discordem deste ponto de vista.

São Mateus é ainda mais categórico ao dizer: “Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio” (Mt 4, 1).

Na história da criação, os primeiros a padecerem a prova da tentação foram os Anjos, e nem todos permaneceram fiéis… A seguir foram os nossos primeiros pais, e de seu pecado sofrerão as conseqüências todos os homens, até o fim do mundo. Mas Jesus era impecável e, apesar disso, pôde efetivamente ser tentado. N’Ele não existia o fomes peccati nem sequer a mais leve inclinação ao pecado, quer fosse pela carne ou até mesmo pelas pompas e vaidades do mundo, por possuir, ademais, um juízo sereno e clarividente. Porém, quanto às sugestões diabólicas externas, não havia o menor inconveniente em que viesse submeter-Se a elas voluntariamente, pois, não sendo interiores e também por não haver a menor imperfeição em Quem as padeceu, deixam a exclusividade de toda a malícia ao tentador (8).

De acordo com os desígnios de Deus, “convinha [a Jesus] que Ele se tornasse em tudo semelhante aos seus irmãos” (Hb 2, 17), pois, para levar até os extremos limites seu amor por nós, ao “compadecer-Se de nossas fraquezas”, maior perfeição manifestaria quando passasse “pelas mesmas provações que nós, com exceção do pecado” (Hb 4, 15).

Sobre a razão da oração e do jejum, baste-nos lembrar que “esta espécie de demônio só se pode expulsar à força de oração e de jejum” (Mt 17, 20).

A dúvida do demônio

3 Então o demônio disse-Lhe: “Se és Filho de Deus, diz a esta pedra que se converta em pão”.

Os autores se conjugam no comentário deste versículo, e dentre eles se destaca Suárez (9), afirmando que, ao tentar Jesus, o demônio não visou principalmente fazê-Lo pecar, mas saber ao certo se Ele era ou não o Filho de Deus. Com uma habitual e sintética clareza, São Tomás assim nos explica esse particular: “Como diz Santo Agostinho, ‘Cristo Se fez conhecer dos demônios na medida que Lhe pareceu conveniente, não porque Ele é a vida eterna, mas por certos efeitos temporais de seu poder’, de onde podiam eles conjecturar que Jesus era o Filho de Deus. Mas como viam n’Ele sinais de debilidade humana, não sabiam com certeza que era Filho de Deus; por isso quiseram tentá-Lo. Esse é o sentido das palavras de Mateus (Mt 4, 2-3), quando se diz que, depois que teve fome, o tentador se aproximou d’Ele; pois, como diz Santo Hilário, ‘o demônio não teria ousado tentar Cristo se não tivesse observado n’Ele, pela debilidade da fome, a natureza humana’. Isso é evidente pelo próprio modo de tentar, quando ele fala: ‘Se és o Filho de Deus’. Santo Ambrósio explica tais palavras, dizendo: ‘O que denota essa maneira de se expressar, senão que ele sabia que o Filho de Deus haveria de vir, mas não acreditava que tivesse vindo na fraqueza da carne?’” (10).

Algo devia saber Satanás sobre aquele varão sui generis, o qual, apesar de nascido numa gruta, havia sido louvado por anjos, pastores e reis do Oriente. Pois, se assim não fosse, teria empregado menos sofisticação na elaboração das tentações, como adiante veremos. O fato de o demônio começar pela suposição “se és o Filho de Deus” demonstra sua suspeita, não ainda inteiramente comprovada, de se tratar do Messias prometido, se bem que humano e não divino. E por isso procura seduzi-Lo e fazê-Lo abandonar as vias do Pai.

Como fez o demônio para tentar Jesus

Sobre a maneira de o demônio apresentar a Jesus suas seduções, divergem as opiniões dos autores. Uns poucos chegam a conferir-lhes um caráter meramente simbólico, ou seja, não passaram de invenções dos Evangelistas para ajudar os homens em suas lutas espirituais. Outros, apesar de aceitarem sua existência real, julgam não terem ocorrido senão por pura sugestão interna. Ambas as suposições não nos parecem cabíveis, tanto debaixo do prisma meramente histórico, como do teológico. Entre os que escolhem a via mais segura está Suárez, categórico em admitir a hipótese de o demônio ter assumido forma física para poder tentar Jesus:

“Satanás deve ter aparecido usando a figura humana, como o diálogo entre um e outro parece exigir. Talvez com a aparência de um santo varão ou alguma outra que julgasse mais própria para convencer. Não pôde tentar o Senhor a não ser pela palavra, do mesmo modo como fez com Adão, pois ambos careciam de paixões insubordinadas, e não era decoroso que o tentador pudesse atuar na imaginação ou potências internas de Cristo” (11).

Através das pequenas coisas, tenta o demônio as grandes vocações

Ainda dentro dos ensinamentos de São Tomás de Aquino (12), sabemos que os homens entregues às vias da perfeição, o demônio não procura tentá-los diretamente para os pecados mais graves. Sua aproximação inicial é através das imperfeições e faltas leves, até o momento de propor as graves. Essa metodologia, ele a empregou no Paraíso terrestre ao seduzir nossos primeiros pais. Começou esforçando-se por despertar a gula de Eva: “Por que não comeis?…” Depois sua vã curiosidade: “Vossos olhos se abrirão…” Por fim, apresentou-lhe o último grau de orgulho: “Sereis como deuses…”

No caso do presente versículo, serve-se Satanás de uma situação concreta. Depois de quarenta dias em completo jejum, fizeram-se presentes em Jesus as características de Filho do Homem: teve necessidade de repor suas energias, sentiu o ímpeto da fome. De todas as virtudes, uma das mais importantes é a fé. Sem uma direta revelação, assimilada por essa virtude, nenhuma criatura, humana ou angélica, é capaz de admitir a hipótese da união das duas naturezas em Cristo. Por isso o espírito maligno — que não possui a fé — aproxima-se d’Ele a fim de chamar-Lhe a atenção para as pedras do caminho que mais se assemelhavam às formas dos pães da época. Quiçá chegasse a Lhe fazer a proposta tendo nas mãos algumas delas.

Inversão da ordem: um ato revolucionário

Depois de insidiosamente procurar estimular o amor-próprio de sua suposta vítima, quis o demônio fazer Jesus utilizar-Se, com desobediência e abuso, dos poderes divinos, para satisfazer a fome e, assim, ser levado também à gula. Ardilosa a proposta, pois a necessidade era real; e que é o pão senão um alimento dos pobres? Conseguiria o demônio, por essa via, não só levar aquele Homem ao uso indevido do poder de fazer milagres, como, ademais, comprovar a messianidade d’Ele. Se Jesus tivesse caído nessa artimanha, sua natureza divina seria, nessa ocasião, subjugada à humana. No fundo, praticaria um ato revolucionário, ao inverter a verdadeira ordem e grau de importância dos seres, embora, absolutamente considerado, não seja nenhuma falta saciar a fome nem mesmo fazer um milagre.

Sobre este particular, ensina-nos o Doutor Angélico:

“Usar do necessário para o sustento não constitui pecado de gula; mas pode pertencer a esse vício o fato de o homem agir de modo desordenado pelo desejo desse sustento. Ora, é desordenado querer obter o alimento por meio de um milagre, quando se pode recorrer a meios humanos para o sustento do corpo. Cristo podia satisfazer sua fome de outra maneira, sem necessidade de um milagre, fazendo como São João Batista (Mt 3, 4), ou mesmo indo a localidades vizinhas. Por isso o demônio pensava que Cristo pecaria se, sendo um homem como os outros, tentasse fazer milagres para aplacar a fome” (13).

Diabólica exploração das revoluções

4 Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus’”.

Jesus poderia ter transformado as pedras em pão, como depois multiplicaria por duas vezes os pães e os peixes. Mas não o fez. Nessa ocasião, não terá querido Ele, além de outros objetivos, ensinar-nos a ilegitimidade das revoltas por ter faltado alimento?

Quantas revoluções foram levadas a cabo, ao longo da História, por uma pura, malévola e — por que não dizer? — diabólica exploração da fome! Nas circunstâncias de penúria, por que não se voltam os homens para o mesmo Deus de Moisés, que não deixou sem alimento o seu povo durante quarenta anos no deserto?

Supremacia da vida espiritual sobre a corporal

Em sua resposta repassada de sabedoria divina, Jesus torna patente, ao demônio e à humanidade, a existência de uma vida muito mais nobre do que a corporal, ou seja, a espiritual. “A palavra de Deus” é constituída pelas ordens divinas, por tudo aquilo que reflete sua soberana vontade, como mais tarde Ele mesmo afirmaria: “Meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que Me enviou” (Jo 4, 34).

É notável a diferença da reação de Jesus diante dessa proposta feita por Satanás, e diante da feita por Maria nas Bodas de Caná: à sua venerável Mãe, Ele atendeu, por saber o quanto era vontade do Pai confirmar o poder impetratório das súplicas de sua Filha bem-amada.

Na frase de Jesus retrucando ao demônio, torna-se claro não ser imprescindível o pão. Deus dispõe incontáveis meios para resolver o problema da fome. Jesus se alimentará como for da vontade do Pai. Se o desígnio d’Este é que a palavra O sustente, qual a necessidade do pão? E se este for indispensável, não tem o Pai o poder de o conceder?

Dupla tentação: medo e ambição

5 O demônio conduziu-O então a um alto monte, mostrou-Lhe, num momento, todos os reinos da terra, 6 e disse-Lhe: “Dar-Te-ei o poder de tudo isto, e a glória destes reinos, porque eles foram-me dados, e eu dou-os a quem quiser. 7 Portanto, se Tu me adorares, todos eles serão teus”.

As mais variadas hipóteses foram levantadas por alguns autores sobre qual teria sido esse alto monte, com vista para todos os reinos da terra. Para uns teria sido o Tabor, para outros o Nebo ou o Hermon. De qualquer deles, porém, é impossível contemplar os reinos deste mundo. Mais acertadamente opinam os que optam por afirmar ter-se servido o demônio de suas artes de magia, espelhismo ou fantasmagoria, para fazer transcorrer diante dos olhos de Jesus “num momento” as maravilhas dos reinos com seus palácios e esplendores; em síntese, todas as belezas das glórias exteriores de nossa terra de exílio.

Na sua inferioridade de anjo decaído, com muita ignorância, julgou haver atraído irresistivelmente Jesus e, por essa razão, propõe-Lhe logo um pecado de idolatria para, assim, entregar-Lhe a posse de tudo. Comentando essa passagem, São Jerônimo bem atribui ao demônio uma linguagem soberba, e sobretudo falsa, pois o espírito maligno não pode prometer nem, menos ainda, conceder reinos a ninguém, sem a permissão de Deus (14). Não obstante, ele é senhor dos vícios e dos pecados. Acreditava poder lisonjeá-Lo para açular uma irrefreável ambição ou, então, amedrontá-Lo, revelando-Lhe a poderosa oposição que enfrentaria, se contra Ele se levantassem aqueles reinos, caso não os aceitasse ao preço da idolatria. Não sofreu, porém, o Divino Redentor a atração da ambição nem o temor do poderio adverso.

Desde o Paraíso terrestre, nós, homens e mulheres, quando sem a graça e a virtude, somos fascinados pelo sonho de ser deuses. Essa é a desastrosa história de boa parte da humanidade. Felizes aqueles e aquelas que respondem a Satanás como o fez Jesus.

A grande tentação da humanidade decaída

8 Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás’”.

Tornar-se o senhor do mundo, possuir todos os bens e todas as riquezas, ainda que deixando de adorar o verdadeiro Deus: eis a tentação diante da qual não poucos sucumbem, em nosso estado de prova; e, às vezes, até por preços muito menores.

Na resposta de Jesus, encontramos o divino exemplo a seguir. Reproduzindo o versículo 13 do capítulo 6 do Deuteronômio, faz um juramento de fidelidade ao Pai: a não ser Ele, ninguém, nem coisa alguma, merece homenagens e muito menos adoração.

Tentação de vanglória

9 Levou-O também a Jerusalém, colocou-O sobre o pináculo do Templo e disse-Lhe: “Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo; 10 porque está escrito que ‘Deus mandou aos seus anjos que Te guardem, 11 e que Te sustenham em suas mãos, para não magoares o teu pé em nenhuma pedra’”.

É um paradoxo imaginar o anjo caído dos Céus transportando seu Criador pelos ares. A isso se submeteu nosso Salvador, para benefício dos que foram expulsos do Paraíso.

É digna de nota a sutileza diabólica nesta tentação, pelo fato de se servir de citação da Escritura para conferir maior solidez à sua argumentação. Aprendeu a lição do próprio Jesus, ao receber d’Ele sua primeira resposta.

Grande espetáculo causaria sua descida sensacional, amparado por anjos, em meio ao pátio do Templo. E, se isso acontecesse, provado estaria para Satanás a filiação divina de Jesus, objetivo ansiosamente desejado por seus ardis. Já não é mais a gula, nem a ambição, mas a vanglória, que a tantos leva para o inferno, o instrumento usado pelo demônio para tentar o Messias.

12 Jesus respondeu-lhe: “Também foi dito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’”.

Uma nova confusão inflige Jesus ao revoltado Satanás, também com palavras do Deuteronômio (6, 16). Colocar-se em perigo grave, obrigando Deus a intervir, é um pecado cheio de malícia.

13 Terminada toda esta espécie de tentação, o demônio retirou-se d’Ele até outra ocasião.

A maioria dos autores é partidária de ter, de fato, o demônio continuado a investir contra Cristo, ao longo de sua vida pública, propondo-Lhe, através destes ou daqueles, a aceitar a coroa ou a praticar milagres imprudentes.

Foi só no Horto, no Pretório e no Calvário que ele imaginou ter conseguido realizar seu sonho, todo feito de gaudium phantasticum. Entretanto, ali, Cristo triunfou sobre os infernos, o pecado e a própria morte!

Revista Arautos número 62

1 ) Cf. São Tomás de Aquino, Suma Teológica III, q. 8, a. 6c.

2) Idem III, q. 41 a. 1.

3) Id. ibid.

4) Id. ibid.

5) Id. ibid.

6) Id. ibid.

7) Op.cit. III, q. 41, a. 3 ad. 2.

8) Cf. op. cit. III, q. 41 a. 1 ad. 3.

9) Cf. Francisco Suárez S.J.,Misterios de la Vida de Cristo, BAC, Madrid, t. 1, p. 825.

10) São Tomás de Aquino, Suma Teológica III, q. 41, a. 1, ad. 1.

11) Op. cit. BAC, Madrid, t. 1, p. 825.

12) Cf. op. cit. III, q. 41, a. 4.

13) Op. cit. III, q. 41, a. 4, ad. 1.

14) Cf. Comment. In Matth., h. 1.

Lembra-te, homem, de que és pó

Mons. João S. Clá Dias, EPMuerte Catedral de Salamanca 004

Por meio do Ciclo Litúrgico, com sabedoria e didática, rememora a Igreja ao longo do ano os mais importantes episódios da existência terrena do Verbo Encarnado. As solenidades da Anunciação e do Natal, as comemorações do Tríduo Pascal e da Ascensão de Nosso Senhor aos Céus, entre outras, compõem um variado caleidoscópio, apresentando à piedade dos fiéis diferentes aspectos da infinita perfeição de nosso Redentor. As graças dispensadas pela Providência em cada um desses momentos históricos revivem, de certo modo, e se derramam sobre aqueles que devotamente participam dessas festividades.

Precedendo as solenidades mais importantes — o Nascimento do Salvador e sua Paixão, Morte e Ressurreição — a Igreja destina dois períodos de preparação: o Advento e a Quaresma, pois convém que, para celebrar tão elevados e sublimes mistérios, os fiéis purifiquem suas almas das misérias e apegos, tornando-as mais aptas a receber as dádivas celestes.

Na Quarta-Feira de Cinzas têm início os quarenta dias que antecedem a Semana Santa. As três leituras desse dia — uma passagem do Profeta Joel, um trecho de uma epístola de São Paulo e outro do Evangelho — nos falam da necessidade do jejum e da penitência como meios de melhor combater os vícios, pela mortificação do corpo, e propiciar a elevação da mente a Deus. Pois, segundo nos ensina o Papa São Leão Magno, “nós nos mortificamos para extinguir em nós a concupiscência. E o resultado da mortificação deve ser o abandono das ações desonestas e dos desejos injustos”.

Como mais adiante veremos, os textos litúrgicos em questão fazem referência, sobretudo, a um tipo de penitência que agrada especialmente a Deus e que é essencial para nossa vida espiritual. Trata-se de evitar os exageros do amor próprio, procurando não atrair as atenções dos outros sobre si mesmo, de maneira que a alma, limpa e ornada da virtude da humildade, ofereça ao Senhor um sacrifício de agradável perfume.

De forma cogente, a liturgia da Quarta-Feira de Cinzas recorda-nos também nossa condição de mortais: “Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris — Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó hás de voltar”, diz, de modo categórico, uma das duas fórmulas usadas pela Igreja para a imposição das cinzas.2 Após a cerimônia, a fronte dos fiéis fica marcada por um traço escuro cujo aspecto trágico e carente de beleza parece proclamar:  “De uma hora para outra, podemos ser levados pela morte, retornando ao pó!”.

A consideração da árdua passagem desta vida para a eternidade muitas vezes nos inquieta. Entretanto, tal pensamento é altamente benfazejo para compenetrar-nos da necessidade de evitar o pecado que, sem o arrependimento e o imerecido perdão, poderá fechar-nos, para sempre, as portas do Céu: “Lembra-te de teu fim, e jamais pecarás” (Eclo 7, 40).

Belém, os Magos e Herodes

Mons. João Clá Dias, EPmagos

“Tendo, pois, Jesus nascido em Belém de Judá, no tempo do rei Herodes, eis que Magos vieram do Oriente a Jerusalém”.

Como nos diz São Paulo: “Se a tivessem conhecido [a misteriosa sabedoria de Deus], nunca teriam crucificado o Senhor da glória” (I Cor 2, 8). Não era dos desígnios de Deus que o nascimento de Jesus Menino fosse manifestado a toda a humanidade, pois isso provavelmente impediria que se realizasse a Redenção. Por outro lado, se Sua vinda ao mundo fosse acompanhada por sinais fulgurantes e grandiosos, seriam anulados os méritos da fé.

O nascimento, sinal prévio da segunda e plena manifestação

Por estes e outros motivos, nos explica São Tomás de Aquino: “É inerente à ordem da sabedoria divina que os dons de Deus e os segredos de sua sabedoria não cheguem da mesma forma a todos, mas que cheguem imediatamente a alguns e, por meio deles, se estendam aos outros. Assim, no que concerne ao mistério da Ressurreição, diz o livro dos Atos: ‘Deus ressuscitou Cristo ao terceiro dia e Lhe concedeu manifestar a sua presença, não ao povo em geral, mas às testemunhas designadas de antemão por Deus’. O mesmo devia ser observado em relação a Seu nascimento: que Cristo não Se manifestasse a todos, mas a alguns, por meio dos quais poderia chegar aos outros”.3

Várias também são as razões pelas quais a Providência Divina escolheu primeiro os judeus, e só depois os gentios, para manifestar o nascimento de Jesus. Claro está que tendo Deus um especial apreço pelo princípio de hierarquia, deveria preferir iniciar Sua grande obra pelo Povo Eleito. Daí continuar a discorrer sobre esse pormenor o mesmo Doutor Angélico:

“A manifestação do nascimento de Cristo foi uma antecipação da manifestação plena que haveria de vir. E assim como na segunda manifestação a graça de Cristo foi anunciada por Cristo e por Seus Apóstolos, primeiro aos judeus, e depois aos pagãos, assim também, os primeiros a aproximar-se de Cristo foram os pastores, que eram as primícias dos judeus e estavam perto; depois vieram os Magos, de longe, como ‘primícias dos pagãos’, na expressão de Agostinho”.4

Considerações e profecias

Quanto à referência à cidade de Belém de Judá neste versículo, devemos considerar a afirmação feita pelo próprio Salvador, décadas mais tarde: “Eu sou o pão vivo que desceu do Céu” (Jo 6, 41). Por isso fazem os comentaristas uma aproximação entre o significado do nome Belém – ou seja, “casa do pão” – e a instituição do Sacramento da Eucaristia, Pão dos Anjos. Havia uma outra Belém, ao norte, na terra de Zabulon, daí procurar o Evangelista especificar a tribo de Judá.

O rei Herodes, na realidade, não pertencia à raça dos judeus, pois era idumeu. Chegou ao trono por apoio dos romanos, devido a lhe serem contrários os judeus, por se tratar de um estrangeiro. Foi muito habilidoso, restaurando com esmero o Templo de Jerusalém, no intuito de que se esquecessem de suas origens. Porém, sua fama perpetuou-se pelas grandes máculas de seus costumes dissolutos e de sua crueldade.

Sobre este particular, pondera Teodoro de Mopsuéstia: “O patriarca Jacó havia já discernido com exatidão esse momento, ao dizer: ‘Não se apartará o cetro de Judá, nem o bastão de comando dentre seus pés, até que venha aquele a quem pertence por direito, e a quem devem obediência os povos’ (Gn 49, 10). Mateus apresenta esses dados para, por meio deles, pôr em evidência que tudo estava correndo de acordo com as palavras proféticas. Por um lado, o profeta tinha dito que nasceria em Belém (cf. Mq 5, 1); por outro, o fato de ocorrer isso no tempo de Herodes cumpria, ademais, a predição de Jacó. Primeiro reinou sobre eles a estirpe de Davi, da tribo de Judá, irmão de Levi, mas a descendência provinha da estirpe de Judá, que se mesclara com a tribo levítica, especialmente com sumos sacerdotes, e tinham prerrogativas reais. Em seguida – depois que os irmãos Aristóbulo e Hircano disputaram entre si o poder – a dignidade real passou finalmente para Herodes, o qual não era judeu de raça, por ser filho de Antípatro, o idumeu. Foi então, no tempo desse reinado, que apareceu Cristo Senhor, não havendo mais reis e governantes do povo judeu”.5

Mateus se cala sobre maiores detalhes a respeito dos Magos; daí a multiplicidade de hipóteses e a não pouca divergência entre os autores sobre este particular. Entretanto, podemos afirmar que o nome Magos não deve ser tomado com as conotações próprias aos nossos tempos. Naquela época, significava pessoas de certo poder e muito distintas, em especial pelos conhecimentos científicos, sobretudo de astronomia. Além disso, a tradição nolos apresenta como reis. É também por tradição que consta serem três, terem sido batizados mais tarde por São Tomé Apóstolo e, tempos depois, martirizados. As relíquias dos Reis Magos foram veneradas recentemente por um Papa. Nosso Pontífice Bento XVI, felizmente reinante, visitou a catedral de Colônia para diante delas rezar, em 18 de agosto de 2005, por ocasião da XX Jornada Mundial da Juventude.

Sobre o país de origem – Caldeia, Arábia ou Pérsia -, o que consta são puras hipóteses; como também quanto ao momento da chegada deles a Jerusalém e a Belém, que parece terse dado depois da Apresentação do Menino Jesus.

O certo e admitido por todos é que, sendo a Redenção de âmbito universal, deveria ser anunciada a todos.6

III – Os Reis perante Herodes

“Perguntaram eles: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a Sua estrela no Oriente e viemos adorá-Lo'”.

Torna-se claro, por este versículo, o real e profundo motivo da longa viagem empreendida por eles; nada houve de pura curiosidade, razões profanas, ou até mundanas. Ademais, demonstram possuir grande fé, e não pouca intrepidez, ao formularem uma pergunta tão incisiva, tanto mais que poderia ser interpretada por Herodes como sendo uma negação de seu título e de seu poder, conquistados com tantos esforços.

A estrela que guiava os Magos

Sobre a estrela, comenta o Revmo. Padre Manuel de Tuya, OP: “Os magos alegam, para terem vindo adorar o Rei dos judeus recém-nascido, que viram ‘sua estrela no Oriente’. De maneira muito acentuada, fala-se precisamente da estrela do Rei dos judeus. No mundo da astrologia, os homens se consideram governados pelos astros. Mas também na Antiguidade estava difundida a crença de que o nascimento dos homens de grande importância era precedido de algum sinal do céu. Isto se refletia até nos escritos cuneiformes. Surgiram várias teorias a respeito dessa ‘estrela vista pelos Magos'”.7

Também o Doutor Angélico não deixou de exprimir seu pensamento a respeito desta passagem. Depois de discorrer sobre as razões pelas quais aos judeus revelou Deus Seu nascimento através de Anjos e, aos gentios, por sinais, cita Santo Agostinho: “Os Anjos moram nos céus que são adornados pelas estrelas”.8 E a partir daí, passa a analisar a estrela em si mesma, mostrando como ela “não era uma das estrelas do céu”, mas sim um astro inteiramente sui generis.9

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Não foi uma das estrelas do céu

Segundo Crisóstomo, existem muitos indícios que manifestam que aquela estrela que apareceu aos Magos não era uma das estrelas do céu.

1º – Porque nenhuma outra estrela seguiu este caminho, pois esta se movia de norte a sul; tal é a situação da Judeia com relação à Pérsia, donde vieram os Magos. 2º – Pelo tempo em que aparece, pois não aparecia só de noite, mas também em pleno dia; o que não está no poder de uma estrela, nem mesmo da Lua. 3º – Porque às vezes aparecia e outras vezes se ocultava; quando entraram em Jerusalém se escondeu, para aparecer depois que deixaram Herodes. 4º – Porque não tinha um movimento contínuo: andava quando era preciso que os Magos caminhassem, e se detinha quando eles deviam se deter, como a coluna de nuvem no deserto. 5º – Porque mostrou o parto da Virgem não só permanecendo no alto, mas também descendo, como diz o Evangelho de Mateus: “A estrela que tinham visto no Oriente ia à sua frente até parar em cima do lugar onde estava o Menino”. Daí se deduz claramente que a palavra dos Magos, “vimos sua estrela no Oriente”, não deve ser entendida como se, encontrando-se eles no Oriente, lhes tivesse aparecido uma estrela que estava na Judeia, mas que viram uma estrela situada no Oriente e que os precedeu até a Judeia (embora alguns duvidem disto). Mas não teria podido indicar claramente a casa se não estivesse próxima da terra. E, como diz o mesmo Crisóstomo, isso não parece próprio de uma estrela, mas de “algum poder racional”. “Parece, pois, que esta estrela era um poder invisível transformado na aparência de uma estrela”.

Por isso alguns afirmam que, assim como o Espírito Santo desceu sobre o Senhor batizado sob a forma de pomba, apareceu também aos Magos sob a forma de estrela. – Outros, porém, dizem que o Anjo que apareceu aos pastores sob forma humana apareceu aos Magos na forma de estrela. – É, contudo, mais provável que se tratasse de uma estrela criada de novo, não no céu, mas na atmosfera próxima à terra, e que se movia segundo a vontade de Deus. É por isso que afirma o Papa Leão (Sermão 31, sobre a Epifania): “Apareceu aos três Magos, na região do Oriente, uma estrela de uma nova claridade, mais brilhante e formosa do que os outros astros, que atraía os olhos e os corações dos que a olhavam, para que compreendessem imediatamente que não carecia de significação o que parecia tão insólito”.

(AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36, a.7 resp).

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 Jerusalém ficou perturbada

“Ouvindo isto, o rei Herodes ficou perturbado e toda Jerusalém com ele”

É de fácil compreensão esse temor de Herodes, dada sua irrefreável ambição, inveja e crueldade. Sua esposa e seus três filhos puderam experimentar a violência de seu péssimo e impetuoso temperamento, pois foram mortos por uma determinação tirânica sua, nascida do medo de que o destronassem.

Para um homem com essa moral desregrada e tão mau caráter, o anúncio do surgimento miraculoso de um novo rei só poderia causar perturbação; tanto mais que “havia-se difundido então por todas as partes do Império Romano, no Oriente mais do que em qualquer outra, certo pressentimento – às vezes vago, às vezes mais preciso – de uma nova era que se abriria para a humanidade”.10

E qual a causa da perturbação dos habitantes de Jerusalém? Era-lhes anunciado o nascimento de um Rei judeu: não seria esta uma alvissareira notícia? E não deveriam eles acompanhar os Magos para, com alegria, comprovar os fatos? Não causaria estranheza que o povo, a essas alturas, já estivesse acomodado e relaxadamente complacente com o criminoso tirano. Quiçá pudesse concorrer para essa perturbação o receio de represálias e vinganças. Ou ainda o amor próprio ferido, o orgulho pisado, o desprezo de uma graça, pois esperavam um Messias com maior esplendor e, ademais, anunciado a eles diretamente, e não a estrangeiros.

A esse propósito, comenta São João Crisóstomo: “Porque continuavam na mesma disposição de seus antepassados – os quais, apesar de todos os benefícios recebidos, afastaram-se de Deus – e gozavam de plena liberdade, recordavam-se das carnes do Egito”.11

Iniquidade fraudulenta de Herodes

“Convocou os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo e deles indagou onde havia de nascer o Cristo”.

Péssimo, mas habilidoso, Herodes dissimula seu satânico plano de matar o Messias e procura saber quais são os desígnios de Deus para, com eficácia, impedi-los. Com ares de hipócrita piedade, convoca o Sinédrio. Sua pergunta demonstra o quanto todos eram conhecedores da possibilidade de que aquele recém-nascido bem poderia ser o Cristo. Daí também a maldade do Sinédrio e do próprio povo.

“Disseram-lhe: ‘Em Belém de Judá, porque assim foi escrito pelo profeta: E tu, Belém de Judá, não és de modo algum a menor entre as cidades de Judá, porque de ti sairá o chefe que governará Israel, meu povo'” (Mq 5, 2).

Os doutores da Lei não temem dizer a Herodes que, segundo Miqueias, o Cristo deveria nascer na cidade de Belém de Judá. Entretanto, suprimem da profecia oficial a frase subsequente, que clarissimamente insinuava a origem divina de Cristo: “Et egressus eius a temporibus antiquis, a diebus æternitatis” – “Suas origens remontam aos tempos antigos, aos dias da eternidade” (Mq 5, 1). Talvez por malícia, ou por orgulho, não possuíam suficiente fé para crer nessa revelação. Ou, ainda, quiçá por amolecimento de caráter. Essa péssima atitude levou São João Crisóstomo a associá-los na culpabilidade pela morte dos Santos Inocentes, pois Herodes não se enfureceria se soubesse que se tratava de um Rei da eternidade, portanto, não de um rival terrestre.

“Herodes, então, chamou secretamente os Magos e perguntou- lhes sobre a época exata em que o astro lhes tinha aparecido”.

Chama-nos a atenção o emprego do advérbio secretamente. Segundo um famoso historiador daqueles tempos, Flávio Josefo, era muito comum Herodes vestir-se como um qualquer e imiscuir- se em meio às gentes para sondar de modo direto o que pensavam sobre seu reinado.12 Era o seu habilidoso modo de proceder. Estando já seguro quanto à cidade onde teria nascido seu inimigo Messias, desejava agora conjecturar sua idade, pois aproximava a data do nascimento do Menino ao dia do aparecimento da estrela.

“E, enviando-os a Belém, disse: ‘Ide e informai-vos bem a respeito do Menino. Quando o tiverdes encontrado, comunicai- me, para que eu também vá adorá-lo'”.

Hipócrita, se faz de piedoso e suave para enganar a simplicidade, candura e inocência dos Magos. Não sem fundamento, alguns autores denominam essa atitude de “iniquidade fraudulenta”.

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Malícia de Herodes

Herodes maquina sua morte [do Messias] com dolosa malícia. O homem mau é capaz de compreender as coisas de Deus; não pode, porém, realizá-las, pois a inteligência do homem foi criada por Deus, mas a ação depende da vontade.

Herodes viu certamente o grande fervor dos Magos em relação a Cristo. E como não podia contar com a cumplicidade deles para matar o futuro rei por meio de bajulações que os amolecessem, nem de ameaças que os atemorizassem, nem de dinheiro que os corrompesse, ocorreu-lhe enganá-los. De modo algum conseguiria seduzi-los com adulações para traírem Aquele pelo qual fizeram uma tão fatigante viagem. Tampouco poderiam ter medo, a ponto de atraiçoarem Cristo, aqueles que não tinham interesse algum em Herodes nem em César, pois haviam entrado em seu reino anunciando a vinda de outro rei. Nem poderiam ambicionar coisa alguma senão Cristo, aqueles que Lhe traziam preciosos presentes de uma terra tão distante.

E quando percebeu que não conseguiria outra coisa, Herodes começou a tomar ares de devoção enquanto afiava a espada e pintava com cores de humildade a perversidade de seu coração. Assim procedem todos os perversos: quando querem causar ocultamente algum dano muito grave a alguém, mostram-se humildes e amigos em relação a ele.

(ANÔNIMO. Obra incompleta sobre o Evangelho de Mateus, 2, PG 56, 640-641).

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IV – De Jerusalém a Belém

“Tendo eles ouvido as palavras do rei, partiram. E eis que a estrela, que tinham visto no Oriente, os foi precedendo até chegar sobre o lugar onde estava o Menino, e ali parou. A aparição daquela estrela os encheu de profunda alegria”.

Assim sempre procede Deus, recompensando aqueles que são fiéis à Sua graça. É comovedora a confiança penetrada de coragem desses Reis Magos, diante de um tirano de tal má fama. Não há dúvida de estarem sustentados por especial moção do Espírito Santo.

Reaparece a estrela

Terão partido à noite, ou durante o dia? De Jerusalém a Belém, levava-se duas horas de caminhada por via conhecidíssima. Entretanto, uns poucos autores defendem a tese de esse deslocamento ter-se efetuado durante o dia. Mas, como se explicaria o reaparecimento da estrela? Uns dizem não terem sido necessárias as sombras da noite, por tratar-se de um corpo luminoso em regiões atmosféricas mais próximas dos Magos. Outros interpretam essa passagem como se a estrela tivesse reaparecido só na entrada de Belém, uma vez que não havia como errar o caminho.

Ao ler estes versículos com devoção, chega-se, por momentos, a participar da alegria dos primeiros peregrinos aos Lugares Santos. O desaparecimento da estrela lhes pusera à prova a confiança; agora é a consolação como prêmio. Uma pergunta aqui surge, também. Por que se ocultara a estrela ao chegar a Jerusalém e reapareceu só em Belém? Será que já àquelas alturas Jerusalém não era digna de um sinal tão evidente e público? Ou, pelo contrário, escondendo-se, ela propiciou uma permanência maior dos Magos na cidade, e com isso a autenticidade do acontecimento tornou-se mais patente a todos os seus habitantes?

Adoraram-No, inspirados pelo Espírito Santo

“Entrando na casa, acharam o Menino com Maria, Sua mãe. Prostrando-se diante dEle, O adoraram. Depois, abrindo seus tesouros, ofereceram-Lhe como presentes: ouro, incenso e mirra”.

Emociona esta descrição de Mateus: “acharam o Menino com Maria, Sua mãe”. Palavras proféticas, inspiradas pelo Espírito Santo, para deixar constando pelos séculos afora que não se pode encontrar Jesus sem Maria, e menos ainda, Maria sem Jesus. A História comprova – e muito mais o fará – o quanto a devoção à Mãe conduz à adoração ao Filho, e vice-versa.

Chama-nos a atenção a referência de Mateus ao local onde Se encontrava o Menino: uma casa, não uma gruta. “Alguns autores antigos – entre eles São Justino – julgaram que ‘casa’ era um eufemismo, em lugar de ‘gruta’. São Jerônimo, em compensação, menciona várias vezes a gruta e nunca fala da lembrança nem da presença dos Magos nela. Não seria nada improvável que a palavra ‘casa’ tenha em Mateus seu sentido real. Situada essa cena à distância de um ano e meio do nascimento de Cristo, não é de crer-se que a Sagrada Família tenha permanecido alojada naquela gruta circunstancial; parece natural que ela tenha habitado uma modesta casa. Ademais, o versículo 22 sugere que ela havia se estabelecido em Belém”.13

Essa adoração prestada pelos Magos comprova mais uma vez a realidade da ação do Espírito Santo nas almas deles, tal qual afirma São Tomás de Aquino:

“Os Magos são ‘as primícias dos pagãos’ a crerem em Cristo. Neles apareceram, numa espécie de presságio, a fé e a devoção dos pagãos vindos a Cristo de lugares remotos. Por isso, sendo a fé e a devoção dos pagãos isentas de erro, por inspiração do Espírito Santo, também devese crer que os Magos, inspirados pelo Espírito Santo, se comportaram sabiamente ao prestarem homenagem a Cristo”.14

Quanto aos presentes, eles cumprem, com esse gesto, a profecia de Isaías: “Virão todos de Sabá, trazendo ouro e incenso, e publicando os louvores do Senhor. Todo o gado menor de Cedar se reunirá junto a ti, os carneiros de Nabaiot ficarão à tua disposição; fá-los-ão subir sobre meu altar para minha satisfação, e para a honra de meu templo glorioso” (Is 60, 6-7).

“Ao reconhecê-Lo como rei, ofereceram as primícias excelentes e preciosas do templo: o ouro que guardavam; por entender que Ele era de natureza divina e celestial, ofertaram incenso perfumado, forma de oração verdadeira, oferecida como suave odor do Espírito Santo; e em reconhecimento de que sua natureza humana receberia sepultura temporal, ofereceram mirra”.15

3 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36, a. 2, resp. c.
4 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36, a. 3 ad I.
5 MopsuÉstia, Teodoro de, Fragmentos sobre o Evangelho de Mateus, 6.
6 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36 a. 3c.
7 TUYA OP, Pe. Manuel de. Bíblia Comentada. Madrid: BAC, 1964, v. II, p. 35.
8 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36, a. 5 resp.
9 Ver quadro anexo: Não foi uma das estrelas do céu.
10 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: Rialp, 2000. v. I. p. 7-8.
11 Homilias sobre o Evangelho de Mateus, 6, 4: PG 57, 67-68.
12 Cf. Antiguidades dos Judeus, l. XV, c. 10, 4.
13 TUYA OP, Pe. Manuel de. Op. Cit. p. 39.
14 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36 a. 8, resp.
15 ANÔNIMO. Obra incompleta sobre o Evangelho de Mateus, 2: PG 56, 642.

(Revista Arautos do Evangelho, Jan/2009, n. 85, p. 10 à 19)