Belém, os Magos e Herodes

Mons. João Clá Dias, EPmagos

“Tendo, pois, Jesus nascido em Belém de Judá, no tempo do rei Herodes, eis que Magos vieram do Oriente a Jerusalém”.

Como nos diz São Paulo: “Se a tivessem conhecido [a misteriosa sabedoria de Deus], nunca teriam crucificado o Senhor da glória” (I Cor 2, 8). Não era dos desígnios de Deus que o nascimento de Jesus Menino fosse manifestado a toda a humanidade, pois isso provavelmente impediria que se realizasse a Redenção. Por outro lado, se Sua vinda ao mundo fosse acompanhada por sinais fulgurantes e grandiosos, seriam anulados os méritos da fé.

O nascimento, sinal prévio da segunda e plena manifestação

Por estes e outros motivos, nos explica São Tomás de Aquino: “É inerente à ordem da sabedoria divina que os dons de Deus e os segredos de sua sabedoria não cheguem da mesma forma a todos, mas que cheguem imediatamente a alguns e, por meio deles, se estendam aos outros. Assim, no que concerne ao mistério da Ressurreição, diz o livro dos Atos: ‘Deus ressuscitou Cristo ao terceiro dia e Lhe concedeu manifestar a sua presença, não ao povo em geral, mas às testemunhas designadas de antemão por Deus’. O mesmo devia ser observado em relação a Seu nascimento: que Cristo não Se manifestasse a todos, mas a alguns, por meio dos quais poderia chegar aos outros”.3

Várias também são as razões pelas quais a Providência Divina escolheu primeiro os judeus, e só depois os gentios, para manifestar o nascimento de Jesus. Claro está que tendo Deus um especial apreço pelo princípio de hierarquia, deveria preferir iniciar Sua grande obra pelo Povo Eleito. Daí continuar a discorrer sobre esse pormenor o mesmo Doutor Angélico:

“A manifestação do nascimento de Cristo foi uma antecipação da manifestação plena que haveria de vir. E assim como na segunda manifestação a graça de Cristo foi anunciada por Cristo e por Seus Apóstolos, primeiro aos judeus, e depois aos pagãos, assim também, os primeiros a aproximar-se de Cristo foram os pastores, que eram as primícias dos judeus e estavam perto; depois vieram os Magos, de longe, como ‘primícias dos pagãos’, na expressão de Agostinho”.4

Considerações e profecias

Quanto à referência à cidade de Belém de Judá neste versículo, devemos considerar a afirmação feita pelo próprio Salvador, décadas mais tarde: “Eu sou o pão vivo que desceu do Céu” (Jo 6, 41). Por isso fazem os comentaristas uma aproximação entre o significado do nome Belém – ou seja, “casa do pão” – e a instituição do Sacramento da Eucaristia, Pão dos Anjos. Havia uma outra Belém, ao norte, na terra de Zabulon, daí procurar o Evangelista especificar a tribo de Judá.

O rei Herodes, na realidade, não pertencia à raça dos judeus, pois era idumeu. Chegou ao trono por apoio dos romanos, devido a lhe serem contrários os judeus, por se tratar de um estrangeiro. Foi muito habilidoso, restaurando com esmero o Templo de Jerusalém, no intuito de que se esquecessem de suas origens. Porém, sua fama perpetuou-se pelas grandes máculas de seus costumes dissolutos e de sua crueldade.

Sobre este particular, pondera Teodoro de Mopsuéstia: “O patriarca Jacó havia já discernido com exatidão esse momento, ao dizer: ‘Não se apartará o cetro de Judá, nem o bastão de comando dentre seus pés, até que venha aquele a quem pertence por direito, e a quem devem obediência os povos’ (Gn 49, 10). Mateus apresenta esses dados para, por meio deles, pôr em evidência que tudo estava correndo de acordo com as palavras proféticas. Por um lado, o profeta tinha dito que nasceria em Belém (cf. Mq 5, 1); por outro, o fato de ocorrer isso no tempo de Herodes cumpria, ademais, a predição de Jacó. Primeiro reinou sobre eles a estirpe de Davi, da tribo de Judá, irmão de Levi, mas a descendência provinha da estirpe de Judá, que se mesclara com a tribo levítica, especialmente com sumos sacerdotes, e tinham prerrogativas reais. Em seguida – depois que os irmãos Aristóbulo e Hircano disputaram entre si o poder – a dignidade real passou finalmente para Herodes, o qual não era judeu de raça, por ser filho de Antípatro, o idumeu. Foi então, no tempo desse reinado, que apareceu Cristo Senhor, não havendo mais reis e governantes do povo judeu”.5

Mateus se cala sobre maiores detalhes a respeito dos Magos; daí a multiplicidade de hipóteses e a não pouca divergência entre os autores sobre este particular. Entretanto, podemos afirmar que o nome Magos não deve ser tomado com as conotações próprias aos nossos tempos. Naquela época, significava pessoas de certo poder e muito distintas, em especial pelos conhecimentos científicos, sobretudo de astronomia. Além disso, a tradição nolos apresenta como reis. É também por tradição que consta serem três, terem sido batizados mais tarde por São Tomé Apóstolo e, tempos depois, martirizados. As relíquias dos Reis Magos foram veneradas recentemente por um Papa. Nosso Pontífice Bento XVI, felizmente reinante, visitou a catedral de Colônia para diante delas rezar, em 18 de agosto de 2005, por ocasião da XX Jornada Mundial da Juventude.

Sobre o país de origem – Caldeia, Arábia ou Pérsia -, o que consta são puras hipóteses; como também quanto ao momento da chegada deles a Jerusalém e a Belém, que parece terse dado depois da Apresentação do Menino Jesus.

O certo e admitido por todos é que, sendo a Redenção de âmbito universal, deveria ser anunciada a todos.6

III – Os Reis perante Herodes

“Perguntaram eles: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a Sua estrela no Oriente e viemos adorá-Lo'”.

Torna-se claro, por este versículo, o real e profundo motivo da longa viagem empreendida por eles; nada houve de pura curiosidade, razões profanas, ou até mundanas. Ademais, demonstram possuir grande fé, e não pouca intrepidez, ao formularem uma pergunta tão incisiva, tanto mais que poderia ser interpretada por Herodes como sendo uma negação de seu título e de seu poder, conquistados com tantos esforços.

A estrela que guiava os Magos

Sobre a estrela, comenta o Revmo. Padre Manuel de Tuya, OP: “Os magos alegam, para terem vindo adorar o Rei dos judeus recém-nascido, que viram ‘sua estrela no Oriente’. De maneira muito acentuada, fala-se precisamente da estrela do Rei dos judeus. No mundo da astrologia, os homens se consideram governados pelos astros. Mas também na Antiguidade estava difundida a crença de que o nascimento dos homens de grande importância era precedido de algum sinal do céu. Isto se refletia até nos escritos cuneiformes. Surgiram várias teorias a respeito dessa ‘estrela vista pelos Magos'”.7

Também o Doutor Angélico não deixou de exprimir seu pensamento a respeito desta passagem. Depois de discorrer sobre as razões pelas quais aos judeus revelou Deus Seu nascimento através de Anjos e, aos gentios, por sinais, cita Santo Agostinho: “Os Anjos moram nos céus que são adornados pelas estrelas”.8 E a partir daí, passa a analisar a estrela em si mesma, mostrando como ela “não era uma das estrelas do céu”, mas sim um astro inteiramente sui generis.9

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Não foi uma das estrelas do céu

Segundo Crisóstomo, existem muitos indícios que manifestam que aquela estrela que apareceu aos Magos não era uma das estrelas do céu.

1º – Porque nenhuma outra estrela seguiu este caminho, pois esta se movia de norte a sul; tal é a situação da Judeia com relação à Pérsia, donde vieram os Magos. 2º – Pelo tempo em que aparece, pois não aparecia só de noite, mas também em pleno dia; o que não está no poder de uma estrela, nem mesmo da Lua. 3º – Porque às vezes aparecia e outras vezes se ocultava; quando entraram em Jerusalém se escondeu, para aparecer depois que deixaram Herodes. 4º – Porque não tinha um movimento contínuo: andava quando era preciso que os Magos caminhassem, e se detinha quando eles deviam se deter, como a coluna de nuvem no deserto. 5º – Porque mostrou o parto da Virgem não só permanecendo no alto, mas também descendo, como diz o Evangelho de Mateus: “A estrela que tinham visto no Oriente ia à sua frente até parar em cima do lugar onde estava o Menino”. Daí se deduz claramente que a palavra dos Magos, “vimos sua estrela no Oriente”, não deve ser entendida como se, encontrando-se eles no Oriente, lhes tivesse aparecido uma estrela que estava na Judeia, mas que viram uma estrela situada no Oriente e que os precedeu até a Judeia (embora alguns duvidem disto). Mas não teria podido indicar claramente a casa se não estivesse próxima da terra. E, como diz o mesmo Crisóstomo, isso não parece próprio de uma estrela, mas de “algum poder racional”. “Parece, pois, que esta estrela era um poder invisível transformado na aparência de uma estrela”.

Por isso alguns afirmam que, assim como o Espírito Santo desceu sobre o Senhor batizado sob a forma de pomba, apareceu também aos Magos sob a forma de estrela. – Outros, porém, dizem que o Anjo que apareceu aos pastores sob forma humana apareceu aos Magos na forma de estrela. – É, contudo, mais provável que se tratasse de uma estrela criada de novo, não no céu, mas na atmosfera próxima à terra, e que se movia segundo a vontade de Deus. É por isso que afirma o Papa Leão (Sermão 31, sobre a Epifania): “Apareceu aos três Magos, na região do Oriente, uma estrela de uma nova claridade, mais brilhante e formosa do que os outros astros, que atraía os olhos e os corações dos que a olhavam, para que compreendessem imediatamente que não carecia de significação o que parecia tão insólito”.

(AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36, a.7 resp).

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 Jerusalém ficou perturbada

“Ouvindo isto, o rei Herodes ficou perturbado e toda Jerusalém com ele”

É de fácil compreensão esse temor de Herodes, dada sua irrefreável ambição, inveja e crueldade. Sua esposa e seus três filhos puderam experimentar a violência de seu péssimo e impetuoso temperamento, pois foram mortos por uma determinação tirânica sua, nascida do medo de que o destronassem.

Para um homem com essa moral desregrada e tão mau caráter, o anúncio do surgimento miraculoso de um novo rei só poderia causar perturbação; tanto mais que “havia-se difundido então por todas as partes do Império Romano, no Oriente mais do que em qualquer outra, certo pressentimento – às vezes vago, às vezes mais preciso – de uma nova era que se abriria para a humanidade”.10

E qual a causa da perturbação dos habitantes de Jerusalém? Era-lhes anunciado o nascimento de um Rei judeu: não seria esta uma alvissareira notícia? E não deveriam eles acompanhar os Magos para, com alegria, comprovar os fatos? Não causaria estranheza que o povo, a essas alturas, já estivesse acomodado e relaxadamente complacente com o criminoso tirano. Quiçá pudesse concorrer para essa perturbação o receio de represálias e vinganças. Ou ainda o amor próprio ferido, o orgulho pisado, o desprezo de uma graça, pois esperavam um Messias com maior esplendor e, ademais, anunciado a eles diretamente, e não a estrangeiros.

A esse propósito, comenta São João Crisóstomo: “Porque continuavam na mesma disposição de seus antepassados – os quais, apesar de todos os benefícios recebidos, afastaram-se de Deus – e gozavam de plena liberdade, recordavam-se das carnes do Egito”.11

Iniquidade fraudulenta de Herodes

“Convocou os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo e deles indagou onde havia de nascer o Cristo”.

Péssimo, mas habilidoso, Herodes dissimula seu satânico plano de matar o Messias e procura saber quais são os desígnios de Deus para, com eficácia, impedi-los. Com ares de hipócrita piedade, convoca o Sinédrio. Sua pergunta demonstra o quanto todos eram conhecedores da possibilidade de que aquele recém-nascido bem poderia ser o Cristo. Daí também a maldade do Sinédrio e do próprio povo.

“Disseram-lhe: ‘Em Belém de Judá, porque assim foi escrito pelo profeta: E tu, Belém de Judá, não és de modo algum a menor entre as cidades de Judá, porque de ti sairá o chefe que governará Israel, meu povo'” (Mq 5, 2).

Os doutores da Lei não temem dizer a Herodes que, segundo Miqueias, o Cristo deveria nascer na cidade de Belém de Judá. Entretanto, suprimem da profecia oficial a frase subsequente, que clarissimamente insinuava a origem divina de Cristo: “Et egressus eius a temporibus antiquis, a diebus æternitatis” – “Suas origens remontam aos tempos antigos, aos dias da eternidade” (Mq 5, 1). Talvez por malícia, ou por orgulho, não possuíam suficiente fé para crer nessa revelação. Ou, ainda, quiçá por amolecimento de caráter. Essa péssima atitude levou São João Crisóstomo a associá-los na culpabilidade pela morte dos Santos Inocentes, pois Herodes não se enfureceria se soubesse que se tratava de um Rei da eternidade, portanto, não de um rival terrestre.

“Herodes, então, chamou secretamente os Magos e perguntou- lhes sobre a época exata em que o astro lhes tinha aparecido”.

Chama-nos a atenção o emprego do advérbio secretamente. Segundo um famoso historiador daqueles tempos, Flávio Josefo, era muito comum Herodes vestir-se como um qualquer e imiscuir- se em meio às gentes para sondar de modo direto o que pensavam sobre seu reinado.12 Era o seu habilidoso modo de proceder. Estando já seguro quanto à cidade onde teria nascido seu inimigo Messias, desejava agora conjecturar sua idade, pois aproximava a data do nascimento do Menino ao dia do aparecimento da estrela.

“E, enviando-os a Belém, disse: ‘Ide e informai-vos bem a respeito do Menino. Quando o tiverdes encontrado, comunicai- me, para que eu também vá adorá-lo'”.

Hipócrita, se faz de piedoso e suave para enganar a simplicidade, candura e inocência dos Magos. Não sem fundamento, alguns autores denominam essa atitude de “iniquidade fraudulenta”.

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Malícia de Herodes

Herodes maquina sua morte [do Messias] com dolosa malícia. O homem mau é capaz de compreender as coisas de Deus; não pode, porém, realizá-las, pois a inteligência do homem foi criada por Deus, mas a ação depende da vontade.

Herodes viu certamente o grande fervor dos Magos em relação a Cristo. E como não podia contar com a cumplicidade deles para matar o futuro rei por meio de bajulações que os amolecessem, nem de ameaças que os atemorizassem, nem de dinheiro que os corrompesse, ocorreu-lhe enganá-los. De modo algum conseguiria seduzi-los com adulações para traírem Aquele pelo qual fizeram uma tão fatigante viagem. Tampouco poderiam ter medo, a ponto de atraiçoarem Cristo, aqueles que não tinham interesse algum em Herodes nem em César, pois haviam entrado em seu reino anunciando a vinda de outro rei. Nem poderiam ambicionar coisa alguma senão Cristo, aqueles que Lhe traziam preciosos presentes de uma terra tão distante.

E quando percebeu que não conseguiria outra coisa, Herodes começou a tomar ares de devoção enquanto afiava a espada e pintava com cores de humildade a perversidade de seu coração. Assim procedem todos os perversos: quando querem causar ocultamente algum dano muito grave a alguém, mostram-se humildes e amigos em relação a ele.

(ANÔNIMO. Obra incompleta sobre o Evangelho de Mateus, 2, PG 56, 640-641).

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IV – De Jerusalém a Belém

“Tendo eles ouvido as palavras do rei, partiram. E eis que a estrela, que tinham visto no Oriente, os foi precedendo até chegar sobre o lugar onde estava o Menino, e ali parou. A aparição daquela estrela os encheu de profunda alegria”.

Assim sempre procede Deus, recompensando aqueles que são fiéis à Sua graça. É comovedora a confiança penetrada de coragem desses Reis Magos, diante de um tirano de tal má fama. Não há dúvida de estarem sustentados por especial moção do Espírito Santo.

Reaparece a estrela

Terão partido à noite, ou durante o dia? De Jerusalém a Belém, levava-se duas horas de caminhada por via conhecidíssima. Entretanto, uns poucos autores defendem a tese de esse deslocamento ter-se efetuado durante o dia. Mas, como se explicaria o reaparecimento da estrela? Uns dizem não terem sido necessárias as sombras da noite, por tratar-se de um corpo luminoso em regiões atmosféricas mais próximas dos Magos. Outros interpretam essa passagem como se a estrela tivesse reaparecido só na entrada de Belém, uma vez que não havia como errar o caminho.

Ao ler estes versículos com devoção, chega-se, por momentos, a participar da alegria dos primeiros peregrinos aos Lugares Santos. O desaparecimento da estrela lhes pusera à prova a confiança; agora é a consolação como prêmio. Uma pergunta aqui surge, também. Por que se ocultara a estrela ao chegar a Jerusalém e reapareceu só em Belém? Será que já àquelas alturas Jerusalém não era digna de um sinal tão evidente e público? Ou, pelo contrário, escondendo-se, ela propiciou uma permanência maior dos Magos na cidade, e com isso a autenticidade do acontecimento tornou-se mais patente a todos os seus habitantes?

Adoraram-No, inspirados pelo Espírito Santo

“Entrando na casa, acharam o Menino com Maria, Sua mãe. Prostrando-se diante dEle, O adoraram. Depois, abrindo seus tesouros, ofereceram-Lhe como presentes: ouro, incenso e mirra”.

Emociona esta descrição de Mateus: “acharam o Menino com Maria, Sua mãe”. Palavras proféticas, inspiradas pelo Espírito Santo, para deixar constando pelos séculos afora que não se pode encontrar Jesus sem Maria, e menos ainda, Maria sem Jesus. A História comprova – e muito mais o fará – o quanto a devoção à Mãe conduz à adoração ao Filho, e vice-versa.

Chama-nos a atenção a referência de Mateus ao local onde Se encontrava o Menino: uma casa, não uma gruta. “Alguns autores antigos – entre eles São Justino – julgaram que ‘casa’ era um eufemismo, em lugar de ‘gruta’. São Jerônimo, em compensação, menciona várias vezes a gruta e nunca fala da lembrança nem da presença dos Magos nela. Não seria nada improvável que a palavra ‘casa’ tenha em Mateus seu sentido real. Situada essa cena à distância de um ano e meio do nascimento de Cristo, não é de crer-se que a Sagrada Família tenha permanecido alojada naquela gruta circunstancial; parece natural que ela tenha habitado uma modesta casa. Ademais, o versículo 22 sugere que ela havia se estabelecido em Belém”.13

Essa adoração prestada pelos Magos comprova mais uma vez a realidade da ação do Espírito Santo nas almas deles, tal qual afirma São Tomás de Aquino:

“Os Magos são ‘as primícias dos pagãos’ a crerem em Cristo. Neles apareceram, numa espécie de presságio, a fé e a devoção dos pagãos vindos a Cristo de lugares remotos. Por isso, sendo a fé e a devoção dos pagãos isentas de erro, por inspiração do Espírito Santo, também devese crer que os Magos, inspirados pelo Espírito Santo, se comportaram sabiamente ao prestarem homenagem a Cristo”.14

Quanto aos presentes, eles cumprem, com esse gesto, a profecia de Isaías: “Virão todos de Sabá, trazendo ouro e incenso, e publicando os louvores do Senhor. Todo o gado menor de Cedar se reunirá junto a ti, os carneiros de Nabaiot ficarão à tua disposição; fá-los-ão subir sobre meu altar para minha satisfação, e para a honra de meu templo glorioso” (Is 60, 6-7).

“Ao reconhecê-Lo como rei, ofereceram as primícias excelentes e preciosas do templo: o ouro que guardavam; por entender que Ele era de natureza divina e celestial, ofertaram incenso perfumado, forma de oração verdadeira, oferecida como suave odor do Espírito Santo; e em reconhecimento de que sua natureza humana receberia sepultura temporal, ofereceram mirra”.15

3 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36, a. 2, resp. c.
4 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36, a. 3 ad I.
5 MopsuÉstia, Teodoro de, Fragmentos sobre o Evangelho de Mateus, 6.
6 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36 a. 3c.
7 TUYA OP, Pe. Manuel de. Bíblia Comentada. Madrid: BAC, 1964, v. II, p. 35.
8 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36, a. 5 resp.
9 Ver quadro anexo: Não foi uma das estrelas do céu.
10 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: Rialp, 2000. v. I. p. 7-8.
11 Homilias sobre o Evangelho de Mateus, 6, 4: PG 57, 67-68.
12 Cf. Antiguidades dos Judeus, l. XV, c. 10, 4.
13 TUYA OP, Pe. Manuel de. Op. Cit. p. 39.
14 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36 a. 8, resp.
15 ANÔNIMO. Obra incompleta sobre o Evangelho de Mateus, 2: PG 56, 642.

(Revista Arautos do Evangelho, Jan/2009, n. 85, p. 10 à 19)

Ele é o “Príncipe da Paz” – Meditação de Natal

presepio-01Mons. João S. Clá Dias, EP

I – Divina solução para os problemas atuais

“O presépio de Belém nos mostra o Homem perfeito que, unindo numa só pessoa a natureza divina e a natureza humana, restitui a esta a melhor parte de seus privilégios, perdidos pelo pecado, e a plenitude dos benefícios daí decorrentes. Donde se segue que não temos outro meio de sermos homens – tanto do ponto de vista espiritual quanto do social – senão o de nos aproximarmos do Homem perfeito, da plena estatura da vita de Cristo: ‘donec occurramus in virum perfectum, in mensuram ætatis plenitudinis Christi’”. 1

O caminho para obter a harmonia, a concórdia e a paz

Por essa razão, ajoelhando-nos diante do Menino Deus – como o fizeram os Sagrados Esposos, os pastores, os Reis Magos e tantos outros -, estaremos contemplando os mais altos ensinamentos para ordenar toda a nossa vida cristã e social. Naquela Manjedoura se encontra “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6).

Naquele Menino vemos o Redentor, iniciando a Aula Magna do Seu Magistério, não ainda por meio de palavras, mas ensinando-nos, com não menor eloqüência, através do exemplo, o único e excelente meio para o restabelecimento da antiga atmosfera de nosso éden perdido: o espírito de sacrifício, de pobreza e de resignação no sofrimento.

Inúteis são as grandes assembléias para discutir de forma acalorada os dramas que, hoje em dia, atravessam as nações. Basta-nos essa belíssima lição posta diante de nossos olhos para recuperarmos nossa dignidade, nossa justiça original e até mesmo para a humanidade viver na harmonia, a concórdia e a paz que em tão alto grau existia no Paraíso Terrestre.

Nem a ciência com todo o seu progresso, nem a política com sua multissecular experiência, nem sequer o auxílio de todas as riquezas, são eficazes para solucionar os inúmeros problemas atuais. Se a sociedade resolvesse enveredar pelas vias que o Salvador nos oferece na simples recordação de Seu Santo Natal, viveria feliz, em meio à tranqüilidade universal.

Ele quis ser tudo para todos, e os seus não O receberam

Quão maravilhosa não teria sido a história de uma família que, por piedade e compaixão, tivesse aberto suas portas, na mais bela de todas as noites, para dar hospitalidade àqueles predestinados e bem-aventurados pais? Porém, narra-nos São Lucas que não houve lugar para eles em nenhuma hospedagem (cf. Lc 2, 7). Diz-nos São João: “Ele veio aos seus, e os seus não O receberam” (Jo 1, 11).

Mais terrível ainda é a conduta dos povos, nações, e da própria humanidade dos presentes dias, que não só não querem ver nascer em seu meio esse Menino Deus e Sua Santa Igreja, mas, pior ainda, dão- Lhes as costas, e além de caluniá-Los e persegui-Los, põem-Lhes toda espécie de obstáculos para o exercício de Sua missão.

O Menino-Mestre não poderia ter escolhido melhor meio para colocar- Se à disposição de todos, manifestando um caráter de universalidade em Seu nascimento. Realizou-o em lugar público de livre acesso, sem que ninguém pudesse ser impedido de aproximar- se. Quis nascer pobre para facilitar a todos irem até Ele e, por outro lado, quis descender de sangue real para que os nobres não se sentissem inclinados a desprezá-Lo. Portanto, não chamou uma única classe social, mas quis ser tudo para todos.

Entretanto, os seus não só não O receberam, como, depois de Ele ter devolvido a vista aos cegos, a fala aos mudos, a audição aos surdos, a deambulação aos paralíticos, a saúde aos leprosos, a vida aos mortos, crucificaram- No. Triste e incompreensível acontecimento que se renova até os dias de hoje.

Porém, é por cima de todas as infidelidades que, na noite de Natal, ainda nos dias atuais, recordamos aquele canto: “Gloria in altis simis Deo et in terra pax hominibus bonæ voluntatis” – Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens objeto da Boa Vontade de Deus (Lc 2, 14).

II – A paz cantada e oferecida pelos anjos

“E subitamente apareceu com o Anjo uma multidão da milícia celeste louvando a Deus e dizendo: ‘Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens objeto da Boa Vontade de Deus’” (Lc 2, 13-14).

Trata-se de um fato de grandeza incomensurável. O Unigênito gerado desde toda a eternidade é idêntico ao Pai e desejou encarnar-Se para, de dentro de uma natureza criada, poder louvá-Lo com toda submissão. O Divino Infante, ao nascer, oferece ao Pai um culto perfeito, além de reconciliar com Deus a humanidade, tornando-a, assim, apta para glorificá- Lo.

Essa é a causa da grande glória que Lhe prestam os puros e celestiais espíritos, pois exaltam a maior obra de Deus, na qual Ele manifesta ao universo Sua sabedoria, Sua misericórdia, Seu poder e tantas outras perfeições absolutas. Cumpre, desse modo, com superabundância e fidelidade, Suas mais antigas promessas.

Os Anjos, no Céu, cantam em ação de graças pelo mais extraordinário benefício realizado por Deus ao homem. Eles mesmos, puros espíritos, obtiveram frutos de tão grande obra, e até mesmo a própria perseverança deles teve a Redenção como fonte.

Nasceu o “Príncipe da Paz”

Nascemos sob a ira de Deus, devido ao pecado de nossos primeiros pais, mas podemos ser reconciliados com Ele por esse Divino Nascimento que, ademais, nos traz a tranqüilidade da consciência, a paz da alma e a harmonia entre os homens (cf. Ef 2, 14; Cl 1, 20).

“Quando a paz começava a reinar, os Anjos diziam: ‘Glória nas alturas e paz na terra’ (Lc 2, 14). Quando, porém, os de baixo receberam a paz dos de cima, eles proclamaram: ‘Glória na terra e paz nos Céus’ (Lc 19, 38). Quando a Divindade desceu à terra e se revestiu de humanidade, os Anjos proclamavam: ‘Paz na terra’. E quando a humanidade subiu e foi elevada, imergiu na Divindade e sentou-se à sua direita, os meninos clamavam diante dela: ‘Paz nos Céus, hosana nas alturas!’ (Mt 21, 9). Assim, o Apóstolo pôde dizer: ‘Por intermédio dAquele que, ao preço do próprio sangue na cruz, restabeleceu a paz a tudo quanto existe na terra e nos céus’ (Cl 1, 20).

“Os Anjos diziam: ‘Glória nas alturas e paz na terra’; e os meninos: ‘Paz nos Céus e glória na terra’ (Lc 19, 38). Aparece assim com clareza que, como a graça da misericórdia de Cristo alegra os pecadores na terra, assim também seu arrependimento atinge os Anjos do Céu” (cf. Lc 15, 7-10).2

O Menino louvado pelos Anjos é o “Príncipe da Paz” anunciado sete séculos antes por Isaías (9, 5) e que, anos mais tarde, afirmará serem bem-aventurados os pacíficos – aqueles que sabem estabelecer em si mesmos e nas almas dos outros o reino da paz – dando-lhes o título de Filhos de Deus.

Precioso dom que não nos será retirado

O beata nox! Sim, bendita noite que assiste ao nascimento de um Menino a inaugurar uma nova era histórica. Naquela noite foi oferecido à humanidade um precioso dom que não lhe seria retirado nem mes mo quando aquele Menino retornasse à eternidade: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração nem se atemorize” (Jo 14, 27).

Qual é o sentido destas palavras? Eis: Eu não vo-la dou como dão os homens que amam o mundo. Estes, com efeito, oferecem a paz, a fim de – livres de preocupações, de processos e de guerras – poderem gozar, não de Deus, mas do mundo, ao qual entregaram o seu afeto. E quando eles oferecem a paz aos justos, cessando de persegui-los, não é uma paz verdadeira, porque não há verdadeiro acordo onde os corações estão desunidos. Chamamos consortes àqueles que unem sua sorte. Aqueles que unem seus corações, do mesmo modo, devem se chamar concordes. Para nós, meus caríssimos irmãos, Jesus Cristo nos deixa a paz e nos dá sua paz, não como a dá o mundo, mas como a dá Aquele por quem foi criado o mundo. Ele no-la dá para que todos estejamos de acordo, para que estejamos unidos de coração e, tendo um só coração, o elevemos ao alto, não nos deixando corromper na terra”.3

A pseudo-paz que o mundo nos oferece

Todas as palavras de Jesus são de vida eterna e misteriosamente atraentes, mas, sendo recordadas bem junto ao Presépio, levam-nos a querer penetrar a fundo em seu significado, sobretudo, as que se referem à paz trazida a nós naquela noite. Qual será sua natureza? É ela que toda criatura humana com sofreguidão deseja, mas quão freqüentemente a busca onde ela não se encontra e, mais ainda, se equivoca quanto ao seu verdadeiro conteúdo e substância!

Não consistirá nesse equívoco a causa principal de o mundo estar quase sempre pervadido por guerras e catástrofes ao longo de vários milênios? Tudo fruto da pseudopaz que o mundo nos oferece, bem diferente da que os Anjos cantaram aos pastores, naquela bendita noite de Natal.

A esse propósito, comenta Orígenes: “Onde não está Jesus, há disputas e guerras, mas onde Ele está presente tudo é serenidade e paz”.4 Santo Agostinho afirma que a paz consiste em um “bem tão nobre que, mesmo entre coisas mortais e terrenas, nada há de mais grato ao ouvido, nem mais doce ao desejo, nem superior em excelência”.5 E São Beda acrescenta: “A verdadeira, a única paz das almas neste mundo consiste em estar cheias de amor de Deus e animadas da esperança do Céu, a ponto de considerar pouca coisa os êxitos ou reveses deste mundo. […] Engana-se quem imagina que poderá encontrar a paz no gozo dos bens deste mundo e nas suas riquezas. As freqüentes perturbações nesta terra e o fim deste mundo deveriam convencer o homem de que ele construiu sobre areia os fundamentos de sua paz”. 6

Paz e pecado não podem viver juntos

A paz cantada e oferecida pelos Anjos encontra-se na santidade para a qual todos nós somos chamados. Fomos criados por Deus e para Ele; enquanto a suma Verdade não ilumine nossa inteligência, enquanto o Bem supremo não ocupe um lugar primordial em nosso coração, serão frustrados nossos esforços em busca da paz. Num mesmo coração não podem viver juntos a paz e o pecado. “Não há paz no coração do homem carnal, nem no do homem entregue às coisas exteriores, mas somente no daquele que é fervoroso e espiritual”. 7 Por isso, quanto mais procuro a paz nos gozos deste mundo, mais me acusará minha consciência pelo fato de me colocar fora da ordem do universo, e sobretudo se, por desgraça, venha eu a abraçar as vias do pecado. Neste caso, serei objeto do ódio de Deus e dos raios de Sua santa cólera. Pior ainda será minha situação se eu conseguir abafar a voz de minha consciência; aí, no silêncio profundo de meu inveterado e pérfido coração, se evanescerão os remorsos, angústias e temores pela virtude perdida. E neste caso, a morte ocupará o lugar deixado em minha alma pela antiga paz.

Em realidade, o que é a verdadeira paz?

Diz-nos São Tomás de Aquino: “Quem tem um desejo, deseja também a paz, uma vez que ele almeja obter tranqüilamente e sem impedimentos o objeto desejado. E nisso consiste a paz, que Santo Agostinho define como ‘a tranqüilidade da ordem’”. 8 Portanto, nossos anseios sempre são acoplados a uma busca de paz. E a única capaz de satisfazer o coração humano é aquela oferecida pelos Anjos a toda a humanidade, na pessoa dos pastores.

Tranqüilidade e ordem são os elementos constitutivos dessa paz. Pode vir a existir tranqüilidade sem ordem, e vice-versa: em nenhum desses casos haverá verdadeira paz, ainda que desta possam existir aparências.

Não é por mera expansividade que os Anjos cantam em primeiro lugar: “Glória a Deus no mais alto dos Céus…” (Lc 2, 14), pois a verdadeira paz procede do Espírito Santo, como as plantas nascem das sementes ou das raízes, tal qual ressalta São Paulo: a paz é “fruto do Espírito Santo” (Gl 5, 22) e “está acima de todo entendimento” (Fl 4, 7). O Doutor Angélico afirma, e torna-se óbvio, que vive em perfeita ordem quem está unido a Deus, pois Ele ordena as potências da alma, com seus sentidos e faculdades, por ser Ele mesmo o primeiro princípio e último fim de toda a criação. Daí produzir essa união o repouso interior. Ademais, quando nossa união com Deus é plena, não pode haver perturbação porque tudo o que não é Deus, reputamos como sendo nada, conforme proclama São Paulo: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós?” (Rm 8, 31).

É-nos fácil compreender como o homem que está em paz com Deus também o estará consigo mesmo, assim como com os demais, pois o fundamento da verdadeira paz é viver em paz com Deus Nosso Senhor. Por isso nos diz São Cirilo: “Envergonhemonos de prescindir do dom da paz, que o Senhor nos deixou quando ia sair do mundo. A paz é um nome e uma coisa saborosa, a qual sabemos que provém de Deus, como diz o Apóstolo aos filipenses: a paz de Deus. E que ela é de Deus, mostra-o também quando diz aos efésios: Ele é nossa paz. A paz é um bem recomendado a todos, mas observado por poucos. Qual é a causa disso? Talvez a ambição de poder, a inveja, o ódio ao próximo, ou algo do gênero, que vemos naqueles que desconhecem o Senhor. A paz procede de Deus, o qual é quem une tudo […] Transmitea aos Anjos […] e se estende também a todas as criaturas que verdadeiramente a desejam”.9

Principal razão pela qual os homens de hoje não acham a paz

Se, como acima dissemos a paz é fruto do Espírito Santo, a base dela se encontra fixa na vida da graça e da caridade. Ora, o Autor da graça é Jesus Cristo: “A graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1, 17). E, portanto, é Ele também o autor da paz: “Cristo é a nossa paz” (Ef 2, 14).

Essa é a principal razão de não encontrarem os homens de hoje a verdadeira paz. Claro! Pois ela não surge dos tratados. Quando muito, aordem externa das nações consegue reparar os estragos materiais do pósguerra, mas somente a tranqüilidade e ordem da alma é que – enquantoelementos essenciais – trazem a autêntica paz. Esta se evanesceu do concerto das nações e nem sequer no interior das mesmas nós a podemos desfrutar.

E o que dizer das dissensões no seio das famílias, instituição que a cada passo ainda mais se deteriora pela agressão de vários fatores adversos conjugados: corrupção moral progressiva, desfazimento da autoridade paterna, generalizada violação da fidelidade conjugal, desprezo da Lei de Deus e até mesmo do bem social no cumprimento dos sagrados deveres para com os filhos?

Todas essas desordens têm sua causa no próprio homem atual, penetrado de descontentamento em seu coração, irmão siamês do fastio, acidez e inquietação. Quase toda criatura humana, hoje em dia, é possuída por um espírito de insubordinação a qualquer tipo de autoridade, seja ela eclesiástica, religiosa, política, familiar, etc. Sem falar da processiva perda do pudor, que constitui hoje o mal de todos os povos…

Magistério dos Papas

Sábias, a esse propósito, foram as palavras do Beato João XXIII em sua famosa Encíclica Pacem in Terris:

“A paz na terra, anseio profundo de todos os homens de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus. […] Contrasta clamorosamente com essa perfeita ordem universal, a desordem que reina entre indivíduos e povos, como se as suas mútuas relações não pudessem ser reguladas senão pela força. […]”

Em última análise, só haverá paz na sociedade humana, se essa estiver presente em cada um dos membros, se em cada um se instaurar a ordem querida por Deus. Assim interroga Santo Agostinho ao homem: ‘Quer a tua alma vencer tuas paixões? Submeta-se a quem está no alto e vencerá o que está em baixo. E haverá paz em ti, paz verdadeira, segura, ordenadíssima. Qual é a ordem dessa paz? Deus comandando a alma, a alma comandando o corpo. Nada mais ordenado’”.10

E em recente pronunciamento, Bento XVI, nosso Pontífice felizmente reinante, assim se exprimiu sobre o mesmo tema: “Em primeiro lugar, a paz deve ser construída nos corações.

De fato é neles que se desenvolvem sentimentos que podem alimentá-la ou, ao contrário, ameaçá-la, enfraquecê-la, sufocá-la. Aliás, o coração do homem é o lugar das intervenções de Deus. Portanto, ao lado da dimensão ‘horizontal’ das relações com os outros homens, revela- se de importância fundamental, nesta matéria, a dimensão ‘vertical’ da relação de cada um com Deus, no qual tudo tem o seu fundamento”.11

Glória no Céu e paz na terra

Por isso, neste Natal, em meio aos múltiplos dramas atuais, ecoam mais do que nunca para nós os cânticos dos Anjos, como outrora para os pastores. Eles nos oferecem a verdadeira paz, a cada um de nós em particular, convidando-nos a subordinarmos nossas paixões à razão, e esta, à Fé. Oferecem- nos também o término da luta civil, da luta de classes e das próprias guerras entre as nações, com a condição de observarmos cuidadosamente as exigências impostas pela hierarquia e pela justiça. Em síntese, é-nos indispensável, para recebermos dos Anjos essa oferta tão ansiada por nós, estarmos em ordem com Deus, reconhecendo nEle o nosso Legislador e Senhor, e amando-O com todo entusiasmo.

É o que, com tanta lógica e unção, comenta São Cirilo: “Não O olhes simplesmente como um menino depositado num presépio, mas em nossa pobreza devemos vê-Lo rico como Deus, e por isso é glorificado inclusive pelos Anjos: ‘Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade’. Pois os Anjos e todas as potências superiores conservam a ordem que lhes foi dispensada e estão em paz com Deus. De modo algum se opõem ao que Lhe agrada, mas estão firmemente estabelecidos na justiça e na santidade. Nós somos desgraçados ao colocar nossos próprios desejos em oposição à vontade do Senhor, e nos colocamos nas fileiras de seus inimigos. Isso foi abolido por Cristo, pois Ele mesmo é a nossa paz (cf. Ef 2, 14) e nos une por sua mediação com Deus Pai, tirando o pecado, causa de nossa inimizade, justificando-nos pela fé e aproximando os que estão distantes. Além disso, modelou os dois povos em um homem novo, fazendo a paz e reconciliando ambos em um só corpo com o Pai (cf. Ef 2, 15-16). Com efeito, agradou a Deus Pai reunir nEle todas as coisas, e unir os de cima com os de baixo, os do Céu e os da terra, e dizer que há um só rebanho. Cristo tem sido para nós paz e boa vontade”.12 E com não menor espiritualidade, acrescenta São Jerônimo: “Glória no Céu, onde não há dissensão alguma, e paz na terra, onde há guerras diariamente. ‘E paz na terra’. E em quem essa paz? Nos homens. […] ‘Paz aos homens de boa vontade’, isto é, àqueles que recebem Cristo recém-nascido”. 13(Revista Arautos do Evangelho, Dez/2008, n. 84, p. 10 à 19)

1 PIO X, São. Discurso de 23/12/1903 apud Lettres Apostoliques de S. S. Pie X. Paris: Maison de la Bonne Presse, v. I, p. 210.

2 EPHREM DE NISIBE, Saint. Commentaire de l’Évanglile Concordant ou Diatessaron, Lc 2, 14. Paris: Éditions du Cerf, 1966, p. 73.

3 AUGUSTINUS HIPPONENSIS, Sanctus. In Evangelium Ioannis, t. 77.

4 Apud: AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea, in Mt. c. 27, l. 4.

5 AUGUSTINUS HIPPONENSIS, Sanctus. De Civitate Dei. L. XIX, 11

6 BEDA VENERABILIS, Sanctus. Homilia XI in Vigilia Pentecostes.

7 KEMPIS, Tomás de. Imitación de Cristo, Libro I, cap. 6, 2.

8 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica II-II, q. 29, a. 2.

9 Apud: AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea, in Lc 24, vv. 36-40.

10 JOÃO XXIII, Carta Encíclica Pacem in Terris, 11/4/1963, nn. 1, 4 e 164.

11 BENTO XVI, Mensagem no XX aniversário do Encontro Inter-Religioso de Oração pela Paz, 2/9/2006.

12 CIRILLUS ALEXANDRINUS, Sanctus. Commentarii in Lucam, 2, 14.

13 HIERONYMUS PRESBYTERUS, Sanctus. Homilia de Nativitate Domini, n. 65 (Morin n. 394).

EPIFANIA DO SENHOR

Email recebido da Congregação para o Clero – Clerus.org

mons-mauro-piacenza«Os Reis de Társis e das ilhas vão trazer-lhe ofertas, os reis de Sabá vão pagar-lhe tributo. Que o adorem todos os reis da terra e o sirvam todas as nações» (cf. Sal 72). A Solenidade de hoje mostra-nos o cumprimento desta profecia. Os sábios “pagãos” vão à manjedoura de Belém. O nascimento do Salvador apresenta-se como um acontecimento que interessa não só ao Povo de Israel, mas a todo homem. A liturgia apresenta um fato particular – a adoração dos Magos – e, através de tal acontecimento, insere-nos na Realidade divina. Eis a pedagogia divina: A Incarnação.

Os três Magos, cujos restos mortais são custodiados na Catedral de Colônia, eram homens em atitude de profunda espera, que escrutavam os céus em busca dos sinais do Criador. Para fazer-se encontrar por eles, o Senhor utiliza aquilo que lhes era mais familiar: a estrela. Tratava-se de uma estrela com luminosidade e dimensões similares a qualquer outra, mas que ao mesmo tempo, era absolutamente única. De fato, ao resplandecer sobre suas faces reacendia os seus corações, mostrando para qual Luz fossem realmente feitos e colocando-os em caminho.

Tratava-se de um “sinal”, algo de absolutamente comensurável, mas que remetia a uma Realidade superior ao próprio significado.

Durante a viagem, especialmente quando os Magos chegaram a Jerusalém, parecia que a estrela havia desaparecido, mas, na realidade, estavam diante de uma estrela bem maior, que lhes permitiu reconhecer a necessidade de dar um passo ulterior. De fato, reconheceram que foram conduzidos ao coração de Israel, o Povo que o Senhor escolheu como sua morada, e àquela nova Estrela confiaram o próprio caminhar. Depois do cosmos, da obra da criação, a primeira Aliança é o “grande sinal” que Deus pôs no mundo, através do mistério da predileção.

No entanto, parece que aquela luz não resplandeceu com a mesma pureza do astro celeste, ainda que fosse sempre uma mesma luz, pois em diversos momentos indicou aos Magos o caminho, animados das mais díspares das intenções: o rei Herodes serviu-se deles para eliminar um possível rival no poder e concorrente ao título de Rei; além disso, os chefes dos sacerdotes e os escribas usaram a sabedoria recebida de Deus para secundar as solicitações de Herodes, ao ponto de fazê-lo permanecer em Jerusalém, ao invés de acompanhar os Magos à Belém.

O Evangelista mostra-nos o Mistério da Igreja, a Comunidade daqueles que, por graça divina, tornaram-se filhos no Filho, ao mesmo tempo em que foram chamados a fazerem-se, com a ajuda divina, plenamente participantes da Vitória de Cristo sobre o pecado e a morte.

Confiamo-nos ao Senhor Jesus que, sobretudo através daqueles “astros” – que de modo todo especial resplandece na vida dos Santos – indica-nos, incansavelmente e com fidelidade divina, a Igreja como lugar do encontro com Ele. Juntamente com os Magos, aprendemos da Bem-Aventurada Virgem Maria e da fé das pessoas simples, a ter mesma atitude dos pastores: prostrar-se diante de Cristo, verdadeira Eucaristia, e oferecer ao Rei dos reis o ouro dos nossos “tesouros”, ao Deus-conosco o incenso da nossa oração, e ao Redentor Crucificado e Ressurrecto a mirra do nosso sofrimento.

Assim nos tornaremos, sempre mais, participes da Vida do Senhor Jesus, único e verdadeiro “Astro do Céu”, e se realizará também em nós a profecia de Isaías: “Então verás, e teu rosto se iluminará, teu coração vai palpitar e arfar, pois estarão trazendo a ti os tesouros de além-mar, aí chegarão as riquezas das nações” (cf. Is. 60, 5).

Citações de:

Is 60,1-6: http://www.clerus.org/bibliaclerusonline/it/9abuxwb1.htm

Eph 3,2-6: http://www.clerus.org/bibliaclerusonline/it/9absu0c.htm

Mt 2,1-12: http://www.clerus.org/bibliaclerusonline/it/9abttkb.htm

O menino que reverteu a História e a visita dos pastores

adoracao            Mons. João Clá Dias, EP

            Entremos numa certa gruta e ali veremos um Menino adorado por sua Mãe Santíssima e São José, reunidos em família, oferecendo mais glória a Deus do que toda a humanidade idólatra, e até mesmo mais do que os próprios anjos do Céu em sua totalidade. Já em seu nascimento, numa singela manjedoura, aquele Divino Infante reparava os delírios de glória egoísta sofregamente procurada pelos pecadores. Ele se encarnava para fazer a vontade do Pai e, assim, dar-nos o perfeitíssimo exemplo de vida.

            Nenhum pensamento, desejo, palavra ou ação surgida de sua alma divinamente santa terá outro fim que não seja o de glorificar o Pai, a quem tudo consagrou desde o primeiro instante.

            Não tardarão muitos séculos, depois daquele natal, para os altares dos falsos deuses serem arrasados, os ídolos quebrados, os templos pagãos destruídos – ou convertidos em santuários – e os próprios demônios se calarem. Sim, aquele Menino nascido numa gruta reverterá o trabalho realizado por Satanás durante milênios, e a Roma pagã será a sede do Cristianismo; transformada na Cidade Eterna, dentro de suas muralhas, sobre uma pedra inabalável, se estabelecerá até o fim dos tempos uma infalível cátedra da moral e da verdade.

            Mas, por outro lado, onde encontrariam os anjos, homens dignos de serem convidados para adorar o Menino? Na própria Belém, o berço de Isaí (1 Sm 16, 1) e de seu filho Davi, o humilde e jovem pastor “louro e de formosos olhos” (1 Sm 16, 12). Nos campos daquelas regiões, escolheram os anjos os destinatários do grande anúncio, pessoas pertencentes à mesma condição social do Rei e Profeta: os pastores de ovelhas. Assim, dois cortesãos do mais nobre sangue – Maria e José -, junto com os pastores de condição humilde e a própria Corte Celeste constituiriam os adoradores do Menino- Deus recém-nascido. Do Templo, nenhum representante.

            Os escribas e fariseus desprezavam aquela classe de homens que, dia e noite, no verão ou no inverno, guardavam os rebanhos naquelas pastagens de Belém. Pelo seu teor de vida, os pastores não se enquadravam nas minuciosas práticas e abluções religiosas dos cerimoniais farisaicos.

            Os terrenos por eles ocupados não eram suficientemente irrigados e, por isso, não lhes assistia um escrupuloso asseio. Ademais, a instrução era por eles acolhida diretamente na própria natureza que não lhes ensinava o uso de vasilhas, a escolha dos alimentos puros etc. Formavam eles uma comunidade à margem da sociedade, que vivia do pasto e no pasto, portanto um povo da terra, totalmente desprezado pelos fariseus. Além disso, eram excluídos do normal procedimento dos tribunais, sendo considerados inválidos seus testemunhos em juízo. Paradoxalmente, os excluídos dos pleitos farisaicos são agora convidados, pelos anjos do Supremo Juiz, a penetrar na corte de um príncipe herdeiro do trono de Davi.

            Quando os anjos se retiraram deles para o Céu, os pastores diziam entre si: ‘Vamos até Belém e vejamos o que é que lá aconteceu e o que é que o Senhor nos manifestou’. A flexibilidade de alma daqueles pastores era plena, submissa e toda feita de prontidão. O anjo lhes dissera para não temerem (cf. Lc 2, 10) e não consta nesse relato de Lucas que tenham passado por algum espanto ao longo do contato com aqueles puros espíritos. Ora, sabemos pela História o quanto os judeus se amedrontavam com as aparições angélicas, julgando que a morte com certeza se lhes seguiria (cf. Jz 6, 22-23; Jz 13, 20-22; Tb 12, 16-17). Mas esses pastores, apesar de homens de pouquíssimo conhecimento, intuíram rapidamente que, por fim, nascera o Messias.

            Sem conhecer as amplas e profundas explicações doutrinárias dos fariseus, eles como todo e qualquer judeu, sabiam da promessa feita por Deus e anunciada pelos profetas aos antigos sobre o futuro aparecimento de um Salvador. Não seria quiçá esse o tema de suas conversas durante as noites de pastoreio? Restou-nos apenas uma síntese das palavras do anjo a eles. Entretanto não será exagerado crer que ele lhes tenha esclarecido qual deveria ser o lugar e o caminho de acesso à gruta, tanto mais que lhes indicou os sinais distintivos: “Encontrareis um Menino envolto em panos e posto no Presépio” (Lc 2, 12).

            As grutas da região lhes deviam ser muito familiares, pois eram os locais de refúgio onde buscavam proteção contra as intempéries. Tampouco se pode descartar a hipótese de ter havido antecedentes de partos ocorridos em circunstâncias análogas às do Natal. O certo é que em nenhum momento lhes passa pela alma a menor dúvida e, por isso, comentam entre si, em meio a muita alegria, o fato narrado pelo anjo, e convictamente concluem e decidem empreender a caminhada rumo ao “que o Senhor nos manifestou” (v. 15).

            “Foram a toda pressa, e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura”.

            O amor não admite lentidão. A pressa dos pastores comprova o grande fervor com que receberam a boa nova. Como não conheciam o emaranhado conceitual dos fariseus, não se levantou em suas almas a menor objeção sobre a realidade do Messias que se lhes manifestava diante de todos e de cada um. Trinta e poucos anos mais tarde, a cega doutrina dos escribas e fariseus se uniria aos conceitos dos saduceus e herodianos – sem excluir os do próprio Sinédrio – para se opor ao senso comum e sobrenatural dos humildes de espírito e assim, com entranhado ódio, empregar todos os recursos com vistas à condenação do “Salvador, que é Cristo e Senhor, [nascido] na cidade de Davi” (v. 11).

            Ali na gruta, naquele momento, estavam presentes o Pai Eterno e o Divino Espírito Santo, que viam naquele tenro, delicado e ao mesmo tempo grandioso Menino, a realização de um plano idealizado desde todo o sempre: “Tu és meu filho muito amado, em quem coloco todas as minhas complacências” (cf. Lc 4, 22 e Mc 1, 11). Como também Maria Santíssima, que através de seus altíssimos dons, de maneira inigualável penetrava os mistérios daquele Nascimento. José a acompanhava muito de perto. Abismados ambos pela incomensurável humildade de Deus em fazer- se homem –  à diferença da soberba dos demônios -, concentravam-se para adorar o Divino Infante.

            Lá chegam agora também os pastores, em simplicidade e pobreza, atraídos e amados por Deus devido a seu espírito de obediência, e por serem contemplativos. Não era a pobreza material que os tornava diletos de Deus, pois pobres os havia em situação ainda mais deficiente e em maior número. Ademais, não podemos nos esquecer de que essa não era a condição social dos Reis Magos, que paralelamente estavam se pondo a caminho para adorar o Divino Infante. Por outro lado, seria outro erro querer atribuir ao portentoso milagre da aparição dos anjos, durante a noite, o fator decisivo para a crença daqueles homens toscos e talvez iletrados.

            Quão maiores e incontáveis seriam os milagres operados por aquele Menino em sua vida pública! Entretanto, muitos judeus não creram. O fator decisivo foi um especial dom de fé que lhes foi concedido. A Teologia nos ensina que há uma fé que se poderia denominar puramente intelectual: a pessoa crê em Deus, mas chega a odiá-Lo e temê- Lo como fazem os demônios e os precitos. Há, ainda, os que crêem, mas não traduzem em obras sua fé.

            Os fatos, como nos são narrados por Lucas, fazem-nos concluir que os pastores possuíam uma fé flexível e obediente, colocando em prática tudo aquilo em que acreditaram. Sem perda de tempo, submeteram todo o seu entendimento e vontade ao que lhes anunciou o sobrenatural. É naquela noite que, diante do Presépio, encontramos os primeiros cristãos adorando a Cristo, o Absoluto abnegado, despido das manifestações da glória que Lhe é devida. Os pastores, ao serem capazes de adorá-Lo na manjedoura, não teriam dificuldade de fazê-lo no Calvário, tal como Maria o fez de modo tão sublime.

            Nós também, nos dias atuais, temos o nosso presépio. O mesmo Unigênito Filho de Deus, reclinado sobre as palhas no interior da gruta em Belém, está presente debaixo das Espécies Eucarísticas. Será que igualmente nos movemos “apressadamente” em busca do Salvador, como o fizeram os pastores?