Amor e holocausto

Mons. João S. Clá Dias, EP

Para São Tomás, a essência do oferecimento de Jesus, como vítima na Cruz, encontra seu verdadeiro valor espiritual não só na paciência com que suportou a Paixão, ou no auge da dor moral e física a que foi submetido. Ele chama a atenção para a obediência suprema da Divina Vítima, disposta a sofrer o auge de humilhação e dor, até à morte. Com efeito, abdicando de Sua vontade humana — “não seja feito como Eu quero, mas como Tu queres”(Mt 26, 39) — contradiz a soberba do homem pecador (cf. Rm 5, 19), conferindo assim méritos infinitos a Seus sofrimentos e morte.[1]

É notória, como ressalta o próprio Doutor Angélico, a ligação íntima entre a obediência de Cristo e Sua ardente caridade. Sua obediência exímia “procedia da dileção que possuía pelo Pai e por nós”.[2] Ao mesmo tempo, por atingir o extremo de submissão e humilhação, mostrou-nos “a largura, o comprimento, a altura e a profundidade” de Seu amor “que ultrapassa todo o conhecimento” (Ef 3, 18-19).

Ao provar no artigo 2 da questão 22 que Cristo foi sacerdote e vítima ao mesmo tempo, São Tomás dá como principal argumento as palavras do Apóstolo: “Cristo nos amou e Se entregou a Deus por nós em oblação, como vítima agradável” (Ef 5, 2). Parece depreender-se daí que o amor de Jesus por nós foi a causa de Sua total entrega em holocausto.[3]


[1] Cf. Super Philip. cap. 2, lec. 2.
[2]Super Rom. cap. 1, lec. 5.
[3] Cf. Super Eph. cap. 3, lec. 5.

Papel da espera, até a vinda do Espírito Santo

Ascenção

Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

Antes de subir aos Céus, o Redentor não dá nenhuma recomendação política e muito menos insinua algo na linha de uma reconquista do poder de Israel. Pelo contrário, suas palavras visam uma atuação estritamente moral, religiosa e penitencial em nome de Deus.

Essa conversão, a qual na sua essência é a mudança de mentalidade (metanóia), já havia sido intensamente estimulada pelo Precursor. João Batista se apresentara como a voz que clama no deserto, a fim de que todos endireitassem os caminhos para a chegada do Senhor. Esse é também o legado do Redentor aos seus, antes da Ascensão. A substituição dos critérios equivocados pelos verdadeiros é indispensável para a real conversão. Saulo, em um só instante a realizou, logo ao cair do cavalo, e assim mesmo passou por um retiro de três anos no deserto para torná-la irreversível, como também profunda e eficaz. Comumente, ela se faz de maneira lenta, após os fulgores de um primeiro como que “flash”, mediante o qual, pela graça do Espírito Santo, a alma se dá conta das belezas das vias sobrenaturais e por elas resolve trilhar com decidida firmeza. Sem essa conversão, é-nos praticamente inútil o Mistério da Redenção e de nada nos adianta o Evangelho. De forma explícita ou implícita – dada nossa natureza racional – a atuação de nossa inteligência e vontade se faz com base em princípios e máximas que norteiam as potências de nossa alma. É sobre essa fonte que se concentra o esforço da conversão. Em síntese, trata-se de substituir o amor próprio, o qual se manifesta no apego às criaturas, pelo amor a Deus.

É de dentro da visualização perfeita a respeito da retidão da prática da Lei de Deus e de sua santidade que brota o eficaz pedido de perdão dos pecados. É nesse contraste que o penitente tem plena consciência da grande misericórdia anunciada por Jesus, antes de sua partida para os Céus. Nem os anjos revoltosos e nem os homens que morreram em pecado receberam essa dádiva incomensurável. E, nesse momento, ela nos foi oferecida pelo próprio Filho de Deus.

Iniciando-se em Jerusalém, do Sagrado Costado de Cristo nasce a Igreja a pregar ali, e depois pelo mundo afora, a Boa Nova do Evangelho. Assim havia profetizado o Antigo Testamento, assim ordenou naquela ocasião o próprio Jesus Cristo.

“Eu vou mandar sobre vós o Prometido por meu Pai. Entretanto, permanecei na cidade até que sejais revestidos da força do Alto” (Lc 24, 49). Trata-se da Terceira Pessoa da Trindade, que Jesus enviaria, segundo a promessa feita pelo Pai, ou seja, “a força do Alto”. É o Espírito Santo, que procede do amor entre o Pai e o Filho, que descerá sobre eles, a fim de serem n’Ele submersos, penetrados e revestidos por Ele, para, assim transformados, realizarem sua missão de testemunhas. Os Apóstolos “serão preparados com a grande força renovadora e fortalecedora de Pentecostes. Receberão o Espírito Santo, de cujo envio tanto falou o Evangelista João nos discursos da Última Ceia” (1).

A ordem de não saírem de Jerusalém sob qualquer pretexto tinha por objetivo a espera de Pentecostes para começarem a pregar. Entenderam eles que, esse período, deveriam passá- lo em recolhimento, pois é nessas circunstâncias que mais profundamente Ele age.

São João Crisóstomo comenta a esse propósito: “Para não se poder dizer que tinha abandonado os seus para ir manifestar-Se – mais ainda, ostentar- Se – aos estranhos, ordenou-lhes Jesus apresentar as provas de sua Ressurreição primeiramente àqueles mesmos que O tinham matado, na cidade onde foi cometido o temerário atentado, pois, se os que haviam crucificado o Senhor davam mostras de crer, ter-se-ia uma grande prova da Ressurreição” (2).

Por outro lado, continua São João Crisóstomo: “Assim como, num exército que se alinha para atacar o inimigo, o general não permite a ninguém sair antes de estarem todos preparados, da mesma forma Jesus não permite a seus Apóstolos saírem a pelejar enquanto não estejam preparados pela vinda do Espírito Santo” (3).

E por qual razão o Espírito Santo não desceu sobre os Apóstolos, de imediato? “Convinha que nossa natureza se apresentasse no Céu e fossem realizadas as alianças, e depois então viesse o Espírito Santo e se celebrassem os eternos júbilos”, opina Teofilacto (4).

In: (Revista Arautos do Evangelho, Maio/2007, n. 65).

Após a Ressurreição, o Senhor faz dos apóstolos continuadores da Sua missão

Pe. Juan Carlos Casté, EP

O Senhor, depois de ter rezado ao Pai, constituiu Doze apóstolos para enviá-los a pregar o Reino de Deus.[1] O número dos Doze recorda as doze tribos de Israel; de um lado expressa a edificação do novo Israel, nascido do “resto” do antigo, mas por outro lado, é intenção de Nosso Senhor romper com a casta sacerdotal limitada a uma tribo.

O próprio ato de eleição comporta já uma participação dos apóstolos à consagração e missão de Jesus, porque os escolhe para enviá-los a pregar, portanto, fá-los partícipes da Sua consagração e da Sua missão, realizando-se isto em diversos momentos e coincidindo com a instituição do sacramento da ordem, observável em diversas ocasiões nas quais recebem de Jesus a chamada, a potestade e a missão, completada no Pentecostes.

O magistério une a instituição da ordem à Eucaristia. João Paulo II, por exemplo, reafirmou a doutrina tridentina da união da ordem com a Eucaristia. Depois da Ressurreição, o Senhor faz dos apóstolos os continuadores da Sua missão e lhes dá o poder de perdoar os pecados.[2] Essa missão dos apóstolos deriva da consagração recebida. Não é própria, em duplo sentido: é uma iniciativa de Outro e a sua capacidade para desenvolvê-la é participada.

Nessa missão os apóstolos foram confirmados no dia de Pentecostes. Ao descer o Espírito Santo, realizou-se o cumprimento da promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo e se completa a instituição da ordem sagrada enquanto dá aos apóstolos a graça necessária para cumprir a Sua missão exercitando a potestas sacra. Os apóstolos receberam, deste modo, a qualificação que permanecerá nos detentores do sacerdócio ministerial: uma capacidade ontológica e um “impulso interior” — o dom de Pentecostes contém também aquilo que posteriormente se chamará “graça sacramental específica” da ordem.[3] Se a missio Ecclesiae é sempre reconduzível à missão invisível do Filho e do Espírito Santo, a missio apostólica deverá ter a sua origem não só em Cristo, como também no Espírito Santo.

O grupo dos Doze reunido no Cenáculo, como gérmen da Igreja, tinha já sido enviado pelo Senhor aos filhos de Israel, e depois a todas as gentes, a fim de que, participando da sua potestade, os convertessem em discípulos, os santificassem e os governassem, porém, foram confirmados nessa missão no Pentecostes. Foram impulsionados à missão e a predicar audazmente o Evangelho. Esse dom do Espírito Santo, o mesmo Espírito de Cristo, desceu sobre eles para que O comuniquem a todos os homens.

A posição dos Doze, ademais de serem embaixadores e ministros de Cristo, situa-os também à cabeça da comunidade cristã. Eles estão conscientes de estar investidos de autoridade, executando-a inclusive com veemência.[4] Escolhidos juntos, a sua união fraterna estará a serviço da comunidade. Sua autoridade não é de domínio, mas exercitada “para edificar e não para destruir”.[5]


[1] Mc 3, 13-19; Mt 10, 1-42.

[2] Cf. Jo 20, 21-23.

[3] Cf. Philipe Goyret Chiamati, Consacrati, Inviati Il Sacramento dell’Ordine. Libreria Editrice Vaticana, 2003.

[4] Cf. 1 Cor 4, 21; 5, 5.

[5] 2 Cor 13, 10.

A Ressurreição do Senhor

Mons. João S. Clá Dias, EPjesus2

Quia surrexit sicut dicit… Tal como havia anunciado aos seus (Mt 16, 21; 17,9; 17, 22; 20, 19; Jo 2, 19, 20 e 21; Mt 12, 40), Jesus ressuscitou. Esse supremo fato já havia sido previsto por David (Sl 15, 10) e por Isaías (Is 11, 10).

São Paulo ressaltará o valor desse grandioso acontecimento: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1 Cor 15, 14). Daí a importância capital da Páscoa da Ressurrei­ção, a magna festa da Cristandade, a mais antiga, e centro de todas as outras, solene, majestosa e pervadida de júbilo: “Haec est dies quam fecit Dominus. Exultemus et laetemur in ea” — esse é o dia que o Senhor fez, seja para nós dia de alegria e felicidade (Sl 117, 24).

Na liturgia, essa alegria é prolongada pela repetição da palavra “aleluia”, pelo branco dos paramentos e pelos cânticos de exultação. Com razão dizia Tertuliano: “Somai todas as solenidades dos gentios e não chegareis aos nossos cinqüenta dias de Páscoa” (De idolatria, c 14).

Na Ressurreição do Senhor, além de contemplarmos o triunfo de Jesus Cristo, celebramos também a nossa futura vitória, sendo aplicáveis a nós as belas palavras de São Paulo: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está o teu aguilhão?” (1 Cor 15, 55).

Partida e permanência de Cristo

Pe. Alex Barbosa de Brito, EP

Ao chegar a plenitude dos tempos, a Luz verdadeira iluminou a obscuridade: “et Verbum caro factum est”[1], erguendo Sua tenda[2] no meio de nós.” (Jo 1,14). Deus, que “habita numa luz inacessível” (1 Tm 6,16), vem ao encontro do homem, mostra-Lhe sua humana face, “para acostumar o homem a apreender a Deus e acostumar Deus a habitar no homem.” (Irineu de Lião, Adv. Haer. III, 20,2).

Entretanto, concluída a missão terrena de Jesus, o Céu reclama o seu Rei. Depois de combater longamente, é chegada a hora do triunfo. São Pedro Julião Eymard[3] (2002, p. 44) afirma que Jesus “não quer abandonar sua nova família, os filhos que acaba de gerar: ‘Vou-me e venho a vós’, diz aos apóstolos.”

Partindo, permaneceu! “Jesus terá dois tronos, um de glória no Céu, outro de mansidão e de bondade na terra. Duas cortes: a corte celeste, triunfante, e a corte terrestre, composta daqueles que foram remidos por Ele.” (EYMARD, 2002, p. 44). Admirável, ousada e segura é a afirmação do santo da Eucaristia: “se não fosse possível permanecer simultaneamente cá e lá, havia de preferir ficar na terra conosco, a voltar ao Céu sem nós.” (Ibidem).

De fato, alguém que tivesse assistido ao desenrolar paulatino de todos os episódios da Paixão de Cristo, movido por fé e compaixão, e soubesse também de sua ressurreição e visse sua ascensão aos céus, poderia legitimamente pôr-se uma série de conjecturas: “Será que Ele vai voltar? Quanto tempo demorará? Ou será que Ele nunca mais virá à terra? Até o fim do mundo ninguém mais o verá? Depois dessa paixão tão cruel, das maravilhas da ressurreição e ascensão, será que poderá ficar ausente do convívio daqueles por quem tanto fez?” Oh! Ele disse que seria necessário partir para que fosse enviado o Consolador (Jo 16,7), mas prometeu permanecer junto dos homens: Ego vobiscum sum omnibus diebus usque ad consummationem saeculi (Mt 28,20).

Seria inadmissível que tivesse deixado definitivamente de conviver com os homens. Tudo clamava para que o Senhor não se separasse deles. Teria de haver algum modo de, partindo, permanecer, sem se perder nada de seu convívio. Esse paradoxo teria solução?

Na Carta Encíclica Dominum et vivificantem[4], João Paulo II ensina que esse voltar e permanecer de Cristo é obra do Espírito Santo: “Cristo, que partiu na humanidade visível, vem, está presente e atua na Igreja de forma tão íntima que faz dela o seu corpo” (DV 61) e “a expressão mais completa da ‘partida e permanência’ de Cristo, por meio do mistério da Cruz e da Ressurreição, é a Eucaristia” (DV 62). Só um Deus sumamente amoroso poderia arquitetar tão sublime solução.

Texto extraído e adaptado do trabalho de dissertação na disciplina de Direito Canônico apresentado no Pontifício Instituto Superior de Direito Canônico


[1] “Da parte de Deus a última palavra foi dada: o seu Verbo eterno, que se entregou por nós” […] e na Eucaristia temos perenemente, no corpo ferido, no sangue derramado, a real e eficiente presença da sua última palavra, o “Sim” de Deus. “Na antropologia hebraica, termos como “carne” ou “corpo” não descrevem divisões ou dicotomias no homem. Significam, antes, o homem todo, considerado sob um determinado aspecto. O pedaço de pão distribuído por Jesus significa para os discípulos a certeza da presença de Jesus entre eles.” (EMANUEL BOUZON & KARL ROMER, A palavra de Deus, Ano B, p. 189).

[2] “O Logos presente no mundo como luz rejeitado pelos homens toma a carne humana, torna-se um homem: kai o logos sarx egeneto (kai logoV sarx egeneto) e o ‘Logos se fez carne’ (v. 14ª). O termo sarxsarx – (em hebraico, basar) designa na antropologia bíblica justamente o elemento de fraqueza e caducidade no homem. O Logos tornou-se perfeitamente solidário com o gênero humano (cf. 1 Jo 4,9 s; Gl 4,4s). Ele, que desde o início em pròs tòn Theón – “estava com Deus” – em determinado momento da história salvífica eskhnwsen en hmin (eskhnwsen en hmin): “lançou sua tenda entre nós” (cf. v. 14 b. O verbo eskhnóo (eskhnwo) indica justamente a ação do beduíno que arma a tenda.) (BOUZON & ROMER, Ano A, p. 42-43).

[3] EYMARD, Pedro Julião. In Escritos e Sermões: A Divina Eucaristia.  Trad. do francês de Mariana Nabuco.  Taubaté: Impresso pelas Irmãs Sacramentinas, distribuído pela Loyola.

[4] IOANNES PAULUS PP. II DOMINUM ET VIVIFICANTEM sobre o Espírito Santo na Vida da Igreja e do Mundo. Datada de 18 mai. 1986. Vide Referências Bibliográficas.

Confiança no Sagrado Coração de Jesus

Mons. João S. Clá Dias, EP

Querendo resgatar o gênero humano transviado pelo pecado de nossos primeiros pais, Nosso Senhor Jesus Cristo derramou até sua última gota de sangue na Cruz. E, se necessário fosse, teria feito esse supremo sacrifício para salvar individualmente cada um de nós. Desse holocausto nasceu a Santa Igreja, erigida por Nosso Senhor para restaurar e aperfeiçoar o estado de graça perdido pelo homem por causa do pecado dos nossos primeiros pais. Sociedade perfeita e visível, ela purifica as almas pelo Batismo, administra-lhes os Sacramentos e as faz participar da vida divina, em vista da eterna bem-aventurança. Diante de tão insondável manifestação de benquerença, impossível é deixarmos de nos sentir amados por Deus apesar das nossas misérias. Mesmo após termos rolado na lama do pecado, podemos contar com os infinitos méritos obtidos pelo Sacratíssimo Coração de Jesus durante sua Paixão, pois em virtude daquela luz primordial posta por Ele na nossa alma, reflexo de suas próprias perfeições, tudo fará para nos resgatar. Inclusive nossas misérias oferecem ao Coração de Jesus oportunidade de manifestar sua infinita bondade e seu incomensurável desejo de perdoar, redundando tudo em maior glória para Deus. Devemos, pois, nos encher de confiança e afastar a menor incerteza em relação ao amor do Criador por nós. Mas precisamos, sobretudo, ter um desejo ardoroso de nos entregar totalissimamente nas mãos da Divina Providência, sem jamais pensar em obter qualquer benefício pessoal desligado da glória do Altíssimo. Pois qualquer bem que possamos excogitar para nós nada será em relação àquela participação nas perfeições divinas que Ele nos reservou desde todo sempre. Assim, quando fecharmos os olhos para este tempo e nascermos para a eternidade, teremos uma glória essencial e acidental inimaginável, participação da própria glória de Deus.

Cientes desta maravilha, confiemos nesse Sacratíssimo Coração que nos amou até o fim, e se inclina tanto mais sobre as criaturas quanto mais necessitam elas de perdão

In: Arautos do Evangelho, n. 126

Os efeitos do sacrifício de Cristo

Mons. João S. Clá Dias, EP

Afirma São Tomás ter o homem necessidade do sacrifício por três motivos: para obter a remissão dos pecados, a graça necessária à santificação e a união perfeita do espírito com Deus, o que se verificará, sobretudo, na glória eterna.[1] O sacrifício de Cristo produziu os efeitos mencionados:

“Ora, tudo isso chegou até nós mediante a humanidade de Cristo. Em primeiro lugar, porque os nossos pecados foram apagados: ‘Foi entregue pelos nossos pecados’, diz a Carta aos Romanos. Em segundo lugar, porque por ele recebemos a graça que nos salva: ‘Ele se tornou causa de salvação eterna para todos aqueles que lhe obedecem’, diz a Carta aos Hebreus. Em terceiro lugar, por ele alcançamos a perfeição da glória, como nos diz a Carta aos Hebreus: ‘Temos confiança, pelo sangue de Jesus, de entrar no santuário’, isto é, na glória celeste”.[2]

Assim, ao Se encarnar o Verbo e assumir a natureza humana, pode enquanto homem ser o mediador sumamente agradável a Deus. Por Seu sacerdócio, por Sua oferenda como vítima de expiação, sela com Seu Sangue a nova e definitiva aliança, da qual todas as anteriores eram uma mera figura: “Jesus se tornou o fiador de uma aliança melhor” (Hb 7, 22). É diante deste mistério de amor com o qual se opera nossa redenção, que o Apóstolo exclama: “Tal é precisamente o sacerdote que nos convinha: santo, inocente, sem mancha, separado dos pecadores e elevado acima dos céus” (Hb 7, 26). Para São Tomás, essas cinco características de Cristo sacerdote marcam a diferença entre o novo sacerdócio e o da Lei Antiga, o qual era figurativo daquele que viria.

Com efeito, explica o Aquinate,[3] Jesus, no respeitante à santidade “reunia as perfeitas condições”, porque “foi consagrado a Deus desde o início de Sua concepção: ‘Por isso mesmo, o Santo que há de nascer de Ti será chamado Filho de Deus’” (Lc 1, 35); Sua inocência foi suma, “visto que Ele não cometeu pecado”; não teve mancha, como muito bem é simbolizado pelo cordeiro sem defeito da Antiga Lei (Êx 12, 5); “foi de maneira absoluta a peccatoribus segregatus — separado dos pecadores”, pois embora tenha vivido entre eles, jamais trilhou suas vias (cf. Sb 2, 15); e, por fim, “está sentado à direita da majestade de Deus” (Hb 1, 3), ou seja, acima de todas as criaturas celestes; “n’Ele a natureza humana é sublimada”, e havendo Se sentado à direita de Deus (cf. Hb 1, 3), “é um sacerdote extremamente adequado”.

Em Cristo é eliminado tudo quanto era imperfeito no sacerdócio do Antigo Testamento. A Lei constituía no sacerdócio homens frágeis e de vida breve (cf. Sb 9, 5) que deviam, com frequência, oferecer sacrifícios por seus próprios pecados e pelos do povo (cf. Lv 16, 5-7), enquanto que “contra a Sabedoria, o mal não prevalece” (Sb 7, 30), pois Cristo não teve de oferecer por Si,[4] devido à sua inocência e santidade. “O Seu único sacrifício bastou para apagar os pecados de todo o gênero humano”.[5]


[1] Cf. S Th III, q. 22, a. 2.

[2] S Th III, q. 22, a. 2, resp.

[3] Super Heb. cap. 7, lec. 4.

[4] “A prefiguração não se pode equiparar à verdade. Por isso, o sacerdócio prefigurativo da antiga lei não podia atingir um grau tal de perfeição que não precisasse mais do sacrifício de satisfação. Ora, Cristo não teve essa necessidade; portanto, a razão não é a mesma para ambos. É o que diz o Apóstolo: ‘A lei estabeleceu, como sacerdotes, homens sujeitos à fraqueza, mas a palavra do juramento, posterior à lei, estabeleceu o Filho perfeito para sempre’(Hb 7,28)” (S Th III q. 22, a. 4, ad 3).

[5] Super Heb. cap. 7, lec. 4.

Cristo, novo Adão

Nas suas conferência quaresmais de 1981, quando era arcebispo em Munique, Joseph Ratzinger fez belas considerações cuja tradução transcrevemos a seguir:

 Cristo se converte num novo Adão com o qual o ser humano começa novamente.   Ele que, desde o fundamento, é nosso ponto de referência, o filho, restabelece corretamente de novo as relações.  Seus braços estendidos são a referência aberta, que continua a estar aberta para nós.  A cruz, o lugar da sua obediência, se converte na verdadeira árvore da vida.  Cristo se converte na imagem oposta da serpente como diz João em seu evangelho  (Jo 3, 14).

Desta árvore vem, não a palavra da tentação, mas a palavra do amor salvador, a palavra da obediência, na qual Deus se fez obediente para oferecer-nos sua obediência como espaço da liberdade. A cruz é a árvore da vida novamente acessível.  Com a Paixão, Cristo fez obedecer o som, por assim dizer, inflamado da espada, atravessou o fogo e levantou a cruz como o verdadeiro eixo do universo sobre o qual este de novo ficou reto.  Por isso, a Eucaristia, como presença da cruz, é a verdadeira árvore da vida que está sempre em nosso centro e nos convida a receber o fruto da verdadeira vida.  Isto significa que a Eucaristia nunca poderá ser uma simples purificação comunitária.  Recebê-la, comer da árvore da vida significa, por isso, receber o Senhor Crucificado, isto é, aceitar sua forma de vida, sua obediência, seu Sim, à medida de nosso ser criatura.  Significa aceitar o amor de Deus que é nossa verdade, aquela dependência de Deus que não significa para nós uma determinação estranha, como tão pouco para o filho, é a filiação uma resolução estranha.  Precisamente esta dependência é liberdade porque é Verdade e Amor.

Que este tempo da Quaresma nos ajude a sair das nossas negativas, do receio da aliança de Deus, da falta de medidas e da mentira da nossa “auto-determinação”, para ir em busca da árvore da vida que é nossa medida e nossa esperança.

E que nos encontremos de novo com as palavras completas de Jesus: o Reino de Deus está próximo.  Convertei-vos e crede no evangelho (Mc 1, 15).

Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim deve ser levantado o Filho do Homem, para que todo homem que n’Ele crer tenha a vida eterna (Jo 3, 14 –15)

(RATZINGER, Joseph. Creación y pecado. (Navarra): Ediciones Universidad de Navarra, 2005. p. 103-104 ).

O Filho de Deus com a Sua encarnação uniu-se, de certo modo, a todo o homem

Diác. Francisco Berrizbeitia, EP

Trata-se aqui de um antigo ensinamento enraizado no Novo Testamento[1] e que o Concílio Vaticano II propõe: “O Filho de Deus com a encarnação uniu-se, de certo modo, a todo o Homem.” Isto nos esclarece que, por um lado, a união hipostática só a fez Cristo uma vez com a Encarnação na Sua humanidade em concreto e, portanto, essa hipóstase está completa nEle e não com a humanidade.

Podemos dizer também que graças a esse “certo modo” que se deu com a Encarnação, a união com toda a humanidade se fez no plano salvífico, pois constitui a base pela qual Cristo elevou o homem de sua miséria fazendo-o partícipe de Sua vida divina. Por isso, a Igreja ao proclamar na sua liturgia “O félix culpa[2], canta a alegria do Povo de Deus por, ao pecarem nossos primeiros pais, o Verbo fazer-se carne e resgatar o gênero humano com sua morte e ressurreição e nos conceder o dom do Espírito. Uma coisa está clara e é o mistério, a grandeza e a beleza a qual Cristo elevou o homem de sua prostração a participar de um convívio com a Trindade, a uma comunio com ela. Sem falar da promessa da Sua presença diária na Eucaristia. Jesus não se deixa vencer em graça e generosidade para com o homem.

A tradição dos primeiros padres da Igreja quis explicar-nos o contexto na figura do Bom Pastor e da ovelha perdida como símbolo de toda a humanidade pecadora. Assim o descreve Gregório de Nisa (contra Apoliarem XVI):[3]

Esta oveja somos nosotros, los hombres. Que nos hemos separado con el pecado de las cien ovejas razonables. El Salvador carga sobre las espaldas la oveja toda entera.  Porque no se ha perdido solo una parte, sino porque se había perdido toda entera, por eso toda entera ha sido acompañada. El pastor la lleva en sus espaldas, o sea en su divinidad. Por esta asunción llega a ser una sola cosa con Él.

É interessante constatar como esta idéia de Cristo estava enraizada profundamente na Igreja, de tal forma que as interpretações mais antigas na arte paleocristã, que se conhece de Cristo, pintam-no ou esculpem-no como o Bom Pastor, levando sobre os seus ombros a ovelha. Também na Liturgia está assinalado o quarto domingo depois da Páscoa, justamente como a festividade do Bom Pastor.

Santo Agostinho comenta o fato, também resgatado da tradição de que:

Cuando ora el cuerpo del Hijo no se separe de sí a su Cabeza, de tal manera que ésta sea un solo salvador de su cuerpo, nuestro Señor Jesucristo Hijo de Dios, que ora por nosotros, ora en nosotros y es invocado por nosotros.[4]

Esta constitui a misteriosa conexão que se estabeleceu na Encarnação de Cristo, como cabeça que salva o corpo e que, sendo cabeça, ficou indissoluvelmente unida ao corpo, de tal maneira que a plenitude deste último, causada pela cabeça, constitui a salvação do mesmo Cristo, já não pensável sem o corpo da sua Igreja. Portanto, temos dois movimentos: um da cabeça ao corpo e outro do corpo à cabeça. Nada do que ocorre na cabeça é alheio ao corpo e vice-versa.

Conclui-se com um pensamento do teólogo, hoje Papa Bento XVI, em 1968, sobre a GS 22:

Pela primeira vez num documento da Igreja temos uma versão completamente nova da teologia cristocêntrica. Sobre a base de Cristo, esta ousa apresentar a teologia como antropologia e se mostra radicalmente teológica pelo fato de ter incluído o homem no discurso de Deus por meio de Cristo, manifestando deste modo a profunda unidade da teologia.[5]


[1] Ver Jo 1, 12-14; Fl 2, 5-7; 4, 4-7; Ef 4, 20-23; Hb 2, 17; 1Jo 15, 19.

[2] O félix culpa, quae talem et tantum meruit habere redemptorem (Precónio da Vigília Pascal).

[3] LADARIA L.,  “Jesucristo, salvación de todos”, San Pablo-U.Comillas, Madrid 2007, p. 105.

[4] Idem, p. 106.

[5] GALLAGHER M., “Ludici per il corso TFC004”7, PUG, Roma 200, p. 10. (tradução nossa)

O Filho de Deus com a Sua encarnação uniu-se, de certo modo, a todo o homem

Diác. Francisco Berrizbeitia, EP

Trata-se aqui de um antigo ensinamento enraizado no Novo Testamento[1] e que o Concílio Vaticano II propõe: “O Filho de Deus com a encarnação uniu-se, de certo modo, a todo o Homem.” Isto nos esclarece que, por um lado, a união hipostática só a fez Cristo uma vez com a Encarnação na Sua humanidade em concreto e, portanto, essa hipóstase está completa nEle e não com a humanidade.

Podemos dizer também que graças a esse “certo modo” que se deu com a Encarnação, a união com toda a humanidade se fez no plano salvífico, pois constitui a base pela qual Cristo elevou o homem de sua miséria fazendo-o partícipe de Sua vida divina. Por isso, a Igreja ao proclamar na sua liturgia “O félix culpa[2], canta a alegria do Povo de Deus por, ao pecarem nossos primeiros pais, o Verbo fazer-se carne e resgatar o gênero humano com sua morte e ressurreição e nos conceder o dom do Espírito. Uma coisa está clara e é o mistério, a grandeza e a beleza a qual Cristo elevou o homem de sua prostração a participar de um convívio com a Trindade, a uma comunio com ela. Sem falar da promessa da Sua presença diária na Eucaristia. Jesus não se deixa vencer em graça e generosidade para com o homem.

A tradição dos primeiros padres da Igreja quis explicar-nos o contexto na figura do Bom Pastor e da ovelha perdida como símbolo de toda a humanidade pecadora. Assim o descreve Gregório de Nisa (contra Apoliarem XVI):[3]

Esta oveja somos nosotros, los hombres. Que nos hemos separado con el pecado de las cien ovejas razonables. El Salvador carga sobre las espaldas la oveja toda entera.  Porque no se ha perdido solo una parte, sino porque se había perdido toda entera, por eso toda entera ha sido acompañada. El pastor la lleva en sus espaldas, o sea en su divinidad. Por esta asunción llega a ser una sola cosa con Él.

É interessante constatar como esta idéia de Cristo estava enraizada profundamente na Igreja, de tal forma que as interpretações mais antigas na arte paleocristã, que se conhece de Cristo, pintam-no ou esculpem-no como o Bom Pastor, levando sobre os seus ombros a ovelha. Também na Liturgia está assinalado o quarto domingo depois da Páscoa, justamente como a festividade do Bom Pastor.

Santo Agostinho comenta o fato, também resgatado da tradição de que:

Cuando ora el cuerpo del Hijo no se separe de sí a su Cabeza, de tal manera que ésta sea un solo salvador de su cuerpo, nuestro Señor Jesucristo Hijo de Dios, que ora por nosotros, ora en nosotros y es invocado por nosotros.[4]

Esta constitui a misteriosa conexão que se estabeleceu na Encarnação de Cristo, como cabeça que salva o corpo e que, sendo cabeça, ficou indissoluvelmente unida ao corpo, de tal maneira que a plenitude deste último, causada pela cabeça, constitui a salvação do mesmo Cristo, já não pensável sem o corpo da sua Igreja. Portanto, temos dois movimentos: um da cabeça ao corpo e outro do corpo à cabeça. Nada do que ocorre na cabeça é alheio ao corpo e vice-versa.

Conclui-se com um pensamento do teólogo, hoje Papa Bento XVI, em 1968, sobre a GS 22:

Pela primeira vez num documento da Igreja temos uma versão completamente nova da teologia cristocêntrica. Sobre a base de Cristo, esta ousa apresentar a teologia como antropologia e se mostra radicalmente teológica pelo fato de ter incluído o homem no discurso de Deus por meio de Cristo, manifestando deste modo a profunda unidade da teologia.[5]


[1] Ver Jo 1, 12-14; Fl 2, 5-7; 4, 4-7; Ef 4, 20-23; Hb 2, 17; 1Jo 15, 19.

[2] O félix culpa, quae talem et tantum meruit habere redemptorem (Precónio da Vigília Pascal).

[3] LADARIA L.,  “Jesucristo, salvación de todos”, San Pablo-U.Comillas, Madrid 2007, p. 105.

[4] Idem, p. 106.

[5] GALLAGHER M., “Ludici per il corso TFC004”7, PUG, Roma 200, p. 10. (tradução nossa)