O principal direito do ser humano

viewPe. Leopoldo Werner, EP

Enquanto ser vivo, o homem deve respeitar o ser que recebeu de Deus, o que o obriga a zelar pela manutenção de sua vida e de sua saúde e o proíbe matar-se.

Como corolário desta lei, não está em nosso poder o matar ou ferir nossos semelhantes, a não ser em legítima defesa, em determinadas condições. Este direito à vida está fundamentado na dignidade da pessoa humana, e ele se estende desde a concepção até sua morte natural. Esta dignidade diz respeito, por sua vez, aos bens do espírito tanto quanto aos bens do corpo, pois enquanto se está nesta vida eles são inseparáveis.

O direito à vida tem seus corolários: tudo o que se opõe à vida, à sua integridade física e moral, sua dignidade como pessoa humana, constituem violações que prejudicam gravemente o progresso da civilização, degradam os costumes e as instituições humanas e ofendem gravemente a honra devida ao Criador.

O mesmo Concílio Vaticano II, no quadro do devido respeito pela pessoa humana, oferece uma ampla exemplificação de tais atos: ‘Tudo quanto se opõe à vida, como são todas as espécies de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador’ (JOÃO PAULO II, 1993: 80).

Estes mesmos conceitos são também defendidos por homens de vários campos do saber. É como explica o conhecido jurísta brasileiro Ives Gandra:

“É evidente que o direito à vida implica outros direitos que lhe permitam ser exercido, que também são de direito natural, como o direito à educação, à liberdade de associação, ao trabalho, à saúde, à dignidade pertinente ao ser humano, à intimidade, a não ser afastado da convivência social, senão se lhe trouxer mal superior, a partir dos indícios de sua atuação pregressa.

O direito à vida é o principal direito do ser humano. Cabe ao Estado preservá-lo, desde a sua concepção, e preservá-lo tanto mais quanto mais insuficiente for o titular deste direito. Nenhum egoísmo ou interesse estatal pode superá-lo. Sempre que deixa de ser respeitado, a história tem demonstrado que a ordem jurídica que o avilta perde estabilidade futura e se deteriora rapidamente”. (GANDRA, 2009: 3)

Como entrar em contato com o Criador

_MG_5343Pe. José Victorino de Andrade, EP

Deus criou o homem com a capacidade de se comunicar1 e, através de manifestações exteriores, exprimir aquilo que vai no seu íntimo. Poderá fazê-lo através de palavras, gestos, sinais, ou mesmo expressões fisionômicas que expressem uma reação, atitude, desejo ou postura diante de algo ou alguém. Esta disposição leva mesmo a que ele se desprenda do egoísmo e da auto-suficiência, e a uma abertura relativamente àquilo que o rodeia, e mesmo ao sobrenatural.2

Deste modo, entre todos os seres vivos, ele é o único dotado de uma tal criatividade que, a partir de um número finito de palavras passíveis de serem contidas num determinado dicionário, é capaz de elaborar infinitos sistemas, sem contar o recurso à criatividade e a sentenças que podem mesmo chegar à agramaticalidade3 porém, facilmente reconhecíveis e até decifráveis por parte de outro falante ouvinte que partilhe a mesma língua ou domine idêntico conjunto de códigos linguísticos. E até ao fim de sua vida, ele poderá emitir ou receber formulações sempre novas e fecundas, capazes de surpreender e abrir novas perspectivas, contribuindo deste modo para um renovado impulso da comunicatividade e abertura tanto ao próximo como ao transcendente.

Porém, foi o próprio Deus que tomou a iniciativa e quis comunicar-se aos homens. Fê-lo por meio da criação, estabeleceu uma aliança com os homens, “muitas vezes e de muitos modos falou aos nossos pais, nos tempos antigos”, e nestes tempos, que são os nossos, “falou-nos por meio do Filho” (cf. Hb 1, 1-2). Aliás, ninguém melhor do que Ele para dizer-nos quem é o Pai. A Exortação Apostólica Verbum Domini lembra-nos também o papel da sua esposa mística, a Igreja, enquanto transmissora da Revelação, “através da obra do Espírito Santo e sob a guia do Magistério”:

“A Igreja vive na certeza de que o seu Senhor, tendo falado outrora, não cessa de comunicar hoje a sua Palavra na Tradição viva da Igreja e na Sagrada Escritura. De facto, a Palavra de Deus dá-se a nós na Sagrada Escritura, enquanto testemunho inspirado da revelação, que, juntamente com a Tradição viva da Igreja, constitui a regra suprema da fé” (n. 18).

Quanto a outras formas do Senhor comunicar-se aos homens, o Catecismo da Igreja Católica não deixa de assinalar os sacramentos, sendo Cristo que neles age e comunica a graça que significam (cf. n. 1127). E para não delimitar a questão, que jamais se encerra aqui, bastaria considerar que o Espírito faz ouvir a sua voz e age onde quer, conforme explica o próprio Jesus por ocasião de sua conversa noturna com Nicodemos (cf. Jo 3, 8).

Ora, uma vez que Deus é pródigo em comunicar-se, cabe ao homem estar atento, não só vigilante, mas também orante, (cf. Mt 26, 41) ou seja, respondendo à interpelação que lhe é dirigida e cuja fé exige, além do mais, as obras (cf. Tg 2, 14-26). É inerente ao homem, enquanto ser simultaneamente corporal e espiritual, uma necessidade de entrar em contato com o Criador. Deverá fazê-lo por meio de “sinais e símbolos materiais”, conforme nos explica o Catecismo: “Como ser social, o homem precisa de sinais e de símbolos para comunicar-se com os outros, pela linguagem, por gestos, por ações. Vale o mesmo para sua relação com Deus” (CIC 1146).

São Tomás de Aquino afirma ser a nossa peculiar linguagem obra própria da razão, uma porta para o homem manifestar o que vai no seu íntimo.4 E descreve o reto processo da linguagem desta forma:

“[A potência intelectiva] primeiro, apreende simplesmente algo e esse ato se chama inteligência. Depois, ordena o que ela apreendeu para conhecer ou operar alguma outra coisa, e é a intenção. Enquanto persiste na investigação daquilo a que se propõe, pensa. Ao examinar o que refletiu em função de princípios certos, conhece ou sabe; então a sabedoria leva a julgar […] Quando já possui alguma coisa como certa, porque foi comprovada, pensa na maneira de comunicá-la aos demais: e é a disposição da palavra interior, da qual procede a linguagem”.5

De modo semelhante, mesmo quanto ao processo, surge a elevação da mente a Deus, ou seja, a oração, que poderá ser vocal, e manifesta a fé do crente enquanto “rationabile obsequium” (cf. Rm 12, 1). O primeiro termo aparece também na oração eucarística do Cânone Romano, onde se reza para que Deus aceite a oferenda como “rationabile“. Mas esta disposição interior parece não ser suficiente, íntegra ou mesmo coerente, se não se manifestar e comunicar aos demais, através do testemunho e da autenticidade na vida e nos atos do crente. Entende-se então a necessidade de prestar a Deus um culto que não seja meramente interno, o que o tornaria incompleto, mas de um culto externo, que deve repercutir na esfera pública, dado que toda a sociedade é devedora de Deus, e desta forma, deve render-lhe um culto público.6

E como lembrava Paulo VI, baseando-se na Sacrosanctum Concilium (n. 13), já no último ano de seu pontificado: “O que é a liturgia senão o culto público da Igreja, sua voz comunitária dirigida ao mistério de Deus Pai, por meio de Cristo, no Espírito Santo?”.7 E acrescenta a necessidade não só da expressão colectiva das vozes dos fiéis, como também a “obrigação e possibilidade do diálogo pessoal com Deus”.8 A interatividade que deve existir no diálogo entre Deus que interpela, e a resposta do crente, deverá levar a que a “semente do Reino produza seu fruto na terra fértil”. E por isso “as ações litúrgicas significam o que a Palavra de Deus exprime: a iniciativa gratuita de Deus e ao mesmo tempo a resposta de fé de seu povo” (CIC 1153).

Ainda que a nossa linguagem pareça ser insuficiente, não só para explicarmos quem é Deus, como também para nos dirigirmos a Ele, não nos esqueçamos de que o “Verbo fez-se carne” (Jo 1, 14), e assumindo a condição humana (cf. Fl 2, 7), semelhante a nós em tudo exceto no pecado (Hb 4, 14), falou aos homens (cf. Hb 1, 2). Por isso afirma a Dei Verbum: “As palavras de Deus com efeito, expressas por línguas humanas, tornaram-se intimamente semelhantes à linguagem humana, como outrora o Verbo do eterno Pai se assemelhou aos homens tomando a carne da fraqueza humana” (n. 13).

“Assim falando de Deus, nossa linguagem se exprime, sem dúvida, de maneira humana, mas ela atinge realmente O próprio Deus, ainda que sem poder exprimi-lo em sua infinita simplicidade” (CIC 43). E para São Tomás de Aquino, esta simplicidade não fica comprometida quando a Deus se atribuem algumas coisas, uma vez que partem do conhecimento que possui nosso intelecto relativamente aos efeitos divinos, cuja relação têm Nele seu fim.9

E quanto a dirigir-nos a Deus, é sempre possível, mesmo recorrendo ao emprego de palavras humanas, pois a melhor referência e o exemplo foram oferecidos pela segunda pessoa da Santíssima Trindade, que assim nos ensinou a orar: “Pai nosso…” (Cf. Mt 6, 5-15; Lc 11, 1-4).

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1 Adão nomeia todos os seres vivos (cf. Gn 2, 20), dirige-se a Eva, mulher que lhe foi dada para não ficasse só e que constituía com ele uma só carne (cf. Gn 2, 23-24) e ela, por sua vez, responde à indagação da serpente (Gn 3, 2). Estão compreendidas, nestas três passagens, as primeiras palavras registradas nas Sagradas Escrituras.

2 São Tomás de Aquino refere-se várias vezes à natureza social do homem e da sua necessidade. Ver, por exemplo, S. Th. I, q. 96, a. 4; S. Th. I-II, q. 61, a. 5. Cont. Gent. III, c. 128; 129; 131.

3 Quanto a essa questão, ver o excelente capítulo a ela dedicada no manual de GOUVEIA, Carlos et al. Introdução à Linguística Geral e Portuguesa. 2. ed. Lisboa: Caminho, 2006.

4 Cf. S. Th. I-I, q. 91, a. 3; S. Th. I-I q. 107, a. 1.

5 S. Th. Q. 79, a. 10, resp. 3.

6 Tanto os autores clássicos como Jolivet, Collin, nos seus manuais de Filosofia de inspiração tomista, quanto os mais recentes, como CHALMETA, Gabriel. Ética social: familia, profesión y ciudadanía. 2a. ed. Pamplona: Eunsa, 2003 defendem esta necessidade do culto público. Também a constituição conciliar Sacrosanctum Concilium, como os decretos Apostolicam Actuositatem e Christus Dominus dedicam alguns parágrafos a esta temática.

7 PAOLO VI. Udienza Generale, 12 abr. 1978. Disponível em: <www.vatican.va>. Último acesso em 5 set. 2011. (Tradução nossa).

8 Loc. cit.

9 Cf. Cont. Gent. II, c. 13-14, 3-4.

A inveja, “cárie dos ossos”

Muerte Catedral de Salamanca 004Mons. João S. Clá Dias, EP

No que consiste esse vício? Na tristeza por causa do bem alheio. Tanquerey, no seu Compêndio de Teologia Ascética e Mística, salienta que o despeito causado pela inveja é acompanhado de uma constrição do coração, que diminui a sua atividade e produz um sentimento de angústia. O invejoso sente o bem de outra pessoa “como se fosse um golpe vibrado à sua superioridade”. Não é difícil perceber como esse vício nasce da soberba, a qual, como explica o fa­moso teólogo Frei Royo Marín, O.P., “é o apetite desordenado da excelência própria”. A inveja “é um dos pecados mais vis e repugnantes que se possa cometer”, faz questão de sublinhar o dominicano.

Da inveja nascem diversos pecados, como o ódio, a intriga, a murmuração, a difamação, a calúnia e o prazer nas adversidades do próximo. Ela está na raiz de muitas divisões e crimes, até mesmo no seio das famílias (basta lembrar a história de José do Egito). Diz a Escritura: “Por inveja do diabo, entrou a morte no mundo” (Sb 2, 24). Aqui está a raiz de todos os males de nossa terra de exílio. O primeiro homicídio da História teve esse vício como causa: “… e o Senhor olhou com agrado para Abel e para sua oblação, mas não olhou para Caim, nem para os seus dons. Caim ficou extremamente irritado com isso, e o seu semblante tornou-se abatido” (Gn 4, 4-5).

Esse vício comporta graus. Quando tem por objeto bens terrenos (beleza, força, poder, riqueza, etc.), terá gravidade maior ou menor, dependendo das circunstâncias. Mas se disser respeito a dons e graças concedidas por Deus a um irmão, constituirá um dos mais graves pecados contra o Espírito Santo: a inveja da graça fraterna.

“A inveja do proveito espiritual do próximo é um dos pecados mais satâ­nicos que se pode cometer, porque com ele não só se tem inveja e tristeza do bem do irmão, mas também da graça de Deus, que cresce no mundo”, comenta Frei Royo Marín.

Todas essas considerações devem gravar-se a fundo em nossos corações, fazendo-nos fugir desse vício como de uma peste mortal. Alegremo-nos com o bem de nossos irmãos, e louvemos a Deus por sua liberalidade e bondade. Quem agir assim notará, em pouco tempo, como o coração estará sossegado, a vida em paz, e a mente livre para navegar por horizontes mais elevados e belos. Mais ainda: tornar-se-á ele mesmo alvo do carinho e da predileção de nosso Pai Celeste.

A assinatura de Deus

Ilha dos Frades 083Pe. Edwaldo Marques

Nabucodonosor, rei da Babilônia, em certa ocasião, mandou erigir uma enorme estátua de ouro com o objetivo de instituir uma nova divindade, como se já não bastassem as muitas  que eram cultuadas no país.  Promulgou em seguida um decreto que obrigava a todos os seus súditos a se prostrarem num ato de  adoração, cada vez que as trombetas e outros instrumentos musicais soassem.  Para os que não obedecessem, o castigo era a morte: seriam imediatamente atirados numa fornalha ardente. (cfr. Dan. 3. 1-7, Bíblia Sagrada, 1964, p. 1213).

A Babilônia nessa época era também habitada por judeus cativos.  Destes, um certo número se recusou a obedecer a tal lei ímpia; entre esses estavam três jovens: Ananias, Azarias e Misael.

Como eram altos funcionários do rei, foram chamados pelo soberano e interrogados por ele, confirmaram que, de fato, não adorariam e não cumpririam o edito real, pois eram servidores do Deus verdadeiro, único a quem se deve adoração.

Fora de si, o rei ordenou que fossem lançados imediatamente na fornalha que foi, para esse efeito, aquecida sete vezes mais do que habitualmente o era.  Foram amarrados e lançados ao fogo conforme o rei determinara.

Deus, porém, interveio e nada de mal aconteceu aos três jovens, que tranqüilamente passeavam entre as chamas entoando louvores a misericórdia divina. [Ver Dan. 3, 57-89]

Sabedor do fato, Nabucodonor, cheio de admiração, louvou também o Deus de Ananias, Azarias e Misael e ordenando-lhes que saíssem da fornalha, restabeleceu-os com honra nos postos que  antes ocupavam.

O canto dos três jovens é para nós uma mensagem cheia de poesia e verdade, mas não é esta a razão fundamental de seu magnífico valor.

Qual o principal conteúdo dessa mensagem?  Ela nos mostra, nos revela, que todas as coisas existem para louvar e glorificar a Deus.  Tudo foi criado por Ele, existe em função d’Ele, sustentado por Ele, segundo leis estabelecidas por Ele para a sua própria glória e louvor.  De um modo ou de outro, Ele está refletido em tudo o que criou; em função disso, o conjunto da criação constitui um imenso livro no qual o homem que não seja um analfabeto espiritual, poderá conhecer e amar a Deus Nosso Senhor.

A ordem que rege todas as coisas, a ordem do Universo — é verdadeiramente a assinatura de Deus.

O sacerdote deve ser modelo para os fiéis

Cura d'ArsMons. João S. Clá Dias, EP

Sendo visto pelos fiéis como alguém escolhido por Deus para guiá-los, o ministro ordenado deve ser sempre exemplo preclaro de virtude, como recomenda o Apóstolo a seu discípulo Tito: “Mostra-te em tudo modelo de bom comportamento: pela integridade na doutrina, gravidade, linguagem sã e irrepreensível, para que o adversário seja confundido, não tendo a dizer de nós mal algum” (Tit. 2, 7-8).

Com efeito, uma conduta irrepreensível, inflamada de caridade, dando testemunho da beleza da Igreja e da veracidade da mensagem evangélica, falará muito mais profunda e eficazmente às almas do que o mais lógico e eloquente dos discursos: “O ornato do mestre é a vida virtuosa do discípulo, como a saúde do enfermo redunda em louvor do médico. […] Se apresentarmos nossas boas obras, será louvada a doutrina de Cristo” (Super Tit. cap. 2, lec. 2).

Por vezes, se interpreta a obrigação de dar exemplo, de ser modelo, num sentido minimalista: o de apenas cumprir mais ou menos os próprios deveres, no mesmo nível de todos os outros. E assim, pelo critério da mediania, procura-se contentar a própria consciência. Ora, quem é chamado a servir de exemplo para os outros não deve se comparar com os que lhe são iguais, mas com aqueles que alcançaram o mais alto grau de perfeição.

Cristo, sim, é o verdadeiro modelo do ministro consagrado. É com Ele que o sacerdote deve configurar-se, não só pelo caráter sacramental, mas também pela imitação de Suas perfeições, de forma que nele os fiéis possam ver outro Cristo. Só assim estes se sentirão atraídos pelo bom exemplo de seu pastor e guia.

A pedagógica beleza da solene celebração eucarística

Pe. José Victorino de Andrade, EPbento-xvi-_-celebr

A missa celebrada com decoro, compenetração e beleza, poderá proporcionar ao fiel um manancial de graças e levá-lo a uma fidelidade ao sacramento que se traduza numa vida íntegra. E para este efeito, o decoro do rito assume uma importância incontornável, conforme nos explica o Papa Bento XVI na sua Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis: “A relação entre mistério acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no valor teológico e litúrgico da beleza. De fato, a Liturgia, como, aliás, a Revelação cristã, tem uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade”; e apoiado neste fato, reafirma a necessidade do celebrante colocar uma especial atenção e empenho na “ação litúrgica para que brilhe segundo a sua própria natureza” (n. 35).

Para o Sumo Pontífice, a beleza do rito deve ser um reflexo da Beleza infinita, da qual as celebrações serão sempre uma pálida imagem, conforme ressaltou Bento XVI, nas Vésperas celebradas na Catedral de Notre Dame, por ocasião de sua visita à França, em 2008:

“A beleza dos ritos nunca será, certamente, suficientemente procurada, nem  cuidada nem elaborada, porque nada é demasiado belo para Deus, que é a Beleza infinita. Nossas liturgias na terra não poderão ser senão um pálido reflexo da liturgia celeste, que se celebra na Jerusalém do alto, ponto de chegada de nossa peregrinação sobre a terra. Possam, portanto, nossas celebrações, aproximar-se o mais possível dela, e fazer com que a antegozemos!” 1

Mons. João Scognamiglio Clá Dias reconhece, a partir desta insistência do Santo Padre, uma especial necessidade do pulchrum na liturgia, não como um elemento secundário, variando segundo as circunstâncias e as conveniências, mas que deve fazer-se presente por seu papel essencial, pois o sacerdote, praticando a ars celebrandi com perfeição, com mais facilidade eleva a assembléia à contemplação de Deus.2 Verifica-se assim, para o Pe. Matias Augé, C.M.F., a necessidade de cultivar uma peculiar espiritualidade mistagógica própria à celebração eucarística, que faça o crente transpor na sua vida aquilo que recebe e aprende com o ritual eucarístico, sobretudo, pelo “exemplo moralizador” de seu encontro com Cristo na celebração.3

Além de existir uma beleza intrínseca e peculiar relativamente à celebração litúrgica, esta vai mais além, reflete-se de modo extrínseco por sua essência e força simbólica, capaz de uma divina pedagogia, que tem seus desdobramentos na própria sociedade, conforme explica Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP:

“Além da beleza que lhe é própria, a liturgia realiza por seu simbolismo e essência, e do modo mais esplendoroso possível, essa sacralização das realidades temporais, em que se devem empenhar todos os fiéis. Na Celebração Eucarística, é o Céu que se liga à Terra, o espiritual ao temporal. É Cristo, ao mesmo tempo o arquétipo do gênero humano e o Filho de Deus, que se oferece ao Pai, para interceder por seus irmãos”.4

Esta sacralização das realidades temporais, ou seja, influência e transbordo das graças recebidas pela celebração eucarística – sobretudo no contexto de uma liturgia celebrada de modo digno e solene, com a compenetração de que desta forma se perpetua Cristo Sacerdote na terra –, é passível de trazer para a própria sociedade uma profunda e radical mudança. Ou seja, não é apenas no âmbito da comunidade dos crentes que a metanóia poderá ter lugar, mas também em torno dos que vivem com autenticidade e verossimilhança o sacramento recebido. Deste modo, o apelo a um sentido mais alto da nossa existência torna-se latente, e a história não é alheia a este fenômeno, conforme nos explica o Santo Padre na Sacramentum Caritatis:

“Enfim, para desenvolver uma espiritualidade eucarística profunda, capaz de incidir significativamente também no tecido social, é necessário que o povo cristão, ao dar graças por meio da Eucaristia, tenha consciência de o fazer em nome da criação inteira, aspirando assim à santificação do mundo e trabalhando intensamente para tal fim. A própria Eucaristia projeta uma luz intensa sobre a história humana e todo o universo. Nesta perspectiva sacramental, aprendemos dia após dia que cada acontecimento eclesial possui o caráter de sinal, pelo qual Deus Se comunica a Si mesmo e nos interpela” (n. 92. Grifo nosso).

Uma vez criada esta espiritualidade eucarística de que nos fala o Santo Padre, a liturgia eucarística passa a desempenhar um papel de grande importância no mundo de hoje, transmitindo as verdades da fé de modo mistagógico, simples e atraente, à semelhança de uma substanciosa catequese, e levando o homem a imitar aquilo que contemplou, guardou em seu coração e, portanto, amou. E o homem é tendente a reproduzir aquilo que admira, conforme explica Mons. João Clá Dias: “uma liturgia celebrada com a devida compenetração e manifestando toda a beleza que lhe é inerente há de ter uma ação benéfica sobre os fiéis, moldando a fundo sua mentalidade e levando-os a imitarem em alguma medida o ritual presenciado”.5

Esta rememoração poderá verificar-se, por exemplo, no seio de uma família, que vive diariamente uma espiritualidade que se nutriu com o pão da palavra e da eucaristia, transpondo-a e traduzindo-a em atos concretos, em relacionamento humano, e em laços de solidariedade, antes de mais com aqueles que lhes são mais próximos, começando na intimidade do lar:

“O pai ou a mãe que assiste a uma celebração esplendorosa, desdobrará instintivamente no dia-a-dia, no “ritual” da igreja doméstica, o cerimonial presenciado na Igreja. Dar a bênção aos filhos, ou rezar antes das refeições, por exemplo, são maneiras de praticar o espírito católico na vida da família”.6

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1 “La beauté des rites ne sera, certes, jamais assez recherchée, assez soignée, assez travaillée, puisque rien n’est trop beau pour Dieu, qui est la Beauté infinie. Nos liturgies de la terre ne pourront jamais être qu’un pâle reflet de la liturgie céleste, qui se célèbre dans la Jérusalem d’en haut, objet du terme de notre pèlerinage sur la terre. Puissent, pourtant, nos célébrations s’en approcher le plus possible et la faire pressentir!” (BENEDETTO XVI. Celebrazione dei vespri nella cattedrale di Notre-Dame Paris, 12 set. 2008. In: Insegnamenti IV, 2 (2008). p. 284. Tradução nossa).

2 Cf. CLÁ DIAS, João S. Beleza e Sublimidade: Clave teológica da Nova Evangelização. In: Lumen Veritatis. São Paulo: ACAE, n. 10, jan./mar. 2010. p. 28.

3 Cf. AUGÉ, Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 2005. p. 312-313.

4 CLÁ DIAS, João S. A gênese e o desenvolvimento do movimento dos Arautos do Evangelho e seu reconhecimento canônico. Tese de doutoramento em Direito Canônico – Angelicum. Roma, 2009. p. 274-275.

5 Ib. p. 278.

6 Loc. cit.