A Igreja é amiga do progresso

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Uma superficial consideração do mundo de hoje leva a crer que a Igreja é contra o progresso. Tal seria, pois, enquanto tal e na verdadeira acepção da palavra, é uma coisa boa. A este respeito, escreveu Paulo VI em seu último livro, ainda enquanto Cardeal Montini, em 1963: “A cristandade não é um obstáculo ao progresso moderno porque não o considera apenas nos seus aspetos técnicos e econômicos, mas no total de seu desenvolvimento. Os bens temporais poderão certamente ajudar o completo desenvolvimento do homem, mas eles não constituem o ideal da perfeição humana ou a essência do progresso social”.[1]

O problema com o aparente progresso, este sim, criticado pela Igreja, está no fato de ter sido acompanhado por uma filosofia que parecia dispensar Deus e confiar na mera técnica, ou no próprio homem, tal como advertiu o então cardeal Ratzinger: “Não é a expansão em si das possibilidades técnicas que é má, mas a arrogância iluminista que, em muitos casos, esmagou estruturas desenvolvidas e calcou as almas de homens cujas tradições religiosas e éticas foram postas de parte de forma displicente”.[2]

Thomas S. Kuhn, chegou mesmo a colocar o dedo na ferida e a levantar o problema para onde caminhava a ciência e a técnica em meados do séc. XX, pois, seu processo parecia partir de estágios primitivos e aparentava não levar a pesquisa para mais perto da verdade ou em direção a algo, o que significava que um número inquietante de problemas poderiam advir.[3] Anteriormente, já Kierkegaard alertava que, tornando-se a ciência um modo de vida, então esse seria o modo mais terrível de viver: “encantar todo o mundo e se extasiar com as descobertas e a genialidade, sem, no entanto, [o homem] conseguir compreender-se a si mesmo”.[4]

O progresso, não pode senão trazer benefícios para a humanidade; se não os traz, e até tantas vezes concorre para agravar os problemas humanos, deve-se atribuir isto ao fato de que o progresso contemporâneo, sob muitos aspectos, não é um progresso autêntico. Este desvio deverá ser possível porque existe na humanidade um factor de desordem, causado pelo pecado original, tantas vezes esquecido pelos homens e lembrado pela Igreja (Caritas in Veritate, n. 34). Não basta o desenvolvimento técnico. Ele tem de ser acompanhado pelo ético, humano, deve ter em visto o homem todo e todos os homens. Um progresso integro e integral.

O remédio para os males do falso progresso estão na caridade, porém, caridade na Verdade, ou seja,em Jesus Cristo. Se d’Ele não se tivesse afastado o homem, não teria o progresso sofrido tal desvio. Ao voltar-se para Deus, e valorizar o amor conforme o mandamento novo trazido por Jesus, o progresso se desenvencilhará de suas deturpações e produzirá os frutos mais excelentes. Esta forma de progresso vem muito bem delineado no recente Compêndio de Doutrina Social da Igreja:

“A humanidade compreende cada vez mais claramente estar ligada por um único destino que requer uma comum assunção de responsabilidades, inspirada em um humanismo integral e solidário: vê que esta unidade de destino é freqüentemente condicionada e até mesmo imposta pela técnica ou pela economia e adverte a necessidade de uma maior consciência moral, que oriente o caminho comum. Estupefactos pelas multíplices inovações tecnológicas, os homens do nosso tempo desejam ardentemente que o progresso seja votado ao verdadeiro bem da humanidade de hoje e de amanhã”. (n. 6)


[1] MONTINI, Giovanni Battista. The Christian in the Material World. Baltimore: Helicon, 1964. (tradução minha).

[2] RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância. Traduções UCEDITORA: Lisboa, 2007. P. 71

[3] Cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia: Do romanismo até nossos dias. V. 3. São Paulo: Paulus, 1991. p. 1046.

[4] Idem, p. 250.

O principal direito do ser humano

viewPe. Leopoldo Werner, EP

Enquanto ser vivo, o homem deve respeitar o ser que recebeu de Deus, o que o obriga a zelar pela manutenção de sua vida e de sua saúde e o proíbe matar-se.

Como corolário desta lei, não está em nosso poder o matar ou ferir nossos semelhantes, a não ser em legítima defesa, em determinadas condições. Este direito à vida está fundamentado na dignidade da pessoa humana, e ele se estende desde a concepção até sua morte natural. Esta dignidade diz respeito, por sua vez, aos bens do espírito tanto quanto aos bens do corpo, pois enquanto se está nesta vida eles são inseparáveis.

O direito à vida tem seus corolários: tudo o que se opõe à vida, à sua integridade física e moral, sua dignidade como pessoa humana, constituem violações que prejudicam gravemente o progresso da civilização, degradam os costumes e as instituições humanas e ofendem gravemente a honra devida ao Criador.

O mesmo Concílio Vaticano II, no quadro do devido respeito pela pessoa humana, oferece uma ampla exemplificação de tais atos: ‘Tudo quanto se opõe à vida, como são todas as espécies de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador’ (JOÃO PAULO II, 1993: 80).

Estes mesmos conceitos são também defendidos por homens de vários campos do saber. É como explica o conhecido jurísta brasileiro Ives Gandra:

“É evidente que o direito à vida implica outros direitos que lhe permitam ser exercido, que também são de direito natural, como o direito à educação, à liberdade de associação, ao trabalho, à saúde, à dignidade pertinente ao ser humano, à intimidade, a não ser afastado da convivência social, senão se lhe trouxer mal superior, a partir dos indícios de sua atuação pregressa.

O direito à vida é o principal direito do ser humano. Cabe ao Estado preservá-lo, desde a sua concepção, e preservá-lo tanto mais quanto mais insuficiente for o titular deste direito. Nenhum egoísmo ou interesse estatal pode superá-lo. Sempre que deixa de ser respeitado, a história tem demonstrado que a ordem jurídica que o avilta perde estabilidade futura e se deteriora rapidamente”. (GANDRA, 2009: 3)

Sem integridade não pode haver beleza

 

 Paulo Martosbruxelas

 

 

Sem integridade não pode haver beleza. A estátua de Moisés esculpida por Michelangelo é considerada uma obra-prima. Suponhamos que um indivíduo malévolo conseguisse amputar um dos braços da mesma. A escultura perderia sua integridade e, portanto, ficaria carente de beleza.

1.1 Unidade na variedade

Bruyne (1947, p. 80) assim sintetiza as teorias de São Boaventura e Santo Alberto Magno, a respeito da estética metafísica:

Admitindo-se que o próprio espírito é belo, deve-se construir uma definição de pulchrum abarcando os seres espirituais e os materiais. Assim, duas reduções desde logo se impõem: a da cor à luz espiritual, ou seja, ao resplendor metafísico da forma; a da proporção quantitativa à ordem como tal, isto é, à unidade na multiplicidade.

Para os medievais, explica Bruyne (1947, p. 250-251), a lei estética fundamental é a unidade na variedade. A multiplicidade superabundante que se observa nas artes — por exemplo, na catedral gótica, na canção de gesta — não faz senão reproduzir as inumeráveis variedades do universo físico.

A palavra ‘universo’ provém do latim ‘universus’ (unum y versus), significando que todas as coisas convergen para o uno. Ou seja, o universo é belo, pois nele se realiza a unidade na variedade.

A unidade na variedade se observava de modo excelente na Cristandade: as nações cristãs apresentavam uma rica diversidade de idiomas, trajes, canções, costumes, modos de ser, etc., constituindo um todo guiado, instruído e governado pela Igreja Católica (cf. DANIEL-ROPS, 1993, v. 3, p. 41).

1.2 Princípio da totalidade

Santo Agostinho, quando jovem, escreveu a obra De pulchro et aptoSobre o belo e o conveniente, na qual fez referência ao princípio da totalidade. Mesmo nos corpos, individualmente considerados, há uma beleza em sentido absoluto e que se ama por ela mesma. Existe também a beleza do conjunto em que cada coisa é adaptada ao todo e apreciada em função da forma global.

O princípio da totalidade é aplicado por todos os autores medievais, quando intentam definir a beleza de um conjunto. Escreve Guilherme d’Auvergne: Imaginai uma cor ou uma forma belas em si mesmas; se mancharem um conjunto, porque não convém que estejam ali, elas próprias e a forma inteira aparecerão como feias. O vermelho é belo em si, mas não na parte do olho que deve ser branca; o olho é pulcro em si mesmo, porém não no lugar que convém à orelha (cf. BRUYNE, 1947, p. 127).

1.3 O mal, o erro e a feiura

Se todos os seres são belos, como explicar que haja no mundo a feiura? Pergunta semelhante pode ser feita quanto ao mal e ao erro, pois todas as criaturas são boas e verdadeiras. Assim, analisemos conjuntamente as questões do errado, do mau e do feio.

Quanto ao problema do mal, São Tomás na “Suma contra os gentios” (AQUINO, 1953, v. 2, p. 96) afirma:

O mal não é senão privação do que um ser tem e deve ter por natureza; pois este é o sentido com que todos usam a palavra mal. Ora, a privação não é uma essência, mas negação na substância. Logo, o mal não é nenhuma essência na realidade.

Raciocínio análogo pode ser feito em relação ao erro e à feiura: são privações da verdade e da beleza.

Ulrico de Strasbourg escreveu um tratado intitulado De Pulchro, no qual declara: “A feiura é uma ausência de beleza […] A feiura e o mal resultam da privação” (apud BRUYNE, 1959, v. 3, p. 264 e 287).

A sentença: “Bonum ex integra causa, malum ex quocumque defecto O bem provém de uma íntegra causa, o mal de qualquer defeito” pode, com as devidas alterações, ser aplicada à verdade e à beleza. Estas derivam de una íntegra causa, enquanto que o erro e a fealdade, de qualquer defeito.

É preciso considerar o universo como um todo. O cosmos, ou seja, o conjunto ordenado de seres é bom, verdadeiro e belo. Ensina Santo Agostinho: O mundo é um maravilhoso quadro onde inumeráveis matizes são harmoniosamente traçados; os sombreados postos em lugar apropriado realçam o esplendor das cores brilhantes. Esta é a imagem do universo, onde as faltas morais realçam os atos virtuosos e os monstros servem para destacar a beleza (cf. BRUYNE, 1947, p. 128).

O problema da fealdade foi explicado, entre outros, pelo Doutor Irrefragável, Alexandre de Hales (1185-1245), teólogo franciscano inglês que ensinou Filosofia e Teologia em Paris e fundou a escola franciscana (cf. Grande Enciclopédia Larousse Cultural, 1998, v. 1, p. 184). Em sua “Suma”, na qual consagra um capítulo à beleza do mundo, escreve:

O universo é belo porque leva em si o rastro da beleza divina […] É perfeito em seu gênero, porque nada lhe falta de quanto lhe é essencial. Constitui um grande Todo e, por consequência, exige ser considerado antes de tudo em seu conjunto “secundum formam Totius”. Quando se o recorre em suas diversas partes é preciso referir cada detalhe à estrutura geral: o que parece feio, ao ser visto isolado do conjunto, surge belo no Todo (apud BRUYNE, 1959, v. 3, p. 119).

E, fundamentando-se em Santo Agostinho, assevera o mestre franciscano: as coisas deformadas e feias são necessárias à ordem universal, pois Deus fez tudo com número, peso e medida (cf. BRUYNE, 1959, v. 3, p. 120).

Afirma o Doutor da Igreja São João Damasceno que a beleza das estrelas se torna ressaltada, quanto mais escura é a noite (apud BRUYNE, 1959, p. 143).

1.4 O sofrimento pode ter sublime grandeza

A perfeita saúde física e mental de um indivíduo supõe que haja harmonia em seu corpo e sua alma. Ora, a dor é causada por alguma desarmonia na pessoa humana. Além disso, devemos considerar que o sofrimento entrou no mundo devido ao pecado original, em virtude do qual Adão perdeu o dom de integridade. Assim, a dor, sendo consequência da desarmonia e da falta de integridade, não tem nenhuma beleza.

Entretanto, é preciso analisar esse tema à luz da visão de conjunto, conforme esclarece Bruyne (1947, p.132):

Na perspectiva do Todo imenso e eterno — ou seja, Deus —, a própria dor adquire uma sublime grandeza, quer porque provoca a beleza moral infinitamente superior à beleza física, quer porque intensifica, por contraste, os matizes e as profundidades da alegria.

De fato, se uma pessoa sofre com resignação, serenidade e, sobretudo, por amor a Deus, sua dor adquire uma pulcritude particular. Compreende-se, assim, como a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo tem uma Beleza de infinitas proporções.

in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 10, Jan-Mar 2010. p. 45-47.

O sacerdote é modelo para os fiéis

missaMons. João Clá Dias, EP

Sendo visto pelos fiéis como alguém escolhido por Deus para guiá-los, o ministro ordenado deve ser sempre exemplo preclaro de virtude, como recomenda o Apóstolo a seu discípulo Tito: “Mostra-te em tudo modelo de bom comportamento: pela integridade na doutrina, gravidade, linguagem sã e irrepreensível, para que o adversário seja confundido, não tendo a dizer de nós mal algum” (Tt 2, 7-8).

Com efeito, uma conduta irrepreensível, inflamada de caridade, dando testemunho da beleza da Igreja e da veracidade da mensagem evangélica, falará muito mais profunda e eficazmente às almas do que o mais lógico e eloquente dos discursos: “O ornato do mestre é a vida virtuosa do discípulo, como a saúde do enfermo redunda em louvor do médico. […] Se apresentarmos nossas boas obras, será louvada a doutrina de Cristo”.[1]

Por vezes, se interpreta a obrigação de dar exemplo, de ser modelo, num sentido minimalista: o de apenas cumprir mais ou menos os próprios deveres, no mesmo nível de todos os outros. E assim, pelo critério da mediania, procura-se contentar a própria consciência. Ora, quem é chamado a servir de exemplo para os outros não deve se comparar com os que lhe são iguais, mas com aqueles que alcançaram o mais alto grau de perfeição. Cristo, sim, é o verdadeiro modelo do ministro consagrado. É com Ele que o sacerdote deve configurar-se, não só pelo caráter sacramental, mas também pela imitação de Suas perfeições, de forma que nele os fiéis possam ver outro Cristo. Só assim estes se sentirão atraídos pelo bom exemplo de seu pastor e guia.

Dada a natureza social do homem, a boa reputação decorrente da prática da virtude leva os outros à imitação. Assim, quanto mais semelhança com Cristo encontrarem os fiéis nos ministros de Deus, tanto mais facilmente se deixarão guiar por eles. E, portanto, mais eficaz será o seu ministério, conforme comenta São Tomás:

 Ora, essa estima aos prelados da Igreja é necessária para a salvação dos fiéis; se estes não os reconhecerem como ministros de Cristo, não lhes obedecerão como a Cristo, segundo lê-se na epístola aos Gálatas (4, 14): “Recebestes-me como um Anjo de Deus, como o próprio Cristo Jesus”. Ainda mais, se não os reconhecerem como dispensadores, se recusarão a receber deles os dons, contrariamente ao que diz o mesmo Apóstolo: “O que eu dei, se alguma coisa dei, foi por amor a vós, na pessoa de Cristo” (2 Cor 2, 10).[2]

 Essa estima pelos sacerdotes, tão importante para a plena eficácia de seu múnus, depende também da veneração que os fiéis tenham pelo sacerdócio enquanto tal. São Francisco de Assis, por exemplo, que nunca quis receber a ordenação presbiteral, por considerá-la uma dignidade excessiva para si, tinha pelo sacerdócio tal respeito que chegava a oscular o lugar por onde passava um sacerdote.

CLÁ DIAS, João. A Santidade do sacerdote à luz de São Tomás de Aquino. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 8, jul-set 2009. p. 14-15.


[1] Super Tit. cap. 2, lec. 2.

[2] Super II Cor. cap. IV. lec. 1.