Ele é o “Príncipe da Paz” – Meditação de Natal

presepio-01Mons. João S. Clá Dias, EP

I – Divina solução para os problemas atuais

“O presépio de Belém nos mostra o Homem perfeito que, unindo numa só pessoa a natureza divina e a natureza humana, restitui a esta a melhor parte de seus privilégios, perdidos pelo pecado, e a plenitude dos benefícios daí decorrentes. Donde se segue que não temos outro meio de sermos homens – tanto do ponto de vista espiritual quanto do social – senão o de nos aproximarmos do Homem perfeito, da plena estatura da vita de Cristo: ‘donec occurramus in virum perfectum, in mensuram ætatis plenitudinis Christi’”. 1

O caminho para obter a harmonia, a concórdia e a paz

Por essa razão, ajoelhando-nos diante do Menino Deus – como o fizeram os Sagrados Esposos, os pastores, os Reis Magos e tantos outros -, estaremos contemplando os mais altos ensinamentos para ordenar toda a nossa vida cristã e social. Naquela Manjedoura se encontra “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6).

Naquele Menino vemos o Redentor, iniciando a Aula Magna do Seu Magistério, não ainda por meio de palavras, mas ensinando-nos, com não menor eloqüência, através do exemplo, o único e excelente meio para o restabelecimento da antiga atmosfera de nosso éden perdido: o espírito de sacrifício, de pobreza e de resignação no sofrimento.

Inúteis são as grandes assembléias para discutir de forma acalorada os dramas que, hoje em dia, atravessam as nações. Basta-nos essa belíssima lição posta diante de nossos olhos para recuperarmos nossa dignidade, nossa justiça original e até mesmo para a humanidade viver na harmonia, a concórdia e a paz que em tão alto grau existia no Paraíso Terrestre.

Nem a ciência com todo o seu progresso, nem a política com sua multissecular experiência, nem sequer o auxílio de todas as riquezas, são eficazes para solucionar os inúmeros problemas atuais. Se a sociedade resolvesse enveredar pelas vias que o Salvador nos oferece na simples recordação de Seu Santo Natal, viveria feliz, em meio à tranqüilidade universal.

Ele quis ser tudo para todos, e os seus não O receberam

Quão maravilhosa não teria sido a história de uma família que, por piedade e compaixão, tivesse aberto suas portas, na mais bela de todas as noites, para dar hospitalidade àqueles predestinados e bem-aventurados pais? Porém, narra-nos São Lucas que não houve lugar para eles em nenhuma hospedagem (cf. Lc 2, 7). Diz-nos São João: “Ele veio aos seus, e os seus não O receberam” (Jo 1, 11).

Mais terrível ainda é a conduta dos povos, nações, e da própria humanidade dos presentes dias, que não só não querem ver nascer em seu meio esse Menino Deus e Sua Santa Igreja, mas, pior ainda, dão- Lhes as costas, e além de caluniá-Los e persegui-Los, põem-Lhes toda espécie de obstáculos para o exercício de Sua missão.

O Menino-Mestre não poderia ter escolhido melhor meio para colocar- Se à disposição de todos, manifestando um caráter de universalidade em Seu nascimento. Realizou-o em lugar público de livre acesso, sem que ninguém pudesse ser impedido de aproximar- se. Quis nascer pobre para facilitar a todos irem até Ele e, por outro lado, quis descender de sangue real para que os nobres não se sentissem inclinados a desprezá-Lo. Portanto, não chamou uma única classe social, mas quis ser tudo para todos.

Entretanto, os seus não só não O receberam, como, depois de Ele ter devolvido a vista aos cegos, a fala aos mudos, a audição aos surdos, a deambulação aos paralíticos, a saúde aos leprosos, a vida aos mortos, crucificaram- No. Triste e incompreensível acontecimento que se renova até os dias de hoje.

Porém, é por cima de todas as infidelidades que, na noite de Natal, ainda nos dias atuais, recordamos aquele canto: “Gloria in altis simis Deo et in terra pax hominibus bonæ voluntatis” – Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens objeto da Boa Vontade de Deus (Lc 2, 14).

II – A paz cantada e oferecida pelos anjos

“E subitamente apareceu com o Anjo uma multidão da milícia celeste louvando a Deus e dizendo: ‘Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens objeto da Boa Vontade de Deus’” (Lc 2, 13-14).

Trata-se de um fato de grandeza incomensurável. O Unigênito gerado desde toda a eternidade é idêntico ao Pai e desejou encarnar-Se para, de dentro de uma natureza criada, poder louvá-Lo com toda submissão. O Divino Infante, ao nascer, oferece ao Pai um culto perfeito, além de reconciliar com Deus a humanidade, tornando-a, assim, apta para glorificá- Lo.

Essa é a causa da grande glória que Lhe prestam os puros e celestiais espíritos, pois exaltam a maior obra de Deus, na qual Ele manifesta ao universo Sua sabedoria, Sua misericórdia, Seu poder e tantas outras perfeições absolutas. Cumpre, desse modo, com superabundância e fidelidade, Suas mais antigas promessas.

Os Anjos, no Céu, cantam em ação de graças pelo mais extraordinário benefício realizado por Deus ao homem. Eles mesmos, puros espíritos, obtiveram frutos de tão grande obra, e até mesmo a própria perseverança deles teve a Redenção como fonte.

Nasceu o “Príncipe da Paz”

Nascemos sob a ira de Deus, devido ao pecado de nossos primeiros pais, mas podemos ser reconciliados com Ele por esse Divino Nascimento que, ademais, nos traz a tranqüilidade da consciência, a paz da alma e a harmonia entre os homens (cf. Ef 2, 14; Cl 1, 20).

“Quando a paz começava a reinar, os Anjos diziam: ‘Glória nas alturas e paz na terra’ (Lc 2, 14). Quando, porém, os de baixo receberam a paz dos de cima, eles proclamaram: ‘Glória na terra e paz nos Céus’ (Lc 19, 38). Quando a Divindade desceu à terra e se revestiu de humanidade, os Anjos proclamavam: ‘Paz na terra’. E quando a humanidade subiu e foi elevada, imergiu na Divindade e sentou-se à sua direita, os meninos clamavam diante dela: ‘Paz nos Céus, hosana nas alturas!’ (Mt 21, 9). Assim, o Apóstolo pôde dizer: ‘Por intermédio dAquele que, ao preço do próprio sangue na cruz, restabeleceu a paz a tudo quanto existe na terra e nos céus’ (Cl 1, 20).

“Os Anjos diziam: ‘Glória nas alturas e paz na terra’; e os meninos: ‘Paz nos Céus e glória na terra’ (Lc 19, 38). Aparece assim com clareza que, como a graça da misericórdia de Cristo alegra os pecadores na terra, assim também seu arrependimento atinge os Anjos do Céu” (cf. Lc 15, 7-10).2

O Menino louvado pelos Anjos é o “Príncipe da Paz” anunciado sete séculos antes por Isaías (9, 5) e que, anos mais tarde, afirmará serem bem-aventurados os pacíficos – aqueles que sabem estabelecer em si mesmos e nas almas dos outros o reino da paz – dando-lhes o título de Filhos de Deus.

Precioso dom que não nos será retirado

O beata nox! Sim, bendita noite que assiste ao nascimento de um Menino a inaugurar uma nova era histórica. Naquela noite foi oferecido à humanidade um precioso dom que não lhe seria retirado nem mes mo quando aquele Menino retornasse à eternidade: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração nem se atemorize” (Jo 14, 27).

Qual é o sentido destas palavras? Eis: Eu não vo-la dou como dão os homens que amam o mundo. Estes, com efeito, oferecem a paz, a fim de – livres de preocupações, de processos e de guerras – poderem gozar, não de Deus, mas do mundo, ao qual entregaram o seu afeto. E quando eles oferecem a paz aos justos, cessando de persegui-los, não é uma paz verdadeira, porque não há verdadeiro acordo onde os corações estão desunidos. Chamamos consortes àqueles que unem sua sorte. Aqueles que unem seus corações, do mesmo modo, devem se chamar concordes. Para nós, meus caríssimos irmãos, Jesus Cristo nos deixa a paz e nos dá sua paz, não como a dá o mundo, mas como a dá Aquele por quem foi criado o mundo. Ele no-la dá para que todos estejamos de acordo, para que estejamos unidos de coração e, tendo um só coração, o elevemos ao alto, não nos deixando corromper na terra”.3

A pseudo-paz que o mundo nos oferece

Todas as palavras de Jesus são de vida eterna e misteriosamente atraentes, mas, sendo recordadas bem junto ao Presépio, levam-nos a querer penetrar a fundo em seu significado, sobretudo, as que se referem à paz trazida a nós naquela noite. Qual será sua natureza? É ela que toda criatura humana com sofreguidão deseja, mas quão freqüentemente a busca onde ela não se encontra e, mais ainda, se equivoca quanto ao seu verdadeiro conteúdo e substância!

Não consistirá nesse equívoco a causa principal de o mundo estar quase sempre pervadido por guerras e catástrofes ao longo de vários milênios? Tudo fruto da pseudopaz que o mundo nos oferece, bem diferente da que os Anjos cantaram aos pastores, naquela bendita noite de Natal.

A esse propósito, comenta Orígenes: “Onde não está Jesus, há disputas e guerras, mas onde Ele está presente tudo é serenidade e paz”.4 Santo Agostinho afirma que a paz consiste em um “bem tão nobre que, mesmo entre coisas mortais e terrenas, nada há de mais grato ao ouvido, nem mais doce ao desejo, nem superior em excelência”.5 E São Beda acrescenta: “A verdadeira, a única paz das almas neste mundo consiste em estar cheias de amor de Deus e animadas da esperança do Céu, a ponto de considerar pouca coisa os êxitos ou reveses deste mundo. […] Engana-se quem imagina que poderá encontrar a paz no gozo dos bens deste mundo e nas suas riquezas. As freqüentes perturbações nesta terra e o fim deste mundo deveriam convencer o homem de que ele construiu sobre areia os fundamentos de sua paz”. 6

Paz e pecado não podem viver juntos

A paz cantada e oferecida pelos Anjos encontra-se na santidade para a qual todos nós somos chamados. Fomos criados por Deus e para Ele; enquanto a suma Verdade não ilumine nossa inteligência, enquanto o Bem supremo não ocupe um lugar primordial em nosso coração, serão frustrados nossos esforços em busca da paz. Num mesmo coração não podem viver juntos a paz e o pecado. “Não há paz no coração do homem carnal, nem no do homem entregue às coisas exteriores, mas somente no daquele que é fervoroso e espiritual”. 7 Por isso, quanto mais procuro a paz nos gozos deste mundo, mais me acusará minha consciência pelo fato de me colocar fora da ordem do universo, e sobretudo se, por desgraça, venha eu a abraçar as vias do pecado. Neste caso, serei objeto do ódio de Deus e dos raios de Sua santa cólera. Pior ainda será minha situação se eu conseguir abafar a voz de minha consciência; aí, no silêncio profundo de meu inveterado e pérfido coração, se evanescerão os remorsos, angústias e temores pela virtude perdida. E neste caso, a morte ocupará o lugar deixado em minha alma pela antiga paz.

Em realidade, o que é a verdadeira paz?

Diz-nos São Tomás de Aquino: “Quem tem um desejo, deseja também a paz, uma vez que ele almeja obter tranqüilamente e sem impedimentos o objeto desejado. E nisso consiste a paz, que Santo Agostinho define como ‘a tranqüilidade da ordem’”. 8 Portanto, nossos anseios sempre são acoplados a uma busca de paz. E a única capaz de satisfazer o coração humano é aquela oferecida pelos Anjos a toda a humanidade, na pessoa dos pastores.

Tranqüilidade e ordem são os elementos constitutivos dessa paz. Pode vir a existir tranqüilidade sem ordem, e vice-versa: em nenhum desses casos haverá verdadeira paz, ainda que desta possam existir aparências.

Não é por mera expansividade que os Anjos cantam em primeiro lugar: “Glória a Deus no mais alto dos Céus…” (Lc 2, 14), pois a verdadeira paz procede do Espírito Santo, como as plantas nascem das sementes ou das raízes, tal qual ressalta São Paulo: a paz é “fruto do Espírito Santo” (Gl 5, 22) e “está acima de todo entendimento” (Fl 4, 7). O Doutor Angélico afirma, e torna-se óbvio, que vive em perfeita ordem quem está unido a Deus, pois Ele ordena as potências da alma, com seus sentidos e faculdades, por ser Ele mesmo o primeiro princípio e último fim de toda a criação. Daí produzir essa união o repouso interior. Ademais, quando nossa união com Deus é plena, não pode haver perturbação porque tudo o que não é Deus, reputamos como sendo nada, conforme proclama São Paulo: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós?” (Rm 8, 31).

É-nos fácil compreender como o homem que está em paz com Deus também o estará consigo mesmo, assim como com os demais, pois o fundamento da verdadeira paz é viver em paz com Deus Nosso Senhor. Por isso nos diz São Cirilo: “Envergonhemonos de prescindir do dom da paz, que o Senhor nos deixou quando ia sair do mundo. A paz é um nome e uma coisa saborosa, a qual sabemos que provém de Deus, como diz o Apóstolo aos filipenses: a paz de Deus. E que ela é de Deus, mostra-o também quando diz aos efésios: Ele é nossa paz. A paz é um bem recomendado a todos, mas observado por poucos. Qual é a causa disso? Talvez a ambição de poder, a inveja, o ódio ao próximo, ou algo do gênero, que vemos naqueles que desconhecem o Senhor. A paz procede de Deus, o qual é quem une tudo […] Transmitea aos Anjos […] e se estende também a todas as criaturas que verdadeiramente a desejam”.9

Principal razão pela qual os homens de hoje não acham a paz

Se, como acima dissemos a paz é fruto do Espírito Santo, a base dela se encontra fixa na vida da graça e da caridade. Ora, o Autor da graça é Jesus Cristo: “A graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1, 17). E, portanto, é Ele também o autor da paz: “Cristo é a nossa paz” (Ef 2, 14).

Essa é a principal razão de não encontrarem os homens de hoje a verdadeira paz. Claro! Pois ela não surge dos tratados. Quando muito, aordem externa das nações consegue reparar os estragos materiais do pósguerra, mas somente a tranqüilidade e ordem da alma é que – enquantoelementos essenciais – trazem a autêntica paz. Esta se evanesceu do concerto das nações e nem sequer no interior das mesmas nós a podemos desfrutar.

E o que dizer das dissensões no seio das famílias, instituição que a cada passo ainda mais se deteriora pela agressão de vários fatores adversos conjugados: corrupção moral progressiva, desfazimento da autoridade paterna, generalizada violação da fidelidade conjugal, desprezo da Lei de Deus e até mesmo do bem social no cumprimento dos sagrados deveres para com os filhos?

Todas essas desordens têm sua causa no próprio homem atual, penetrado de descontentamento em seu coração, irmão siamês do fastio, acidez e inquietação. Quase toda criatura humana, hoje em dia, é possuída por um espírito de insubordinação a qualquer tipo de autoridade, seja ela eclesiástica, religiosa, política, familiar, etc. Sem falar da processiva perda do pudor, que constitui hoje o mal de todos os povos…

Magistério dos Papas

Sábias, a esse propósito, foram as palavras do Beato João XXIII em sua famosa Encíclica Pacem in Terris:

“A paz na terra, anseio profundo de todos os homens de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus. […] Contrasta clamorosamente com essa perfeita ordem universal, a desordem que reina entre indivíduos e povos, como se as suas mútuas relações não pudessem ser reguladas senão pela força. […]”

Em última análise, só haverá paz na sociedade humana, se essa estiver presente em cada um dos membros, se em cada um se instaurar a ordem querida por Deus. Assim interroga Santo Agostinho ao homem: ‘Quer a tua alma vencer tuas paixões? Submeta-se a quem está no alto e vencerá o que está em baixo. E haverá paz em ti, paz verdadeira, segura, ordenadíssima. Qual é a ordem dessa paz? Deus comandando a alma, a alma comandando o corpo. Nada mais ordenado’”.10

E em recente pronunciamento, Bento XVI, nosso Pontífice felizmente reinante, assim se exprimiu sobre o mesmo tema: “Em primeiro lugar, a paz deve ser construída nos corações.

De fato é neles que se desenvolvem sentimentos que podem alimentá-la ou, ao contrário, ameaçá-la, enfraquecê-la, sufocá-la. Aliás, o coração do homem é o lugar das intervenções de Deus. Portanto, ao lado da dimensão ‘horizontal’ das relações com os outros homens, revela- se de importância fundamental, nesta matéria, a dimensão ‘vertical’ da relação de cada um com Deus, no qual tudo tem o seu fundamento”.11

Glória no Céu e paz na terra

Por isso, neste Natal, em meio aos múltiplos dramas atuais, ecoam mais do que nunca para nós os cânticos dos Anjos, como outrora para os pastores. Eles nos oferecem a verdadeira paz, a cada um de nós em particular, convidando-nos a subordinarmos nossas paixões à razão, e esta, à Fé. Oferecem- nos também o término da luta civil, da luta de classes e das próprias guerras entre as nações, com a condição de observarmos cuidadosamente as exigências impostas pela hierarquia e pela justiça. Em síntese, é-nos indispensável, para recebermos dos Anjos essa oferta tão ansiada por nós, estarmos em ordem com Deus, reconhecendo nEle o nosso Legislador e Senhor, e amando-O com todo entusiasmo.

É o que, com tanta lógica e unção, comenta São Cirilo: “Não O olhes simplesmente como um menino depositado num presépio, mas em nossa pobreza devemos vê-Lo rico como Deus, e por isso é glorificado inclusive pelos Anjos: ‘Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade’. Pois os Anjos e todas as potências superiores conservam a ordem que lhes foi dispensada e estão em paz com Deus. De modo algum se opõem ao que Lhe agrada, mas estão firmemente estabelecidos na justiça e na santidade. Nós somos desgraçados ao colocar nossos próprios desejos em oposição à vontade do Senhor, e nos colocamos nas fileiras de seus inimigos. Isso foi abolido por Cristo, pois Ele mesmo é a nossa paz (cf. Ef 2, 14) e nos une por sua mediação com Deus Pai, tirando o pecado, causa de nossa inimizade, justificando-nos pela fé e aproximando os que estão distantes. Além disso, modelou os dois povos em um homem novo, fazendo a paz e reconciliando ambos em um só corpo com o Pai (cf. Ef 2, 15-16). Com efeito, agradou a Deus Pai reunir nEle todas as coisas, e unir os de cima com os de baixo, os do Céu e os da terra, e dizer que há um só rebanho. Cristo tem sido para nós paz e boa vontade”.12 E com não menor espiritualidade, acrescenta São Jerônimo: “Glória no Céu, onde não há dissensão alguma, e paz na terra, onde há guerras diariamente. ‘E paz na terra’. E em quem essa paz? Nos homens. […] ‘Paz aos homens de boa vontade’, isto é, àqueles que recebem Cristo recém-nascido”. 13(Revista Arautos do Evangelho, Dez/2008, n. 84, p. 10 à 19)

1 PIO X, São. Discurso de 23/12/1903 apud Lettres Apostoliques de S. S. Pie X. Paris: Maison de la Bonne Presse, v. I, p. 210.

2 EPHREM DE NISIBE, Saint. Commentaire de l’Évanglile Concordant ou Diatessaron, Lc 2, 14. Paris: Éditions du Cerf, 1966, p. 73.

3 AUGUSTINUS HIPPONENSIS, Sanctus. In Evangelium Ioannis, t. 77.

4 Apud: AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea, in Mt. c. 27, l. 4.

5 AUGUSTINUS HIPPONENSIS, Sanctus. De Civitate Dei. L. XIX, 11

6 BEDA VENERABILIS, Sanctus. Homilia XI in Vigilia Pentecostes.

7 KEMPIS, Tomás de. Imitación de Cristo, Libro I, cap. 6, 2.

8 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica II-II, q. 29, a. 2.

9 Apud: AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea, in Lc 24, vv. 36-40.

10 JOÃO XXIII, Carta Encíclica Pacem in Terris, 11/4/1963, nn. 1, 4 e 164.

11 BENTO XVI, Mensagem no XX aniversário do Encontro Inter-Religioso de Oração pela Paz, 2/9/2006.

12 CIRILLUS ALEXANDRINUS, Sanctus. Commentarii in Lucam, 2, 14.

13 HIERONYMUS PRESBYTERUS, Sanctus. Homilia de Nativitate Domini, n. 65 (Morin n. 394).

O que os anjos vêem: natureza e graça

Pe. Colombo Pires, EPanjos Tradução do Original Pe. Romanus Cessario, O.P.

Apesar da inteligência humana e angélica possuírem uma performance diferente, a distinção clássica entre a visão matutina e vespertina dos anjos sugere uma verdade importante acerca do conhecimento disponível a todos que vivem na Fé de Jesus Cristo. A noção que os anjos possuem dois tipos de visão aparece inicialmente nos comentários de Santo Agostinho acerca da criação na Bíblia, o De Genesi ad litteram, Book IV, chapters 22-31 onde o Doutor da Graça fala de um amanhecer e de um anoitecer no conhecimento dos Anjos. A tradição teológica subsequente alargou essa distinção, pois, como Hugo de São Vítor observa, “ há muitas questões acerca da natureza angélica, as quais a curiosidade da mente humana não foi capaz de descobrir”.1 Então, na sua Summa theologiae, não surpreende descobrir que São Tomás de Aquino estende a intuição do conhecimento angélico de Agostinho.

O Santo de Hipona inventou as expressões conhecimento “matutino” e “vespertino” como parte da sua interpretação dos seis dias da criação presentes no Gênesis… (Ele) chamou “matutino” ao conhecimento angélico das coisas no seu primordial começo, precisamente como existem no Mundo; e “vespertino” ao seu conhecimento da realidade criada enquanto existindo na sua própria natureza.2

Porque a “escuridão da noite” caracteriza, mais propriamente, o conhecimento dos anjos decaídos que se fixaram na realidade criada, o Aquinate rejeita esse ponto de vista. Ele defende que como o amanhecer e o anoitecer estão conotadas com a luz do dia, “ambos os tipos de conhecimento expressados por estes termos pertencem aos anjos que estão na luz”.3

Nenhum teólogo contestaria que o que os anjos vêem na manhã, nomeadamente, tudo como existe no divino mundo da criação, forma a única base para a genuína reflexão teológica. O próprio São Paulo testemunha a centralidade desse tipo de conhecimento quando ele lembra aos Colossenses que Cristo “é a imagem de Deus invisível, o primogênito de toda a criação; Por Ele todas as coisas foram criadas, no céu e na terra, visíveis e invisíveis” (Col 1, 15-16).

Enquanto nós frequentemente associamos a teologia com a realidade de Deus e os Seus feitos, com mistérios como a Trindade, a Ressurreição de Cristo, e a Imaculada Conceição da Virgem Maria, a reflexão teológica estende-a apropriadamente ao que os homens e as mulheres fazem. Por outras palavras, a fé do cristão determina a questão ética. Também as virtudes da vida cristã estão entre aquelas realidades visíveis que encontram a sua realização em Cristo. De fato, Orígenes, autor do II século, afirma esta verdade quando escreve: “Não se surpreendam ao falarmos das virtudes do amado Cristo, porque em outros casos nós estamos afeitos a olhar o próprio Cristo como a substância daquelas muitas virtudes”.4

Pelo fato de Cristo permanecer a fonte de todo o bem moral para a pessoa que aceita a mensagem do Evangelho, a Igreja afirma que o ensino da moral cristã possui uma distinta especificidade. Numa variedade de maneiras, os teólogos contemporâneos enfatizam a importante ligação entre a reta conduta Cristã e a autêntica crença cristã.

Hans Urs von Balthasar, por exemplo, identifica Cristo como a “norma pessoal e concreta”5 da vida moral. Isto quer dizer, entre outros, que sem uma efetiva união com Cristo, nenhuma pessoa humana pode, na prática, atingir a perfeição da vida moral que conduz à beatífica companhia com a Trindade, os anjos e os santos. Para mais, “é Cristo, o novo Adão, que plenamente desvenda a própria humanidade e desdobra o Seu nobre chamado revelando o mistério do Pai e do amor do Pai”.6

Por outras palavras, apenas a pessoa que abraça uma vida cristã de virtudes vive inteiramente de acordo com a norma da verdade moral que Cristo, a “imagem do Deus invisível,” comunica ao mundo, e em Cristo realiza a perfeição da natureza humana.

Por um lado, devido à sua inteligência superior, os anjos conhecem os divinos mistérios do mundo com grande clareza. Nós, por outro lado, conhecemos as verdades da fé sombriamente, isto é, apenas pela crença na Palavra de Deus, Primeira Verdade.7 E por causa da escuridão moral que caracteriza o pecado no mundo, as verdades da fé acerca da conduta humana parecem por vezes obscuras para a pessoa que ainda deve aprender a apreciar a medida espiritual que Cristo estabelece para vida humana. Certamente, uma ponderação contemplativa mais profunda da verdade revelada — um esforço na fé para ver mais claramente o que os anjos bons vêem na “manhã” quando tudo aparece na “imagem perfeita” — forma a característica básica do dinamismo da vida Cristã. Significa isto, então, que o conhecimento da fé apenas pode fornecer instrução moral para o crente Cristão? Tradicionalmente, a Igreja dá uma resposta negativa a essa questão. A razão humana — a que está inerente a capacidade e o objeto próprio — não está abrogada pelo dom da fé. O ser humano, alumiado pela fé em Cristo continua a englobar o mundo com a sua capacidade racional de inteligência. E para que se possa compreender plenamente o esplendor da vida Cristã, é importante conhecer as razões porque o conhecimento humano autêntico ajuda a crença Cristã, especialmente em matérias que concernem a própria conduta da vida humana.

O fato de a razão preservar todo o seu vigor no contexto da vida cristã indica um papel genuíno para a filosofia dentro de uma compreensão cristã do mundo e da pessoa humana. Nas suas Gifford Lectures (1931-32), Étienne Gilson levantou a questão da filosofia Cristã: “Eu chamo Cristã a toda a filosofia que, apesar de manter as duas ordens formalmente distintas, considera a revelação Cristã um auxiliar indispensável para a razão”.8 Quer nós aceitemos ou não esta proposta especifica, Gilson deixa ao menos uma noção de como a crença Cristã pode considerar o esse rerum, o ser das coisas, de um ponto de vista formalmente distinto daquele da fé divina. E se essa procura pessoal por sabedoria se desenvolve num inquérito intelectual, nós podemos justamente chamar à pessoa que o pratica um filósofo Cristão. O conhecimento filosófico demanda esse rerum quod in propria natura habent, isto é, busca desvendar as naturezas próprias que as coisas têm nelas mesmas. Apesar da filosofia poder apenas conseguir um conhecimento limitado da natureza das coisas, o ensinamento filosófico ainda representa um esforço discursivo da parte da pessoa humana a fim de obter o que os anjos vêm ao escurecer, um “conhecimento da realidade criada enquanto existente na sua própria natureza.” A Igreja, cada vez mais, incentiva este esforço, e ela fá-lo baseada em São Paulo: “Com efeito, o que é invisível nele — o seu eterno poder e divindade — tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras” (Rm 1, 20).

O Cristão sabe que há limites para os “princípios e as causas” que os filósofos procuram. A “filosofia primordial” de Aristóteles, na realidade, convida-nos a contemplar a existência da mais alta verdade, embora os poços que alcançaram esta meta obtiveram apenas um oblíquo, inferencial conhecimento deste último princípio; isto é, um conhecimento da dependência dos seres criados de uma única, fonte que todas as pessoas chamam Deus.9 Devido a ter explorado extensivamente a diferença entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, São Tomás de Aquino oferece uma nota incaracteristicamente acabrunhada acerca daquelas pessoas que se apóiam apenas na razão para descobrir a verdade acerca da existência humana.

Porque Aristóteles viu que não há nenhum outro conhecimento humano nesta vida exceto através das ciências especulativas, ele sustentou que o homem não pode atingir uma completa, mas apenas uma relativa felicidade. Com isto fica claro o que o nobre gênio entre os filósofos experienciou no curso do seu tempo.10

Mas enquanto o Cristão escapa a esse triste estado, ele ou ela precisam experimentar alguma frustração dos filósofos. Como um teólogo aponta, “se o homem não estabelece um contato definitivo com Deus a um ponto que não é graça (no sentido teológico da palavra), então o Deus que se revela não se pode endereçar ao homem de modo significante. Daí, a solene declaração da Igreja que a existência de Deus pode ser naturalmente conhecida (Dz 3004, 3026) e que a alma humana é imortal (Dz 1440)”.11

Quando a Igreja defende a dignidade do chamado humano e restaura a esperança para aqueles desconsolados de qualquer destino mais alto, ela reconhece que a sua mensagem atingiu o mais profundo do coração humano. Ao mesmo tempo, por causa do sobrenatural senso de fé, o Povo de Deus recebe uma verdade que excede a capacidade do conhecimento humano, a verdade que os liberta (Cf. Jo 8, 32).

Retornemos à distinção que Santo Agostinho e São Tomás de Aquino fizeram entre o conhecimento matutino e vespertino dos anjos — o seu cognitio matutina e vespertina — a fim de ver que aplicação pode ter na ética teológica. O Aquinate explica a base para distinguir os dois tipos de conhecimento angélico da seguinte maneira: Para o ser das coisas deflui do Mundo como de um primeiro (ou primordial) princípio, e esta efusão termina no ser das coisas o que elas possuem em sua própria natureza.

São Tomás fala de um “defluir” que se espalha da fonte criativa de todas as coisas em Deus e termina na variedade de naturezas criadas que existem no mundo.12 A expressão da verdade divina assemelha-se a este fluir do ser. No ponto de vista do Aquinate, encontra-se a inesperada compleição da metafísica na revelação Cristã. Através da revelação divina, Deus comunica um conhecimento da realidade como ela existe no Seu Filho, mesmo apesar de os crentes ainda gozarem da capacidade de adquirir um conhecimento das coisas reais como elas existem nelas próprias.

O filósofo americano vai ainda tão longe de afirmar que “a teologia revelada promete uma visão dos princípios que o metafísico busca, e até mesmo deseja”.13

In: Lumen Veritatis, nº5.

Este texto foi publicado com a gentil permissão do corpo editorial da AMATECA series of Handbooks of Catholic Theology e foi traduzido pelo Pe. Colombo Pires E.P. da edição inglesa do Father Cessario’s Le Virtù (Milan 1994).

[Romanus Cessario, O.P. The Virtues, Or the Examined Life (London/New York: Continuum, 2002)].

1 De Sacramentis Bk 1, chap. 5, no. 19 (PL 176: 254).
2 Summa theologiae Ia q. 58, a. 6.
3 Ibidem.
4 Origen, Commentary on the Song of Songs, Bk 1, in Origen, The Song of Songs: Commentary, trans. R. P. Lawson (Ancient Christian Writers, vol. 26; Westminster, MD and London, 1957), p. 89.
5 Hans Urs von Balthasar, “Nine Theses in Christian Ethics”, in International Theological Commission: Texts and Documents 1969-1985, ed, Michael Sharkey (San Francisco, 1989), p. 108.
6 Gaudium et spes, nº. 22.
7 O Aquinate chega a especular se os anjos possuem essa claridade acerca das verdades da fé mesmo antes da sua confirmação na glória (ver Summa theologiae IIa-IIae q. 5, a. 1). Em qualquer caso, a distinção de Santo Agostinho refere-se ao que os anjos conhecem após a sua irreversível escolha de amor a Deus.
8 The Spirit of Medieval Philosophy (New York, 1940), p. 37.
9 Cf. In De Trinitate Bk 5, chap. 4.
10 Contra gentiles Bk III, c. 48.
11 Edward Schillebeeckx, Revelation and Theology, vol. 1 (New York, 1967), pp. 154, 155.
12 Porque ele afirma firmemente a total implicação da doutrina Cristã da criação ex nihilo, São Tomás reconhece que toda a natureza criada possui mas nunca extingue o seu próprio ato de ser. A grande contingência dos seres criados deriva da tênue afirmação que têm na existência, onde quer que a divina omnipotência e infinitude repousem na identidade da essência e existência que pertence unicamente a Deus. Por outras palavras, a explicação do Aquinate acerca do “defluir” permanece livre de emanacionismo ou outra conotação panteísta.

13 Mark D. Jordan, Ordering Wisdom:The Hierarchy of Philosophical Discourses in Aquinas (Notre Dame, IN, 1986), p. 178. Jordan explica mais tarde esta conexão: “Se há uma diferença metodológica entre metafísica e teologia, não haveria então uma segregação material delas nos textos (de São Tomás). O discurso da metafísica não está encerrado em algum ponto abaixo da teologia na hierarquia das ciências. O leitor passa imperceptivelmente de um discurso para outro. De fato, não é como se estivéssemos a passar ao lado da metafísica, mesmo se alguém sabe que a metafísica, enquanto ela mesma, não pode prover a necessidade de um estágio mais alto. Pelo contrário, encontra-se a inesperada compleição da metafísica na revelação” (p. 177).

A ordem do universo e os anjos

anjosPe. Edwaldo Marques, EP

Quem trata da ordem do universo não pode deixar de dizer uma palavra sobre o papel dos anjos na manutenção da ordem criada por Deus; igualmente, não pode deixar de considerar o papel do anjo da guarda na sua constante ação sobre cada homem em particular.

Evidentemente, Deus com seu poder infinito, não necessitaria do auxílio dos anjos para manter a ordem da criação por Ele estabelecida; porém, é inegável que o poder d’Ele tem um colorido de especial beleza porque é exercido através de toda uma hierarquia de seres espirituais, pois quanto mais é o número de intermediários  e de funções. tanto mais Deus pode manifestar a sua glória.

Como os anjos exercem suas funções em relação à ordem do universo?

Dom Vonier, na sua interessantíssima obra LES ANGES, baseada em São Tomás, nos ensina que o mundo físico está totalmente confiado à guarda dos anjos.

Afirma ele, em inteiro acordo com a maioria dos comentadores de São Tomas, que o universo mantém-se ordenado porque está assistido por anjos ordenadores. Assim, o incomensurável número de astros que circulam continuamente nos espaços celestes, obedecem a leis estabelecidas por Deus, porém, essas leis são continuamente tuteladas por guardiães celestes, porque Ele, na sua finita sabedoria, assim o quis (VORNIER, 1938, p. 54).

É muito de acordo com a arquitetura e a beleza que Deus coloca em tudo o que faz, essa consideração sobre o papel dos anjos na regência e na conservação da ordem universal.

Conforta-nos saber — e é muito conforme a natureza humana — estar o universo regido por uma tal estrutura.  Embora Deus, a rigor, não necessite de outros seres para governar e ordenar, Ele, na sua infinita sabedoria, determinou que as coisas assim fossem por ser mais conforme os planos estabelecidos por Ele, e mais de acordo com a natureza angélica e humana como Ele as criou.

São Tomás, na Suma Teológica, a propósito do tema faz as seguintes considerações, citando os santos Padres, Santo Agostinho, Damasceno e Orígenes:)

Os santos Padres, por sua vez, afirmaram, como os platônicos, que cada uma das diversas coisas corpóreas está sob a presidência de correspondentes substâncias espirituais.  Assim, por exemplo, Agostinho, afirma: “Cada uma das coisas visíveis deste mundo é confiada a um poder angélico”. — E Damasceno diz: “O diabo fazia parte dessas potências angélicas que presidiam à ordem terrestre”. — Orígenes, ao comentar a passagem do livro dos Números que diz “a jumenta viu o anjo”, diz que “o mundo precisa de anjos que governem os animais, dirijam o nascimento dos animais, o crescimento dos arbustos e plantações e de todas as outras coisas”.  Contudo, isso não deve ser afirmado, porque alguns anjos estão habilitados por sua natureza a presidir os animais, e outros as plantas, posto que qualquer anjo, mesmo o menor, tem uma potência mais elevada e mais universal que um gênero de coisas corporais.  Mas é por ordem da divina sabedoria, a qual prepôs diferentes dirigentes a diferentes coisas (AQUINO, 2002, Vol. II, questão 110, artigo I, p. 793-794).

A ordem material, alcançável pelos nossos sentidos, está, pois intimamente ligada com a ordem dos seres espirituais, ordem essa que só se pode conhecer pela revelação divina.

A ordem do universo, para ser perfeita, exige necessariamente que todos os seres formem um só conjunto, capaz de refletir nas suas partes e no seu todo, a excelência e a grandeza do Criador.

Todos os homens, individualmente considerados, serão julgados após a morte e receberão um prêmio ou um castigo eternos. O mesmo não se verifica no que diz respeito às nações; como tais, elas têm apenas existência terrena, não passarão para a eternidade.  O prêmio ou o castigo das nações se dá nesta terra.

No que diz respeito à ordem do universo, as nações têm um papel fundamental. A correspondência ou incorrespondência dos povos à graça divina, afeta de modo marcante, num sentido bom ou mau, a harmonia que Deus — para o bem dos homens — quer que exista na humanidade, e por conseqüência, em todo o conjunto do ser criado.

Também no âmbito das nações, está presente a ação dos anjos, pois todas as nações têm um anjo protetor para ajudá-las a andar nos caminhos de Deus.

A Sagrada Escritura nos traz a esse propósito várias ilustrações.

Quando chegou a ocasião, determinada por Deus, para os judeus exilados na Pérsia deixarem o cativeiro, travou-se uma polêmica entre os anjos tutelares da Pérsia e de Israel.

O anjo da Pérsia queria que os judeus permanecessem por mais tempo para benefício dos persas que estariam assim em contato com a religião verdadeira; o  anjo dos judeus argumentava em sentido oposto, pois era necessário que os israelitas voltassem para a terra que Deus lhes havia destinado.

O profeta Daniel, numa visão, teve conhecimento disso, deixando no seu livro o seguinte relato:

O príncipe do reino persa resistiu‑me durante vinte e um dias; porém Miguel, um dos primeiros príncipes, veio em meu socorro. Permaneci assim ao lado dos reis da Pérsia.

Aqui estou para fazer‑te compreender o que deve acontecer a teu povo nos últimos dias; pois essa visão diz respeito a tempos longínquos.

Enquanto assim me falava, eu mantinha meus olhos fixos no chão e permanecia mudo.

De repente, um ser de forma humana tocou‑me nos lábios. Abri a boca e falei; disse ao personagem que estava perto de mim: Meu senhor, essa visão transtornou‑me, e estou sem forças.

Como poderia o servo de meu senhor conversar com seu senhor, quando está sem forças e sem fôlego?

Então o ser em forma humana tocou‑me novamente e me reanimou.

Não temas nada, homem de predileção! Que a paz esteja contigo! Coragem, coragem! Enquanto ele me falava senti‑me reanimado. Fala, meu senhor, disse, pois tu me restituíste as minhas forças.

Sabes bem, prosseguiu ele, porque vim a ti? Vou voltar agora para lutar contra o príncipe da Pérsia, e no momento em que eu partir virá o príncipe de Javã (Grécia).

Mas (antes), far‑te‑ei conhecer o que está escrito no livro da verdade.

Contra esses adversários não há ninguém que me defenda a não ser Miguel, vosso príncipe [Dan 10,13-20s]. (Bíblia Sagrada, 1964, p. 1226).

Naquele tempo, surgirá Miguel, o grande príncipe, o protetor dos filhos do seu povo. Será uma época de tal desolação, como jamais houve igual desde que as nações existem até aquele momento. Então, entre os filhos de teu povo, serão salvos todos aqueles que se acharem inscritos no livro [Dan 12,1] (Bíblia Sagrada, 1964, p.1229).

 O Eclesiástico nos revela que Deus “pôs um príncipe (um anjo) à testa de cada povo”  [Eclo, 17,14] (op. cit., p. 901).

* * *

 

Além dos anjos tutelares das nações, existem outros que Deus encarrega de determinadas missões para intervir em favor dos povos ou de pessoas.

Como, por exemplo, entre outros, a Sagrada Escritura apresenta os seguintes:

Josué encontrava‑se nas proximidades de Jericó. Levantando os olhos, viu diante de si um homem de pé, com uma espada desembainhada na mão. Josué foi contra ele: És dos nossos, disse ele, ou dos nossos inimigos?

Ele respondeu: Não; venho como chefe do exército do Senhor.

Josué prostrou‑se com o rosto por terra, e disse‑lhe: Que ordena o meu Senhor a seu servo?

E o chefe do exército do Senhor respondeu: Tira o calçado de teus pés, porque o lugar em que te encontras é santo. Assim fez Josué. [Jos 5, 13] (op. cit., p 262).

                                                     * * *

 Logo, porém, que Macabeu e os que estavam com ele souberam que Lísias sitiava suas fortalezas, rogaram ao Senhor, juntamente com o povo, entre gemidos e lágrimas, para que ele se dignasse enviar um bom anjo para salvar Israel [2Mac 11,6] (op. cit., p. 611).

                                                     * * *

 Quando tu oravas com lágrimas e enterravas os mortos, quando deixavas a tua refeição e ias ocultar os mortos em tua casa durante o dia, para sepultá‑los quando viesse a noite, eu apresentava as tuas orações ao Senhor.

Mas porque eras agradável ao Senhor, foi preciso que a tentação te provasse.

Agora o Senhor enviou‑me para curar‑te e livrar do demônio Sara, mulher de teu filho.

Eu sou o anjo Rafael, um dos sete que assistimos na presença do Senhor [Tob 12, 12-15] (op. cit., p. 534).

 

                                          * * *

Meu Deus enviou seu anjo e fechou a boca dos leões; eles não me fizeram mal algum, porque a seus olhos eu era inocente e porque contra ti também, ó rei, não cometi falta alguma [Dan 6,23] (op. cit., p. 1220).

                             * * *

 

O Novo Testamento também é pródigo em exemplos: “A fumaça dos perfumes subiu da mão do anjo com as orações dos santos, diante de Deus” [Apc 8,4] (op. cit. , p. 1588).

                                                            * * *

“Não são todos os anjos, espíritos ao serviço de Deus, que lhes confia missões para o bem daqueles que devem herdar a salvação?” [Hbr 1,14] (op. cit., p. 1551).

                                                            * * *

Depois de sua partida, um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse: Levanta‑te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito; fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar.

José levantou‑se durante a noite, tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egito [Mt 2,13] (op. cit., p.1308).

 

                                                             * * *

“Em seguida, o demônio o deixou (Nosso Senhor Jesus Cristo), e os anjos aproximaram‑se dele para servi‑lo” [Mt  4,11] (op. cit., p. 1309).

                                                             * * *

“Mas um anjo do Senhor abriu de noite as portas do cárcere e, conduzindo‑os para fora, disse‑lhes: ‘Ide e apresentai‑vos no templo e pregai ao povo as palavras desta vida’”  [At 5,19] (op. cit., p. 1440).

                                                              * * *

Um anjo do Senhor dirigiu‑se a Filipe e disse: Levanta‑te e vai para o sul, em direção do caminho que desce de Jerusalém a Gaza, a Deserta.

Filipe levantou‑se e partiu. Ora, um etíope, eunuco, ministro da rainha Candace, da Etiópia, e superintendente de todos os seus tesouros, tinha ido a Jerusalém para adorar [At 8,26] (op. cit., p. ).

 

                            * * *

De repente, apresentou‑se um anjo do Senhor, e uma luz brilhou no recinto. Tocando no lado de Pedro, o anjo despertou‑o: Levanta‑te depressa, disse ele. Caíram‑lhe as cadeias das mãos.

O anjo ordenou: Cinge‑te e calça as tuas sandálias. Ele assim o fez. O anjo acrescentou: Cobre‑te com a tua capa e segue‑me.

Pedro saiu e seguiu‑o, sem saber se era real o que se fazia por meio do anjo. Julgava estar sonhando.

Passaram o primeiro e o segundo postos da guarda. Chegaram ao portão de ferro, que dá para a cidade, o qual se lhes abriu por si mesmo. Saíram e tomaram juntos uma rua. Em seguida, de súbito, o anjo desapareceu.

Então Pedro tornou a si e disse: Agora vejo que o Senhor mandou verdadeiramente o seu anjo e me livrou da mão de Herodes e de tudo o que esperava o povo dos judeus [At 12,7] (op. cit.,  p. 1449).

 

                                          * * *

 

Revelação de Jesus Cristo, que lhe foi confiada por Deus para manifestar aos seus servos o que deve acontecer em breve. Ele, por sua vez, por intermédio de seu anjo, comunicou ao seu servo João [Apc 1,1] (op. cit., p. 1580).

 

                                          * * *

Eu, Jesus, enviei o meu anjo para vos atestar estas coisas a respeito das igrejas. Eu sou a raiz e o descendente de Davi, a estrela radiosa da manhã. [Apc 22,16] (op. cit., p. 1601)

 

                                          * * *

Refletiu um momento e dirigiu‑se para a casa de Maria, mãe de João, que tem por sobrenome Marcos, onde muitos se tinham reunido e faziam oração. Quando bateu à porta de entrada, uma criada, chamada Rode, adiantou-se para escutar. Mal reconheceu a voz de Pedro, de tanta alegria não abriu a porta, mas correndo para dentro, foi anunciar que era Pedro que estava à porta.  Disseram-lhe: Estás louca! Mas ela persistia em afirmar que era verdade. Diziam eles: Então é o seu anjo [At 12,15] (op. cit., p. 1450).

 

                                          * * *

Eu vi também, na mão direita do que estava assentado no trono, um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos.

Vi então um anjo poderoso, que clamava em alta voz: Quem é digno de abrir o livro e desatar os seus selos? [Apc 5,1-2] (op. cit., p. 1584-1585).

 

                                                                               * * *

 

Considerar a intercomunicação e interpenetração das duas ordens de seres — os que são puros espíritos, como os anjos, e os que são compostos de espírito e matéria (os homens) — é altamente enriquecedor para a alma humana. tira-nos de uma visão terra-à-terra do que nos cerca, e transporta-nos para uma clave muito mais alta, na qual nos sentimos muito mais perto de Deus.

   

MARQUES, Edwaldo. A Ordem do Universo: Estudo e considerações a respeito da Ordem do Universo nas suas relações com a criação divina, com base na doutrina católica sobre o assunto. Centro Universitário Italo Brasileiro: Curso de Pós-Graduação em Teologia Tomista. São Paulo, 2007. p. 28-34.

Como as almas separadas do corpo conhecem?

Guy de Ridderalmas

Após a morte, a inteligência subsiste e passa a ter um modo de se exercer bastante diferente daqui na terra, pois que ela é chamada a contemplar em sua essência as realidades imateriais como Deus. Convém-lhe assim conhecer vendo o que de si é inteligível, da mesma maneira que as substâncias separadas. Deus infunde espécies na alma da mesma maneira que o faz com os anjos. A alma tem parte nelas, embora de modo menos elevado. Por meio destas espécies a alma conhece o que lhe convém de maneira direta e intuitiva. Este conhecimento ultrapassa em qualidade e em segurança tudo que existe na terra, tanto por causa da superioridade da luz divina, quanto por causa da ausência de possibilidade de erro oriunda dos fantasmas da imaginação.

À guisa de ilustração, imaginemos alguém que, em virtude de acidente, perde os olhos. Deixará imediatamente de enxergar. No entanto, a capacidade virtual de poder ver, nele subsiste. E subsiste na alma, não no corpo, obviamente. Se por algum prodígio da medicina, puder ser-lhe restaurada a vista, passará novamente a enxergar, pois a potência virtual da vista reencontrará o elemento corporal que lhe permite exercer-se, que são os olhos.

4.1 Parece que a inteligência humana conhecerá sempre por imagens

Uma dificuldade surge, entretanto a este respeito.

É próprio da inteligência humana conhecer as realidades espirituais a partir de suas imagens sensíveis. Não é esta inteligência, entretanto da mesma natureza que a inteligência dos anjos, os quais não estando unidos naturalmente a um corpo, conhecem diretamente a essência das coisas por meio das formas inteligíveis infusas no momento em que são criados. Ora, Deus move cada natureza segundo seu próprio modo de ser. Assim sendo, parece que a inteligência humana conhecerá sempre com base em imagens.

Contudo, quando se fala da visão do Criador, ao menos no que concerne esta visão direta e face a face que chamamos de visão beatífica, é preciso render-se à evidência de que nenhuma imagem sensível pode permitir ao homem conhecer sua inteligibilidade. Deus se torna inteligível, sem o concurso de qualquer ser intermediário criado. Trata-se de um modo novo de conhecer onde parece que o intelecto não tem lugar.

4.2 Funções e influências da alma separada

Quais as funções que a alma neste estado de separação pode, portanto, exercer e que influências pode sofrer?

4.2.1 Funções que pode exercer.

A alma continua viva. A Igreja já condenou a hipótese da inconsciência da alma após a morte ([1]).

Na outra vida, antes da ressurreição a vida da alma é parecida com a do Anjo, embora com diferenças. O anjo, por exemplo, se move “instantaneamente”; o homem, não. O homem não pode seguir o vôo de seu pensamento, nem de sua vontade, como o faz o espírito angélico. Algo disso, no entanto pode fazer. Por concessão de Deus também.

4.2.2 Atividades sensitivas

Atividades que requeiram as potências sensitivas externas (corpo), não as pode ter a alma separada do corpo. Com a morte, a alma só conserva em raiz, virtualmente ([2]) as potências sensitivas, pois que operam a partir de seu corpo (sentidos). Por exemplo, não poderá mais conhecer uma árvore concreta já vista em sua peregrinação terrena ou ainda a conhecer depois. Só pode ter noção da idéia universal de árvore (aplicável, portanto, a todas as árvores do mundo). 

4.2.3 Atividades espirituais

Outro aspecto entretanto é no tocante à atividade espiritual, ou funcionamento psicológico, que veremos a seguir.

 

5. Funções intelectivas da alma separada

 5.1. Conhecimentos já havidos ou acrescidos

a) A alma separada do corpo conserva todos os conhecimentos intelectuais adquiridos anteriormente durante sua vida neste mundo ([3])

b) Vê-se e conhece-se a si mesma de modo perfeito ([4]). Conhecimento com alegria superabundante para as almas justas.

c) Conhece perfeitamente as demais almas separadas, o que lhe era vedado enquanto unida a seu corpo. Tudo por conhecimento natural ([5]).

Conhece também aos anjos, no entanto, não por conhecê-los por alguma espécie inteligível abstrata, pois que eles são superiores (mais “simples”). O conhecimento que a alma tem dos anjos lhe advém, sim, do conhecimento de semelhanças impressas na alma por Deus, acessíveis às almas separadas ([6]).

d) Em virtude das espécies inteligíveis infundidas naturalmente por Deus, têm as almas separadas um conhecimento natural, embora imperfeito e geral, de todas as coisas naturais. Isto traz um aumento enorme do que se poderia chamar das ciências naturais da alma separada ([7]).

e) Em virtude destas mesmas espécies naturais infundidas por Deus, pode a alma separada conhecer um enorme número de coisas. Não todas, mas aquelas com as quais tiver determinado relacionamento, por algum modo, seja por ter delas conhecimento anterior (ciência), por afeto (amigo, parente), seja por inclinação natural (semelhança de vocação) etc. Tudo, por determinação divina ([8]).

f) O conjunto todo destes conhecimentos proporciona à alma separada, além das idéias infundidas por Deus uma altíssima idéia de Deus enquanto Autor da ordem natural, pois grande número de perfeições divinas reflete-se na própria substância das almas separadas, além das demais coisas que conhece naturalmente por infusão divina.

─ Todos estes conhecimentos dizem respeito tanto às almas dos justos, quanto à dos precitos. Nenhum deles transcende a ordem puramente natural (naquele estado), sendo algo que pede e exige psicologicamente o estado próprio da separação. Para as almas boas será motivo de regozijo; para as outras, ocasiões suplementares de tormentos e decepções.

5.2. Ciência adquirida permanece na alma separada?

Baseando-se em São Jerônimo: “Aprendamos na terra aquilo cujo conhecimento persevere em nós até o céu” ([9]), S. Tomás declara que a ciência, na medida em que está no intelecto (e ele demonstra que está principalmente nele), permanece na alma separada.

5.3. Dificuldade levantada por S. Tomás: se assim for, um homem não tão bom poderá saber mais do que um mais virtuoso. Responde ([10]): Pode ser, assim como poderá haver maus de estatura maiores que bons; mas, diz ele, isso quase não tem importância, em comparação com as outras prerrogativas que os mais virtuosos terão.

5.4. Almas separadas conhecem o que se passa na terra?

Podem as almas separadas do corpo conhecer o que se passa na terra?

São Tomás começa, a priori, negando esta hipótese. Cita S. Gregório: “Os mortos não sabem como está organizada a vida daqueles que, depois deles, vivem na carne; a vida do espírito é bem diferente da vida da carne. Assim como as coisas corpóreas e as incorpóreas diferem em gênero, também se distinguem pelo conhecimento ([11])”.

No tocante aos bem-aventurados, no entanto, S. Gregório realça ([12]) que “Não se deve pensar a mesma coisa a respeito da alma dos santos. Para aquelas, com efeito, que vêem por dentro a claridade de Deus todo-poderoso, não se deve absolutamente acreditar que reste fora alguma coisa que ignorem”.

Opinião também contestada por Santo Agostinho [“Minha mãe que tanto fez por mim na terra, depois não me apareceu nunca mais”], reproduzida por São Tomás ([13]).

São Tomás, no entanto, acaba concluindo  que “parece mais provável que as almas dos santos, que vêem Deus, conheçam tudo o que aqui acontece”.

Ele enuncia três observações que enriquecem o tema ([14]):

5.4.1 Falecidos podem preocupar-se com coisas do mundo?

Os mortos podem preocupar-se das coisas do mundo, ainda que as ignorem concretamente. Da mesma maneira que quando rezamos pela alma de um falecido, sem saber se está efetivamente no purgatório ou não;

5.4.2. Conhecimento por informações recebidas

Podem tomar conhecimento das coisas deste mundo por informações que lhes cheguem seja pelos anjos, seja pelos demônios ou ainda por divina revelação, especialmente por algum fato que lhes diga mais especialmente respeito (conhecidos, familiares);

5.4.3. Conhecimento por aparições

Por especial permissão divina podem auferir conhecimento por outras almas, diretamente ou por meio de anjos.

RIDDER, Guy de. O conhecimento da alma separada do corpo. Centro Universitário Italo Brasileiro – Curso de Pós-Graduação em Teologia Tomista. São Paulo, 2007. p.9-11.


[1] Cf DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, São Paulo: Paulinas/Loyola, 2007, p. 1238.

[2] Cf  AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,77,7 – 89,5; e Suplemento 70,I-2 em ROYO MARIN, O.P., Antonio. Teologia de la Salvación. Madri: BAC,  1965, p. 178

[3] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89-5-6

[4] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,88,I c; e I,89,2; SCG III,42-46; De anima, a.16 em ROYO MARIN, O.P., Antonio. Teologia de la Salvación. Madri: BAC,  1965, p. 180

[5] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,2

[6] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,1,3; 2,2;3

[7] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,3,c e 4

[8] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,4; 57,2

[9] Cf Epístolas, 53, al.103, em AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89, 5, 2

[10] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89,6,2

[11] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,8

[12] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89,8,3

[13] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89,8,3

[14] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,8,3

O menino que reverteu a História e a visita dos pastores

adoracao            Mons. João Clá Dias, EP

            Entremos numa certa gruta e ali veremos um Menino adorado por sua Mãe Santíssima e São José, reunidos em família, oferecendo mais glória a Deus do que toda a humanidade idólatra, e até mesmo mais do que os próprios anjos do Céu em sua totalidade. Já em seu nascimento, numa singela manjedoura, aquele Divino Infante reparava os delírios de glória egoísta sofregamente procurada pelos pecadores. Ele se encarnava para fazer a vontade do Pai e, assim, dar-nos o perfeitíssimo exemplo de vida.

            Nenhum pensamento, desejo, palavra ou ação surgida de sua alma divinamente santa terá outro fim que não seja o de glorificar o Pai, a quem tudo consagrou desde o primeiro instante.

            Não tardarão muitos séculos, depois daquele natal, para os altares dos falsos deuses serem arrasados, os ídolos quebrados, os templos pagãos destruídos – ou convertidos em santuários – e os próprios demônios se calarem. Sim, aquele Menino nascido numa gruta reverterá o trabalho realizado por Satanás durante milênios, e a Roma pagã será a sede do Cristianismo; transformada na Cidade Eterna, dentro de suas muralhas, sobre uma pedra inabalável, se estabelecerá até o fim dos tempos uma infalível cátedra da moral e da verdade.

            Mas, por outro lado, onde encontrariam os anjos, homens dignos de serem convidados para adorar o Menino? Na própria Belém, o berço de Isaí (1 Sm 16, 1) e de seu filho Davi, o humilde e jovem pastor “louro e de formosos olhos” (1 Sm 16, 12). Nos campos daquelas regiões, escolheram os anjos os destinatários do grande anúncio, pessoas pertencentes à mesma condição social do Rei e Profeta: os pastores de ovelhas. Assim, dois cortesãos do mais nobre sangue – Maria e José -, junto com os pastores de condição humilde e a própria Corte Celeste constituiriam os adoradores do Menino- Deus recém-nascido. Do Templo, nenhum representante.

            Os escribas e fariseus desprezavam aquela classe de homens que, dia e noite, no verão ou no inverno, guardavam os rebanhos naquelas pastagens de Belém. Pelo seu teor de vida, os pastores não se enquadravam nas minuciosas práticas e abluções religiosas dos cerimoniais farisaicos.

            Os terrenos por eles ocupados não eram suficientemente irrigados e, por isso, não lhes assistia um escrupuloso asseio. Ademais, a instrução era por eles acolhida diretamente na própria natureza que não lhes ensinava o uso de vasilhas, a escolha dos alimentos puros etc. Formavam eles uma comunidade à margem da sociedade, que vivia do pasto e no pasto, portanto um povo da terra, totalmente desprezado pelos fariseus. Além disso, eram excluídos do normal procedimento dos tribunais, sendo considerados inválidos seus testemunhos em juízo. Paradoxalmente, os excluídos dos pleitos farisaicos são agora convidados, pelos anjos do Supremo Juiz, a penetrar na corte de um príncipe herdeiro do trono de Davi.

            Quando os anjos se retiraram deles para o Céu, os pastores diziam entre si: ‘Vamos até Belém e vejamos o que é que lá aconteceu e o que é que o Senhor nos manifestou’. A flexibilidade de alma daqueles pastores era plena, submissa e toda feita de prontidão. O anjo lhes dissera para não temerem (cf. Lc 2, 10) e não consta nesse relato de Lucas que tenham passado por algum espanto ao longo do contato com aqueles puros espíritos. Ora, sabemos pela História o quanto os judeus se amedrontavam com as aparições angélicas, julgando que a morte com certeza se lhes seguiria (cf. Jz 6, 22-23; Jz 13, 20-22; Tb 12, 16-17). Mas esses pastores, apesar de homens de pouquíssimo conhecimento, intuíram rapidamente que, por fim, nascera o Messias.

            Sem conhecer as amplas e profundas explicações doutrinárias dos fariseus, eles como todo e qualquer judeu, sabiam da promessa feita por Deus e anunciada pelos profetas aos antigos sobre o futuro aparecimento de um Salvador. Não seria quiçá esse o tema de suas conversas durante as noites de pastoreio? Restou-nos apenas uma síntese das palavras do anjo a eles. Entretanto não será exagerado crer que ele lhes tenha esclarecido qual deveria ser o lugar e o caminho de acesso à gruta, tanto mais que lhes indicou os sinais distintivos: “Encontrareis um Menino envolto em panos e posto no Presépio” (Lc 2, 12).

            As grutas da região lhes deviam ser muito familiares, pois eram os locais de refúgio onde buscavam proteção contra as intempéries. Tampouco se pode descartar a hipótese de ter havido antecedentes de partos ocorridos em circunstâncias análogas às do Natal. O certo é que em nenhum momento lhes passa pela alma a menor dúvida e, por isso, comentam entre si, em meio a muita alegria, o fato narrado pelo anjo, e convictamente concluem e decidem empreender a caminhada rumo ao “que o Senhor nos manifestou” (v. 15).

            “Foram a toda pressa, e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura”.

            O amor não admite lentidão. A pressa dos pastores comprova o grande fervor com que receberam a boa nova. Como não conheciam o emaranhado conceitual dos fariseus, não se levantou em suas almas a menor objeção sobre a realidade do Messias que se lhes manifestava diante de todos e de cada um. Trinta e poucos anos mais tarde, a cega doutrina dos escribas e fariseus se uniria aos conceitos dos saduceus e herodianos – sem excluir os do próprio Sinédrio – para se opor ao senso comum e sobrenatural dos humildes de espírito e assim, com entranhado ódio, empregar todos os recursos com vistas à condenação do “Salvador, que é Cristo e Senhor, [nascido] na cidade de Davi” (v. 11).

            Ali na gruta, naquele momento, estavam presentes o Pai Eterno e o Divino Espírito Santo, que viam naquele tenro, delicado e ao mesmo tempo grandioso Menino, a realização de um plano idealizado desde todo o sempre: “Tu és meu filho muito amado, em quem coloco todas as minhas complacências” (cf. Lc 4, 22 e Mc 1, 11). Como também Maria Santíssima, que através de seus altíssimos dons, de maneira inigualável penetrava os mistérios daquele Nascimento. José a acompanhava muito de perto. Abismados ambos pela incomensurável humildade de Deus em fazer- se homem –  à diferença da soberba dos demônios -, concentravam-se para adorar o Divino Infante.

            Lá chegam agora também os pastores, em simplicidade e pobreza, atraídos e amados por Deus devido a seu espírito de obediência, e por serem contemplativos. Não era a pobreza material que os tornava diletos de Deus, pois pobres os havia em situação ainda mais deficiente e em maior número. Ademais, não podemos nos esquecer de que essa não era a condição social dos Reis Magos, que paralelamente estavam se pondo a caminho para adorar o Divino Infante. Por outro lado, seria outro erro querer atribuir ao portentoso milagre da aparição dos anjos, durante a noite, o fator decisivo para a crença daqueles homens toscos e talvez iletrados.

            Quão maiores e incontáveis seriam os milagres operados por aquele Menino em sua vida pública! Entretanto, muitos judeus não creram. O fator decisivo foi um especial dom de fé que lhes foi concedido. A Teologia nos ensina que há uma fé que se poderia denominar puramente intelectual: a pessoa crê em Deus, mas chega a odiá-Lo e temê- Lo como fazem os demônios e os precitos. Há, ainda, os que crêem, mas não traduzem em obras sua fé.

            Os fatos, como nos são narrados por Lucas, fazem-nos concluir que os pastores possuíam uma fé flexível e obediente, colocando em prática tudo aquilo em que acreditaram. Sem perda de tempo, submeteram todo o seu entendimento e vontade ao que lhes anunciou o sobrenatural. É naquela noite que, diante do Presépio, encontramos os primeiros cristãos adorando a Cristo, o Absoluto abnegado, despido das manifestações da glória que Lhe é devida. Os pastores, ao serem capazes de adorá-Lo na manjedoura, não teriam dificuldade de fazê-lo no Calvário, tal como Maria o fez de modo tão sublime.

            Nós também, nos dias atuais, temos o nosso presépio. O mesmo Unigênito Filho de Deus, reclinado sobre as palhas no interior da gruta em Belém, está presente debaixo das Espécies Eucarísticas. Será que igualmente nos movemos “apressadamente” em busca do Salvador, como o fizeram os pastores?

São Tomás e as “substâncias separadas”

anjosPe. Arnobio José Glavam, EP

Não foi por acaso que São Tomás de Aquino recebeu o título de Doctor Angelicus, atribuído na segunda metade do século XV pelo papa São Pio V.[1] De fato, a maestria com que o Aquinate tratou os temas metafísicos, a arte com que decantou e purificou as obras filosóficas da antiguidade — especialmente de Aristóteles — e a teodicéia por ele empreendida, fizeram dele um dos maiores autores medievais e, porque não, de toda a cristandade, tendo revelado uma inteligência incomum para dissertar os temas mais complexos e delicados. Porém, além dos dons naturais indiscutivelmente presentes nele, vivia de tal forma em contemplação e absorto em suas altas cogitações, que lhe chegaram a chamar de “bos mutus”,[2] por sua grandeza de espírito e de corpo e sua constante elevação de alma. Junto com seu exemplo e santidade de vida, parecia pertencer a uma natureza mais próxima do Céu do que da terra.

Também ao analisarmos a extensa obra legada pelo santo dominicano, encontramos uma intensa alusão aos anjos, quer na sua Suma Teológica, em que lhes dedica mais de dez artigos, quer nos numerosos escritos a ele atribuídos. Considerada a sua opera omnia, uma referência a estes seres está presentes em mais de 30 obras que a nós chegaram, sem contar com aquelas cuja incerteza de terem sido escritas sob a sua pena persiste.

Um dos expoentes máximos da metafísica medieval é o seu tratado acerca das Substâncias Separadas — Tratactus de Substantiis Separatis — escrito entre 1272 e 1273 e não terminado devido ao seu falecimento.           

Remando contra a corrente da época que afirmava serem os anjos portadores de matéria e de forma, São Tomás de Aquino discorre as idéias da antiguidade mostrando as semelhanças e dessemelhanças entre Platão e Aristóteles, expõe e refuta algumas idéias de Avicebrão e salienta a doutrina do Pseudo-Dionísio Areopagita a fim de salientar o que lhe parece mais ortodoxo de acordo com Igreja Católica. Não se poupa a críticas aos maniqueus, a certas doutrinas dos platônicos e, mesmo a Orígenes. Dessa forma, prova pela argumentação, por argumentos tirados da Sagrada Escritura e pelo raciocínio lógico haverem substâncias separadas da matéria, postas no pináculo da criação, que se relacionam enquanto essência com o ser, o que explica a sua pura espiritualidade, que foram tiradas por Deus “ex nihilo” e são distintas entre si, havendo mesmo aqueles que se podem chamar de “bons” — os anjos — e de “maus”, não por natureza mas por corrupção, e que são os demônios.

 

GLAVAN. Arnobio José. De substantiis separatis. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho, n. 5, out-dez 2008. p. 127-128.

[1] Cf. Discurso do Papa João Paulo II na Visita ao Pontifício Ateneu Internacional. “Angelicum”, 17 de Novembro de 1979.

[2] Ver NASCIMENTO, Carlos Arthur R. Santo Tomás de Aquino – o boi mudo da Sicília. São Paulo: EDUC. 1992.