Quando a lei se corrompe

 Pe. José Victorino de Andrade, EP

A mentalidade contemporânea ao desprezar a natureza humana e a lei revelada, nega a existência de uma verdade absoluta e relativiza a moral, insistindo numa legislação desprovida de valores eternos que gera consequências funestas para a pessoa, a família e a sociedade. No seu discurso aos membros da Comissão Teológica Internacional em 5 de Outubro de 2007, Bento XVI consciencializou os presentes sobre esta matéria de modo magistral:

Hoje, em não poucos pensadores parece predominar uma concepção positivista do direito. Segundo eles, a humanidade ou a sociedade, ou de fato a maioria dos cidadãos, torna-se a fonte derradeira da lei civil. […] Na raiz desta tendência está o relativismo ético, no qual alguns vêem uma das principais condições da democracia, porque o relativismo garantiria a tolerância e o respeito recíproco das pessoas. Mas se fosse assim, a maioria de um momento tornar-se-ia a última fonte do direito. A história demonstra com grande clareza que as maiorias podem errar. […] Quando estão em jogo as exigências fundamentais da dignidade da pessoa humana, da sua vida, da instituição familiar, da equidade do ordenamento social, isto é, os direitos fundamentais do homem, nenhuma lei feita pelos homens pode subverter a norma escrita pelo Criador no coração humano, sem que a própria sociedade seja dramaticamente golpeada naquilo que constitui a sua base irrenunciável.[1]

Importa-nos dissertar sobre alguns aspectos dos elementos que validam a lei, os quais são enumerados por São Tomás de Aquino ao citar Santo Isidoro. [2] Assim sendo, é requisito necessário que a lei positiva humana seja honesta, justa e possível:

1. Deve ser honesta, isto é, não pode ser contrária a outra lei superior, natural ou positiva;

2. Deve ser justa em relação ao fim, que deve ser o bem da comunidade; em relação ao autor, que deve ser o superior legítimo e em relação à forma, de modo que a divisão dos deveres seja proporcionada às condições de cada um;

3. Deve ser possível na medida em que não pode ser demasiadamente difícil ou gravosa.

Sem estes elementos pode redundar ao homem a impossibilidade ou a não obrigatoriedade do cumprimento da lei e a sua objeção de consciência quando agride a moral, ou mesmo os sãos valores da ética. A discriminação em relação às minorias ou a todo um povo, a agressão de valores exponenciais como a vida, a perseguição à Fé e à Religião, constituem uma grave transgressão das competências legais de um Estado e da instância legisladora humana. Infelizmente, a História está coalhada de exemplos de Estados que extravasaram suas competências invadindo um campo que não lhes pertence e entrando em conflito com a lei emanada pelo próprio Deus, e de regimes que nos trazem à memória um profundo desrespeito pela liberdade e dignidade humana.

O Papa João Paulo II, na sua Evangelium Vitæ, relembrava a atualidade da encíclica Pacem in Terris de João XXIII, ao citá-la abundantemente e elucidar a respeito da validade das leis:

Se a autoridade não reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser como também as suas disposições estão privadas de qualquer valor jurídico. […] A autoridade é exigência da ordem moral e promana de Deus. Por isso, se os governantes legislarem ou prescreverem algo contra essa ordem e, portanto, contra a vontade de Deus, essas leis e essas prescrições não podem obrigar a consciência dos cidadãos. Neste caso, a própria autoridade deixa de existir, degenerando em abuso do poder. O mesmo ensinamento aparece claramente em São Tomás de Aquino, que escreve: ‘A lei humana tem valor de lei enquanto está de acordo com a reta razão, derivando, portanto, da lei eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor, mas é um ato de violência’. E ainda: ‘Toda a lei constituída pelos homens tem força de lei só na medida em que deriva da lei natural. Se, ao contrário, em alguma coisa está em contraste com a lei natural, então não é lei, mas sim corrupção da lei’ (n. 71-72).[3]

É preciso ter em conta que a lei eterna e natural é anterior a qualquer lei positiva criada pelo homem e pela sua inviolabilidade, universalidade e imutabilidade necessitam reconhecimento e respeito. Os próprios direitos humanos perdem o seu sentido mais profundo se se ignora que eles pertencem à natureza humana e são inerentes à pessoa por força do ato criador do qual ela se origina.[4]


[1] Presso non pochi pensatori sembra oggi dominare una concezione positivista del diritto. Secondo costoro, l’umanità, o la società, o di fatto la maggioranza dei cittadini, diventa la fonte ultima della legge civile. […] Alla radice di questa tendenza vi è il relativismo etico, in cui alcuni vedono addirittura una delle condizioni principali della democrazia, perché il relativismo garantirebbe la tolleranza e il rispetto reciproco delle persone. Ma se fosse così, la maggioranza di un momento diventerebbe l’ultima fonte del diritto. La storia dimostra con grande chiarezza che le maggioranze possono sbagliare. […] Quando sono in gioco le esigenze fondamentali della dignità della persona umana, della sua vita, dell’istituzione familiare, dell’equità dell’ordinamento sociale, cioè i diritti fondamentali dell’uomo, nessuna legge fatta dagli uomini può sovvertire la norma scritta dal Creatore nel cuore dell’uomo, senza che la società stessa venga drammaticamente colpita in ciò che costituisce la sua base irrinunciabile”. (Insegnamenti, III, 2 (2007). p. 420-421. Tradução minha).

[2] Cf. S. Th. I-II, q. 6 a. 3.

[3] In: AAS 87 (1995) 5.

[4]Cf. BENEDETTO XVI. Ai membri della Commissione Teologica Internazionale, Giovedì 1º dicembre. In: Insegnamenti, I (2005). p. 914.

Fundamento bíblico do primado petrino

Pe. Eduardo Caballero Baza, EP

São Pedro ocupa posição preeminente no Novo Testamento, onde é mencionado 114 vezes nos Evangelhos e 57 vezes nos Atos dos Apóstolos.

Fala em nome de todos os Apóstolos (Lc 12, 41, Mt 19, 27, Mc 10, 28, Lc 18, 28), responde por eles (Jo 6, 68, Mt 16, 16, Mc 8, 29) e age por todos (Mt 14, 28, Mc  8, 32, Mt 16, 22, Lc 22, 8, Jo 18, 10). Outras vezes  os evangelistas referem- se aos Apóstolos dizendo  “Pedro e os seus” (Mc 1, 36, Lc 8, 45; 9, 32, Mc 16, 7,  At 2, 14. 37). Jesus o elege depois de fazer um  grande milagre (Lc 5, 1-11); serve-Se de sua barca  para pregar às multidões (Lc 5, 3); hospeda-Se em  sua casa (Mc 1, 29); associa-o a Si no pagamento do tributo (Mt 17, 23-26); escolhe-o, com Tiago e João,  para assistir à ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,  37), à transfiguração (Mc 9, 2) e à agonia no  Getsêmani (Mc 14, 33); é o primeiro a quem aparece  ressuscitado (Lc 24, 34). É o único dos Doze que o  anjo nomeia para ser-lhe comunicada a mensagem  da Páscoa (Mc 16, 7). São João espera a chegada  de São Pedro, para deixá-lo entrar primeiro no  Sepulcro de Jesus (Jo 20, 2-8).

Depois da Ascensão e de Pentecostes, vemos São  Pedro exercendo a autoridade máxima na Igreja.  Completa o Colégio Apostólico com a eleição de São  Matias (At 1, 5ss); fala em nome dos Apóstolos  no dia de Pentecostes (At 2, 14ss); defende perante  as autoridades judaicas o direito dos Apóstolos, de  pregar a Fé em Cristo (At 4, 8-12); condena Ananias  e Safira (At 5, 1-11); é inspirado a abrir as portas da   Igreja também aos pagãos, com a conversão do  centurião Cornélio (At 10, 47); preside o Concílio de  Jerusalém (At 15, 6ss); toda a Igreja orava por sua  libertação, quando foi encarcerado por ordem de  Herodes (At 12, 5).

Por outro lado, São Paulo assinala de modo preeminente a importância de São Pedro como  cabeça da Igreja. Depois de sua estada na Arábia,  dirige-se a Jerusalém para vê-lo (Gal 1, 18);  reconhece nele uma das colunas da Igreja (Gal 2, 9);  coloca-o como o primeiro entre as testemunhas das aparições de Cristo ressuscitado (Cor 15, 5); e mesmo quando lhe resiste “em face” em Antioquia,  age como quem reconhece sua autoridade e, portanto, confirma de algum modo seu primado (Gal  2, 11-14).

A proposta de santidade impele à perfeição na caridade

Pe. José Victorino de Andrade, EP

“Sede perfeitos como vosso Pai do Céu é perfeito” (Mt 5, 48). Para São Tomás de Aquino, esta proposta que Nosso Senhor nos faz na sequência do Sermão das Bem-Aventuranças não pode ser inatingível pelo homem, pois neste caso jamais lhe poderia ser prescrito.[1] Portanto, tem de ser possível chegar à perfeição nesta vida, e esta consiste, de acordo com Santo Agostinho, na ausência dos desejos desordenados que se opõem à caridade. O Aquinense acrescenta a esta doutrina tudo quanto possa impedir que o afecto da mente se dirija totalmente a Deus, sem o que não poderá haver caridade, que é a perfeição da vida cristã.[2]

O Catecismo da Igreja Católica aclara esta questão:

O exercício de todas as virtudes é animado e inspirado pela caridade, que é o ‘vínculo da perfeição’ (Cl 3,14); é a forma das virtudes, articulando-as e ordenando-as entre si; é fonte e termo de sua prática cristã. A caridade assegura e purifica nossa capacidade humana de amar, elevando-a à perfeição sobrenatural do amor divino (n. 1827).

Embora alguns autores prefiram distinguir o convite à perfeição da vocação relativamente à santidade, os termos se interpenetram na medida em que a perfeição pode e deve ser um notável caminho para a santificação.[3] De acordo com São Paulo (Cl 1, 28), é a perfeição em Cristo que os homens devem almejar para se apresentar diante de Deus e dos demais. A Lumen Gentium recorda que “todos os fiéis, seja qual for o seu estado ou classe, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade” (n. 40), ou seja, à santidade.

Esta comum vocação de todos os homens à santidade, seja qual for o seu estado, é atestada pelo Catecismo da Igreja Católica[4] e por numerosos documentos do Concílio Vaticano II.[5] Conforme Bento XVI: “No contexto da vocação universal à santidade (I Ts 4, 3) encontra-se a vocação especial para a qual Deus exorta todos os indivíduos”.[6]

A Constituição Dogmática Lumen Gentium dedica-lhe um capítulo inteiro,[7] exortando o cristão a ser exemplo para todo o próximo na medida em que, praticando os conselhos evangélicos, edifica toda a sociedade:

A prática destes conselhos, abraçada sob a moção do Espírito Santo por muitos cristãos, quer privadamente quer nas condições ou estados aprovados pela Igreja, leva e deve levar ao mundo um admirável testemunho e exemplo desta santidade (n. 39).

E que maior caridade poderá haver do que aquela que se manifesta na santidade? Esta é a verdadeira caridade, que permanecerá sempre, conforme nos explica o Papa Bento XVI na sua encíclica, caridade na verdade. Por isso afirmava já São Tomás: “Quem vive na caridade, participa em todo o bem que se faz no mundo”,[8] e ainda: “O ato de um realiza-se mediante a caridade do outro, daquela caridade por meio da qual todos nós somos um só em Cristo”.[9]


[1] Cf. S. Th. II-II Q. 184, a. 2.

[2] Loc. Cit.

[3] Ver a este respeito NETTO DE OLIVEIRA, José. Perfeição ou Santidade e outros textos espirituais. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2002.

[4] Ver, por exemplo, n. 941, 1533, 2013.

[5] Entre outros: Lumen Gentium, n. 32; Gaudium et Spes, n. 34 ; Gravissimum Educationis, n. 2; Presbyterorum Ordinis, n. 2.

[6] Visita Ad Limina Apostolorum dos Bispos do Canadá – Atlântico. 20 mai. 2006. Disponível em : <www.vatican.va>.

[7] Capítulo V: A Vocação de todos à santidade na Igreja.

[8] Symb. Apost.

[9] IV Sent. d. 20, a. 2; q. 3 ad 1.

A pedagógica beleza da solene celebração eucarística

Pe. José Victorino de Andrade, EPbento-xvi-_-celebr

A missa celebrada com decoro, compenetração e beleza, poderá proporcionar ao fiel um manancial de graças e levá-lo a uma fidelidade ao sacramento que se traduza numa vida íntegra. E para este efeito, o decoro do rito assume uma importância incontornável, conforme nos explica o Papa Bento XVI na sua Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis: “A relação entre mistério acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no valor teológico e litúrgico da beleza. De fato, a Liturgia, como, aliás, a Revelação cristã, tem uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade”; e apoiado neste fato, reafirma a necessidade do celebrante colocar uma especial atenção e empenho na “ação litúrgica para que brilhe segundo a sua própria natureza” (n. 35).

Para o Sumo Pontífice, a beleza do rito deve ser um reflexo da Beleza infinita, da qual as celebrações serão sempre uma pálida imagem, conforme ressaltou Bento XVI, nas Vésperas celebradas na Catedral de Notre Dame, por ocasião de sua visita à França, em 2008:

“A beleza dos ritos nunca será, certamente, suficientemente procurada, nem  cuidada nem elaborada, porque nada é demasiado belo para Deus, que é a Beleza infinita. Nossas liturgias na terra não poderão ser senão um pálido reflexo da liturgia celeste, que se celebra na Jerusalém do alto, ponto de chegada de nossa peregrinação sobre a terra. Possam, portanto, nossas celebrações, aproximar-se o mais possível dela, e fazer com que a antegozemos!” 1

Mons. João Scognamiglio Clá Dias reconhece, a partir desta insistência do Santo Padre, uma especial necessidade do pulchrum na liturgia, não como um elemento secundário, variando segundo as circunstâncias e as conveniências, mas que deve fazer-se presente por seu papel essencial, pois o sacerdote, praticando a ars celebrandi com perfeição, com mais facilidade eleva a assembléia à contemplação de Deus.2 Verifica-se assim, para o Pe. Matias Augé, C.M.F., a necessidade de cultivar uma peculiar espiritualidade mistagógica própria à celebração eucarística, que faça o crente transpor na sua vida aquilo que recebe e aprende com o ritual eucarístico, sobretudo, pelo “exemplo moralizador” de seu encontro com Cristo na celebração.3

Além de existir uma beleza intrínseca e peculiar relativamente à celebração litúrgica, esta vai mais além, reflete-se de modo extrínseco por sua essência e força simbólica, capaz de uma divina pedagogia, que tem seus desdobramentos na própria sociedade, conforme explica Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP:

“Além da beleza que lhe é própria, a liturgia realiza por seu simbolismo e essência, e do modo mais esplendoroso possível, essa sacralização das realidades temporais, em que se devem empenhar todos os fiéis. Na Celebração Eucarística, é o Céu que se liga à Terra, o espiritual ao temporal. É Cristo, ao mesmo tempo o arquétipo do gênero humano e o Filho de Deus, que se oferece ao Pai, para interceder por seus irmãos”.4

Esta sacralização das realidades temporais, ou seja, influência e transbordo das graças recebidas pela celebração eucarística – sobretudo no contexto de uma liturgia celebrada de modo digno e solene, com a compenetração de que desta forma se perpetua Cristo Sacerdote na terra –, é passível de trazer para a própria sociedade uma profunda e radical mudança. Ou seja, não é apenas no âmbito da comunidade dos crentes que a metanóia poderá ter lugar, mas também em torno dos que vivem com autenticidade e verossimilhança o sacramento recebido. Deste modo, o apelo a um sentido mais alto da nossa existência torna-se latente, e a história não é alheia a este fenômeno, conforme nos explica o Santo Padre na Sacramentum Caritatis:

“Enfim, para desenvolver uma espiritualidade eucarística profunda, capaz de incidir significativamente também no tecido social, é necessário que o povo cristão, ao dar graças por meio da Eucaristia, tenha consciência de o fazer em nome da criação inteira, aspirando assim à santificação do mundo e trabalhando intensamente para tal fim. A própria Eucaristia projeta uma luz intensa sobre a história humana e todo o universo. Nesta perspectiva sacramental, aprendemos dia após dia que cada acontecimento eclesial possui o caráter de sinal, pelo qual Deus Se comunica a Si mesmo e nos interpela” (n. 92. Grifo nosso).

Uma vez criada esta espiritualidade eucarística de que nos fala o Santo Padre, a liturgia eucarística passa a desempenhar um papel de grande importância no mundo de hoje, transmitindo as verdades da fé de modo mistagógico, simples e atraente, à semelhança de uma substanciosa catequese, e levando o homem a imitar aquilo que contemplou, guardou em seu coração e, portanto, amou. E o homem é tendente a reproduzir aquilo que admira, conforme explica Mons. João Clá Dias: “uma liturgia celebrada com a devida compenetração e manifestando toda a beleza que lhe é inerente há de ter uma ação benéfica sobre os fiéis, moldando a fundo sua mentalidade e levando-os a imitarem em alguma medida o ritual presenciado”.5

Esta rememoração poderá verificar-se, por exemplo, no seio de uma família, que vive diariamente uma espiritualidade que se nutriu com o pão da palavra e da eucaristia, transpondo-a e traduzindo-a em atos concretos, em relacionamento humano, e em laços de solidariedade, antes de mais com aqueles que lhes são mais próximos, começando na intimidade do lar:

“O pai ou a mãe que assiste a uma celebração esplendorosa, desdobrará instintivamente no dia-a-dia, no “ritual” da igreja doméstica, o cerimonial presenciado na Igreja. Dar a bênção aos filhos, ou rezar antes das refeições, por exemplo, são maneiras de praticar o espírito católico na vida da família”.6

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1 “La beauté des rites ne sera, certes, jamais assez recherchée, assez soignée, assez travaillée, puisque rien n’est trop beau pour Dieu, qui est la Beauté infinie. Nos liturgies de la terre ne pourront jamais être qu’un pâle reflet de la liturgie céleste, qui se célèbre dans la Jérusalem d’en haut, objet du terme de notre pèlerinage sur la terre. Puissent, pourtant, nos célébrations s’en approcher le plus possible et la faire pressentir!” (BENEDETTO XVI. Celebrazione dei vespri nella cattedrale di Notre-Dame Paris, 12 set. 2008. In: Insegnamenti IV, 2 (2008). p. 284. Tradução nossa).

2 Cf. CLÁ DIAS, João S. Beleza e Sublimidade: Clave teológica da Nova Evangelização. In: Lumen Veritatis. São Paulo: ACAE, n. 10, jan./mar. 2010. p. 28.

3 Cf. AUGÉ, Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 2005. p. 312-313.

4 CLÁ DIAS, João S. A gênese e o desenvolvimento do movimento dos Arautos do Evangelho e seu reconhecimento canônico. Tese de doutoramento em Direito Canônico – Angelicum. Roma, 2009. p. 274-275.

5 Ib. p. 278.

6 Loc. cit.

Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição

jesus2Pe. Carlos Werner Benjumea, EP

RATZINGER, J. / BENTO XVI. Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. São Paulo: Planeta, 2011. 272p. ISBN: 9788576656180.

O segundo volume do livro “Jesus de Nazaré”, do Papa Bento XVI, veio a lume recentemente, confirmando a grande expectativa causada pelo anúncio de sua iminente publicação. Foram já vendidos cerca de um milhão de exemplares da obra, editada em sete línguas. A versão em português do Brasil chegou às livrarias em maio de 2011, por meio da editoria Planeta.

O autor, com a fineza de pensamento e o acurado rigor científico que o caracterizam, apresenta uma Cristologia viva, profunda e enriquecedora a partir dos mistérios da vida de Jesus, desde “a entrada em Jerusalém até a Ressurreição”. A obra, porém, não adoece da frieza acadêmica de um estudo técnico e exaustivo. O propósito de Bento XVI é claro: partindo da exegese histórico-crítica e de seus resultados, vai mais longe, de modo a chegar à interpretação teológica. Este passo é decisivo, pois, se a árvore da exegese não dá bons frutos na área da Cristologia, corre o risco de tornar-se teologicamente estéril.

Trata-se, portanto, de procurar ressaltar o autêntico valor de uma exegese verdadeiramente católica, inspirada pelo sincero desejo de aprofundar à luz da Fé a verdade contida no texto sagrado (cf. Dei Verbum, n. 12), sem descuidar o auxílio da investigação histórica, semântica e arqueológica.

O estilo do livro é habitualmente um reflexo da disposição de espírito do autor. Assim, singeleza e sabedoria inspiram a pena do Papa, sempre aberto ao diálogo crítico e construtivo com a exegese histórica, mesmo quando se apresenta impregnada de positivismo, mostrando seus limites e explorando seus contributos ao estudo das Escrituras.

O livro, com efeito, é convidativo e atraente. Lê-se com paixão e amenidade, sendo difícil deter a leitura. Não se destina exclusivamente ao estudo de técnicos e especialistas. Nas suas páginas encontra-se uma mensagem acessível ao público católico e cristão em geral. O Cardeal Marc Ouellet, por ocasião da apresentação da obra na Sala Stampa do Vaticano, em doze de março deste ano, definiu “Jesus de Nazaré” como “um testemunho comovente, fascinante, libertador”.1

Pelo prestígio do autor e sua capacidade de comunicação, a obra pressagia uma nova aurora na exegese bíblica, por sua acertada aproximação científica e teológica à Pessoa de Jesus.

O conteúdo do livro é substancioso e muito rico, pois aborda os acontecimentos-chave narrados pelos Evangelistas, a fim de tornar possível conhecer melhor a figura e a mensagem de Jesus. A partir desses episódios trágicos e gloriosos — paixão, morte e ressurreição — é possível aprofundar muito especialmente o mistério da filiação divina e da missão redentora de Jesus, nas quais se manifesta o rosto amoroso de Deus.

A obra está estruturada em nove capítulos. Abarca o período que vai desde a entrada em Jerusalém e a expulsão dos vendilhões do Templo até a Ascensão de Jesus aos céus. O Autor põe em foco temas muito debatidos e de vivo interesse nos meios exegéticos e teológicos. À guisa de síntese, enunciamo-los em seguida: A análise do discurso escatológico de Jesus e seu conhecimento a respeito dos acontecimentos futuros; a mensagem de amor ao lavar os pés dos discípulos; a oração sacerdotal de Jesus no Evangelho de São João e sua profunda ligação com a Eucaristia e com a Páscoa; a Última Ceia e a atualidade do caráter expiatório da missão de Cristo; a agonia no Horto das Oliveiras como o grandioso embate da luz contra as trevas; o processo de Jesus com a descrição, em minuciosos detalhes, dos acontecimentos e das personagens envolvidas; a crucifixão e morte de Jesus vistas em seu mais profundo sentido bíblico-salvífico; a Ressurreição de Jesus de entre os mortos; e, por fim, a Ascensão aos céus.

O fio condutor de toda a obra, em continuidade com o primeiro volume, é o fundamento histórico do cristianismo e da própria Escritura. Para Joseph Ratzinger, a mensagem do Novo Testamento não é tão só um conjunto de verdades metahistóricas baseadas em narrações simbólicas. Isso seria transformar em fábula, ou em mito, acontecimentos reais. Pelo contrário, pertence à essência da Revelação o fato de estar fundada na história que aconteceu sobre a face da terra.

Ratzinger exemplifica a este respeito com a Eucaristia: se Jesus não tivesse dado a seus discípulos seu corpo e seu sangue sob as espécies do pão e do vinho, a celebração eucarística perderia seu conteúdo, seria uma “ficção piedosa” e não “uma realidade que estabelece a comunhão com Deus”.

No livro, aborda-se com seriedade o tema do caráter sacrifical da missão messiânica de Jesus, pedra de escândalo de alguns teólogos influenciados pela sensibilidade moderna, avessa à ideia de expiação. Embora a historicidade dos textos eucarísticos do Novo Testamento seja incontestada pelos exegetas, paira a dúvida e continua-se discutindo a respeito do verdadeiro sentido do “sangue derramado” e do “corpo entregue”. Para Ratzinger, estes textos evocam o sacrifício de expiação da Antiga Lei e o levam, ao mesmo tempo, a seu pleno cumprimento.

Depois de explicar a necessidade de deixar-se guiar pela Escritura, abandonando a atitude de querer confrontá-la de forma presunsuosa e racionalista com os critérios humanos, o Santo Padre desvenda primorosamente a força vencedora do sacrifício de Cristo sobre o pecado, a morte e o mal. Na paixão de Jesus, a imundície do mundo entra em contato com O imensamente puro, mas desta vez o mal não vence. Em Jesus, o bem é infinitamente mais forte, com poder para anular e transformar a sordície do pecado.

É o “extremo sim” ao Pai, após o combate interior travado no Horto das Oliveiras, que, por assim dizer, consagra a Cristo Sacerdote, no sentido mais pleno do termo, “segundo o rito de Melquisedec”. Sua doação voluntária leva a humanidade até o alto, até Deus, configurando-o como o Sacerdote perfeito. Ele, tal como o apresenta a epístola aos Hebreus, oferece-Se a Si mesmo: “Tu não queres sacrifícios e oferendas, mas me preparastes um corpo” (Hb 10, 5). São as palavras dirigidas ao Pai pelo Filho como sinal de total obediência e submissão, em atitude diametralmente oposta à soberba de Adão, que quis ser como Deus (cf. Gn 3, 5).

Ressalta-se na obra a diferença existente entre o Salmo que inspira esta passagem e a adaptação dele feita na Epístola aos Hebreus. Com efeito, o ato de “abrir o ouvido” (Sl 39, 7) é substituído pelo de “preparar um corpo” (Heb 10, 5). Eis apontado com clareza o caráter sacrifical e expiatório do sacerdócio de Cristo. Era necessário que o Filho de Deus reparasse com seu holocausto o pecado da humanidade. Mas não se trata só disso: a reparação é ao mesmo tempo triunfo sobre os males decorrentes da soberba e da revolta. A morte é vencida pela Vida Eterna.

Para Ratzinger, esta realidade é expressa de forma simbólica no Evangelho de São João, o qual situa a Ressurreição de Jesus e, portanto, a vitória definitiva sobre a morte, num horto onde havia um sepulcro ainda não utilizado, evocando por contraposição o jardim do Éden, lugar do primeiro pecado.

O Santo Padre, ao tratar da Ressurreição, afronta vários temas candentes. Em primeiro lugar, pergunta-se a respeito da essência da Ressurreição, o que sucedeu com Jesus e se teria Ele simplesmente voltado à vida como Lázaro. Estuda também os dois tipos de testemunhas do evento: a tradição em forma de confissão e a tradição em forma de narração. Em seguida oferece uma síntese conclusiva a respeito da natureza e da significação histórica da ressurreição. Usando a linguagem analógica, o autor explica a Ressurreição como um “salto qualitativo radical”, pois Jesus com seu mesmo corpo “pertence agora totalmente à esfera do divino e do eterno”.

A obra termina com uma perspectiva de índole escatológica, fundada na Ascensão do Senhor aos Céus. Com efeito, a alegria experimentada pelos Apóstolos ao testemunharem o fato indica a nova forma de presença de Jesus no meio deles. Cristo não partiu para uma zona longínqua do universo, mas entrou para sempre na comunhão de vida e de poder com o Deus vivente.

Nessa perspectiva, adquire pleno sentido a promessa de Jesus no Evangelho de João: “Não vos deixarei órfãos. Voltarei a vós” (Jo 14, 18). Ao subir ao Céu, Jesus “foi”, mas ao mesmo tempo “veio”, e sua presença fortalece os discípulos de maneira especial. Com isso, esclarece-se o mistério a respeito da cruz, da ressurreição e da ascensão.

Após oferecer a síntese da mensagem nuclear e central da obra e em razão da impossibilidade de esgotar a sua riqueza, serão destacados outros temas importantes nela tratados.

Ratzinger oferece um contributo à ética cristã definindo sua essência. Para ele, a Lei de Moisés oferecia ao homem um caminho de verdadeira perfeição, mas com a Encarnação do Filho, na Kenosis misericordiosa, manifesta-se o perfil do verdadeiro cristão. Amar como Cristo amou, eis a nota fundamental da moral cristã. E só mediante a participação pessoal na vida de Jesus é-nos comunicada sua ardentíssima caridade.

As reflexões teológicas da obra iluminam de forma especial a vida espiritual cristã. O verdadeiro teólogo deve ser um homem de Fé vivida e, em consequência, pode oferecer reflexões de alto teor espiritual. Ao estudar, por exemplo, a figura de Judas, o traidor desesperado, incentiva a prática da virtude da Esperança na misericórdia do bom Mestre, focalizando o arrependimento de São Pedro, o traidor arrependido.

Não menos oportunas são as reflexões — a propósito da oração de Jesus em Getsêmani e da sonolência dos discípulos — sobre a virtude da vigilância, tão esquecida nestes tempos de individualismo imprevidente: “A sonolência dos discípulos continua sendo uma ocasião propícia para o poder do mal”.

Reflexiona também sobre a surpreendente combinação entre a douta erudição e a profunda ignorância dos estudiosos apoiados sobre um saber que se pretende autossuficiente, incapaz de transformar o homem. Desta forma, interpela o leitor com agudeza, indagando-o acerca da verdade e daquilo que muitas vezes a ela se opõe: nós, o nosso saber, e a fuga à dolorosa verdade.

Desde o ângulo da exegese histórica, a obra traz contributos muito interessantes, como por exemplo, a datação da última ceia de Jesus. Os sinóticos afirmam que a última ceia foi a ceia de Páscoa; São João a situa na parasceve, véspera da Páscoa. Como resolver a aparente contradição? Depois de um acurado estudo, Ratzinger mostra a idoneidade cronológica da narração joanina e aponta para a concordância de fundo entre as duas tradições. Jesus no cenáculo não teria celebrado a páscoa judaica, mas a sua própria Páscoa.

Em síntese, o Santo Padre trata com maestria e par cœur daquilo que conheceu e amou na Pessoa de Jesus, com uma ciência — como ele mesmo explica — que cria comunhão com o conhecido. A mensagem de seu trabalho é, sem dúvida, a mesma de Jesus: “Que Te conheçam a Ti, o único Deus verdadeiro, e Aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17, 3).

Resenha In: Lumen Veritatis, n. 15 Abr./Jun. 2011

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1 In: www.radiovaticana.org. Último acesso a 2 jun. 2011.

Se tudo é verdade, o que é a verdade?

tibidabo

Diác. José Victorino de Andrade, EP

O homem hodierno julgar-se-ia menos moderno se não criticasse os antigos. Para ele, as verdades passaram a possuir uma validade. As descobertas do passado foram ultrapassadas pelo presente, e sofrerão reparos no futuro. Tudo é transitório. Apenas a opinião alheia se enche de brios, pouco disposta a dialogar, ou pelo menos, a reconhecer uma verdade exterior.

Consequentemente, muitos autores contemporâneos, ao pretenderem apoderar-se da verdade, sentam-se em sua cátedra embevecida de pretensões infalíveis, cujos escritos destilam os seus próprios dogmas, muito distantes, por vezes, do mundo real. E quanto mais escandalosos, provavelmente, mais publicitados e comentados.

As fátuas inverdades emanadas vão ao encontro de homens ávidos de mudanças que transformem a sua existência, consequência do vazio deixado pelo rechaço à metafísica e aos seus interlocutores. Ao enveredarem por novas vias que criam uma ruptura com as antigas, aderem facilmente a novos projectos que lhes tragam uma libertação dos velhos preconceitos éticos.

Numa cultura hedonista, na qual as a igreja foi substituída pelo shopping, a beleza da virtude pela estética corporal, o jejum e a penitência pela dieta e o suor no ginásio, uma religião de dogmas e prescrições morais só poderia surgir ao pensamento contemporâneo como algo ultrapassado, impositivo, que asfixia a própria pretensão de verdade.

Assim, nega-se a verdade na sua transcendência absoluta, da qual dimanam todas as demais, e corre-se o sério risco de “panteistizá-la”. Todos com a verdade, e a verdade com todos. Se tudo é verdade, terá sentido o próprio termo? Como convidar o homem a sair de si, e dos seus preconceitos recentemente criados, a esmo, conforme o cardápio apresentado por verdades relativizadas, engolidas sem mastigar, que o empanturram de critérios pouco judiciosos, assimilados com a mesma rapidez com que muda o canal da TV?

A resposta não é uma verdade abstracta, mas uma pessoa concreta: Jesus Cristo, a “Palavra eterna que se exprime na criação e comunica na história da salvação” (Verbum Domini n. 11). Para o cristão, a Verdade absoluta, Deus, encarnou e fez-se homem (Cf. Jo 1, 14), possui um rosto — “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9) — e um nome, não havendo debaixo do céu salvação em nenhum outro (Cf. At. 4, 12). Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida (Cf. Jo 14, 6). Esta é a grande novidade do cristianismo, um Deus pessoal, não distante, que entra na História.

Como renunciar Àquele que possui palavras de vida eterna (cf. Jo 6, 68), e trocá-las por palavras humanas, levadas e esquecidas pelo tempo, ou superadas por uma nova erudição ou pensamento falível? Em Jesus, “a Palavra não se exprime primariamente num discurso, em conceitos ou regras; mas vemo-nos colocados diante da própria pessoa de Jesus. A sua história, única e singular, é a palavra definitiva que Deus diz à humanidade” (VD n.11). Esta, excede toda e qualquer capacidade intelectual humana que “com as suas próprias capacidades racionais e imaginação, jamais teria podido conceber” (Loc. Cit.).

Como chegarmos à conclusão de que não nos enganamos? São João é nossa testemunha: “‘Nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai, como Filho único cheio de graça e de verdade’ (Jo 1, 14b). A fé apostólica testemunha que a Palavra eterna Se fez Um de nós” (VD n. 11). Apenas a Revelação poderia trazer uma verdade plena que orientasse os homens em sua peregrinação terrena e os levasse a um seguro conhecimento, tanto quanto possível à sua natureza limitada.

Descobrimos assim que a verdade não é abstracta, variável, limitada, mas que é o próprio Deus encarnado, que entrando na história concreta dos homens, com Palavras de vida eterna, orienta-os na sua peregrinação terrena, convidando-os a conformar a sua vida à luz da Revelação.

O Carisma dos Fundadores

Pe. Santiago Canals Coma, EPjesus

Houve um Fundador que, pertencente à melhor estirpe real, veio a este mundo na mais humilde das condições. Passou a maior parte da existência terrena na obscuridade, preparando Sua curta vida pública. Ao empreender a atividade apostólica, abalou Ele com a doutrina que ensinava inúmeros conceitos de Sua época, sem temer a reis, a imperadores ou a pontífices. Defendeu Sua religião e filosofia em praças públicas, diante de multidões, conferindo, por meio de milagres inimagináveis, aval às Suas palavras. Por onde passou deixou as indeléveis marcas de Sua bondade, reconciliando com Deus cada um dos que lhe pediam a mediação. Por Sua ilimitada misericórdia pertransivit benefaciendo (At 10, 38): passou por este mundo fazendo o bem, mas apesar disso foi condenado ao mais infamante tipo de morte daquele tempo, ao ser levado ao patíbulo. Do alto da cruz, atraiu o mundo inteiro a Si (Jo 12,32).

Os Fundadores de famílias religiosas são reflexos dos múltiplos aspectos de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Sua missão. Porém estudá-los não é fácil e simples. Vários autores que tratam do assunto deixam claro que esse tema não foi satisfatoriamente estudado ao longo da História face à sua enorme complexidade, pois estudar os Fundadores pode ser comparado a adentrar os mistérios do próprio Deus (Cf. ROMANO, 1991, pp. 63-64).

É muito significativa a dificuldade encontrada pelo Pe. Antonio Romano. Na elaboração de seu aprofundado estudo sobre o tema afirma ele não ter achado em nenhum dicionário anterior à primeira metade do século XX – eclesiástico ou não – referências ao termo “fundador”. De modo análogo, quase não encontrou ele documentos da Igreja com informações claras para a compreensão jurídica desse vocábulo (Cf. ROMANO, 1991, pp. 34-35). Outra evidência de ser o tema “fundadores” de estudo recente na Igreja é a constatação de que apenas em 1947 foram estabelecidos os requisitos necessários para que alguém possa ser considerado Fundador de uma família religiosa. Assim, conforme documento emanado da Sagrada Congregação dos Ritos,

Para se designar alguém Fundador ou Fundadora de uma família religiosa exige-se, antes de tudo, que tal pessoa tenha reunido em torno de si um núcleo, ainda que pequeno, de seguidores, de lhes ter fixado uma meta específica; em segundo lugar, ter deixado leis ou regras – por escrito ou oralmente – especificando a meta e os meios para a alcançar. Há ainda outra observação que se pode fazer: quando um fundador toma como base uma regra anterior já aprovada, então o autor desta se torna o Patriarca ou pater desse instituto religioso. Assim, por exemplo, São Bento é o Patriarca de todas as famílias monásticas que têm como fundamento a regra beneditina; São Francisco de Sales é o Pai dos salesianos, porque São João Bosco se inspirou na legislação e nos escritos do Santo Doutor. Outros exemplos poderiam amplamente se multiplicar. SCR.SH.66, Nova Inquisitio, XVII .

É certo, porém, que sob o ponto de vista carismático-teológico os Papas sempre consideravam os Fundadores como homens inspirados pelo Espírito Santo, apesar de tal tema não ter sido estudado em profundidade sob o aspecto jurídico (Cf. ROMANO, 1991, p. 65-67, 71). Foi Paulo VI quem pela primeira vez, em um documento do Magistério oficial (Evangelica Testificatio), confirmou essa doutrina ao utilizar a expressão carisma dos fundadores: “Só assim podereis despertar de novo os corações para a Verdade e para o Amor divino, segundo o carisma dos vossos Fundadores, suscitados por Deus na sua Igreja” (PAULO VI, 1971, n.p.). Do mesmo modo, o Papa João Paulo II lançou mão dessa expressão em diversos documentos, como, por exemplo, na Mensagem à XIV Assembléia Geral da Conferência dos Religiosos do Brasil: “Anima-vos aquilo que é o sentido ínsito à vida consagrada: crescer no conhecimento e no amor, para serdes testemunhas e profetas de Cristo no mundo de hoje, em fidelidade dinâmica à vocação religiosa e ao carisma dos vossos Fundadores” (JOAO PAULO II, 1986).

Entre os papas, um se destaca por ser conhecedor das profundas realidades eclesiais produzidas pelo Espírito Santo: Bento XVI. Desde muito antes de sua ascensão ao trono pontifício o Cardeal Ratzinger já observava e acompanhava o surgimento de novos movimentos no seio da Igreja. É esse o testemunho do Presidente do Pontifício Conselho para os Leigos, Cardeal Stanislaw Rylko, dado na introdução de uma obra de BENTO XVI:

O Papa Bento XVI segue, desde há muitos anos, com paixão de teólogo e de pastor, o fenómeno dos movimentos e das novas comunidades que nasceram na Igreja depois do Concílio Vaticano II. Os seus primeiríssimos contatos com estas realidades eclesiais remontam a meados dos anos 60, quando ainda era professor em Tubinga. Depois, com o passar do tempo, essas relações intensificaram-se e aprofundaram-se, transformando-se numa verdadeira amizade (2007, pp. 25-26).

Porém não foi apenas por uma experiência pessoal que Bento XVI se converteu em um ponto de referência para os novos movimentos. Dado o importante papel que exerceu ao lado de João Paulo II como prefeito da Congregação para a a Doutrina da Fé, podemos considerá-lo um fiel intérprete do magistério dos movimentos eclesiais.

Passemos então a abordar a inspiração dos Fundadores. Na abertura do Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais em 1998 (quando ainda era o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé), ao comparar o nascimento da ordem franciscana com o nascer de um novo “movimento” o Cardeal Ratzinger assinalou a presença de uma inspiração personalizada na base dos movimentos religiosos:

Talvez possamos identificar com a máxima clareza um movimento no sentido próprio no desabrochar franciscano do século XIII. Na sua maioria, os movimentos nascem de uma carismática personalidade-guia, configurando-se em comunidades concretas que, em virtude da sua origem, revivem o Evangelho na sua inteireza e, sem hesitações, reconhecem na Igreja a sua razão de vida, sem a qual não poderiam subsistir (ibid, pp. 55-56).

Vejamos os desdobramentos da realidade teológica chamada pelo Papa de “carismática personalidade-guia”, que está na origem dos movimentos religiosos. Inicialmente devemos considerar o carisma dos Fundadores como algo que a Igreja assume como próprio quando aprova uma nova forma de vida religiosa. De acordo com Romano, o carisma dos fundadores tem uma dupla dimensão. Por um lado o Fundador, consciente de sua dependência total à Igreja, espera que ela reconheça e acolha seu carisma. Por outro lado, a Igreja vê um novo fruto do Espírito Santo, e o quer preservar de qualquer modo. Essa identidade com a Igreja é fundamental para o Fundador, pois dá a ele a certeza de que o espírito que o move, que o impulsiona no sentido de criar novos estilos de vida, e que o inflama com um “fogo profético”, é o mesmo Espírito Santo da Igreja. Ademais, por outro lado, isso fortalece as relações com seus discípulos, pois com freqüência na vida dos Fundadores “não há ninguém capaz de compreender totalmente a novidade e a profundidade do que ele é e do que ele contém em si” (Cf. ROMANO, 1991, pp. 72-73).

Este assunto é tão fundamental que uma das preocupações de Bento XVI sempre foi acolher e preservar com carinho as novas famílias religiosas, deixando claro que, junto com as igrejas locais, elas fazem parte da própria estrutura viva da Igreja. E, portanto, é necessário preservar esses novos dons para edificação de toda a mesma Igreja.

Depois de ter sido eleito Papa, Bento XVI não cessou de manifestar o seu afecto e a sua atenção pastoral a estas novas realidades. Bastará recordar as suas palavras dirigidas aos jovens reunidos em Colónia em Agosto de 2005 para celebrar o vigésimo Dia Mundial da Juventude:

“Formais comunidades na base da fé! Nos últimos decénios, nasceram movimentos e comunidades em que a força do Evangelho se faz sentir com vivacidade”. E as que sempre disse aos bispos alemães sobre o tema dos movimentos – “A Igreja deve valorizar estas realidades e, oportunamente, guiá-las com sabedoria e prudência pastorais, para que, com os seus diversos dons, contribuam da melhor maneira para a edificação da comunidade” –, acrescentando um pormenor importante: “As igrejas locais e os movimentos não se opõem mutuamente, mas constituem a estrutura viva da Igreja” (BENTO XVI, 2007, p. 29).

O tema da inserção eclesial dos novos carismas é muito complexo e não se relaciona diretamente com nosso assunto. Contudo desperta a atenção o aviso que o Papa faz aos bispos sobre a necessidade de valorizar tais realidades e saber guiá-las com sabedoria. De fato, com freqüência nos deparamos na História com fatos em sentido contrário que tantas incompreensões e mal-entendidos produziram. É o que nos explica ROMANO:

A fim de que a inserção de uma comunidade religiosa no tecido da Igreja local seja autêntica e conforme a inspiração do Espírito, existe o direito, por parte da autoridade eclesiástica, de discernir os carismas e, portanto, aprová-los. (…) Esta é uma enorme responsabilidade, que leva Girardi a afirmar que as pessoas aptas para verificar a iniciativa do Espírito deveriam tomar maior consciência disso para pôr mais atenção e munir-se de uma doutrina apropriada que permita interpretar verdadeiramente o impulso do Espírito. Se, por exemplo, um bispo nada soubesse a respeito da teologia dos carismas, como seria capaz de interpretar esses dons do Espírito? Essa é a razão da existência de tantos entraves na Igreja. Contudo, isso também forma parte do desígnio de Deus, desígnio misterioso… que permite que seus dons passem sempre através de um caminho Pascal de sofrimento e purificação. Assim como outros autores, Girardi situa a autenticidade de um carisma dentro da constante histórica da Cruz como verdadeiro critério e garantia de fecundidade (op. cit. pp. 27-28, 132, tradução minha).

Essa inserção não deve ser entendida como uma perda da própria identidade, mas, pelo contrário, a Igreja sempre insistiu na necessidade de salvaguardar cada carisma. Isto é feito com normas concretas dadas tanto às autoridades eclesiásticas como aos membros de cada família religiosa.

Igualmente, “corresponde à dita autoridade a obrigação de respeitá-los [os novos carismas], e, conseqüentemente, acolhê-los e conservá-los tal como foram dados pelo Espírito Santo. Cada um dos institutos tem direito à sua própria autonomia a fim de manter íntegro seu patrimônio espiritual e institucional; mais ainda, há o dever fundamental – tanto dos institutos em si como de cada um de seus membros – de conservar o carisma original, mesmo que seja preciso adaptá-los às mutantes exigências históricas da Igreja e do mundo (cc. 574, § 2; 576; 578; 586; 677 § 1).

Mantendo-se um instituto fiel a seu carisma e sendo respeitado por todos – inclusive pela autoridade hierárquica – por essa fidelidade, mais autêntica e eficaz será sua inserção na vida da Igreja, pois esta se realizará conforme a inspiração do Espírito”. Ghirlanda G., La vita consagrata nella vita della Chiesa, en Informationes SCRIS (2/1984)88.4 Podemos então chegar a uma conclusão: o Fundador pede o reconhecimento eclesial de seu carisma porque é consciente de ser o portador de um novo dom dentro do Corpo Místico. E a Igreja, ao concedê-lo, confirma a existência de um novo carisma, de uma nova inspiração do Espírito Santo, a ser desenvolvida para o bem do Povo de Deus.

BIBLIOGRAFIA

BENTO XVI. Os Movimentos na Igreja – presença do Espírito e esperança para os

homens. S. João de Estoril: Lucerna, 2007.

ROMANO, Antonio. Los fundadores profetas de la Historia – la figura y el carisma de los fundadores dentro de la reflexión teológica actual. Madrid: Claretianas, 1991.

CIARDI OMI, Fabio. Los fundadores, hombres del espíritu. Para una teología del carisma del fundador. Madrid: Ediciones Paulinas, 1983.

_____. Experiencia comunitaria de los fundadores. Vida Religiosa, Madrid, vol. 74, n. 1, enero, 1993.

_____. Riscoperta dei carismi dei fondatori. Vita Consacrata, Milano, n. 29, junio, 1993.

O sacerdócio é sacramento e testemunho de fé, não ofício, afirma Bento XVI em vigília

Cidade do Vaticano (Sexta-feira, 11-06-2010, Gaudium Press) O Papa Bento XVI participou na noite desta quinta-feiraVigilia de uma grande vigília junto aos milhares de sacerdotes de todo o mundo, na espera da missa de sexta-feira pela conclusão do Ano Sacerdotal.

“Bem-vindo em meio a nós”, foi como o cardeal prefeito da Congregação para o Clero, Dom Claudio Hummes, saudou o Papa. “Todos os sacerdotes presentes, junto a seus coirmãos espalhados pelo mundo, desejam manifestar a sua mais filial devoção, sua profunda estima, seu apoio e afeto sinceros”. As palavras do cardeal foram confirmadas com um grande aplauso dos mais de 10 mil sacerdotes presentes à vigília.

“Obrigado de coração Santidade, por tudo que fez, está fazendo e fará por todos os sacerdotes, mesmo por aqueles perdidos”, prossegui o Cardeal Hummes em sua saudação. “Gostaríamos que o Ano Sacerdotal não terminasse nunca, isto é, não terminasse nunca a atenção de cada um para a santidade na própria identidade”, continuou.

O Santo Padre chegou à Praça em papamóvel, passando pelos setores. A parte da vigília com a presença do pontífice consistiu em cinco perguntas feitas por padres de cinco continentes. Os temas foram os mais significativos para os padres, como o desenrolar de sua ação pastoral, o celibato, a teologia. O pontífice reforçou a eles que não se pode “fazer o que se quer ou se deveria fazer, porque nossas forças são limitadas e a sociedade é cada vez mais diversificada e complicada”.

O sacerdócio não é uma profissão ” como qualquer trabalho. É o que diz o Santo Padre Bento XVI sobre a realidade da vocação sacerdotal no mundo de hoje, o testemunho da fé, do celibato e da teologia.

O Papa advertiu ainda contra “a arrogância da razão”, que obscura a presença de Deus no mundo. “Nós, teólogos, devemos usar a razão grande e ter coragem de ir além do positivismo e ir além da experiência. Não nos submetendo a todas as hipóteses do momento”, observo o Santo Padre.

“Há uma teologia que quer ser acadêmica e científica e que esquece a realidade vital, a presença de Deus, o seu falar hoje, e não somente no seu passado”. A “verdadeira teologia” é aquela que “vem do amor de Deus e de Cristo”, explicou o pontífice, que advertiu contra a “tentação” do clericalismo, mal “de todos os tempos”, e também de hoje.

Sobre o celibato, Bento XVI reforçou que o mundo deve pensar no seu futuro, não somente em se concentrar no hoje. O sacerdócio é aquele sinal do futuro que todo homem espera. O presente problema é entender o significado do celibato como “moda para não se casar” que promove o “viver sozinho e por si mesmo, enquanto o celibato é um sim definitivo”. São coisas diferentes, explica Bento XVI. “Se desaparecer o casamento entre o homem e a mulher, desaparece a raiz da nossa cultura”. As palavras do Papa são recebidas pelos padres presentes com um longo aplauso.

O mundo vê o escândalo no celibato, enquanto “não quer ver que existem também os escândalos dos nossos pecados, que obscuram o grande escândalo”. O Papa ressalta “enorme fidelidade” e “grande sinal da fé” no celibato.

O Papa pediu aos sacerdotes que “tornem possível para todos a Eucaristia dominical e para celebrá-la de forma a tornar visível o Senhor”, além de “serem presentes para os sofredores”.

A adoração do Santíssimo concluiu a vigília. Calor, alegria e também oração dominaram a atmosfera da praça. O Santo Padre foi recebido com um grande aplauso e um forte coro de “Bento, Bento”. O Papa estava sorridente.

Aos leigos e religiosas foram preparados somente dois setores na Praça São Pedro para a noite de quinta-feira, todos os outros foram reservados aos sacerdotes, aproximadamente 15 mil, em Roma para celebrar com o Santo Padre a conclusão do Ano Sacerdotal.

A Igreja é imaculada e indefectível

Papa2Após cada campanha de ataques contra ela, a Igreja sempre aparece mais forte e esplendorosa do que antes

Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

A saraivada de notícias que, nas últimas semanas, tenta macular a Igreja Católica, tomando por motivo abusos de crianças cometidos por parte de sacerdotes católicos, atinge um clímax inacreditável.

Decididos a não deixar morrer a fogueira que acenderam, vários órgãos de comunicação social têm se dedicado a investigar o passado, à procura de novas alegações que envolvam o Vigário de Cristo na Terra, o Papa Bento XVI, no que, aliás, têm falhado rotundamente.

Que haja padres despreparados e indignos, ninguém o pode negar; que abusos horríveis foram cometidos, e certamente até em número superior ao registrado, é preciso reconhecer. Mas utilizar falhas gravíssimas, mas circunstanciais, relativas a uma minoria de clérigos, para enxovalhar toda a classe sacerdotal é uma injustiça. E usar isso como pretexto para tentar derrubar a Igreja é diabólico.

Aliás, quanto mais o espírito libertário, relativista e neopagão de nossa época se infiltra na Igreja, tanto mais é de temer que aconteçam crimes de pedofilia. Daí mesmo a necessidade de implantar nos seminários um sistema rigoroso de seleção, de modo a só admitir como candidato ao sacerdócio quem não tenha a propensão de pactuar com o mundo, mas queira ensinar a prática da doutrina católica em toda a sua pureza e dar o exemplo.

A atual campanha publicitária contra a Igreja faz-nos esquecer uma verdade da qual a história nos dá um inequívoco testemunho: foi a Igreja Católica que livrou o mundo da imoralidade, e é porque está rejeitando a Igreja que o mundo tem afundado novamente no lodo do qual foi resgatado.

Veja o documento na íntegra:

http://presbiteros.arautos.org/a-igreja-e-imaculada-e-indefectivel/